Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
228/19.0T9OER.L1-5
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O requerimento de abertura de instrução do assistente tem que ter uma estrutura semelhante a uma acusação e conter a descrição de todos os factos que preencham os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime denunciado e que permitam conduzir a uma decisão de pronúncia.
2. A vinculação do Tribunal aos factos alegados decorre das garantias de defesa do arguido, impede o alargamento arbitrário do objecto do processo e permite a preparação da defesa.
3. É nula a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura da instrução.
4.  A ausência de descrição no requerimento de abertura da instrução de todos os factos necessários a uma decisão de pronúncia, importa a rejeição liminar do requerimento, por inadmissibilidade legal, nos termos do art.º 287º, nº 3 do Cód. Proc. Penal.
5. Está vedado ao juiz o convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução do assistente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1-Relatório
No processo nº 228/19.0T9OER que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 1, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, datado de 8/06/2021, na sequência do qual veio o assistente A, a 16/07/21, requerer a abertura de instrução.
O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado, por despacho datado de 4/07/22, nos termos previstos no art.º 287º, nº 3 do Cód. Proc. Penal, por se ter considerado que a instrução é inadmissível por falta de objeto.
Inconformado com esta decisão, o assistente A interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A - O RAI cumpre os requisitos do art.º 283º nº 3. O art.º 283º, nº 3 deve ser interpretado, diversamente do que é explanado no despacho de arquivamento, não como exigindo uma narração circunstanciada e organizada, com exigências acrescidas de complexidade, mas sim apenas exigindo uma narração sintética, clara, concisa e inteligível.
B - O art.º 283º, nº3 do CPP exige uma narração dos elementos nele previstos, mas apenas “se possível”, O facto de não existirem todos esses elementos não pode ser razão de não recebimento da acusação/RAI.
C - Na fase de admissão da instrução não se pode antecipar decisões que só podem ser tomadas na fase de instrução nomeadamente da possibilidade de pronuncia ou não pronuncia, daí que a decisão de admissão do RAI, não pode ser analisada na perspectiva de que se com aquele RAI se pode pronunciar o arguido porque essa é sempre uma decisão posterior.
D - A interpretação conjugada do art.º 283, nº 3 com o art.º 308º não está correcta e invalida a possibilidade de se optar pela instrução como uma faculdade, já que em última instância, com tal interpretação se estaria a impedir a existência desta fase processual já que se cumulava na fase de admissão toda a instrução.
E - O RAI tem objecto é inteligível e os factos referidos não podem ser analisadas antecipadamente como podendo dar azo posteriormente em fase da própria instrução a uma alteração substancial tal interpretação uma vez mais está a antecipar decisões posteriores para a fase de admissão do RAI o que não é previsto na norma do 287º do CPP.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
1. O assistente interpôs recurso da decisão proferida nos presentes autos em 04-07-2022 que, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, rejeitou o requerimento de abertura de instrução pelo mesmo apresentado.
2. O requerimento de abertura de instrução não cumpre os requisitos exigidos pelo art.º 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na justa medida em que não contém, na sua descrição, os elementos do tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência.
3. As considerações constantes do requerimento de abertura de instrução, designadamente, a menção à realização de manobra de retornar à via da direita sem tomar as devidas precauções colocando em perigo quem aí circula, não são suficientes para considerar devidamente descrito o elemento subjectivo do ilícito imputado, ainda que cumprido numa visão minimalista.
4. O requerimento de abertura de instrução, não contém uma enunciação precisa, concreta e logicamente ordenada dos factos que integram o elemento típico subjectivo do crime que se pretende ver imputado ao arguido.
5. Não cumprindo esse requerimento as formalidades a que se reporta o art.º 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, outra solução não tinha a Sra. Juiz de Instrução que não a de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por ser inadmissível a instrução por falta de objecto.
6. A decisão recorrida não interpretou nem aplicou incorrectamente quaisquer normas legais, designadamente, as indicadas pelo recorrente e muito menos violou alguma norma legal.
7. Deve manter-se a decisão recorrida, negando-se provimento ao presente recurso.”
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância, nos seguintes termos:
1. Inexiste circunstância que obste ao conhecimento do Recurso, tempestivamente interposto por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito fixado nos autos.
Em tempo, o Ministério Público respondeu ao Recurso interposto pelo Assistente A.
2. Delimitação do objecto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No essencial, o Assistente A sustenta que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine a admissão do requerimento de abertura de instrução por não se verificar inadmissibilidade legal da instrução.
3. Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a completa e bem fundamentada resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, ao recurso interposto pelo Assistente A.
Com efeito, examinados os fundamentos do recurso interposto e da douta decisão recorrida, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância identificou corretamente o objeto do recurso, rebatendo especificadamente todos os aspetos nele suscitados e argumentando com clareza e correção jurídica e indicando doutrina e jurisprudência pertinentes, o que merece o nosso total acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto do recurso em análise diz respeito.
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Pelo exposto, somos do parecer de que o Recurso interposto pelo Assistente A deve ser julgado improcedente e, consequentemente, deve manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.”
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2 –  Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
A questão a decidir neste recurso consiste, assim, em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine a admissão do requerimento de abertura de instrução, por não existir inadmissibilidade legal da mesma.
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3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
É a seguinte a decisão recorrida:
Nos presentes autos, o MP no fim do inquérito proferiu despacho de arquivamento porquanto, entendeu não ter recolhido indícios suficientes da prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p. no artigo 148º do CP.
O assistente veio requerer a abertura da instrução, fazendo uma análise detalhada da prova produzida em inquérito e dos preceitos e hipóteses em analise, mas não descrevendo de forma circunstanciada e organizada no espaço e no tempo os factos ocorridos, não aludindo de forma concreta ao elemento subjectivo do tipo de crime, referenciado ao arguido.
Estatui o artigo 287º, do Código de Processo Penal, que a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido relativamente a factos pelos quis o MP ou o assistente em caso de procedimento dependente de acusação particular tiver deduzido acusação;
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação.
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e tem carácter facultativo, não havendo lugar a instrução nas formas de processo especiais, sem prejuízo do disposto no artigo 391.º do Código de Processo Penal.
O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c).
O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
A interpretação de tal disposição terá que ser articulada com o disposto no artigo 308º, do mesmo diploma do qual resulta que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia, sendo correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior, o disposto no artigo 283.º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.
Por seu turno o artigo 283.º prevê que a acusação deverá conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento do MP, é mais do que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento do MP (para o qual existe reclamação hierárquica) uma vez que consubstancia uma verdadeira acusação.
Sem a descrição de factos concretos que consubstanciem uma conduta penalmente punível com os seus elementos objectivos e subjectivos, e a indicação do seu agente e a indicação do ilícito pelo qual se pretende ver aquele pronunciado a instrução não tem objecto, ou seja não pode haver instrução.
Sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios inúteis, sendo que ainda que fossem apurados factos concretos se tal viesse a constar da decisão instrutória seria nula, por violação do disposto no artigo 309º supra referidos.
O requerimento do assistente não se encontra elaborado de acordo com o acima exposto.
Efectivamente, o assistente, no seu requerimento para a abertura de instrução, não faz alusão ao comportamento do arguido que integre o elemento subjectivo do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência, e nem tão pouco faz uma descrição espácio temporal circunstanciada dos factos, sendo certo que a negligência é particularmente difícil de descrever e, posteriormente, provar.
A instrução não é primacialmente uma fase investigatória e sem que estejam descritos no RAI os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado não pode haver instrução porque a mesma não teria objecto.
Aliás, nos termos do artigo 309º do CPP a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para a abertura de instrução.
Se o Tribunal na decisão instrutória acrescentasse os elementos subjectivos do tipo de crime em falta a decisão seria nula por proceder a uma alteração substancial de factos.
Assim sendo, e face à falta de objecto é inadmissível a instrução requerida, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 287º do CPP, rejeito o requerimento de abertura de instrução formulado nos autos pelo assistente.
Custas pelo assistente que se fixam em 2 UCS.
Notifique.”
Esta decisão reporta-se ao requerimento de abertura da instrução do assistente, no qual foram elencados os seguintes factos:
A - Identificação do arguido:
B (doravante denunciado), título de residência nº ..., emitido em 11.06.2018, pelo SEF, de nacionalidade Brasileira, nascido a 23.10.1982, residente em Rua ...
B- Dos Factos:
1. A conduzia o seu motociclo, matrícula ..., marca Honda, modelo Hornet CB600F, no dia 13/7/2018, pelas 00H45, na Marginal, sentido Lisboa – Cascais;
2. A Av. Marginal possui duas vias de trânsito do referido sentido;
3. Seguia na via da esquerda. À sua frente, ligeiramente distanciado, seguia o motociclista, Sr. C;
4. Quando circulavam na Av. Marginal, em Paço de Arcos, encontravam-se para entrar na Av. Marginal proveniente da Av. Miratejo, três veículos na seguinte ordem: um automóvel, uma scooter e o veículo de matrícula D, marca Opel, modelo Adam;
5. Os veículos que pretendem entrar na Av. Marginal não possuem prioridade;
6. O veículo de matrícula D sai inesperadamente da faixa de acesso e invade a via da esquerda onde transita o motociclista que seguia à frente do A;
7. O motociclista consegue evitar que o veículo D lhe bata acelerando e desviando-se para a esquerda quase a roçar o muro separador da Av. Marginal para evitar que o referido veículo lhe embatesse;
8. A transitando mais atrás conforme já descrito e observando a manobra perigosa efetuada pelo condutor do veículo D, reduz a velocidade, travando para não lhe embater na traseira e posiciona-se na via da direita ao eixo da via, atrás da scooter que tinha progredido na via da direita na sequência do acesso à marginal proveniente da Av. Miratejo;
9. A manteve a distância de segurança para a scooter que segue à sua frente;
10. No lapso de tempo que se segue, A é embatido pelo veículo D que inesperadamente se desvia para a via da direita;
11. Resultado do embate, A tenta manter o motociclo na via mas não consegue e acaba por despistar-se embatendo no gradeamento da Escola Náutica e num poste de iluminação;
12. As testemunha que circulavam no mesmo sentido, mais atrás, observam que o veículo D embate na perna do A ou no seu motociclo, mas à distância não conseguem precisar onde o veículo embate;
13. Na sequência do acidente, foi accionado o INEM e o A encaminhado para as urgências do Hospital São Francisco Xavier, onde ficou hospitalizado;
14. Os danos corporais sofridos pelo A foram os constantes dos relatórios dos clínicos do HSFX.
15. Dado que A ficou imobilizado no Hospital, o seu pai iniciou as diligências quer junto da PSP quer junto das testemunhas para se inteirar como se deu o acidente dado que nos dias que se seguiram, A não conseguia lembrar-se de pormenores do acidente.
16. O seu pai, E, efetuou a participação por email às companhias dos referidos veículos no dia 26/Julho/2018;
17. No dia 2/08/2018 deslocou-se à sua residência o perito, Sr. F, nomeado pela Companhia Seguros Zurich para falar com A, tendo recolhido o seu depoimento que assumiu o descrito na participação, tirou fotografias dos bens (capacete, mota, roupa e objetos danificados) deixou impresso para lhe ser enviado com indicação dos valores dos bens danificados excetuando os danos relativamente ao motociclo e despesas de saúde.
Foi observado pelo Sr. F os vestígios de marcas existentes no garfo esquerdo da suspensão dianteira da mota como possível contacto dadas as marcas na jante direita traseira do veículo tiradas na altura do acidente pela testemunha, FV.
18. Foi F, quando da deslocação efetuada, que informou A e seu pai que já tinha falado com a testemunha G tendo transmitido que o mesmo era perito de seguros.
19. Refira-se que A apenas conhecia o Sr. C desconhecendo o Sr. G e o Sr. FV, situação que poderá ser constatada pela verificação dos operadores telefónicos sobre a não existência de qualquer contacto telefónico desde sempre até à data do acidente. A informa que poderá ter havido contacto no âmbito das concentrações de motards sem nunca ter existido qualquer outra relação.
20. O pai do A, E, só conseguiu enviar o documento ao Sr. F a 26/08/2018 dado que diariamente se deslocava com a esposa e mãe do A ao Hospital São Francisco Xavier.
21. Na sequência da consulta de seguimento, foi detetado pelo corpo clínico que as vértebras não estavam conforme esperado e nessa sequência, A ficou internado a 7/8/2018;
22. Transmita-se que foi colocado ao A colar cervical inicialmente e em agosto colete tipo Minerva, que o inibia de baixar o pescoço não lhe proporcionando condições de efetuar determinadas ações nas condições habituais diárias: alimentação, higiene, mobilidade, dormir, repousar, ler, escrever, etc.
23. Na sequência do email enviado ao Sr. F, este respondeu que devia efetuar o envio da informação à companhia dado que já fechado o processo da sua parte;
24. A documentação das despesas pedida pelo Sr. F, foi enviada à Zurich em 27/8/2018;
25. E contactou o Sr. F a 27/08/2018 tendo este informado que era uma situação difícil e muito complexa de apurar responsabilidades, que o condutor do veículo não assumiu que vinha da Av. Miratejo, mas que transitava na Av. Marginal desde Lisboa e que tinha sido ultrapassado por motas pela direita. E referiu as marcas na jante do veículo tiradas logo a seguir ao acidente por uma testemunha e propôs que se seguisse uma metodologia objetiva que eliminasse a subjetividade argumentada pelo condutor do veículo D que não teve qualquer acolhimento.
26. Não houve por parte da companhia de seguros Zurich uma reconstituição do acidente a qual permitiria -clarificar algumas afirmações do condutor do veículo D.
27. E na sequência da conversa telefónica tida com o Sr. F iniciou nos dias seguintes diversas ações que se passam a descrever:
27.1. Indagação junto da Divisão de Trânsito da PSP de Oeiras sobre a existência de câmaras de vigilância na zona da Av. Marginal e da Av. Miratejo, tendo sido informado que deveria obter a referida informação da Estradas de Portugal;
27.2. Indagação junto da Estradas de Portugal da existência de câmaras de vigilância na zona da Av. Marginal e da Av. Miratejo, tendo sido informado da não existência;
27.3. Indagação junto da câmara Municipal de Oeiras da existência de câmaras de vigilância na zona da Av. Marginal e da Av. Miratejo, tendo sido informado da não existência;
27.4. Indagação junto da Estação de Serviço da BP localizada na Av. Miratejo da existência de câmaras de vigilância pois as mesmas teriam a possibilidade de no seu raio de visão, de poder visualizar o veículo ou algo que contribuísse para o eventual esclarecimento tendo sido informado da sua existência mas que a guarda das imagens era mantida apenas pelo período de 30 dias, pelo que à data já não existiam;
27.5. Diligências na obtenção de Laboratório que pudesse apurar a que material correspondia os vestígios existentes no já referido garfo da mota. Para o efeito foi consultado o LNEC que sugeriu o contacto com o IPAC – Instituto Português de Acreditação sobre as instituições habilitadas para o efeito;
27.6. Assim, foram contactadas as seguintes instituições:
27.6.1. ISQ - Instituto Soldadura e Qualidade
27.6.2. Abimota
27.6.3. Instituto Superior Técnico (Microlab)
27.6.4. IPN - Instituto Pedro Nunes
27.6.5. Faculdade de ciências e Tecnologia da Universidade Nova (CENIMAT)
27.7. Obtida que foi a informação da instituição habilitada para a realização dos referidos testes, Instituto Superior Técnico (Microlab), foi colocado a parte da suspensão com os referidos vestígios;
27.8. O referido laboratório elaborou o relatório que se anexou aos autos;
27.9. E enviou à OPEL o resultado da amostra que identifica determinados metais solicitando a colaboração da referida empresa para a confirmação se os metais fazem parte das jantes que equipam o Opel Adam. Apesar da insistência ainda não foi possível obter a resposta;
28. Independentemente da análise laboratorial, E na qualidade de procurador de A e com base no auto de ocorrência, escreveu carta à companhia de seguros Zurich a demonstrar que as afirmações do condutor do veículo D, eram totalmente esclarecedoras de que o referido condutor tinha invadido a via da esquerda e que ao quase bater no motociclista, assusta-se e desvia-se para a direita sem tomar as devidas precauções apanhando A.
29. A Zurich manteve a sua posição de recusa.
30. A peritagem do motociclo de A, 53-II-02, foi efetuada no dia 7/11/2018 após a análise laboratorial no Microlab, recomendação preconizada pelo referido Laboratório para evitar contágio dos vestígios;
31. Da peritagem, resultou a avaliação do motociclo em 4850 euros e o salvado em 700 euros.
32. Dado que o condutor do veículo D afirma não vir da Av. Miratejo, seria adequado pedir que fosse obtido da operadora telefónica do referido condutor a listagem das chamadas telefónicas bem como a triangulação das chamadas eventualmente realizadas nos 120 minutos que antecedem a hora do sinistro de forma a poder ser esclarecido se provinha de Lisboa ou de outro local mais próximo.
33. O denunciante sofreu ferimentos (derivados do embate e projecção contra o passeio e gradeamento), esteve internado no Hospital São Francisco Xavier de 13.07.2018 a 20.07.2018, sem que haja completa reabilitação, continua com acompanhamento médico e sujeito a tratamento.
34. O denunciante sofreu nomeadamente as seguintes lesões: Clavícula direita e vertebras C+D1 fracturadas, escoriações diversas e corte no pé (lesões e consequências melhor discriminadas nos boletins médicos de alta que se juntaram;
35. O denunciante está desde então impedido de trabalhar (ver CIT) (…).”
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3.2. - Mérito do recurso
Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que rejeitou o requerimento do assistente para abertura de instrução, com fundamento na inadmissibilidade da mesma, nos termos do art.º 287º, nº 3 do Cód. de Proc. Penal.
Segundo o previsto no art.º 286º, nºs 1 e 2 do Cód. de Proc. Penal, a instrução é uma das fases preliminares do processo, com carácter facultativo, que visa a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito, ou seja, da decisão de deduzir acusação ou despacho de arquivamento, em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento.
Diz-nos o citado art.º 287º, nos seus nºs 1 e 2, que a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, não estando o requerimento sujeito a formalidades especiais, mas devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que se justifique, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art.º 283º do mesmo diploma.
Prevê-se nesta norma que:
“3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
(…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.
Ora, a instrução a requerimento do assistente, na sequência da não acusação do arguido, tem por finalidade conseguir a submissão deste a julgamento pelos factos que, no entender do assistente, consubstanciam a prática de uma actividade criminosa e que podem levar à aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
Por esta razão, e em obediência aos princípios do acusatório e do contraditório que regem o processo penal, o requerimento de abertura de instrução do assistente tem que ter uma estrutura semelhante a uma acusação, dado que, à semelhança do que é exigido para a acusação, o citado art.º 287º, nº 2 impõe que o requerimento contenha a descrição clara e ordenada, ainda que sintética, de todos os factos susceptíveis de responsabilizarem criminalmente o arguido, ou seja, dos factos que preencham todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime e que permitam conduzir a uma decisão de pronúncia.
Este requerimento, em caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, da mesma forma, a actividade de investigação do juiz e a própria decisão final instrutória.
Tal como acontece com a acusação, também o requerimento de abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum desta fase processual, ou seja, determina o âmbito e o limite da intervenção do juiz em sede de instrução.
A vinculação do Tribunal aos factos alegados, limitadora da atividade instrutória, decorre não só da natureza judicial desta fase processual, como também da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP, e não só funciona como mecanismo de salvaguarda do arguido contra o alargamento arbitrário do objecto do processo, como lhe permite a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
É que na instrução não se pode fazer uma verdadeira investigação, porquanto a mesma não é um novo inquérito, nem se pode através dela alcançar os objetivos próprios do inquérito, havendo outros meios processuais adequados a esse efeito, como sejam a intervenção hierárquica e a reabertura do inquérito, previstos nos art.ºs 278º, nº 2 e 279º do Cód. Proc. Penal.
Admitir entendimento diverso, levaria a transferir para o juiz o exercício da ação penal, ao arrepio de todos os princípios constitucionais e legais em vigor, e a transformar a natureza da instrução de contraditória em inquisitória (cf. neste sentido, o Acórdão do TRP de 15/09/2010, proferido no processo nº 167/08.0TAETR-C1.P1, em que foi relator Vasco Freitas, in www.dgsi.pt ).
Pode ler-se neste Acórdão do TRP de 15/09/2010 que: “(…) De facto, a liberdade de investigação conferida ao juiz de instrução pelo art.º 289º como decorrência do princípio da verdade material que enforma o processo penal, e que lhe permite levar a cabo, autonomamente, diligências de investigação e recolha de provas, não é absoluta, porque está condicionada pelo objecto da acusação. A actividade processual desenvolvida na instrução é uma actividade “materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Entre as causas de rejeição do requerimento para abertura de instrução previstas taxativamente no nº 3 do art.º 287º conta-se a “inadmissibilidade legal da instrução”. Neste conceito cabem apenas as deficiências do conteúdo de tal requerimento, nomeadamente quando dele resultar falta da tipicidade da conduta - e já não as suas deficiências formais. Devendo a pronúncia descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (nº 1 do art.º 308º), se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não contiver tais factos - e sendo nula a pronúncia que os viesse a incluir a despeito de tal omissão -, então temos que, em tais casos, a instrução é inútil, porque não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido. Ora, não admitindo a lei a prática de actos inúteis (art.ºs 137º do C.P.C. e 4º do C.P.P.), será “legalmente inadmissível a instrução quando seja requerida pelo assistente e este não descreva no seu requerimento os factos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido (…)”.
Relacionado com estas exigências está também o regime de nulidades previsto no art.º 309º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, o qual comina com a nulidade a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”.
De tudo o exposto decorre que o legislador quis efectivamente conferir ao requerimento para abertura da instrução uma feição e estrutura similares a uma acusação, devendo o mesmo conter todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e ter o seu objecto definido de uma forma clara e suficientemente rigorosa, a fim de permitir a organização da defesa. 
É o que defende Germano Marques da Silva, in “ Curso de Processo Penal III”, págs. 136 e 137: “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do nº1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e à elaboração da decisão instrutória”.
Nesta matéria, também se pronunciou Souto Moura, in “Jornadas de Direito Processual Penal “, págs. 120 e 121: “Se o assistente requerer a abertura da instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível”.
E ainda Henriques Gaspar, in “As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução” - “Que Futuro para o Processo Penal”, 2009, p. 92-93: “ (…) a estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para a abertura de instrução. (…) Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório. (…) O requerimento para a abertura de instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e de determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura de instrução.”
É também este o sentido em que vem decidindo a jurisprudência maioritária, referindo-se a título de exemplo o acórdão do STJ de 13/01/2011, proferido no processo nº 3/09.0YGLSB.S1, em que foi relator Arménio Sottomayor, in www.dgsi.pt e onde se pode ler que: “ I - O requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento do MP, deve observar o disposto no art.º 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, quer dizer, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis. II - Não tendo sido formulada acusação pelo MP, o requerimento para a abertura da instrução funciona como equivalente dessa acusação, do qual decorre a vinculação factual que o juiz tem de respeitar, pautando a sua conduta no processo, por força do princípio do acusatório, dentro dos parâmetros fornecidos por aquela delimitação factual, uma vez que o juiz não actua oficiosamente e não investiga por conta própria, embora dirija e conduza a instrução de forma autónoma. III -Nestes casos, o requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, resultando da falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática de um crime ao agente a inutilidade da fase processual de instrução. IV -Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida como a proibição da prática de actos inúteis (art.º 137.º do CPC). O CPP não contém norma equivalente, mas tal não impede a aplicação deste preceito nos termos do art.º 4.º do CPP, por se harmonizar em absoluto com o processo penal, havendo afloramentos do referido princípio no art.º 311.º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e no art.º 420.º ao prever a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência. V - Se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente, concluir que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que narra jamais constituirão crime, deve rejeitar tal requerimento, por o debate instrutório nenhuma utilidade ter, porque “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, … quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005). VI - A instrução é de considerar legalmente inadmissível quando, pela simples análise do requerimento para a abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se concluir que os factos narrados pelo assistente jamais podem levar à aplicação duma pena ao arguido. VII - Nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. VIII - O assistente indicou, com minúcia, a conduta do denunciado que, na sua óptica, era integradora dos tipos de crime que entende preenchidos; porém, claudicou quanto ao elemento subjectivo, ficando-se pelo mero uso de expressões conclusivas, sem alegar qualquer facto capaz de pôr em evidência o motivo por que o denunciado voluntariamente assim agiu. IX -Como os poderes de indagação do juiz de instrução se encontram limitados pelos factos alegados, vedado lhe fica indagar das razões por que aquele teria agido contra direito com a finalidade de prejudicar o assistente e de beneficiar a contra-parte, o que constitui verdadeiramente um dos pressupostos do requerimento de abertura de instrução.(…).”
Voltando ao caso dos autos, do requerimento de abertura da instrução em apreço decorre que o crime cuja prática o assistente pretende imputar ao arguido é o de ofensa à integridade física por negligência.
Este crime vem previsto no art.º 148º, nº 1 do Cód. Penal, nos seguintes termos:
“1 - Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”
Quanto à actuação por negligência dispõe o art.º 15º do mesmo diploma que:
“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
Ora, percorrendo o requerimento de abertura de instrução, verifica-se que do mesmo não consta a descrição, ainda que sintética, de factos bastantes para o preenchimento do elemento subjectivo deste tipo legal de crime.
Na verdade, o que aí se faz, já fora da parte em que se elencam os factos, é uma mera referência à falta de precaução do arguido na realização das manobras descritas nos factos e que isso o levou a infringir os art.ºs 35º, nº 1 e 38º, nº 1, 2, 3 e 4 do Cód. Estrada.
Não se referem quais os deveres de cuidado concretamente violados pelo arguido, quais os factos que integram a violação desses deveres, nem quais os factos de onde decorre que a violação de tais deveres foi feita de forma consciente ou inconsciente.
Ora, a descrição dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes negligentes é tanto mais exigente, quanto é complexa a sua estrutura e difícil a comprovação da sua ocorrência.
A dificuldade na descrição factual da actuação negligente decorre da própria natureza destes crimes, os quais têm uma estrutura complexa e muito diferente da dos crimes dolosos, como se explicou, por exemplo, no acórdão do TRC de 17/09/14, proferido no processo nº 150/12.0EACBR.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt , também citado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso: “ I- A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa. II- O tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objetivo de cuidado; a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado. III- A violação pelo agente do cuidado objetivamente devido é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”. IV- A não observância do cuidado objetivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo. V- Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado. VI- Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.”
Veja-se também a este respeito o decidido no Acórdão do TRL de 4/04/19, proferido no processo nº 15/14.1GTALQ.L1-9, em que foi relatora Cristina Branco, in www.dgsi.pt: “ I- A construção dos crimes dolosos e dos crimes negligentes é, pela sua própria natureza, fundamentalmente diversa. O tipo de crime negligente e a qualificação da conduta negligente incluem, como elemento base, o desvalor de acção, com a infracção de dever objectivo de cuidado, a que podem acrescer a previsibilidade, a cognoscibilidade e a evitabilidade do resultado. A violação do dever de cuidado, ou a contrariedade ao cuidado devido, constitui o desvalor de acção, discutindo-se na doutrina o lugar dogmático do resultado nos crimes negligentes de resultado: se pertence ainda ao tipo de crime negligente ou se constitui unicamente uma condição objectiva de punibilidade que se situa fora do tipo de injusto; II-O elemento estrutural e estruturante do crime negligente (acção ou omissão negligente) é o dever objectivo de cuidado. O ilícito negligente supõe sempre a violação de um dever objectivo de cuidado valorada por um critério individual e geral, mas também a exigência de uma conexão de condições objectivas e subjectivas entre a violação de dever e o resultado (…) “.
Como bem refere o Ministério Público, o recorrente não enuncia no requerimento de abertura de instrução em apreço, de modo preciso, concreto e logicamente ordenado, factos que integrem o elemento subjectivo do crime que pretende ver imputado ao arguido, limitando-se a enunciar considerações vagas sobre a realização de manobras, o que inviabiliza a delimitação do objecto do processo.
Na verdade, o assistente apenas indica as razões da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público, descreve os factos supra enunciados, critica a forma como decorreu a fase de inquérito e como o Ministério Público analisou, ou deveria ter analisado, os elementos de prova e sugere algumas outras diligências para obtenção de prova.
Em momento algum, descreve os factos concretos suscetíveis de integrar o elemento subjectivo do crime de ofensa à integridade física negligente, nomeadamente:
- o conhecimento pelo arguido do dever objectivo de cuidado violado;
- a previsão pelo arguido que da violação do seu dever de cuidado resultariam as lesões sofridas pelo ofendido ou a ausência desta previsão;
- a sua livre determinação e actuação sem se conformar com a ocorrência dessas lesões;
- a sua vontade de praticar o facto, conhecendo o corresponde desvalor.
A ausência da descrição destes factos no requerimento de abertura da instrução constitui motivo para a sua rejeição, sendo de aplicar aqui a doutrina fixada pelo STJ no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, publicado no D.R. nº 18/2015, Série I de 2015-01-27, por identidade de razão ( neste sentido decidiu o Acórdão do TRE, datado de 17/03/2015, proferido no processo nº 1161/12.1GBLLE.E1, em que foi relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt ).
Esta jurisprudência é a seguinte: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Ora, não tendo sido articulados no requerimento de abertura da instrução todos os factos necessários a uma eventual decisão de pronúncia, impõe-se concluir que o assistente não cumpriu o ónus previsto no art.º 283º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, o que importa a rejeição liminar do requerimento de abertura da instrução, nos termos do art.º 287º, nº 3 do mesmo diploma, por inadmissibilidade legal desta fase processual.
É que ao não serem elencados todos os factos necessários a uma decisão de pronuncia, é inútil iniciar a fase de instrução, segundo o princípio constante do art.º 130º do Cód. Proc. Civil, aplicável por remissão do art.º 4º do Cód. Proc. Penal (cfr, neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário ao Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2007, página 737).
O STJ tem entendido que na densificação do conceito da «inadmissibilidade legal da instrução» se integram os casos em que, pela simples apreciação do requerimento de abertura de instrução, e sem recurso a qualquer elemento externo, o juiz possa concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à pronúncia do arguido e à eventual aplicação de uma sanção após o julgamento, seja por falta de pressupostos processuais, seja pela não verificação de condições objectivas de punibilidade, seja porque os factos invocados não constituem um crime.
Neste contexto, há ainda que ter em conta a seguinte jurisprudência fixada no acórdão do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in www.dgsi.pt:
“Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
Por estar vedado ao juiz o convite ao aperfeiçoamento do requerimento do assistente, torna-se necessário que este alegue no requerimento de abertura de instrução todos os factos concretos suscetíveis de integrar os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo de crime que imputa ao arguido, pois a sua posterior adição constituirá uma alteração substancial dos factos, nos termos previstos no art.º 1º, al. f) do Cód. Proc. Penal, que a lei não permite.
Em suma, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do nº 3 do citado art.º 287º do Cód. Proc. Penal, quando da análise do requerimento para abertura da instrução resulta que o assistente não cumpriu o ónus de descrever com clareza os factos dos quais decorre o cometimento pelo arguido de determinado ilícito criminal, pelo que, em consequência, também não delimitou o objeto do processo, não permitiu o exercício do direito de defesa e não forneceu ao Tribunal os elementos sobre os quais teria que proferir um juízo de suficiência ou insuficiência dos indícios da verificação dos pressupostos da punição.
Foi o que sucedeu no caso dos presentes autos.
Em face de tudo o exposto, verifica-se que a decisão recorrida não merece censura, impondo-se julgar o presente recurso improcedente.
*
4 – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se integralmente a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2023
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Carla Francisco
Isilda Pinho
Luís Gominho