Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE ROSAS DE CASTRO | ||
Descritores: | PODER DEVER DE CORRECÇÃO INADMISSIBILIDADE LEGAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/20/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. Em matéria de castigos corporais a crianças, é conhecido todo um lastro doutrinário e jurisprudencial que os toleram ou admitem, tendo por referência o poder/dever de correção ou educação ou ideias de adequação social, dentro de certos critérios de proporcionalidade. 2. Essa abertura à aplicação de castigos corporais sobre crianças e/ou que tenham por efeito a sua humilhação é hoje intolerável à luz de padrões internacionalmente reconhecidos, que nos vinculam e/ou servem de referência e paradigma interpretativo do direito interno. 3. Com efeito, a nível das Nações Unidas, o Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas sobre Violência sobre Crianças (2006) tem por mensagens centrais a necessidade de pôr-se fim às justificações dadas por adultos a respeito da violência sobre crianças, surja esta sob a forma de «tradição» ou disfarçada de «disciplina»; e a ideia de que as crianças, pela sua especificidade única, que se prende com as suas potencialidades, vulnerabilidades e dependência, precisam de mais proteção, e não de menos proteção, contra a violência. 4. Ainda no plano das Nações Unidas, o Comité de Ministros sobre o Direito das Crianças, que monitoriza o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança, enfatiza no seu Comentário Geral nº 8 (2006) que resulta daquela Convenção a obrigação de os Estados proibirem amplamente os castigos corporais e de outras formas cruéis ou degradantes de punição, incluindo, por exemplo, o de as sujeitar a posições desconfortáveis. 5. A nível do Conselho da Europa merece realce a Recomendação 1666 (2004) da Assembleia Parlamentar, sob o sugestivo título Europe-wide ban on corporal punishment of children (proibição em toda a Europa do castigo corporal sobre as crianças). Aponta ela caminhos tão expressivos quanto estes: garantir uma preocupação geral pelos direitos fundamentais das crianças, em particular os seus direitos à dignidade humana e à integridade física; a promoção de práticas educativas positivas e não violentas de resolução de conflitos por parte dos pais e outras pessoas que cuidem de crianças; garantir que o castigo corporal e outras formas nocivas e humilhantes de disciplina sejam incluídas na definição de violência doméstica ou familiar e que o combate a este fenómeno faça parte integrante das estratégias contra a violência doméstica e familiar. 6. Ainda no quadro do Conselho da Europa, o Comité de Ministros já pelo menos desde 1985 que preconiza que os Estados devem adotar medidas no sentido de afastar a violência dentro da família e nomeadamente os castigos corporais sobre as crianças. 7. O Comité Europeu dos Direitos Sociais, que monitoriza o cumprimento da Carta Social Europeia, já decidiu várias vezes, incluindo a propósito de Portugal, que a Carta obriga os Estados a proibirem e penalizarem todas as formas de violência sobre crianças, entendida esta como quaisquer atos ou comportamentos capazes de afetar a sua integridade física, dignidade, desenvolvimento ou bem-estar psicológico. 8. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, por último, já se pronunciou várias vezes sobre castigos corporais ou outras formas de tratamento cruel ou degradante aplicados a crianças, também vincando uma orientação contrária a semelhantes práticas, seja no contexto do art.º 3º, seja no do art.º 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos; aí foi já considerado um tratamento degradante, entre outros, aquele que humilha, que afeta a dignidade humana e/ou que causa sentimentos de medo, angústia e inferioridade, capazes de quebrar a resistência física e moral da vítima ou levá-la a fazer algo contra a sua vontade ou consciência. 9. À luz do exposto, integra o conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos», para efeitos do art.º 152º, nº 1 do Código Penal, a conduta de uma mãe que, tendo em vista fazer parar a birra de uma filha de três anos de idade, a submerge numa piscina até à zona do queixo e, alguns dias depois, com o mesmo propósito, a leva de pijama vestido para o chuveiro e a molha com água fria, pelas cinco da manhã. 10. A estratégia seguida pela Arguida para pôr fim às birras nada tem de pedagógico, posto que meramente assente na capacidade física que o adulto tem de sujeitar um ser frágil a uma situação de intencional choque, poderá ter posto fim às birras, mas à custa de um óbvio, instantâneo e muito lamentável sofrimento, que nenhum pai, nenhuma mãe, ninguém, está autorizado ou legitimado a causar. 11. Do que se trata é de uma conduta que sujeitou a criança, indefesa, a duas situações de profundo desconforto físico e de degradação da sua condição de pessoa com direitos e dignidade, para mais protagonizadas por uma figura que encararia como protetora. 12. As experiências pelas quais a criança passou tinham todos os ingredientes para lhe gerar, para além do desconforto físico, sentimentos de humilhação, insegurança e desproteção, que são, quantas vezes, como se sabe, palco para a emergência de repercussões psicológicas a nível de medos, ansiedades, vergonhas, baixa autoestima e dificuldades em gerir as emoções, ainda que não haja notícia de que estas repercussões se hajam evidenciado por ora no caso concreto. 13. O facto de a finalidade última da Arguida ser a de fazer parar as birras não afasta o dolo direto, posto que há dois tipos de dolo direto, ambos radicados no art.º 14º, nº 1 do Código Penal: aquele em que a realização do tipo objetivo de ilícito constitui o verdadeiro fim da conduta; e aquele em que a realização típica não constitui o fim último do agente, mas surge antes como pressuposto ou estádio intermédio necessário ao seu conseguimento. (Sumário da responsabilidade do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: 1 – Relatório Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 5) foi proferida sentença no dia 16 de outubro de 2024, que contém o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, tudo visto e ponderado, julgo procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente: A. Condeno a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspendendo-se a execução da pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo período de 3 (três) anos, subordinando-a a regime de prova, não se aplicando qualquer das penas acessórias a que alude o artigo 152.º, n.ºs 4 a 6, do Código Penal. B. Condeno a arguida AA a pagar a BB a quantia de €1.000 (mil euros) quantia que arbitro ao abrigo do disposto no artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 82.º-A, do Código de Processo Penal. C. Condeno a arguida AA no pagamento das custas processuais criminais, fixando a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta.» A Arguida AA, com os demais sinais identificativos constantes dos autos, interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: «A) A aplicação de uma pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, ainda que suspensa na execução, no caso concreto é, atento o seu excesso, uma consequência dos erros de julgamento acima enunciados. B) O Tribunal baseou a sua decisão na presunção de dolo direto, desconsiderando as declarações da Recorrente e o contexto dos factos, nos quais não há qualquer elemento que demonstre uma intenção lesiva. C) A sentença recorrida violou os princípios basilares de proporcionalidade, necessidade e adequação, previstos no artigo 18.º, n.º 2 da CRP e no artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, aplicando uma pena excessiva e estigmatizante, quando devia absolver. D) A sentença deve ser revogada porquanto incorre em erros de julgamento quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito, e ainda, quanto ao enquadramento da dosimetria da pena, pelo que se impõe o seu reexame abrigo do artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPP; E) Os factos constantes dos pontos C), E), I), J), K) da matéria de facto dada como provada, encontram-se incorretamente julgados. F) No ponto C) da matéria de facto foi dado como provado que:” Em dia não determinado, mas situado na segunda quinzena de Junho/inicio de julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a chorar em tom alto”; G) Com base nas declarações da Recorrente, tal facto deve ser alterado para a seguinte redação: C) Em dia não determinado, mas situado na segunda quinzena de Junho/início de julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a gritar e a espernear, recusando todas as opções que a arguida lhe apresentava. H) Esta alteração é relevante para uma apreciação de um juízo de culpabilidade da arguida. I) No Ponto E), e por referência ao episódio da piscina, foi dado como provado que “Em consequência, BB assustada, cessou a birra.” J) Este facto deve ser alterado, passando a ter a seguinte redação: E) “Em consequência, BB cessou a birra”. K) Para esta alteração contribuíram as declarações da Recorrente da gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-09-12_11-37-22.mp3”, minuto 34:09 ao minuto 34:47, minuto 12:28 ao minuto 12:40, minuto 12:47 ao minuto 13:09, obtida na sessão de 12.09.2024, conforme respetiva ata de audiência. L) A violação do princípio do in dubio pro reo é manifesta neste erro de julgamento, considerando que o Tribunal a quo deu como provado que a menor teria ficado "assustada" sem qualquer base probatória concreta que sustentasse tal conclusão. M) Para esta alteração também contribuem os depoimentos das testemunhas CC (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-47-54.mp3”, minuto 04:24 ao minuto 06:31, obtido na sessão de 12.09.2024, conforme respetiva ata de audiência), DD (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-55-44.mp3”, minuto 05:44 ao minuto 06:00, minuto 07:14 ao minuto 07:59 e minuto 10:24 ao minuto 10:30, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência), no que respeita à situação ambiente e imagem global do facto favoráveis à ausência de um comportamento “assustado”. N) Os Pontos I), J), K), M) da matéria de facto devem ser dados como não provados. O) Quanto a estes factos, não existe um único meio de prova do qual resulte que a Recorrente teria agido com a intenção de "assustar," "provocar choque" e "humilhar," em vez de "relaxar" e "acalmar”. P) Uma análise correta das declarações da Recorrente (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-55-44.mp3”, minuto 15:00 ao minuto 15:17, minuto 11:14 ao minuto 12:03 e minuto 37:19 ao minuto 38:23, obtido na sessão de 12.09.2024, conforme respetiva ata de audiência) acompanhadas dos depoimentos das testemunhas EE, CC, DD, dos agentes FF e GG, e ainda a prova documental correspondente ao aditamento de Fls. 47 a 49 e o Relatório de Diligências Externas de Fls. 52., impunham a ausência de prova quanto aos factos aí descritos. Q) O Tribunal distorceu as palavras da Recorrente – quanto à sua explicação, quanto à intenção dos atos, da leitura de um artigo da internet sobre a utilização da água como elemento natural que ajuda a relaxar - interpretando a sua conduta, como tendo o objetivo de "assustar," "provocar choque" e "humilhação," e desconsiderou, igualmente, o resultado, obtido pela conduta, no sentido de que, efetivamente a criança relaxou e acalmou, inexistindo quaisquer outros factos concretos que permitam concluir pelo “trauma”. R) No âmbito do princípio do in dubio pro reo, torna-se evidente que o Tribunal a quo deveria ter, no mínimo, ficado com dúvidas sobre a intenção subjetiva da Recorrente ao recorrer ao método em questão. S) Não há qualquer prova objetiva que suporte a conclusão de que a Recorrente sabia que estava a maltratar ou que agiu com dolo direto, configurando-se, assim, uma violação do referido princípio. T) Desconsiderou igualmente que o acompanhamento psicológico, realizado por profissionais especializados, confirmou que a menor estava emocionalmente estável e não apresentava qualquer indício de trauma ou prejuízo psicológico. Como reforço da conclusão de ausência de impactos negativos decorrentes dos acontecimentos. U) O Tribunal a quo descurou factos objetivos decorrentes da produção de prova, quanto à “situação ambiente” e imagem global com um conteúdo bastante positivo quanto à atuação da Recorrente em toda a linha maternal com a filha os quais estava obrigado a considerar para a valoração dos factos. V) Para os efeitos dessa imagem global dos factos, deveriam ter sido corretamente valorados favoravelmente à Recorrente, os seguintes meios de prova: (I). Documental: (aditamento de fls. 47), Relatório de Avaliação de Risco de Fls. 184 a 187, e declarações das testemunhas GG (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-18-27.mp3”, minuto 02:22 ao minuto 03:26, minuto 03:54 ao minuto 04:20, minuto 03:32 ao minuto03:40), FF (gravaçãoconstantedoficheiroáudio“Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-27-43.mp3”, minuto 02:45 ao minuto 03:40, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência), DD (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-55-44.mp3”, minuto 20:04 ao minuto 20:27, minuto 05:37 ao minuto 05:42, minuto 06:08 ao minuto 06:17, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência), EE (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-36-40.mp3”, minuto 09:07 ao minuto 09:21, minuto 07:41 ao minuto 08:07 e minuto 08:29 ao minuto 09:05 obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência). W) Com base nestes meios de prova o Tribunal ignorou os elementos objetivos que retratam uma relação maternal afetuosa e saudável, como atestam os depoimentos das testemunhas e os relatórios produzidos. X) Em crimes de violência doméstica, a análise deve contemplar a "situação ambiente" e a imagem global dos factos, como sublinhado pela doutrina e jurisprudência, especialmente dada a exigência de rigor na imputação de intenções criminosas. Y) Os depoimentos das vizinhas e amigas EE e DD, assim como do agente GG, reforçam a postura cuidadosa e protetora da Recorrente com a filha, sendo estas provas cruciais para robustecer a tese de que a intenção da arguida foi sempre o bem-estar da menor. Essas testemunhas descreveram, de forma consistente, uma mãe atenta e dedicada, afastando qualquer presunção de dolo ou comportamento lesivo. Z) Ainda neste contexto o Tribunal fez uma errada valoração do vídeo como meio de prova, para valorar a real intenção da Recorrente para os seus atos, pese embora ter considerado não ser um meio de prova relevante para o Tribunal: Juiz: Uma coisa é o vídeo, outra coisa é o que está aqui descrito que a senhora fez (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-09-12_11-37-22.mp3”, minuto 03:06 ao minuto 03:28, obtido na sessão de 12.09.2024, conforme respetiva ata de audiência). AA) O Tribunal utilizou trechos específicos do vídeo, como “quem ganhou?” e a referência ao signo de taurina, para construir uma narrativa de competitividade ou força punitiva entre mãe e filha. No entanto, essa interpretação é subjetiva e não encontra suporte nos outros meios de prova produzidos. Não há elementos que demonstrem que a Recorrente, ao verbalizar tais frases, estava a admitir dolo ou intenções lesivas. BB) A interpretação que o Tribunal a quo veio, afinal, a dar ao vídeo, não apenas ignora o contexto em que este foi produzido, mas também desconsidera os elementos objetivos e testemunhais que desmentem a narrativa de que a Recorrente teria agido com dolo de causar sofrimento ou humilhação à filha. CC) A própria Recorrente esclareceu que utilizava aquela página para partilhar "coisas boas do dia a dia" e experiências que poderiam ajudar outras mães, sem a intenção de retratar fielmente os acontecimentos ou de admitir qualquer conduta inadequada. DD) Por outro lado, a dramatização que é dada nas expressões utilizadas é comum no formato de vídeos de redes sociais e deve ser interpretada à luz desse contexto, sem presunções de que as expressões ou palavras utilizadas correspondem necessariamente à realidade dos factos. EE) São as próprias testemunhas, amigas, EE, (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-55-44.mp3”, minuto 06:54 ao minuto 07:37, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência) e DD (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-55-44.mp3”, minuto 08:33 ao minuto 09:10, minuto 12:46 ao minuto 13:19,minuto 14:00 ao minuto 14:06, minuto 20:28 ao minuto 21:28, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência) que ilustram ao Tribunal esta diferença. FF) O Tribunal a quo destaca, erradamente, para valorar o dolo contido nestes factos, a questão da Recorrente, no vídeo: “será que a minha filha está bem?”. GG) Ora, no contexto dos factos essa questão reflete, antes, a preocupação típica de uma mãe e a natureza reflexiva e cuidadosa do seu papel parental. HH) Para esta conclusão, contribuem as declarações da Recorrente (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-09-12_11-37-22.mp3”, minuto 41:54 ao minuto 43:08, obtido na sessão de 12.09.2024, conforme respetiva ata de audiência) e os depoimentos das testemunhas DD (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-55-44.mp3”, minuto 17:26 ao minuto 18:56, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência). II) Ao atribuir valor desproporcionado a uma opinião isolada e subjetiva, o Tribunal, também aqui, violou o dever de fundamentação objetiva e ignorou os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo. JJ) O Tribunal a quo, fez uma errada valoração da expressão referida pelo pai da menor à Recorrente: “se calhar não devemos fazer isso”. KK) Esta afirmação não pode de forma alguma ser considerada como elemento incriminatório contra a Recorrente no contexto do caso em análise. LL) Não há qualquer indício no conjunto probatório de que a frase “se calhar não devemos fazer isto” estivesse relacionada com a imputação de maus-tratos ou com a intenção de causar sofrimento à menor. MM) Como tal, também aqui há erro de julgamento porquanto o Tribunal a quo interpretou a frase de forma subjetiva e desproporcional, atribuindo-lhe um peso probatório incompatível com a exigência de certeza necessária para uma condenação em matéria penal. NN) Errou o Tribunal ao equiparar o caso concreto à hipótese de um adulto, colocado vestido debaixo de um chuveiro contra a sua vontade, a um banho de água fria, para concluir que a conduta da Recorrente configuraria uso de força com humilhação. OO) A analogia feita pelo Tribunal, não só descontextualiza a conduta da Recorrente, como também impõe um padrão irreal e desproporcional para o julgamento de práticas parentais e mais uma vez viola, em última análise, o princípio do in dubio pro reo, ao presumir uma motivação dolosa sem suporte em prova objetiva ou na análise global dos factos. PP) O Tribunal a quo desconsiderou factos essenciais à correta apreciação jurídica do caso. Em particular, esses factos são relevantes para o preenchimento dos requisitos do tipo legal do crime imputado, bem como para a análise da verificação de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, como tal devem ser aditados. QQ) Deve ser aditado que "A arguida atuou no modo descrito porque lera na internet um conteúdo sobre a água como elemento natural que ajuda a relaxar". RR) Este facto é essencial para compreender a intenção subjacente à conduta da Recorrente. Ao esclarecer que a sua ação foi motivada pela informação obtida sobre as propriedades relaxantes da água, a matéria de facto permite afastar o dolo direto imputado, uma vez que não demonstra intenção de causar sofrimento ou humilhação, mas sim uma tentativa de acalmar a filha de acordo com os conhecimentos que tinha à disposição. SS) O aditamento é suportado pelas declarações da Recorrente, que foram reconhecidas pelo próprio Tribunal a quo no texto da decisão (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-09-12_11-37-22.mp3”, minuto 06:10 ao minuto 06:24 e minuto 21:33 ao minuto 06:24, obtido na sessão de 12.09.2024, conforme respetiva ata de audiência). TT) Deve ser aditado que: “Em ambos os casos a arguida recorreu a este método depois de ter esgotado todas as opções para fazer cessar o comportamento da menor.” UU) Essa sequência de acontecimentos reflete uma atitude parental legítima, que visava resolver a situação de forma eficaz, e não um comportamento lesivo ou punitivo. VV) Este aditamento decorre das declarações da Recorrente (gravação constante do ficheiro áudio Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-09-12_11-37-22.mp3”, minuto 10:35 ao minuto 11:13, minuto 11:14 ao minuto 12:03, minuto 05:25 ao minuto 05:58, minuto 06:03 ao minuto 06:09, minuto 17:14 ao minuto 17:29, obtido na sessão de 12.09.2024, conforme respetiva ata de audiência). WW) Deve ser aditado que "A arguida mantém com a filha uma relação de afinidade amorosa e carinhosa". XX) A relação entre a arguida e a filha é central para a apreciação da matéria de facto, especialmente em crimes de violência doméstica, que exigem a análise da "situação ambiente" e da "imagem global do facto." YY) Este facto foi amplamente corroborado por testemunhas, como EE (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-36-40.mp3”, minuto 07:41 ao minuto 08:53, minuto 08:29 ao minuto 09:51, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência), e pelos agentes da PSP (gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-18-27.mp3”, minuto 02:45 ao minuto 03:40, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência e gravação constante do ficheiro áudio “Diligencia_538-23.1SXLSB_2024-10-03_10-27-43.mp3”, minuto 02:45 ao minuto 03:40, obtido na sessão de 03.10.2024, conforme respetiva ata de audiência) que intervieram no caso. Está ainda documentado no relatório de fls. 184 a 187, que descreve a relação da arguida com a filha de forma positiva e saudável. ZZ) Ao não incluir tais factos na matéria de facto assente, o Tribunal interferiu na subsunção dos factos ao direito, em concreto na aplicação de normas jurídicas aptas a modificar substancialmente o juízo de censurabilidade penal, tanto pela ausência de requisitos necessários à verificação do tipo legal do crime como pela omissão de circunstâncias que, devidamente analisadas, subsidiariamente, permitiriam fundamentar uma exclusão da ilicitude ou da culpa, como as previstas nos artigos 17.º e 31.º e seguintes do Código Penal. AAA) Em face do exposto, o Tribunal a quo violou princípios fundamentais da justiça penal, como o disposto nos artigos 127.º do Código de Processo Penal, 32.º da CRP (presunção da inocência) o artigo 14.º do Código Penal, o artigo 152.º do Código Penal, impondo-se a alteração da matéria de facto nos termos sobreditos. BBB) Sem conceder quanto à impugnação da matéria de facto, mesmo considerando a matéria de ato dada como provada o resultado da sentença deveria ter sido a absolvição da Recorrida. CCC) Quanto à impugnação da matéria de direito o Tribunal enquadrou os factos no tipo de crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º do Código Penal, quando, efetivamente, deveria ter enquadrado no contexto do exercício das responsabilidades parentais. DDD) A avaliação da "situação ambiente" e da "imagem global" dos factos é fundamental no momento de subsunção jurídica, conforme sublinhado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30.06.2015, Proc. n.º 1340/14.7TAPTM.E1. Essa análise permite contextualizar as condutas imputadas e avaliar se estas, de facto, configuram os pressupostos do tipo penal de violência doméstica. Contudo, o Tribunal a quo desconsiderou ilegalmente esses elementos ao subsumir os factos ao crime em questão, ignorando o contexto relacional e os esforços legítimos da Recorrente no exercício da parentalidade. EEE) O quadro factual em análise encaixa, todo ele, nos mencionados entendimentos no sentido de concluir pelo não preenchimento dos requisitos do crime de violência doméstica tal como consagrados no artigo 152.º, do Código Penal, colocando os factos unicamente no plano das responsabilidades parentais, uma vez que a situação ambiente e a análise global do comportamento da Recorrente demonstra uma relação parental afetuosa e atenta às necessidades da menor que o Tribunal a quo, ilicitamente, desvalorizou. FFF) O Tribunal a quo também violou a função de última ratio que a intervenção penal deve preservar. O direito penal, enquanto instrumento de proteção, deve ser reservado para situações de ofensa efetiva a bens jurídicos dignos de tutela penal, especialmente quando tais ofensas não podem ser prevenidas ou remediadas por meios menos lesivos. GGG) A sentença recorrida, ao criminalizar o método adotado pela Recorrente atenta a situação ambiente e todo o enquadramento global em causa no âmbito da relação parental, desconsiderou a necessidade de garantir a supletividade do direito penal, que não pode ser utilizado para regular comportamentos que, no máximo, seriam merecedores de censura ético-moral. HHH) No caso em análise, o comportamento da Recorrente não ultrapassou os limites de um esforço legítimo de gestão parental, estando em linha com as preocupações e desafios comuns na educação de menores. III) Desta forma, torna-se imperativo reconhecer que a criminalização das condutas da Recorrente não se justifica à luz do princípio da intervenção mínima (ultima ratio). Este princípio, alicerçado nos artigos 18.º e 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como nos princípios implícitos do Código Penal, nomeadamente no artigo 40.º, n.º 1, é amplamente sustentado por uma base doutrinária e jurisprudencial robusta, como ilustrado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 319/2008. JJJ) O Tribunal a quo violou o enquadramento jurídico exigido pelo tipo de crime do artigo 152.º do Código Penal quanto à exigência de especial intensidade dos factos, uma vez que não existe reiteração. KKK) O episódio de vida em apreciação, analisado no seu contexto global, não evidencia a intensidade necessária para caracterizar a infração como maus-tratos na aceção do artigo 152.º do Código Penal. LLL) Os factos provados indicam um episódio isolado, sem repetição, no qual a Recorrente agiu com a intenção de acalmar a filha, sem evidência de abuso de poder ou de tratamento degradante. MMM) O Tribunal desconsiderou por completo a Avaliação de Risco realizada posteriormente que sustenta este entendimento, concluindo que a relação entre mãe e filha apresenta baixo risco e é caracterizada por cuidado e afeto. NNN) Os factos provados, avaliados em todo o seu contexto, não preenchem os pressupostos necessários para a configuração do crime de violência doméstica, principalmente por não espelhar uma situação de maus-tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima. OOO) Quanto ao elemento subjetivo à luz da factualidade provada, a conduta da Recorrente deveria ter sido analisada com base no erro sobre a ilicitude, previsto no artigo 17.º do Código Penal, o qual com base nos factos provados se encontra demonstrada. PPP) A Recorrente atuou sem consciência da ilicitude porquanto influenciada por uma fonte externa, ou seja, um artigo que sugeria que o contacto com a água teria propriedades relaxantes, levando-a a acreditar que tal método era legítimo e ajustado ao bem-estar da menor; o erro não lhe é censurável porquanto a ideia de que o uso pontual da água como instrumento calmante possa ser equiparado a maus-tratos ou violência doméstica carece de consenso social e jurídico. QQQ) Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.11.2012, citado no Acórdão do mesmo tribunal, de 25.02.2015, Proc. n.º 120/08.3GCBGC – A.G1.P1: “A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material ainda não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social, quando a concreta questão “se revele discutível e controvertida”. Nestes termos e nos demais de Direito aplicável, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a Recorrente absolvida assim restituindo ao caso, A costumada JUSTIÇA!» O recurso foi admitido, com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência. * Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta lavrou douto parecer, pugnando também pela improcedência do recurso. * Cumprido o preceituado pelo art.º 417º/2 do Código de Processo Penal, a Arguida veio responder, mantendo a posição que sustentara no recurso e sublinhando a importância de ser feita uma análise global da relação entre a Arguida e a filha, análise essa que, se realizada, determina a conclusão de que inexiste um padrão de conduta abusivo e que possa relevar do crime de violência doméstica imputado. Não se mostra requerida a realização de audiência. Proferido despacho liminar, foram colhidos os “vistos” e teve lugar a conferência. * 2 - FUNDAMENTAÇÃO 2.1 Questões a tratar É hoje pacífico, a partir do preceituado pelo n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal (CPP), que são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal de 2ª Instância, sem prejuízo do poder de apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art.º 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379º, nº 2 e 410º, nº 3, do mesmo Código (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995). A essa luz, são sumariamente as seguintes as questões que a Recorrente suscita e importa tratar: i. Erro de julgamento quanto à matéria de facto, cuja correção passa por alterar a redação dos factos C) e E), por dar como não provados os factos I), J), K) e M) e por aditar factos não considerados pelo Tribunal de 1ª Instância, mas que resultam da prova; ii. Erro de direito quanto à integração das condutas imputadas no tipo legal de crime de violência doméstica; iii. Medida da pena de prisão. 2.2 Os factos 2.2.1 A sentença recorrida Consta da sentença recorrida o seguinte, em matéria de factos provados, não provados e sua motivação: «1. Factos Provados Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e com relevância para a decisão da causa, julgam-se provados os seguintes factos: A. BB é filha da arguida e de HH e nasceu em 6-12-2019. B. BB reside com os pais na Avenida ..., na cidade e concelho de Lisboa. C. Em dia não determinado mas situado na segunda quinzena de Junho/início de Julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a chorar em tom alto. D. A arguida, entendendo que BB estava a fazer uma birra e a “medir forças” consigo, com intenção de fazer com que a filha cessasse o seu comportamento e não o repetisse, pegou na BB e submergiu-a na piscina, até à zona do queixo. E. Em consequência, BB, assustada, cessou a birra. F. Em dia não concretamente apurado mas situado entre o fim de semana de 8/9 Julho de 2023 e o dia 14 de Julho de 2023, cerca das 5h, BB começou a chorar e aos gritos. G. A arguida, de forma a cessar essa nova birra e a fim de evitar que os vizinhos se apercebessem e/ou fossem incomodados pelo comportamento da filha bem como que, esta, noutras ocasiões, repetisse o mesmo comportamento, pegou na BB, que tinha o pijama vestido, e levou-a para a casa de banho, colocou-a no poliban e molhou-a com água fria até a mesma cessar a birra. H. Após a arguida despiu o pijama molhado à filha, que ficou de fralda, após o que a enrolou numa toalha e levou-a para a sua (da arguida) cama, local onde aquela adormeceu. I. A arguida quis e agiu da forma descrita, sabendo que com a sua conduta molestava física e psiquicamente a sua filha BB, submetendo-a a um tratamento indigno, inesperado e susceptível de lhe causar frio, choque térmico, desconforto, angústia e de a atemorizar. J. Ciente de que a sua conduta era idónea a intimidar, compelir a filha a não repetir tais condutas, a arguida actuou da forma descrita, bem sabendo que mais facilmente alcançaria o seu propósito do que se optasse por um meio pedagógico adequado à sua idade. K. A arguida sabia que com a sua conduta condicionava gravemente a saúde e bem-estar psico-social da BB, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana, pondo em perigo o seu saudável crescimento psíquico e causando-lhe sofrimento físico e psíquico. L. A arguida conhecia a idade da BB, estava ciente de que era sua filha menor de idade, que não tinha capacidade de se opor à sua actuação, que era, em razão da idade, especialmente indefesa e que estava a si subordinada, uma vez que era sua progenitora e representante legal e estava aos seus cuidados. M. Bem sabia a arguida que os comportamentos que adoptava para com a sua filha eram exagerados atendendo à idade desta. N. A arguida sabia que agia na casa que era o domicílio de ambas. O. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. P. O grau de risco atribuído à relação entre BB e a arguida é baixo. Q.A arguida trabalha em regime de part-time como assistente de marketing, auferindo, mensalmente, a quantia de pelo menos € 700. R. A arguida é solteira, vivendo maritalmente com o seu companheiro, o qual é informático, auferindo mensalmente quantia não concretamente apurada. S. A arguida tem uma filha, BB, que reside consigo e com o companheiro em habitação própria, ascendendo o montante mensal da prestação bancária a quantia não concretamente apurada e que é suportada pelo companheiro da arguida. T. A arguida é licenciada em comunicação social. U. A arguida não tem averbada qualquer condenação ao respectivo certificado do registo criminal. * 1. Factos não provados 1. Que o facto descrito em C) tenha ocorrido no mês de Maio. 2. Que no momento descrito em F) BB tenha pedido que a mãe fosse para a sua cama ao que a arguida recusou, argumentando que seria mais confortável para todos que a filha fosse para a cama dos pais. 3. Contudo, a criança, aos gritos, continuou a insistir com a mãe. 4. Que o local referido G) fosse uma banheira. Não resultaram provados outros factos, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou sem qualquer relevância para a boa decisão da causa. * 2. Motivação da matéria de facto O tribunal estribou a sua convicção, no que concerne aos factos pelos quais a arguida vinha acusada, na prova documental constante dos autos e nas declarações produzidas pela arguida e pelas testemunhas II (agente da Polícia de Segurança Pública), EE (foi vizinha da arguida entre 2019 e 2024, residindo no 4.º piso do edifício), CC (amiga da arguida e vizinha da mesma desde Maio de 2021, residindo no 8.º piso do edifício), JJ (amiga da arguida desde 2017) FF (agente da Polícia de Segurança Pública) e GG (agente da Polícia de Segurança Pública) em audiência de discussão e julgamento A prova da factualidade descrita em A) resultou do cotejo do teor do assento de nascimento de fls. 8 verso com as declarações produzidas pela arguida que a confirmou. O facto mencionado em B) foi confirmado pela arguida e pelas testemunhas EE, CC, JJ, FF e GG, o que fizeram em consonância. A prova da factualidade descrita em C) a O) resultou do cotejo do teor do CD de fls. 25, do auto de notícia de fls. 3, 15, do aditamento de fls. 47 e da documentação junta a fls. 203 a 214 com as declarações produzidas pela arguida e pelas testemunhas II, EE, CC, JJ, FF e GG em audiência de discussão e julgamento. Com efeito a arguida confirmou a factualidade descrita em C) a E), precisando, porém, que a mesma ocorreu na segunda quinzena de Junho/início de Julho de 2023 (pelo que o facto descrito em 1) não resultou demonstrado, tendo a arguida referido que entre os dois episódios descritos na acusação mediou cerca de uma semana a uma semana e meia). Explicitou que foi buscar a filha ao colégio e, como habitualmente fazia nos meses de calor, foi com a mesma para a piscina do condomínio. Uma vez no local, BB começou a gritar e a espernear, recusando todas as opções que a arguida lhe apresentava para cessar com aquela birra. Pegando na filha, que se encontrava vestida com a farda do colégio, colocou-a no interior da piscina na zona das crianças, ficando a mesma com o corpo coberto de água até à zona do peito e pescoço (sendo que no vídeo a arguida ilustrou com um gesto com a mão que colocou na zona do topo do pescoço e base do queixo), após o que BB se acalmou. Negando que a filha tenha ficado assustada, referiu que a mesma frequenta (e já frequentava à data dos factos) aulas de natação, sendo que passado pouco tempo do episódio foi buscar os bonecos tendo estado a brincar na piscina onde gosta de usar colete por ter receio de resvalar para a zona dos adultos (o que foi mencionado espontaneamente pela arguida). Questionada, referiu que a temperatura da água da piscina não é aquecida, atingindo os 25º durante o verão. Sobre a factualidade descrita em F) a I), a arguida relatou que na data e hora mencionadas na acusação, encontrando-se em casa a dormir, BB começou a gritar, não estando a chorar nesse momento (sendo que pela descrição da arguida, que referiu que ao ser molhada com a água a filha “parou de chorar”, forçoso é concluir-se que a dado momento a criança chorou, não tendo porém sido referido o indicado em 2) e 3), pelo que, na ausência de outros meios de prova, tais factos não resultaram provados). Acordando, a arguida dirigiu-se até ao quarto da filha perguntando-lhe o que a mesma tinha e porque razão estava a gritar, sendo que, apesar de todas as opções que lhe apresentou (explicitou ter-lhe perguntado se tinha sede ou fome ou se queria ir para a cama da mãe), BB não se acalmava. Nessa ocasião, pegou na filha e, mantendo-a com o pijama vestido, colocou-a no interior do poliban (pelo que o facto descrito em 4) não resultou provado). Acto contínuo, com o chuveiro, começou a molhá-la com a água que corria do duche (explicitando que não era água gelada nem quente, sendo água com temperatura “normal da torneira” (sic), acrescentando que era verão), começando pelos pés e subindo pelo corpo, não recordando até que zona do corpo da filha a molhou. Como BB “saiu do foco em que estava de birra, deixou de chorar” (sic), mencionando a arguida que aquele comportamento “relaxou-a” (sic). Seguidamente, retirou o pijama à filha e, deixando-a apenas com a fralda (referiu que apesar de BB contar já com três anos e meio de idade, ainda continuava a usar fralda no período da noite) colocada, levou-a para a sua cama, confirmando o facto mencionado em H). Questionada, referiu que o companheiro, apesar de estar deitado, não presenciou o episódio tendo-se apenas apercebido quando a arguida levou a filha de ambos para dormir na cama do casal. Espontaneamente referiu ter partilhado com o companheiro o episódio do poliban (não lhe tendo relatado o que se passara na piscina do condomínio) tendo-lhe o mesmo respondido “se calhar não devemos fazer isso” (sic). Prontamente, referiu que a filha não teve medo de voltar a tomar banho, adorando água e de estar na piscina, pelo que, a seu ver, os dois episódios não tiveram qualquer impacto em BB, que não voltou a ter birras sem motivo nem a repetir comportamentos como os que estiveram na base das duas situações relatadas na acusação. Mais referiu que para si os comportamentos que adoptou não têm conteúdo criminoso nem foi uma “má mãe para a filha” (sic), sendo seu propósito retirar-lhe o foco da birra, mencionando que “tirar o foco geralmente ajuda a parar a birra” (sic). Referiu ter actuado nos termos que descreveu porque lera na internet um artigo segundo o qual a água ajudava a relaxar. Questionada, explicitou que o artigo não mencionava que se aplicava especificamente a crianças, sendo o seu conteúdo sobre a “água como elemento natural que ajuda a relaxar” (sic). Dizendo-se arrependida de ter actuado conforme actuou, reiterou que apenas queria ajudar a filha. Confrontada com o conteúdo do vídeo publicado na sua página de instagram, referiu que nessa página partilhava o seu dia-a-dia sendo o seu público alvo mulheres mães com um contexto idêntico ao seu, pretendendo com o vídeo em causa nos autos partilhar os episódios que teve com a filha pensando que poderia ajudar outros pais a lidarem com situações idênticas. Perguntada sobre a partilha que fez na internet onde perguntava “será que a minha filha está bem?”, justificou que assim procedeu por ter “ficado a pensar no assunto porque fica sempre a pensar se realmente estava bem” (sic), explicitando ser aflitivo ver um filho a chorar e não conseguir ajudar. Nenhuma das testemunhas arroladas quer pelo Ministério Público quer pela defesa presenciaram os factos, tendo II mencionado, apenas, ter recebido o conteúdo que gravou no CD de fls. 25 e com a ordem para levantar auto de notícia, o que fez confirmando o teor de fls. 15 e seguintes como sendo da sua autoria. EE relatou ao tribunal que conviveu com o agregado familiar da arguida no período em que residiu no condomínio, sendo a relação entre mãe e filha amorosa e carinhosa. Mencionou que após o vídeo chegou a estar com a arguida e a filha na piscina do referido condomínio. Questionada, referiu ter visto o vídeo que a arguida publicou no instagram, acrescentando a testemunha, no que denotou isenção, que chegou a dizer à arguida que se não a conhecesse e apenas visse o vídeo em causa, “provavelmente teria tirado as mesmas conclusões que estavam a ser retiradas” (sic). Também CC relatou a convivência que a própria e o marido têm com a arguida, com o respectivo companheiro e com a filha de ambos, confirmando tratar-se de uma relação normal, não tendo notado qualquer alteração no comportamento de BB nem antes nem depois do vídeo, não tendo a mesma medo da água da piscina (onde todos convivem). JJ, prestando um depoimento espontâneo e firme, relatou ao tribunal que passa férias com a arguida, com o respectivo companheiro e a filha de ambos, estando quer em contexto de praia quer de piscina, não evidenciando BB qualquer receio da água, inclusivamente em data posterior à da divulgação do vídeo, mantendo com a mãe um relacionamento normal. Questionada, a testemunha admitiu ter visto o vídeo em causa nos autos porquanto seguia a página da amiga no instagram e onde esta partilhava o seu dia-a-dia. Prontamente referiu “não reconhecer a arguida na atitude que estava no vídeo” (sic) considerando que a mesma “teve um momento de desespero, estando a precisar de ajuda, no sentido de estar desesperada” (sic). Perguntada sobre que tipo de ajuda considera que a amiga evidenciava precisar, a depoente respondeu, prontamente, que precisava de ajuda para falar, para encontrar estratégias para lidar com as birras. Questionada sobre a utilidade do “conselho” ou “dica” transmitido pela arguida no vídeo para lidar com birras de crianças, JJ respondeu, prontamente, que “não achou o conselho útil” (sic), explicitando que não o seguiria porquanto tem três filhos (um rapaz e duas raparigas) e cada criança é diferente na denominada fase das birras, sendo a sua forma de educar os filhos baseada no diálogo. Mais referiu, imediata e espontaneamente, que “temos que filtrar as dicas, não é à força que se educa uma criança” (sic), acrescentando que com o que disse queria dizer que “não podemos forçar/impor um método” (sic). Os agentes da Polícia de Segurança Pública GG e FF confirmaram terem elaborado, respectivamente, o aditamento de fls. 47 e seguintes e o relatório de fls. 184 a 187, sendo ambos consonantes em confirmar a relação de afinidade entre a arguida e a filha, mantendo um bom relacionamento entre si. GG acrescentou que viu, a partir da janela da residência da arguida, a piscina do condomínio, sendo a mesma de pequena dimensão. Do cotejo da prova produzida, verificamos que a arguida, que admitiu os factos nos termos supra mencionados, pese embora tenha repetido ser sempre seu propósito acalmar a filha da birra que fazia, certo é que admitiu ter recorrido a uma estratégia de uso da água na sequência da leitura de um artigo que encontrou na internet o qual não era sobre crianças. Acresce que no vídeo publicado pela própria (cfr. CD de fls. 25) a arguida verbaliza que “ninguém tem que levar com os gritos de uma criança que está só a medir pilinhas”, recorrendo ao uso da expressão “quem ganhou?” para, vangloriando-se, vitoriosa, se referir ao sucesso dos comportamentos (de a mergulhar na piscina e de a molhar com água no poliban) com que se digladiou com a filha, chegando a fazer menção ao seu signo de taurina para enfatizá-los. Evidenciou, deste modo, que encarou a birra da filha como uma luta que tinha que vencer e na qual, in casu, usou de “força” (nas palavras da amiga JJ) para pôr termo a um comportamento da filha (gritos e choro que não paravam) que manifestamente a incomodava. Ao infligir, de forma inesperada, banhos de água fria (temperatura não adequada ao corpo da criança no momento) na filha, com apenas três anos de idade, quando a mesma estava vestida com a farda do colégio e com o pijama e durante uma birra (que é necessariamente uma situação de menor controlo da criança sobre as suas emoções) da mesma, a arguida provocou-lhe choque e humilhação, assustando-a, o que não ignorava e pretendia como meio para cessar com a referida birra. Tais comportamentos, embora eficazes e aptos a produzir o efeito pretendido, foram adoptados pela arguida como uma estratégia de, pela força, vencer uma luta (assim encarada pela arguida) entre a própria (uma adulta) e a filha (uma criança) que, pela birra, estava tão somente a expressar as suas emoções do modo compatível com a sua idade e que careciam de contenção pela adulta presente, não sendo a água utilizada, in casu, como um elemento natural de relaxamento (como sucede num spa) mas antes como um instrumento para assustar a criança a quem foram dados banhos em condições anormais (vestida com roupa inapropriada, a meio da noite, e quando está com birra) e humilhantes. A inverosimilhança da versão da arguida de que apenas pretendia acalmar a filha não considerando o seu comportamento como integrador de um ilícito é evidenciada, aliás, pela reacção do próprio companheiro que, no momento e perante o relato do episódio do poliban, lhe demonstrou, prontamente, o seu desacordo com o “método” utilizado, posição igualmente assumida por JJ conforme depoimento que prestou em audiência de discussão e julgamento. Basta aliás pensar que se um adulto, num contexto idêntico, colocasse outro vestido com a roupa que trazia debaixo de um chuveiro e o constrangesse, contra a sua vontade, a um banho de água fria, forçoso é concluir-se que se trataria de um comportamento de uso de força e com humilhação para quem a ele é sujeito. Ficou pois o tribunal convencido que a arguida actuou nos termos descritos em A) a O), sendo que ainda que pudesse pretender “acalmar” a filha, certo é que para isso recorreu a comportamentos que, sendo eficazes para aquele fim, são ainda atentatórios da integridade física e emocional da criança, o que não ignorava. Refira-se que ainda que BB não apresente (conforme mencionado pelas testemunhas inquiridas), neste momento, medo ou receio com a água, tal não significa que o comportamento adoptado, face à tenra idade da criança, não seja apto a provocar impacto no seu desenvolvimento emocional, sendo que pelo seu conteúdo, tais condutas da arguida não perdem o seu carácter atentatório da integridade física e emocional da criança. O facto descrito em P) resultou demonstrado do teor dos relatórios de avaliação de risco de fls. 186 e seguintes, tendo o agente FF mencionado que a criança se apresentou alegre e a interagir naturalmente com a mãe. Relativamente às condições sócio-económicas da arguida, o tribunal ponderou as declarações produzidas pelo mesmo, as quais se revelaram verosímeis atendendo à forma clara e espontânea com que foram produzidas. No que concerne aos antecedentes criminais, foi considerado o teor do certificado do registo criminal junto aos autos.» 2.2.2 Conhecendo do mérito do recurso quanto aos factos 2.2.2.1 Considerações preliminares No que respeita ao recurso quanto à matéria de facto, há algumas observações de âmbito geral que se impõe previamente fazer, para melhor esclarecer a posição que assumiremos no caso concreto. A que nos referimos? É sabido que as Relações podem conhecer de facto e de direito - art.º 428º do Código de Processo Penal. Assiste portanto aos sujeitos processuais o direito de recurso para a Relação em matéria de facto e/ou de direito, o que representa, no que especificamente respeita ao arguido, a concretização de uma das garantias de defesa a que alude o art.º 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e que encontra ainda expressão direta no art.º 2º do Protocolo Adicional nº 7 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). Não se trata, porém, de um direito absoluto, seja no sentido em que pode a lei prever a irrecorribilidade de certas decisões, seja no sentido em que, em caso de recorribilidade, pode o exercício do direito de recurso estar legalmente sujeito a condicionamentos e requisitos próprios [Acs. do TC nºs 390/04 e 377/03, www.tribunalconstitucional.pt ; cfr. ainda Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, in Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda e Rui Medeiros), tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora (2010), pgs. 715 e sgs]. A definição das margens de irrecorribilidade e, onde o recurso for admissível, dos requisitos a observar pelo recorrente para o exercício legítimo e regular do direito de recurso, constitui tarefa em que o legislador goza de uma ampla margem de apreciação; ponto é que tais requisitos e limites tenham subjacente uma finalidade legítima e não afetem a substância do direito [Acs. do TEDH Y.B. v. Russia, nº 71155/17, de 20/07/2021 (§ 40) e Rostovtsev v. Ukraine, nº 2728/16, de 25/07/2017 (§ 27), in https://hudoc.echr.coe.int/#{%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22]}]. Adentro o sistema de recursos existente no Código de Processo Penal, é consabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: (i) através do âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, os quais terão de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou mediante o recurso às regras da experiência comum, e integrar-se nos casos estritos para que aponta a norma (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou erro notório na apreciação da prova); ou (ii) através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal, circunstância em que o que está em debate são os erros na apreciação da prova que vão já além do texto da decisão, estendendo-se ao que pode extrair-se de toda a prova produzida, sempre tendo presentes os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto por aqueles nºs 3 e 4. Neste último domínio - da chamada impugnação ampla da matéria de facto, como sucede no caso em apreço - o que se procura é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal de 1ª Instância relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida (cfr. Ac. do STJ de 31.05.2007, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt – todos os acórdãos doravante citados sem indicação da fonte de pesquisa deverão ser reportados a este sítio). Convém, todavia, ter em atenção que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso. No objeto do recurso não está, pois, contida uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal de 1ª Instância quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se tais pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os que forem expostos pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (cfr. Ac. do STJ de 10/01/2007, relatado por Henriques Gaspar). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia e se possibilita o seu conhecimento pela Relação. O legislador pretende que o recorrente identifique claramente os erros de julgamento que aponta à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, indicando os pontos que reputa incorretamente julgados na decisão proferida e os meios probatórios que sustentam a sua censura (cf. sobre toda esta matéria vide ainda o Ac. da RE de 02/02/2016, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso); sendo que, quando as provas hajam sido gravadas, essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na ata da audiência de julgamento, devendo ser identificadas concretamente as passagens em que se funda a impugnação, como exigido pelo art.º 412º, nº 4. Por razões que se prendem em particular com a ausência de imediação e de oralidade, o poder de apreciação do Tribunal de recurso não é todavia equivalente a um segundo julgamento, insista-se, não podendo pois esperar-se que aí seja encetada uma alteração da matéria de facto provada apenas por ser possível uma outra análise da prova; essa alteração deverá ocorrer apenas se a análise da prova o impuser, como decorre do art.º 412.º, n.º 3 b) e c), o que significa que não basta contrapor-se à convicção do julgador uma outra convicção diferente, como no fundo sucede na situação aqui em causa nos termos abaixo mais bem explicitados, para provocar uma modificação na decisão de facto - é necessário demonstrar-se que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados é, pelo menos, desprovida de razoabilidade (cfr. sobre esta matéria, entre tantos outros, os Acs. da RL de 10.10.2007 e da RE de 1.04.2008, relatados por Carlos de Almeida e Ribeiro Cardoso; sobre a não imperatividade constitucional de um sistema de «segundo julgamento», vide o Ac. do TC n.º 59/2006, in www.tribunalconstitucional.pt). 2.2.2.2 O caso concreto Defende a Recorrente neste domínio, em síntese, que deve: i. alterar-se a redação dos factos C) e E); ii. dar-se como não provados os factos I), J), K) e M); e iii. proceder-se ao aditamento de três novos factos, por resultarem da prova produzida. Comecemos pelo facto C). Está aí dado como provado o seguinte: «Em dia não determinado, mas situado na segunda quinzena de Junho/início de Julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a chorar em tom alto». E o que a Recorrente pretende seja dado como provado é isto: «Em dia não determinado mas situado na segunda quinzena de Junho / início de Julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a gritar e a espernear, recusando todas as opções que a arguida lhe apresentava». Do confronto entre uma e outras das redações resulta então que a Recorrente propugna que (i) não deve ser dado como provado que a BB estivesse «a chorar», e que deve ser acrescentado (ii) que a BB estava «a gritar e a espernear» e que (iii) «recusara todas as opções que a arguida lhe apresentara». Tem razão a Recorrente? Importa ter em atenção, antes de mais, que o ponto de partida do Tribunal de 1ª Instância, no que respeita à matéria de facto sobre a qual se lhe impõe que tome posição, é naturalmente a acusação, na qual a factualidade em apreço, tal como veio a ser dada como provada, radica no ponto 3. Ora, não se vê por que há de ser excluído de uma tal descrição que a BB estivesse «a chorar»: resulta claramente das declarações da própria Arguida em audiência que a filha estava a fazer o que coloquialmente se diz ser uma «birra», e as regras da experiência comum dizem que a uma «birra», vinda de uma criança de cerca de 3 anos, está frequentemente associado choro; e o gritar e o espernear a que a Arguida se refere bem podem também ser vistas como uma forma de exteriorizar e enfatizar não só a birra como o próprio choro. A posição assumida pelo Tribunal de 1ª Instância, face à prova disponível, foi em suma inteiramente razoável e não há motivo que imponha alterá-la. Por outro lado, quanto a acrescentar-se as referências ao «gritar e espernear» da menor e a que esta «recusara todas as opções que a arguida lhe apresentara», que dizer? O facto que vinha imputado na acusação não continha essas referências, nem elas vêm mencionadas, acrescente-se, na contestação apresentada pela Arguida. É certo, todavia, que não estava o Tribunal de 1ª Instância impedido de dar por provado aquele comportamento da menor e a postura da Arguida, a partir das declarações desta, ao abrigo do preceituado pelo art.º 358º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal; considerando que a matéria de facto em causa resultaria, no sentido para que aponta o nº 2 da norma, «de factos alegados pela defesa» e pode ter algum relevo para um retrato global mais completo da realidade do momento, nada obstaria então a que aquela matéria fosse acrescentada. E na verdade nada obsta a que o façamos agora, tendo presente o disposto no art.º 431º, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal. Não há razão para encarar com reserva as declarações da Arguida quanto à descrição objetiva do que despoletou a sua própria reação e do que a esta antecedeu, como não a vislumbrou a 1ª Instância, quando fez sustentar a descrição objetiva do sucedido, entre o mais, nas próprias declarações da Arguida. Assim é que introduzir-se-ão as referências em causa na descrição da matéria de facto: a referência ao gritar e espernear, logo neste facto C.; e a referência a que a menor recusara as opções apresentadas pela Arguida será inserida também na matéria provada, mas num ponto autónomo, comum às duas situações, como decorre do que adiante se dirá. O ponto C. passará então a ter a seguinte configuração: «Em dia não determinado, mas situado na segunda quinzena de Junho/início de Julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a chorar em tom alto, a gritar e a espernear». Agora o facto E. Na sentença recorrida o facto E. está assim descrito: «E. Em consequência, BB, assustada, cessou a birra.» Pretende a Recorrente que seja expurgada do texto a palavra «assustada», passando o facto a ficar com esta forma: «E. Em consequência, BB cessou a birra.» Terá razão? Este facto E. surge na sequência dos factos A. a D., merecendo aqui particular destaque parte do facto A. e os factos C. e D., cujos teores são os seguintes, recorde-se: «A. BB (…) é filha da arguida (…) e nasceu em 6-12-2019. C. Em dia não determinado, mas situado na segunda quinzena de Junho/início de Julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a chorar em tom alto, a gritar e a espernear (recusando todas as opções que a arguida lhe apresentava)» (já modificado nos termos antes expostos). D. A arguida, entendendo que BB estava a fazer uma birra e a “medir forças” consigo, com intenção de fazer com que a filha cessasse o seu comportamento e não o repetisse, pegou na BB e submergiu-a na piscina, até à zona do queixo.» Sublinhemos então estes detalhes: (i) a menor tinha 3 anos de idade; (ii) estava a chorar, a gritar e a espernear; (iii) a arguida, para pôr fim a esse comportamento, pegou na filha e submergiu-a na piscina, até à zona do queixo. Neste contexto, as regras da experiência comum ditam que a criança ficaria inevitavelmente assustada. Dar esse facto como não provado configuraria até, segundo cremos, um erro notório na apreciação da prova, sindicável por via do art.º 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal. É óbvio que naquelas circunstâncias, por mais explicações que a Arguida queira alvitrar e alvitre, e por mais protetor e saudável que fosse, em geral, o ambiente familiar e a relação entre a mãe e a filha, esta ficaria, naquele momento, assustada – trata-se de um gesto inopinado, que a fez garantidamente sentir medo, desde logo pelo que podia interpretar como sendo um aparente descontrolo da figura parental, que uma criança tem por guardiã do seu conforto e do seu bem-estar. Não se compreende assim como pode a Arguida sustentar no recurso que o Tribunal de 1ª Instância decidiu dar esse facto (o susto da criança), sem base probatória concreta: a sentença recorrida limitou-se, e bem, a extrair de factos conhecidos, a saber, o enquadramento objetivo da situação e o gesto da Arguida, um facto desconhecido, a saber, o modo como este gesto foi sentido pela menor. Nada obsta a esse procedimento, dado que a prova indireta, indiciária ou por presunções é uma realidade do nosso processo penal, diríamos mesmo inevitável para uma boa e não meramente silogístico-formal administração da justiça. Três notas complementares a este respeito. Primeira: seria naturalmente desejável que a prova fosse sempre toda ela direta, no sentido em que o meio de prova permitisse afirmar, por si só, isto é, perdoando-se-nos o pleonasmo, diretamente, o facto relevante em discussão. A prova indireta, indiciária ou por presunções tem, porém, um lugar da maior importância no processo penal, há muito reconhecido (Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pg. 289 e Ana Maria Barata de Brito, «A valoração da prova e a prova indirecta», Criminalidade Económico-Financeira, tomo III, Cadernos do CEJ, in http://www.cej.mj.pt/). O próprio TEDH já afirmou que a prova pode decorrer da coexistência de suficientemente fortes, claros e concordantes indícios ou de não abaladas presunções de facto de natureza idêntica (Ac. Hajnal c/ Sérvia, 19/06/2012, § 82, in http://hudoc.echr.coe.int/ - todos os acórdãos do TEDH que citarmos devem ser reportados a este sítio; alinhando no mesmo diapasão, vide ainda os Acs. Willcox e Hurford c/ Reino Unido, 8/01/2013, § 96, Salabiaku c/França, 7/10/1988, § 28 e Janosevic c/ Suécia, 23/07/2002, § 101). Saliente-se que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 521/2018 de 17/10 (in www.tribunalconstitucional.pt) decidiu mesmo não julgar inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º, da CRP, o art.º 125.º, do CPP, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal. A segunda nota tem que ver com o princípio in dubio pro reo. O in dubio pro reo é convocável em matéria de prova quando o tribunal se encontre numa situação de dúvida razoável quanto a algum ponto da matéria de facto, circunstância em que a deve resolver em benefício do arguido; e, inversamente, já não colhe pertinência o in dubio pro reo quando o tribunal, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, não tem qualquer dúvida razoável quanto aos factos a deles extrair ou, tendo-a tido em algum momento, a esclareceu, convencendo-se positivamente do facto em causa (entre tantos outros, vide o Acs. do STJ de 7.11.2002, da RC de 12.09.2018 e da RP de 28.10.2015, relatados por Oliveira Guimarães, Orlando Gonçalves e Ernesto Nascimento, respetivamente, in www.dgsi.pt; vide ainda Paulo Pinto de Albuquerque, ob cit., pg. 1121). No caso concreto, o Tribunal de 1ª Instância não manifestou qualquer dúvida razoável a respeito do facto de a criança ter ficado assustada com o gesto da Arguida (nem tão pouco, acrescente-se desde já, em relação a qualquer dos demais factos que dá como provados) e nessa medida, e ainda porque esse facto constitui uma inferência lógica, à luz das regras da experiência comum, dos factos objetivos conhecidos, não há qualquer ofensa ao princípio da presunção de inocência ou da sua manifestação probatória do in dubio pro reo. A terceira nota: a circunstância de a Arguida ter ou poder ter, no mais, e nomeadamente de então para cá, uma boa relação com a filha, e a circunstância de esta poder não ter ficado aparentemente traumatizada com a situação constituem aspetos que, ainda que eventualmente demonstrados, em nada infirmam os acontecimentos históricos de que aqui se trata e o efeito que cada um deles terá provocado na menor nos momentos em causa (como não excluem que possa haver repercussões a longo prazo ainda não conhecidas). Atentemos agora aos factos I), J), K) e M). Defende a Arguida que sejam dados como não provados. Recordemos o conteúdo de tais factos. I. A arguida quis e agiu da forma descrita, sabendo que com a sua conduta molestava física e psiquicamente a sua filha BB, submetendo-a a um tratamento indigno, inesperado e susceptível de lhe causar frio, choque térmico, desconforto, angústia e de a atemorizar. J. Ciente de que a sua conduta era idónea a intimidar, compelir a filha a não repetir tais condutas, a arguida actuou da forma descrita, bem sabendo que mais facilmente alcançaria o seu propósito do que se optasse por um meio pedagógico adequado à sua idade. K) A arguida sabia que com a sua conduta condicionava gravemente a saúde e bem-estar psico-social da BB, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana, pondo em perigo o seu saudável crescimento psíquico e causando-lhe sofrimento físico e psíquico. L. A arguida sabia que com a sua conduta condicionava gravemente a saúde e bem-estar psico-social da BB, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana, pondo em perigo o seu saudável crescimento psíquico e causando-lhe sofrimento físico e psíquico. Valem aqui, mutatis mutandis, as considerações que expusemos atrás a respeito da circunstância de ter o Tribunal de 1ª Instância dado como provado que a menor ficara «assustada», nos termos mencionados no facto E. Estamos diante o que simplisticamente podemos denominar de «requisitos subjetivos da infração» (a que se junta aliás a factualidade descrita em O.), que se reportam em larga medida ao «mundo interior» da Arguida («a arguida quis…, … sabendo…, …ciente…, …o seu propósito…, …sabia…, …conhecia…, …estava ciente…, conscientemente…, bem sabendo…»); trata-se de matéria que por norma apenas pode ser demonstrada por uma de duas formas: pela confissão ou por inferência ou dedução, a partir dos factos objetivos, compreendidos à luz das regras da experiência comum. A sentença de 1ª Instância é neste domínio exemplar, fazendo apelo às condutas apuradas, ao seu significado objetivo e ao que daí deriva em termos de motivação para a sua prática, e chegando a conclusões que são inteiramente congruentes com as regras da experiência comum; e não deixa de referir, e na nossa ótica com pertinência, a inverosimilhança da versão da Arguida quando menciona estar convencida de que o seu comportamento não era ilícito. Recordemos em traço grosso aquilo que a Arguida diz achar que não era ilícito e que é quase autoexplicativo daquela inverosimilhança: fazer parar uma birra da filha de três anos de idade submergindo-a, com a farda do colégio, numa piscina, até à zona do queixo; e fazer parar uma outra birra, dias ou escassas semanas depois, por volta das cinco da madrugada, pondo-a, com o pijama vestido, debaixo de um chuveiro e molhando-a com água fria. No fundo, a estratégia que a Arguida diz entender não ser ilícita passa por causar um choque à filha que a faça esquecer-se da birra e concentrar-se noutro assunto. Ora, não é na verdade crível que achasse ser uma estratégia lícita de abordar as birras. E não vemos no recurso da Arguida referência a meios de prova que concretamente imponham uma outra leitura nesta matéria, como se exigiria para modificar aqui a descrição dos factos, nos termos que atrás explicitámos quando expusemos os contornos da impugnação ampla da matéria de facto. Quereria por certo a Arguida fazer cessar a birra e esse fim não era em si mesmo, como é óbvio, ilícito; o que pode ou não ser ilícito (e é-o manifestamente, como melhor adiante se verá) e a Arguida não o podia ignorar, por ser algo de óbvio e decorrente até de regras de básico bom senso, é o meio empregue, dado que este tinha e tem tudo para criar na criança um profundo desconforto e medo – do que se trata, em termos sucintos e práticos, é simultaneamente de uma agressão e de uma humilhação. Alude a Arguida, sempre se diga, a que lera na internet um artigo sobre as propriedades relaxantes da água. Sucede que, para além de não vermos nos autos sinal de qualquer artigo que apoie a prática em causa, sempre se dirá, contudo, que a água é obviamente um elemento com potencial extraordinário, propenso a utilizações várias, a maior parte delas benignas; mas não é manifestamente esse o caso aqui, em que uma criança de 3 anos foi sujeita a dois choques de água fria para parar birras. O efeito final do uso da água pode efetivamente ser o de fazer parar as birras; mas à custa de quê? Do choque, do susto, do desconforto, numa das vezes de madrugada e de pijama vestido. Não é crível que algum pai ou alguma mãe medianamente cuidadoso/a, empático/a e preocupado/a para com o seu filho acredite que esteja aqui perante algo de inócuo, bom ou lícito. Bem andou o Tribunal de 1ª Instância. Olhemos agora para a matéria de facto que a Arguida pretende ver aditada, por resultar da prova produzida; traduz-se essa matéria de facto no seguinte: «a) A Arguida atuou do modo descrito porque lera na internet um conteúdo sobre a água como elemento natural que ajuda a relaxar; b) Em ambos os casos, a Arguida recorreu a este método depois de ter esgotado todas as opções para fazer cessar o comportamento da menor; c) A Arguida mantém com a filha uma relação de afinidade amorosa e carinhosa». À semelhança do que atrás dissemos a propósito da modificação introduzida no Facto C., trata-se, também aqui, de matéria que, tal como vem agora alegada, não se achava enunciada na acusação, nem na contestação, mas a que o Tribunal de 1ª Instância poderia em tese recorrer, dando-a como provada, ao abrigo do preceituado pelo art.º 358º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal e que esta Relação pode convocar, nos termos do art.º 431º, alíneas a) e b) do mesmo diploma, se entender que há apoio probatório para tanto. Dito isto, quanto ao primeiro destes factos («a Arguida atuou do modo descrito porque lera na internet um conteúdo sobre a água como elemento natural que ajuda a relaxar»), vale neste segmento o que dissemos atrás: não só não temos disponível o dito artigo, como não se vê que ligação poderia haver entre um texto que enalteça as vantagens relaxantes da água e o gesto de a usar, e fria, por duas vezes, uma das quais de madrugada e com pijama vestido, para fazer cessar as birras de uma criança de 3 anos, por via do manifesto choque e do profundo e repentino desconforto infligidos. Não procede o recurso, neste ponto. Quanto ao segundo dos factos aqui em causa («em ambos os casos, a Arguida recorreu a este método depois de ter esgotado todas as opções para fazer cessar o comportamento da menor»), afigura-se-nos que os trechos da prova sublinhados pela Arguida (declarações da própria) dão apoio a que se dê este facto como provado, mas nos termos que se lê na motivação da sentença recorrida. Não pode na verdade dizer-se que a Arguida esgotou «todas as opções» para fazer terminar as birras, até porque isso implicaria que tivéssemos exibidas nos autos todas as soluções tecnicamente recomendadas pela psicologia para o efeito e a concomitante demonstração de que a Arguida as esgotara, e não temos nem uma coisa, nem outra; o que podemos dar por provado, à luz da prova disponível e da forma até como o Tribunal de 1ª Instância a entendeu, é o seguinte «em ambos os casos, a Arguida recorreu a este método depois de a menor ter recusado todas as opções que aquela lhe apresentou para fazer cessar o seu (da menor) comportamento». Na medida indicada proceder-se-á ao apontado aditamento. Quanto ao terceiro facto («a Arguida mantém com a filha uma relação de afinidade amorosa e carinhosa»), estamos em crer que, pese embora a vertente algo conclusiva do mesmo, podemos dizer que toda a prova produzida nesta matéria e a que a Arguida se refere desenvolve-se no sentido de que existe entre ela e a filha uma relação que em geral é amorosa e carinhosa (declarações da própria e das testemunhas EE – antiga vizinha -, e GG e FF – agentes da PSP; acrescendo ainda, no mesmo sentido, os depoimentos das testemunhas CC e JJ, amigas da família). Não podemos deixar de introduzir um elemento restritivo na expressão («em geral») visto que as situações de que se trata nestes autos, seja qual for o ângulo de abordagem de que partamos, constituem episódios que saem objetivamente fora do padrão de uma relação de afinidade amorosa e carinhosa. Procederá aqui o recurso na medida indicada. 2.3 O Direito 2.3.1 A qualificação jurídico-penal dos factos 2.3.1.1 A sentença recorrida Da sentença recorrida consta a seguinte motivação de direito: «A arguida vem acusada da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e) e n.º 2, alínea a), n.ºs 4 a 6, do Código Penal. Estatui o artigo 152.º, n.º 1, alínea e) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, que “1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”. Os bens jurídicos tutelados pela norma penal incriminadora são a integridade física e psíquica, a liberdade, auto-determinação sexual e a honra de pessoa que com o arguido mantenha a relação familiar, parental ou de dependência prevista no tipo (atenta a natureza de crime específico impróprio deste ilícito). O tipo objectivo de ilícito é constituído pelos seguintes elementos: a. Infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição normativa Os maus tratos físicos correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples, isto é, traduzem-se na ofensa no corpo de outrem (“mau trato através do qual o ofendido (…) é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”1). Os maus tratos psíquicos correspondem a humilhações, provocações, molestações, ameaças, podendo consubstanciar os crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúria. Não se exige a reiteração do mau trato, podendo este traduzir-se num acto isolado que seja de tal modo intenso que preencha o tipo sub judice. Efectivamente, na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na génese da revisão do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, refere-se que a “A revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado” acrescentando-se que “Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.”. Consagrou-se pois, expressamente, o entendimento jurisprudencial segundo o qual o preenchimento do tipo não exige, necessariamente, a reiteração da conduta criminosa, bastando-se com uma única conduta, desde que esta seja especialmente grave (cfr. neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Julho de 2008, Processo n.º 07P3861, disponível em www.dgsi.pt). O crime de violência doméstica pode, pois, ser de execução instantânea (e não duradoura) desde que os actos perpetrados, quer pela respectiva gravidade quer pela profundidade das consequências para o bem jurídico tutelado caiam sob a alçada do conceito de mau trato. Conforme referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de Março de 2010, Processo n.º 345/07.9PAENT.E1, disponível em www.dgsi.pt, “1. Com a alteração efectuada ao artigo 152.º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, não se visou subsumir a esta norma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artigo 143.º do Código Penal (ofensa à integridade física simples). 2. A actual configuração do crime de violência doméstica, não exigindo comportamentos reiterados, pressupõe comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; ou seja, a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticados uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.”. Verifica-se, por conseguinte, uma miríade de hipóteses de concurso aparente entre o crime de violência doméstica e os de ofensa à integridade física, ameaça, coacção, sequestro e crimes contra a honra, que o legislador não eliminou suscitando-se o problema de saber qual o critério a atender para a destrinça entre enquadrar os factos perpetrados num ou noutros tipos. É, pois, na identificação do bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica que encontraremos o critério diferenciador do que seja mau trato físico e psíquico enquadrável em sede do tipo previsto no artigo 152.º, do Código Penal. Os bens jurídicos tutelados por esta norma penal incriminadora são a integridade física e psíquica, a liberdade, auto-determinação sexual e a honra de pessoa que com o arguido mantenha a relação familiar, parental ou de dependência prevista no tipo (atenta a natureza de crime específico impróprio deste ilícito). Efectivamente, o “fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo”2. Este bem jurídico encerra, pois, os direitos fundamentais à integridade pessoal (artigo 25.º, da Constituição da República Portuguesa) e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, da Constituição da República Portuguesa), ambos emanações do princípio da dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, “a degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico-constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do até aqui designado “concurso legal”, com ele se relacionam”3. Assim, determinadas condutas podem enquadrar situações de violência emocional, mas não maus tratos físicos ou psíquicos que mereçam a tutela do Direito Penal, apenas sendo de abranger neste conceito as lesões graves que permitam considerar a pessoa ofendida como recebendo um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade dentro do âmbito conjugal. Nos presentes autos resultou demonstrada a factualidade elencada em A) a H) que se dá por integralmente reproduzida. Considerando a factualidade elencada, a arguida adoptou para com a filha, que pela sua idade e vulnerabilidade merece especial protecção, comportamentos humilhantes, atentatórios da sua dignidade e equilíbrio emocional e afectivo, quando a criança estava a fazer uma birra. Efectivamente, se é verdade que, com intuito educativo, cabe aos pais o poder de correcção de determinadas condutas das crianças, é igualmente sabido que tal poder se manifesta através do exemplo e da palavra e não por comportamentos de intimidação, pautados pela agressão física e psicológica, que põem em causa o equilíbrio emocional e afetivo dos filhos, prejudicando o seu saudável desenvolvimento. Reacções desproporcionais e desadequadas a comportamentos das crianças, como as que a arguida adoptou in casu, que excedem de forma inaceitável o poder-dever de correção/educação à luz da consciencialização ético-social da actualidade, não podem entender-se como abrangidas por uma qualquer causa de exclusão da ilicitude. b. Relação familiar, parental, de namoro, de relação análoga à dos cônjuges ou de dependência entre arguida e vítima Nos presentes autos resultou demonstrado que BB é filha da arguida e de HH, tendo nascido em 06/12/2019. Este pressuposto mostra-se, pois, verificado. c. Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal) Os factos foram perpetrados no domicílio comum, onde a arguida e a filha residem. Os elementos objectivos do tipo mostram-se, pois, preenchidos. O tipo subjectivo de ilícito é doloso. Ao abrigo do disposto nos artigos 13.º e 14.º, ambos do Código Penal, o dolo abrange os elementos intelectual (conhecimento dos elementos objectivos do tipo) e volitivo (vontade de praticar um acto ou de atingir um resultado). A arguida quis e agiu da forma descrita, sabendo que com a sua conduta molestava física e psiquicamente a sua filha BB, submetendo-a a um tratamento indigno, inesperado e susceptível de lhe causar frio, choque térmico, desconforto, angústia e de a atemorizar. Ciente de que a sua conduta era idónea a intimidar, compelir a filha a não repetir tais condutas, a arguida actuou da forma descrita, bem sabendo que mais facilmente alcançaria o seu propósito do que se optasse por um meio pedagógico adequado à sua idade. A arguida sabia que com a sua conduta condicionava gravemente a saúde e bem-estar psico-social da BB, ofendendo-lhe a respectiva dignidade humana, pondo em perigo o seu saudável crescimento psíquico e causando-lhe sofrimento físico e psíquico. A arguida conhecia a idade da BB, estava ciente de que era sua filha menor de idade, que não tinha capacidade de se opor à sua actuação, que era, em razão da idade, especialmente indefesa e que estava a si subordinada, uma vez que era sua progenitora e representante legal e estava aos seus cuidados. Bem sabia a arguida que os comportamentos que adoptava para com a sua filha eram exagerados atendendo à idade desta. A arguida sabia que agia na casa que era o domicílio de ambas. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. O tipo de dolo da arguida é directo (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal) já que representou que os seus actos constituíam um ilícito e ainda assim agiu com intenção de os praticar. Inexistem causas de justificação e de exclusão da culpa. Pelo exposto, o arguida praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e) e n.º 2, alínea a), n.ºs 4 a 6, do Código Penal.» *** ** 2.3.1.2 Decidindo do enquadramento jurídico-penal dos factos Sustenta a Arguida que a matéria de facto que entende ter resultado apurada não integra a prática do crime em apreço, nomeadamente porque não atuou com qualquer intenção lesiva e que o que fez encontra cobertura em práticas educativas que não são objeto de censura comunitária geral, por essa via devendo, pois, excluir-se a intervenção do direito penal. Terá razão? Vejamos. A matéria de facto a ponderar é a dada por provada na sentença recorrida, com os acertos que resultam do atrás expresso. E perante essa matéria de facto, desde já se diga que aderimos por inteiro às considerações gerais que o Tribunal de 1ª Instância faz em torno do crime de violência doméstica, como aderimos ainda à subsunção a que procede ao mesmo de uma tal matéria de facto. Entendemos, com efeito, que estão presentes todos os requisitos objetivos e subjetivos do crime de «violência doméstica», nos moldes assumidos pela sentença recorrida. Sem prejuízo disto que acabámos de dizer, e sem qualquer desprimor para a douta sentença recorrida, justificar-se-á em todo o caso deixar aqui expressas algumas observações complementares, em abono da ideia de que as condutas em causa integram-se no conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos» a que alude o art.º 152º, nº 1 do Código Penal e não encontram cobertura em qualquer espécie de direito ou dever de correção ou educação. Vejamos as coisas mais de perto. A questão que se coloca, na sua expressão mais simples, é esta: as condutas da Arguida, que tendo em vista parar uma birra da filha de 3 anos, a submerge numa piscina até ao queixo e, semanas mais tarde, no contexto de uma nova birra, a leva, às 5 da madrugada, a leva para um poliban e lhe dá um banho de água fria, com o pijama vestido, integram ou não o conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos» previsto pelo art.º 152º, nº 1 do Código Penal? O conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos» não tem um conteúdo absolutamente preciso, não dispensando por isso algum trabalho de interpretação, que no caso tem de entrecruzar-se com a especificidade de nos acharmos diante uma mãe que fez o que fez no contexto de birras da filha de três anos a que pretendia pôr fim. É conhecido todo um lastro doutrinário e jurisprudencial neste domínio e que, tendo por referência o poder/dever de correção ou educação sobre as crianças ou ideias de adequação social, toleram ou admitem, à luz de certos critérios de proporcionalidade, o recurso a alguns castigos sobre os menores, mormente de ordem física (cfr. Cristina Dias, “A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção”, Julgar, 2008, nº 4, pgs. 95 e seguintes e o Ac. da RP de 02/04/2014, relatado por José Piedade, in www.dgsi.pt). Ora, entendemos que essa abertura à aplicação de castigos corporais sobre crianças e/ou que tenham por efeito a sua humilhação são hoje intoleráveis à luz de padrões internacionalmente reconhecidos, que nos vinculam e/ou servem de referência e paradigma interpretativo do direito interno. Fazendo aqui um breve périplo neste domínio, cumpre notar que a nível das Nações Unidas há um importante documento, que data já de 2006 - o Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas sobre Violência sobre Crianças. As suas mensagens centrais passam pela necessidade de pôr-se fim às justificações dadas por adultos a respeito da violência sobre crianças, surja esta sob a forma de «tradição» ou disfarçada de «disciplina»; e pela ideia de que as crianças, pela sua especificidade única, que se prende com as suas potencialidades, vulnerabilidades e dependência, precisam de mais proteção, e não de menos proteção, contra a violência (https://violenceagainstchildren.un.org/sites/violenceagainstchildren.un.org/files/document_files/world_report_on_violence_against_children.pdf, pg. 3). Ainda no plano das Nações Unidas, o Comité de Ministros sobre o Direito das Crianças, que monitoriza o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança, enfatiza no seu Comentário Geral nº 8 (2006) que resulta daquela Convenção, e nomeadamente dos seus arts. 19º e 37º, uma obrigação de os Estados proibirem amplamente os castigos corporais e de outras formas cruéis ou degradantes de punição, incluindo, por exemplo, o de as sujeitar a posições desconfortáveis (https://www.refworld.org/legal/general/crc/2007/en/41020). A nível do Conselho da Europa, por sua vez, remonta já a 2004 um documento também marcante - a Recomendação 1666 (2004) da Assembleia Parlamentar, sob o sugestivo título Europe-wide ban on corporal punishment of children (proibição em toda a Europa do castigo corporal sobre as crianças). Aponta ela caminhos tão expressivos quanto estes (tradução livre, a partir de https://pace.coe.int/en/files/17235/html ): - garantir uma preocupação geral pelos direitos fundamentais das crianças, em particular os seus direitos à dignidade humana e à integridade física; - a promoção de práticas educativas positivas e não violentas de resolução de conflitos por parte dos pais e outras pessoas que cuidem de crianças; - garantir que o castigo corporal e outras formas nocivas e humilhantes de disciplina sejam incluídas na definição de violência doméstica ou familiar e que o combate a este fenómeno faça parte integrante das estratégias contra a violência doméstica e familiar. Ainda no quadro do Conselho da Europa, o Comité de Ministros já há muito, pelo menos desde 1985, que preconiza que os Estados devem adotar medidas no sentido de afastar a violência dentro da família e nomeadamente os castigos corporais sobre as crianças [cfr. Recomendações sobre “Violence in the family” (R (85) 4), “Social measures concerning violence within the family” (R (90) 2) e “The medico-social aspects of child abuse” (R (93) 2), in www.coe.int/t/E/Committee_of_Ministers/Home/Documents/]. O Comité Europeu dos Direitos Sociais, acrescente-se, que monitoriza o cumprimento da Carta Social Europeia, já decidiu várias vezes, incluindo a propósito de Portugal, que o art.º 17º da Carta obriga os Estados a proibirem e penalizarem todas as formas de violência sobre crianças, entendida esta como quaisquer atos ou comportamentos capazes de afetar a sua integridade física, dignidade, desenvolvimento ou bem-estar psicológico (https://hudoc.esc.coe.int/eng/#{%22sort%22:[%22escpublicationdate%20descending%22],%22escdcidentifier%22:[%22cc-34-2006-dmerits-en%22]} ). O TEDH, por último, já se pronunciou várias vezes sobre castigos corporais ou outras formas de tratamento cruel ou degradante aplicados a crianças, também vincando uma orientação contrária a semelhantes práticas, seja no contexto do art.º 3º, seja no do art.º 8º da CEDH (para além do clássico Ac. Tyrer v. the United Kingdom, nº 5856/72, de 25/04/1978, vejam-se, com interesse nesta matéria, os Acs. Wetjen and others v. Germany, nºs 68125/14 e outro, §§ 77-78, de 22/03/2018 e Tlapak and others v. Germany, §§ 90-91, de 22/03/2018). E de resto surge-nos no mesmo sentido a jurisprudência do TEDH desenvolvida em torno dos conceitos de tratamentos ou punições desumanos ou degradantes, em geral e não especificamente relativos a crianças (mas cujas linhas gerais bem podem ser-lhes aplicadas); repare-se que é aí considerado um tratamento degradante, entre outros, aquele que humilha, que afeta a dignidade humana e/ou que causa sentimentos de medo, angústia e inferioridade, capazes de quebrar a resistência física e moral da vítima ou levá-la a fazer algo contra a sua vontade ou consciência [Acs. Gäfgen v. Germany (GC), nº 22978/05, § 89, de 1/06/2010, Ilaşcu and Others v. Moldova and Russia (GC), nº 48787/99, § 425, de 8/07/2004 e Bouyid v. Belgium (GC), nº 23380/09, § 90, de 28/09/2015]. Aqui chegados, e voltando à interrogação inicial, estamos em crer que as condutas da Arguida integram com efeito o conceito de «maus tratos físicos e psíquicos» em apreço. No contexto de duas birras da filha, de apenas três anos de idade, a Arguida seguiu uma estratégia para lhes pôr fim que manifestamente nada tem de pedagógico, posto que meramente assente na capacidade física que o adulto tem de sujeitar um ser frágil a uma situação de intencional choque, que decerto terá posto fim às birras, mas à custa de um óbvio, instantâneo e muito lamentável sofrimento, que nenhum pai, nenhuma mãe, ninguém, está autorizado ou legitimado a causar. Do que se tratou foi de uma conduta que sujeitou a criança, indefesa, a duas situações de profundo desconforto físico e de degradação da sua condição de pessoa com direitos e dignidade, para mais protagonizadas por uma figura que encararia como protetora. As experiências pelas quais a criança passou tinham todos os ingredientes para lhe gerar, para além do desconforto físico, sentimentos de humilhação, insegurança e desproteção, que são, quantas vezes, como se sabe, palco para a emergência de repercussões psicológicas a nível de medos, ansiedades, vergonhas, baixa autoestima, dificuldades em gerir as emoções; se em concreto a matéria de facto não evidencia a existência, neste momento, de qualquer destas repercussões, isso é positivo, mas não significa de forma alguma que aquelas experiências não tivessem na sua origem todo o potencial para as gerar, como não significa ainda que não possam delas sobrevir consequências no futuro. E tendo a Arguida atuado, em síntese, de forma livre, consciente, sabedora de que era ilícito o que fazia, e que o que fazia se traduzia em molestar física e psiquicamente a filha, estão também reunidos todos os requisitos subjetivos da infração e nomeadamente a consciência da ilicitude e o dolo, sem prejuízo, quanto a este, de uma observação acrescida. Vem esta a propósito da circunstância de o fim último da Arguida, de acordo com o que resulta da matéria de facto provada, ter sido o de parar as birras da filha, o que podia suscitar algumas dúvidas quanto a termos aqui um dolo direto ou antes um dolo necessário, à luz do art.º 14º, nºs 1 e 2 do Código Penal. A sentença recorrida considerou que a Arguida atuou com dolo direto, e cremos que fez bem. Na verdade, pode dizer-se que há dois tipos de dolo direto, ambos radicados no art.º 14º, nº 1 do Código Penal: aquele em que a realização do tipo objetivo de ilícito constitui o verdadeiro fim da conduta; e aquele em que a realização típica não constitui o fim último do agente, mas surge antes como pressuposto ou estádio intermédio necessário ao seu conseguimento (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3ª edição, Gestlegal, 2020, pgs. 427-428). É nesta segunda categoria que entra a situação dos autos, dado que a Arguida, tendo feito o que fez de forma livre, consciente e deliberada, não tinha como fim último molestar física e psiquicamente a sua filha; esta inevitável moléstia surgia como passo para concretizar o que verdadeiramente pretendia - fazer cessar as birras da filha. Bem andou, em suma, o Tribunal de 1ª Instância na integração jurídica que realizou. Acrescente-se, em qualquer caso, que a matéria de facto não evidencia suporte, à luz ainda de tudo quando já se foi deixando dito, para a ausência de consciência da ilicitude por parte da Arguida ou para qualquer causa de justificação ou de afastamento da culpa. * 2.4 Da medida da pena de prisão A sentença recorrida fixou a pena em 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução durante 3 anos, com regime de prova. Defende a Recorrente que a medida de pena é excessiva e que foi situada no ponto indicado por força do erro de julgamento da matéria de facto que sinalizara. Vejamos. Cumpre começar por notar que o tribunal de recurso, em sede de determinação da pena, não decide como se inexistisse uma decisão de primeira instância, isto é, não é de um re-julgamento aquilo de que aqui se trata, donde resulta que pode e deve intervir-se na pena, alterando-a, quando são detetadas incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância ou na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide o tribunal de recurso, destarte, como se o fizesse ex novo, não podendo assim deixar de reconhecer-se alguma margem de atuação ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar. No fundo, a medida concreta das penas apuradas em primeira instância é passível de alteração quando se mostre que foram desrespeitados os princípios gerais e as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada (cfr. Acs. do STJ de 14.10.2015, 12.07.2018 e 19.05.2021, relatados por Pires da Graça, Raul Borges e Ana Barata Brito, in www.dgsi.pt). Dentro desta margem de atuação, e olhando a sentença recorrida, percebe-se que a mesma observa todas as exigências de fundamentação em matéria de determinação da medida da pena. Com efeito: i. enuncia acertadamente as regras legais aplicáveis; ii. expõe os concretos fatores a considerar em cada segmento relevante, a saber, e nomeadamente, no que toca à aferição do grau de ilicitude dos factos, do nível de culpa e das exigências de prevenção geral e especial, não se mostrando que em alguma dessas passagens tenha incorrido em algum erro, lapso ou omissão; iii. e conclui quantificando o seu juízo numa medida de pena que não surge como merecedora de qualquer censura, nomeadamente na dimensão da sua proporcionalidade. É certo que houve, nesta instância de recurso, modificações introduzidas à matéria de facto, mas não vemos que alguma delas interfira de forma significativa em qualquer das valências consideradas no procedimento de determinação da medida da pena. No que concerne à descrição das situações em si mesmas, a circunstância de ter passado a referir-se que a Arguida atuou do modo indicado depois de a criança não ter sido sensível às demais opções de resolução das birras que lhe haviam sido apresentadas, ou que aquando da primeira das situações a criança estava ainda a gritar e a espernear, é algo que releva para um mais pormenorizado relato; mas na verdade não introduz nada que saia decisivamente fora do padrão de gravidade e de perceção geral das condutas sob julgamento já considerados pela 1ª Instância: uma birra é uma birra, envolva ou não apenas choro ou também gritos e espernear, e era já de admitir que a Arguida tivesse procurado fazer, antes, algo de menos agressivo para lhe pôr fim. Por outro lado, o passar a estar descrito que a Arguida tem para com a filha uma relação que em geral é de afinidade amorosa e carinhosa também não acrescenta nada de verdadeiramente decisivo. Repare-se que da descrição inicial da matéria de facto já decorria que foram duas (e não mais) as situações ocorridas, o que sugere a natureza episódica da conduta da Arguida, manifestada embora em dois momentos; como dessa descrição já não constava a referência a qualquer repercussão negativa duradoura que das situações tivesse resultado para a criança; ou que a relação de proximidade mãe-filha tivesse passado a estar em concreto envolta em alguma particular dificuldade. E para além disso, note-se que da matéria de facto constava já a menção (ainda que de perfil algo conclusivo, conceda-se) a que o grau de risco atribuído à relação entre a Arguida e a filha é baixo (facto P). Vale o que vimos de dizer que as circunstâncias gerais de vida da Arguida e da sua atual relação com a filha não suscitam aparentemente especiais e imediatas preocupações, o que agora se torna mais explícito, mas a pena encontrada pela 1ª Instância acomoda satisfatoriamente essa realidade, como acomoda a modificação introduzida na descrição das situações. Isto porque a pena está situada em ponto ainda muito próximo do mínimo legal: repare-se que a moldura aplicável é de três anos (entre dois anos de pena mínima e cinco anos de máxima) e a pena foi situada em dois anos e seis meses, ou seja, em 1/6 da moldura, o que consideramos que não excede os critérios de proporcionalidade, razoabilidade e de intervenção mínima do direito penal inerentes à operação em apreço. Em suma, nenhuma censura nos merece neste domínio a sentença recorrida. * 3 - Decisão Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos: 3.1. julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, determinando-se o seguinte: 3.1.1 A alteração da redação do Facto C.), que passará a ter o seguinte teor: «Em dia não determinado, mas situado na segunda quinzena de junho/início de julho de 2023, a arguida e a filha encontravam-se junto à piscina do prédio onde residem, estando a BB a chorar em tom alto, a gritar e a espernear». 3.1.2 O aditamento, aos factos provados: - do facto H.1), com este teor: «Em ambos os casos, a Arguida recorreu a este método depois de a menor ter recusado todas as opções que aquela lhe apresentou para fazer cessar o seu (da menor) comportamento». - do facto S.1), com este teor: «A Arguida mantém com a filha uma relação que em geral é de afinidade amorosa e carinhosa». 3.2. Julga-se no mais improcedente o recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida. *** ** Não são devidas custas [arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do Código de Processo Penal, a contrario sensu]. Registe e notifique. * Lisboa, 20 de fevereiro de 2025 Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo relator e revisto por todos os signatários; assinaturas eletrónicas) Jorge Rosas de Castro Isabel Maria Trocado Monteiro Maria de Fátima R. Marques Bessa _______________________________________________________ 1. FARIA, Paula Ribeiro de, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, pág.205. 2. LEITE, André Lamas, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, in Revista Julgar, n.º 12, página 49. 3. LEITE, André Lamas, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, in Revista Julgar, n.º 12, página 50. |