Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DO CÉU SILVA | ||
Descritores: | ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO FRACÇÃO AUTÓNOMA COMODATO USO DETERMINADO RESTITUIÇÃO DA COISA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/06/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | - Para efeitos do art.º 1137º nº 1 do C.C., o uso da coisa emprestada só é determinado se o for por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa Na presente ação declarativa que J… e M… movem contra V…, a Ré interpôs recurso do despacho saneador pelo qual foi condenada a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre a fração autónoma correspondente ao 1º D do prédio sito…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa - freguesia de Benfica sob o nº …; a entregá-la aos AA. livre de pessoas e bens que não pertençam a estes; e a pagar aos AA. uma indemnização pela ocupação indevida da fração em valor correspondente ao valor de mercado de arrendamento unitário daquela, a liquidar em execução de sentença, por cada mês que perdure a ocupação. Na alegação de recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões: «1. A decisão sobre a matéria de facto padece de diversas deficiências, resultantes da errada apreciação da prova produzida nos autos, pelo que: a) Consequentemente, o ponto 1 dos “Factos provados” deve ser eliminado em virtude de os documentos comprovativos do direito de propriedade dos Recorridos estarem caducados; b) A redação do ponto 3 dos “Factos Provados” deve ser alterada, para passar a ser do seguinte teor: “3 Quando a relação matrimonial do filho L… chegou ao fim, e ser manifestamente impossível continuarem a coabitar, este viu-se forçado a sair de casa - deixando todos os seus pertences e os do seu filho G… de quem tem a guarda total, no local - tendo a Ré continuado a residir naquela habitação” c) O ponto 7 dos factos provados é contraditório com o ponto 11. Consequentemente, deve ser eliminado 2. A sentença recorrida, a) É nula, na aceção da primeira parte da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Cód. Processo Civil em virtude de existir contradição entre os fundamentos e a decisão prolatada, que contem um erro de raciocínio lógico, que se traduz na decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto e de direito de que a meritíssima juiz a quo se serviu ao proferi-la. b) É nula, na aceção da segunda parte da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Cód. Processo Civil, por ininteligibilidade, decorrente de incongruências e contradições nos seus próprios termos; c) Caso assim não se entenda, a sentença é nula por manifesto de erro de julgamento de facto e de direito». Os recorridos responderam à alegação da recorrente, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões: «1. A recorrente veio em sede de recurso impugnar a decisão do Tribunal a quo relativamente à matéria de facto e de direito, pois considera que existem vícios decorrentes da apreciação da prova produzida nos autos e que a sentença é nula por erro de raciocínio lógico e por ininteligibilidade, decorrente de incongruências e contradições, nos termos do art.º 615º n.º 1 al. c) do CPC. 2. Os fundamentos apresentados pela Recorrente, no seu cômputo geral, não merecem qualquer colhimento. Porquanto: 3. Quanto à Impugnação de Facto, mais concretamente na al. a) – O ponto 1 dos “Factos provados” do recurso, a Recorrente invoca que a caderneta predial e a certidão predial estão fora de prazo e como tal não deverão ser consideradas como probatórias, e requer que seja eliminado o ponto 1, em que dá como provado que os Autores são proprietários do imóvel sito… 4. Ora, como consta da douta sentença os factos foram dados como provados por aceitação das partes, pelo que não se percebe a impugnação de facto da Recorrente no que concerne ao ponto 1. 5. E mais se dirá que em momento algum na sua contestação a Recorrente pôs em causa que a propriedade do imóvel sito… é dos Recorridos, seus ex‐sogros, ou tão pouco levantou a questão da validade dos documentos apresentados com a P.I., senão agora, em sede de alegações de recurso, o que revela má fé por parte daquela atento ao momento escolhido para o fazer. – Pois, se o tivesse feito na contestação, os Autores em resposta à mesma ou até mesmo na audiência prévia teriam entregue certidão predial e caderneta predial atualizada. 6. A respeito dos documentos fora de prazo, relembra‐se que a acção deu entrada em plena época pandémica COVID‐19, e como tal o recurso às Finanças e demais instituições publicas estavam mediante marcação e agendamento, não tendo sido viável aos Autores obter em tempo uma caderneta predial junto das Finanças atualizada, usando a única que os Recorridos tinham em sua posse, e que de facto já era antiga. 7. Quanto à certidão predial permanente que foi junta com a P.I. e cujo prazo expirou em 31/03/2021, 8 dias antes da ação ter dado entrada (08/04/2021), sempre se dirá que, e atento à época pandémica Covid‐19, houve prorrogação dos prazos de validade de documentos constantes de certidões de registos, entre outros, até 31 de Dezembro de 2021, de acordo com a lei Decreto‐Lei n.º 22‐A/2021 de 17 de Março, pelo que a certidão predial constante na P.I. se encontra válida sim – ao contrário do que é alegado pela Recorrente. 8. Mais se refere que, quanto à titularidade do imóvel em questão, existe uma decisão transitada em julgado no âmbito do processo de divórcio n.º … que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz 4, que comprova a titularidade do imóvel sito… como sendo propriedade dos Recorridos, transcrevendo‐se para melhor conhecimento o seguinte em relação ao que ali foi referido quanto ao Direito de uso da casa de morada de família: “Mostrando‐se nos autos que a casa de morada de família não configura bem comum ou próprio das partes em litígio, mas sim bem imóvel pertencente aos pais do autor, os quais apenas concederam aos mesmos a utilização do mesmo, a contrario sensu do disposto do artigo 1793º do Código Civil, não estando perante a figura jurídica de atribuição da casa de morada de família, vai tal pedido julgado improcedente.” 9. Ou seja, a propriedade do imóvel é dos pais do autor – aqui recorridos. 10. Toda a prova carreada para os autos documentais, no seu todo, é demonstrativa de quem são os proprietários do imóvel reivindicado, não obstante tal facto ter sido dado como provado por aceitação das partes. 11. Pelo que, a impugnação de facto da al. a) não merece qualquer colhimento e como tal não deverá ser eliminado o ponto 1 dos factos como provados, mantendo‐se exactamente esse ponto nos seus exactos termos. 12. Relativamente à als. b) e d) (que por lapso, deveria corresponder a al. c) ‐ Pontos 3 e 7 do Recurso, não existe nenhuma contradição entre o ponto 3, 7 e 11, e como tal, não deverá ser alterado o ponto 3, nem eliminado o ponto 7, devendo os mesmos manter‐se nos seus exactos termos. – até porque mais uma vez, todos os factos foram dados como provados, por aceitação das partes, inclusive os pontos 3 e 7 dos factos provados da douta sentença. 13. No entanto, sempre se dirá, que a Ré ‐ como bem sabe ‐ nunca teve autorização para ficar a residir no imóvel após o filho L… ter saído do mesmo, aquando a separação em Dezembro de 2017, pelo que deveria ter disponibilizado o imóvel. 14. A Ré foi interpelada verbalmente várias vezes para sair, e nunca saiu, começando depois a invocar que o imóvel se tratava de uma casa morada de família, porque lá residia com um dos seus filhos. 15. Os Autores/ Recorridos aguardaram a decisão do Tribunal de Família e de Menores a esse respeito, que veio a considerar improcedente a pretensão da Recorrida de que se tratava de uma casa de morada de família, em 5 de Dezembro de 2019. 16. Mais se dirá que, com a saída do filho L… do prédio propriedade dos Autores em Dezembro de 2017, cessou o empréstimo dos Autores para com o seu filho. 17. Os Autores pretenderam sempre recorrer à via extrajudicial, para que a Recorrida saísse voluntariamente do Imóvel, e como tal, não obstante terem interpelado a Ré verbalmente para de lá sair, uma vez que já estava separada do seu filho, aguardaram que a Ré desocupasse voluntariamente o imóvel, uma vez que um dos seus netos vivia em regime partilhado com aquela. 18. Esta posição dos Autores em nada contradiz o facto da Recorrente não ter autorização para continuar a residir no imóvel, pois não tinha autorização, como a mesma bem sabia, assim como não tem. 19. Apenas foi dado pelos Autores uma possibilidade de sair, pela via extrajudicial, em atenção ao facto da mesma lá residir com um dos netos, em regime de guarda partilhada. 20. A posição dos Recorridos sempre foi muito clara quanto a isso, e a Recorrida bem sabe. 21. Pelo que não merece qualquer colhimento a impugnação de matéria de facto. 22. Quanto à matéria de direito, os fundamentos invocados também não merecem qualquer colhimento. 23. Relativamente à nulidade invocada na al. a) do recurso, a Recorrente no seu recurso, refere que há um erro de raciocínio o lógico que configura a nulidade de sentença nos termos do art.º 615º n.º 1 al. c) do CPC, porquanto a douta sentença transcreveu o teor do art.º 1137º do Código Civil e concluiu que “(…) verifica‐se que não foi fixado momento certo para o termo do contrato, pois o prédio foi entregue pelos AA ao filho para que este lá habitasse com a sua mulher, a Ré, e os filhos” e “Daqui resulta que o contrato cessaria quando os Autores o exigissem pois não foi estipulado qualquer prazo ou uso especifico”. 24. Referindo ainda que está dado como provado no ponto 2 da douta sentença que “Os Autores emprestaram o prédio (…) a um dos seus filhos L… cedendo‐o gratuitamente para que este lá habitasse com a sua mulher, a Ré e os filhos”. 25. No entendimento da Recorrente, e que se encontra plasmado no Recurso “A Recorrente utiliza a fracção autónoma identificada nos autos, para nela residir, desde Agosto de 2009, data em que os Recorridos lha entregaram, sendo este uso que permite delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer”. 26. Ora, este entendimento não tem qualquer fundamento, pois os Recorridos nunca entregaram a casa à Recorrida, conforme a Recorrente alega, e como tal, a necessidade do uso de habitação da Recorrida nem sequer é questão. 27. Pelo que, não há qualquer erro no raciocínio lógico na sentença. 28. Pois sendo o comodato um contrato sem prazo, o mesmo passa a ter prazo com a interpelação dos proprietários para a Recorrente sair do imóvel. 29. Interpelação essa que por intermédio da agente de execução A… se realizou formalmente no dia 08/07/2021. 30. Com essa interpelação foi dado o prazo de 30 dias para que a Recorrente desocupasse o imóvel que ocupava sem autorização dos Recorridos. 31. Para além das variadíssimas interpelações verbais que lhe foram feitas pelos Recorridos, sem qualquer sucesso. 32. A Recorrente tinha até ao dia 8 de Fevereiro de 2021 para desocupar o imóvel, após interpelação formal por parte da Agente de Execução, e por não o ter feito, tiveram os Recorridos que se socorrer da presente acção de reivindicação do imóvel. 33. Quanto à nulidade invocada na al. b) do recurso, a Recorrente invoca a nulidade da sentença nos termos do art.º 615 n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil, porque consta na sentença “… que foi celebrado um contrato de comodato.” e não obstante esta conclusão ficou ainda a contar na sentença que “ (…) apesar de ter ficado demonstrado que a Ré ocupa o imóvel, não logrou esta demonstrar que o faz ao abrigo de um qualquer fundamento legítimo! … e ainda que “Ou seja, a acção deve ser julgada procedente (…) porque a Ré não logrou provar a existência de qualquer facto que lhes permitisse recusar a entrega. A detenção de um imóvel sem título de ocupação é ilegítima e viola o direito de propriedade dos Autores sobre aquele imóvel”. 34. Com estes fundamentos, refere a Recorrente que existe contradição na sentença nos seus próprios termos, uma vez que “se foi celebrado um contrato de comodato, como consta da sentença, este é título bastante para legitimar a ocupação do imóvel pela Recorrente e recusar a sua entrega enquanto o usar para o fim comodatado: A sua habitação e do seu filho mais novo.” 35. Ora, mais uma vez tal fundamento não merece qualquer colhimento, pois o contrato de comodato, a que a sentença se refere, foi celebrado única e exclusivamente com o filho dos autores, L… e nunca com a Ré!!! 36. A R. não tem qualquer título que a legitime a habitar numa casa sem autorização dos seus proprietários, aqui Autores. 37. A Recorrente não tem nenhum título que a legitime a residir naquele imóvel, nem mesmo para habitar com o seu filho, pois o imóvel sito… não foi considerado casa morada de família por sentença transitada em julgado no processo de divórcio n.º … que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores de Lisboa – Juiz 4. 38. Pelo que, a Recorrida tem pleno conhecimento que não tinha e não tem autorização dos proprietários para habitar no imóvel e que está a violar o direito de propriedade dos mesmos, sendo que o presente Recurso, mais não é do que uma manobra para ganhar tempo e continuar a permanecer no imóvel dos Recorridos, enquanto não houver decisão transitada em julgado. 39. Não existindo qualquer nulidade da sentença quer pelos fundamentos invocados pela al. a) quer pela al. b) do Recurso apresentado pela Recorrente, pelo que deve manter‐se a sentença recorrida nos seus exactos termos. 40. Daí as presentes contra‐alegações. 41. Pois, no entendimento dos Recorridos este Recurso mais não é do que mais uma manobra dilatória que a Recorrente se socorre – permitida por lei – para permanecer mais tempo no imóvel, sem o desocupar.» Os recorridos juntaram à alegação certidão permanente do registo predial e caderneta predial atualizadas. São as seguintes as questões a decidir: - da nulidade da sentença; - da impugnação da decisão sobre a matéria de facto; e - do uso determinado. * Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos: “1. A aquisição por compra do direito de propriedade da fracção correspondente ao 1º D do prédio urbano sito…, inscrito na matriz predial urbana, da freguesia de Benfica, sob o artigo …, que teve origem no art.º …, e descrito com o n.º … na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, freguesia de Benfica, com o valor patrimonial de €43.119,44, encontra-se registada a favor dos Autores pela inscrição AP. 14 de 1982/10/08. 2. Os Autores emprestaram o prédio acima identificado, - pronto a habitar, completamente mobilado e decorado, bem como equipado com todos os eletrodomésticos e utensílios necessários para viver, incluindo roupa de cama, toalhas de banho, loiça, etc - a um dos seus filhos, L…, cedendo-o gratuitamente, para que este lá habitasse com a sua mulher V… e os seus dois filhos. 3. Quando a relação matrimonial do filho L… chegou ao fim, e ser manifestamente impossível continuarem a coabitar, este viu-se forçado a sair de casa - deixando todos os seus pertences e os do seu filho G… de quem tem a guarda total, no local - tendo a Ré continuado a residir naquela habitação, sem autorização dos Autores, alegando que aquela seria a sua casa morada de família, recusando-se a sair, apesar de ter sido várias vezes interpelada para tal, quer pelos Autores, quer pelo seu filho L… 4. Nunca tendo acordado pagar ou pago qualquer quantia aos Autores, por ali se encontrar a residir. 5. No âmbito de audiência realizada em 5 de Dezembro de 2019, referente ao processo de divórcio n.º …, a correr termos no Juiz 4 do Juízo de Família e Menores de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi julgado improcedente o pedido da Ré de atribuição da casa de morada de família por esta ser da propriedade dos aqui Autores, podendo ler-se na decisão judicial proferida “Mostrando-se nos autos que a casa de morada de família não configura bem comum ou próprio das partes em litígio, mas sim bem imóvel pertencente aos pais do autor, os quais apenas concederam aos mesmos a utilização do mesmo, a contrario sensu do disposto do artigo 1793º do Código Civil, não estando perante a figura jurídica de atribuição da casa de morada de família, vai tal pedido julgado improcedente.” 6. A referida decisão transitou em julgado no dia 17 de Janeiro de 2020. 7. Acontece que a Ré desde essa data, continua a residir na fracção pertença dos aqui Requerentes, sem autorização destes. 8. Em virtude dessa circunstância, os aqui Autores estão impedidos de usufruir do imóvel, uma vez que o mesmo se encontra ocupado pela Requerida. 9. Que detém as chaves da fracção. 10. Os Autores por várias vezes, por intermédio do seu filho, interpelaram a Ré para proceder à imediata entrega da fracção. 11. Pelo facto da Ré residir na referida fracção com um dos seus netos, D…, com 12 anos de idade, em regime de guarda partilhada em semanas alternadas com o seu filho L… por decisão do Tribunal de Família e Menores de Lisboa -, os Autores aguardaram que a Ré reorganizasse a sua vida e desocupasse voluntariamente o imóvel. 12. Assim, em 08/01/2021 foi a Ré interpelada pela agente de execução A… para em 30 dias desocupar a fracção autónoma sita…, por não ter autorização para utilizar a mesma como sua habitação, devendo no mesmo prazo, devolver o imóvel, bem como as respectivas chaves aos Autores, sob pena de procedimento judicial. 13. Porém, apesar da interpelação, a Ré até à presente data, ainda não procedeu à desocupação da fracção, nem procedeu à entrega das chaves, permanecendo na fracção de forma ilegítima e abusiva, nada dizendo. 14. Com o arrendamento dos 4 quartos da casa a €400,00/cada, os Autores aufeririam uma quantia mensal nunca inferior a €1.600; 15. A fracção está completamente mobilada e equipada com electrodomésticos, TV, Internet, loiça, roupa de casa, etc., pertença dos Autores; o edifício em que se situa tem 2 elevadores, com 2 portas de saída para as ruas; a sua área global está dividida em 5 assoalhadas, 2 halls, 2 WC, 1 cozinha, 1 despensa, 2 varandas fechadas e 1 arrecadação no 8º andar; tem proximidade de transportes (carris, comboio, metro), tem proximidade de comércio diverso, assim como do centro comercial Fonte Nova e Centro Comercial do Colombo e encontra-se em bom estado de conservação». * A recorrente arguiu a nulidade da decisão recorrida com fundamento no disposto no art. 615º nº 1 al. c) do C.P.C., nos termos do qual “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. “No tocante à causa de nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do mesmo preceito, vem-se entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. Radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 2 de junho de 2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1). Na fundamentação da decisão recorrida, pode ler-se: “Daqui resulta que o contrato cessaria quando os Autores o exigissem pois não foi estipulado qualquer prazo ou uso específico.” No entender da recorrente, o uso específico resulta do ponto 2 da matéria de facto provada, do qual consta que os AA. cederam a fração gratuitamente ao filho L… “para que este lá habitasse com a sua mulher V… e os seus dois filhos”. Tal poderá configurar erro de julgamento e não oposição entre os fundamentos e a decisão. “A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, anotação ao art.º 670º). Não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que é causa da nulidade da sentença, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível. No entender da recorrente, há ininteligibilidade por o tribunal recorrido, não obstante ter afirmado que foi celebrado um contrato de comodato, considerou que a R. não logrou demonstrar que ocupa a fração “ao abrigo de um qualquer fundamento legítimo”. É certo que o tribunal recorrido afirmou que foi celebrado um contrato de comodato, mas certo é também que resulta da fundamentação da decisão recorrida que, no entender do tribunal recorrido, tal contrato cessou. Não se vislumbra, pois, que haja ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Improcede, pois, a arguição da nulidade da decisão recorrida. * A recorrente defendeu a eliminação do ponto 1 da matéria de facto provada por a validade da caderneta predial e da certidão permanente juntas com a petição inicial ter terminado antes da propositura da presente ação. O tribunal recorrido deu como provados os factos vertidos na matéria de facto provada com base na “aceitação das partes”. Não teve, pois, em conta os documentos referidos pela recorrente. Nos termos do art.º 574º nº 2 do C.P.C., “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”. Assim, andou mal o tribunal recorrido em dar como provado o registo da aquisição da fração a favor dos AA. com base no acordo das partes, pois, conforme resulta do art.º 110º nº 1 do Código de Registo Predial, “o registo prova-se por meio de certidões”. Por força do nº 2 do citado artigo, as certidões são “válidas por um período de seis meses”. Consta da certidão permanente junta com a petição inicial que foi disponibilizada a 28 de setembro de 2020 e é válida até 31 de março de 2021. A ação foi proposta a 8 de abril de 2021. Por força do art.º 16º nº 2 do DL 10-A/2020, de 13 de março, na redação dada pelo DL 22-A/2021, de 17 de março, “certidões e certificados emitidos pelos serviços de registos…, cuja validade expire a partir da data de entrada em vigor do presente decreto-lei ou nos 15 dias imediatamente anteriores, são aceites, nos mesmos termos, até 31 de dezembro de 2021”. Assim, a certidão permanente continuava a ser aceite à data da propositura da ação. Conforme resulta do art.º 12º do Código do IMI, “as matrizes são atualizadas anualmente com referência a 31 de dezembro”. Consta da caderneta predial junta com a petição inicial que a mesma foi impressa a 2 de dezembro de 2004. O valor patrimonial constante do ponto 1 da matéria de facto provada deve, pois, ser eliminado. No entender da recorrente, a redação do ponto 3 da matéria de facto provada deve ser alterada, porque não tem em conta o alegado nos artigos 18º, 31º, 52º, 55º, 56º e 78º da contestação e é contrária à factualidade vertida no ponto 11 da matéria de facto provada. Saber se o contrato de comodato cessou é uma questão de direito, pelo que tem de ser eliminada a expressão “sem autorização dos Autores” que consta do ponto 3 da matéria de facto provada. Tal ponto corresponde ao artigo 4º da petição inicial. Considerar toda a matéria vertida neste artigo como aceite pela R. é esquecer o artigo 15º da contestação, artigo este do seguinte teor: “A Ré impugna os restantes factos alegados na PI por serem falsos ou inexatos ou em virtude de a Ré não os conhecer nem ter obrigação de os conhecer, devendo ainda considerarem-se impugnados os demais factos invocados pelos Autores que se encontrem em oposição com a presente contestação”. Não parece, pois, correto considerar que a R. foi várias vezes interpelada para sair da casa pelos AA. e pelo filho destes. No entanto, a R. não especificou como incorretamente julgado o ponto 10 da matéria de facto provada e deste consta que “os Autores por várias vezes, por intermédio do seu filho, interpelaram a Ré para proceder à imediata entrega da fracção”. Ter a R. alegado que a casa era a casa de morada de família e recusado a sair são factos que devem ser considerados admitidos pela R., atentos os artigos 55º a 59º da contestação. A recorrente defendeu a eliminação do ponto 7 da matéria de facto provada. Tal ponto contém a expressão “sem autorização” que, atento o supra exposto, não pode ser mantida. Porque o referido ponto não acrescenta nada ao que já consta do ponto 3 da matéria de facto provada, deve ser simplesmente eliminado, o que implica a eliminação do ponto 8 da matéria de facto provada da expressão inicial “em virtude dessa circunstância”. Apesar de a R. não ter especificado o ponto 13 da matéria de facto provada como incorretamente julgado, importa eliminar do mesmo a expressão “de forma ilegítima e abusiva”, porque, conforme atrás referido, saber se o contrato de comodato cessou é uma questão de direito. Assim, procede parcialmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, passando a matéria de facto provada a ter a seguinte redação: 1. A aquisição por compra do direito de propriedade da fração correspondente ao 1º D do prédio urbano sito…, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Benfica sob o artigo …, que teve origem no artigo …, e descrito com o nº … na Conservatória do Registo Predial de Lisboa - freguesia de Benfica, encontra-se registada a favor dos Autores pela inscrição AP. 14 de 1982/10/08. … 3. Quando a relação matrimonial do filho L… chegou ao fim, e ser manifestamente impossível continuarem a coabitar, este viu-se forçado a sair de casa - deixando todos os seus pertences e os do seu filho G… de quem tem a guarda total, no local - tendo a Ré continuado a residir naquela habitação, alegando que aquela seria a casa de morada de família, recusando-se a sair. … 7. (eliminado) 8. Os aqui Autores estão impedidos de usufruir do imóvel, uma vez que o mesmo se encontra ocupado pela Requerida. … 13. Porém, apesar da interpelação, a Ré até à presente data, ainda não procedeu à desocupação da fração, nem procedeu à entrega das chaves, permanecendo na fração, nada dizendo. … * Nos termos do art.º 1137º nºs 1 e 2 do C.C., “se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação”; “se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida”. O tribunal recorrido afirmou que, no contrato de comodato em questão nos presentes autos, “não foi estipulado qualquer prazo ou uso específico”. No entender da recorrente, o uso específico resulta do ponto 2 da matéria de facto provada, do qual consta que os AA. cederam a fração gratuitamente ao filho L… “para que este lá habitasse com a sua mulher V… e os seus dois filhos”. Em apoio da sua posição, a recorrente invocou o acórdão do STJ proferido a 5 de junho de 2018, no processo 1281/13.5TBTMR.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt, no qual se pode ler: “Tratando-se, no caso, de contrato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o 1º andar do prédio identificado, enquanto continuar a ter esse uso, atento o disposto no art.º 1137.º, n.º 1, do CC.” “uso determinado” é a expressão empregue no art.º 1137º nº 1 do C.C. “… tem de se interpretar aquele dispositivo como pressupondo, ao estabelecer que sendo a coisa emprestada para uso determinado o comodatário a deve restituir ao comodante logo que o uso finde, que a determinação do uso envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo em consequência considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada mas de actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, isto é, se for concedido por tempo indeterminado. Portanto, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. Daqui resulta que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tenha direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da casa, face ao disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 13 de maio de 2003, processo 03A1323). Esta é a posição sufragada pela jurisprudência do STJ mais recente. “A vinculação do comodante apenas se justifica quando este se comprometeu durante determinado período de tempo ou à cedência da coisa para uso determinado, rectius, para utilização específica. É que, estando em causa um contrato gratuito, não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado por período de tempo indeterminado que pode ser o da própria vida do comodatário… Quando a coisa é entregue para uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma determinada finalidade, e não a utilização da coisa em si mesma. É que não se traduziria em comodato para uso determinado o mero empréstimo da casa para habitação. Não seria, por isso, à luz do uso determinado da coisa que o comodante ficaria impedido de exigir a restituição ad nutum nos termos do art.º 1137.º, n.º 2. Apenas se tratando de uso determinado quando se delimitasse temporalmente a necessidade que o comodatário visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai perdurar. Um uso genérico e abstrato suscetível de subsistir indefinidamente atingiria a própria noção de comodato plasmada no art.º 1129.º, que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso. Da essência do contrato de comodato resulta sempre para o comodatário um direito de uso temporalmente limitado. Este limite temporal pode decorrer do acordo das partes ou da circunstância de a coisa ter sido emprestada para um uso determinado” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 14 de dezembro de 2021, processo 1580/14.9TBVNG.P1.S2; no mesmo sentido, Acórdãos do STJ proferidos a 9 de dezembro de 2021, processo 8060/18.1T8ALM.L1.S1; e a 26 de novembro de 2020, processo 3233/18.0T8FAR.E1.S1). Assim, bem andou o tribunal recorrido em considerar que a fração não foi emprestada para uso determinado e, portanto, que os AA. podiam exigir a restituição da fração. * Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida. Custas do recurso pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Lisboa, 6 de dezembro de 2022 Maria do Céu Silva Teresa Sandiães Octávio Diogo |