Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4836/14.7TBCSC.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PARTILHA EXTRAJUDICIAL
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
CURADOR AD LITEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Na decisão de um processo de autorização judicial para partilha extrajudicial de herança de que é beneficiário menor de nacionalidade guineense (Guiné-Bissau), filho de de cujus português e de mãe guineense, haverá que conciliar as normas de direito substantivo aplicáveis, ou seja, o Código Civil guineense (correspondente ao Código Civil português em vigor à data da proclamação do Estado soberano da Guiné-Bissau, isto é, em 24.9.1973) e o Código Civil português.
II. A autorização para a progenitora outorgar partilha extrajudicial dos bens da herança de que o menor seja um dos beneficiários, concorrendo com a progenitora sobreviva e demais irmãos maiores, pressupõe a apresentação de um projeto ou menção dos termos em que a partilha se realizará, com indicação do património abrangido e previsão da utilização a dar ao quinhão que couber ao menor, devendo ser igualmente nomeado curador especial para representar o menor na partilha.
III. Tendo sido omitidos tais elementos no requerimento inicial, deverá a requerente ser convidada a indicá-los, o que poderá ser efetuado por determinação oficiosamente ditada pela Relação na sequência de apelação interposta pela requerente com fundamentação diversa (in casu, reação contra a imposição, pelo tribunal a quo, de que o valor que coubesse na herança ao menor fosse aplicado em certificados de aforro).
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 08.8.2014 T, residente em Algés, requereu no Tribunal de Família e Menores de Cascais autorização judicial para (transcreve-se o pedido):
“a) Aceitar a herança do menor Tiago (…);
b) Convencionar/outorgar partilha extrajudicial, nos termos do previsto no artigo 1889º, nº1, alínea l) e artigo 1890º, nº4 do Código Civil, em representação do menor;
c) Levantar as verbas que sejam adjudicadas ao menor Tiago (…), conforme artigo 1889º, nº1, alínea a) do Código Civil;
d) Em qualquer dos casos, nomeação de curador especial ao menor, Tiago (…).”

A requerente alegou ter a nacionalidade guineense (República de Guiné-Bissau) e ser viúva de Rui (…), o qual faleceu em Portugal, em 15.3.2012. Rui (…) deixou como herdeiros a ora requerente e os seis filhos do casal, todos residentes na República da Guiné-Bissau. O cônjuge falecido era titular de conta bancária, na Caixa Geral de Depósitos, com o n.º 0044068102600. Cinco dos filhos da requerente e do falecido Rui (…), maiores de idade, passaram procuração à requerente, concedendo-lhe poderes para os representar junto de quaisquer instituições bancárias ou financeiras, partilhar e receber com os demais herdeiros quaisquer quantias a que tenham direito, por óbito do respetivo progenitor. Quanto ao herdeiro Tiago (…), por ser menor de idade, é necessária autorização do tribunal, nos termos da alínea l) do n.º 1 do art.º 1889.º do Código Civil, para a aceitação de herança.

Foram citados o Ministério Público e, nos termos da segunda parte do n.º 2 do art.º 1014.º do CPC, Nazaré (…).

Nazaré (…) declarou não se opor ao requerido.

O Ministério Público declarou “nada opor a que seja concedida autorização judicial para que a requerente aceite a herança em causa em nome do seu filho menor Tiago (…), outorgue partilha extrajudicial, em representação do mesmo, e levante as verbas que sejam adjudicadas ao Tiago (…) e faça uma aplicação em certificados de aforro, devendo comprovar nos autos.

Em 12.01.2015 foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo, que se transcreve:
Destarte, defere-se o requerido e, consequentemente, autoriza-se T a aceitar a herança aberta por óbito de Rui (…) e a outorgar a partilha extrajudicial, em representação do menor Tiago (…); bem como a proceder ao levantamento da quantia depositada na Caixa Geral de Depósitos que seja adjudicada ao menor.
O valor que couber ao menor deverá ser aplicado em certificados de aforro, em nome do mesmo, no prazo de trinta dias após a realização da escritura.
Custas pela requerente.
Registe e notifique, sendo a Requerente para no prazo fixado comprovar nos autos a indicada aplicação.

A requerente apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. Por todo o supra exposto se conclui que o ónus imposto à ora Recorrente, e mais precisamente ao menor Tiago (…), no sentido de que “o valor que couber ao menor deverá ser aplicado em certificados de aforro, em nome do mesmo, no prazo de trinta dias após a realização da escritura”, se revela completamente desproporcionado e fora de contexto prático, abusiva e não salvaguarda de modo algum o superior interesse daquele.
2. Nestes termos e nos demais de direito que os Venerandos Juízes suprirão, se requer seja alterada a sentença no sentido de permitir à ora Recorrente o levantamento de todos os valores depositados, inclusive os afetos à quota-parte do menor Tiago (…), in fine, ou seja, sem qualquer condição quanto à demonstração de ter sido aplicado em certificados de aforro.

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.
A questão suscitada pela apelante no recurso é se não se deve impor à requerente que aplique em certificados de aforro o valor que couber ao seu filho menor, Tiago (…), na partilha da herança de Rui (…).

O tribunal a quo deu como provada a seguinte.

Matéria de facto.

1. Tiago (…) é filho de Rui (…) e de T e nasceu em 21 de Junho de 2000.
2. O pai do menor faleceu em 16 de Fevereiro de 2013, no estado de casado com a mãe do menor.
3. O pai do menor era titular da conta bancária n.º (…) da Caixa Geral de Depósitos – cfr. fls. 20 e 21, que aqui se reproduz.
4. A 18 de Outubro de 2013 foi lavrada a escritura de habilitação de herdeiros cuja certidão faz fls. 23 a 25 dos autos, que aqui se reproduz.
5. Os cinco filhos maiores do casal, residentes na República da Guiné Bissau, outorgaram procurações a favor da Requerente, para que esta, em nome daqueles, os representasse junto de quaisquer instituições bancárias ou financeiras, partilhasse e recebesse, com os demais herdeiros, quaisquer quantias a que tenham direito, por óbito do respectivo progenitor, Rui (…).
Nos termos do disposto na segunda parte do n.º 4 do art.º 607.º do CPC (ex vi art.º 663.º n.º 2 do CPC), mais se dá como provado, por resultar dos autos, que:
6. O falecido Rui (…) tinha nacionalidade portuguesa.
7. A requerente T tem nacionalidade guineense (Guiné-Bissau).
8. Os seis filhos do casal têm nacionalidade guineense (Guiné-Bissau).

O Direito.

Antes de mais, há que apurar qual o direito substantivo aplicável, uma vez que nos encontramos perante nacionais de um país estrangeiro.

Na falta de convenções internacionais que nesta matéria vinculem simultaneamente Portugal e a República da Guiné-Bissau, atentar-se-á nas normas de conflitos previstas no Código Civil português. Assim, quanto à capacidade das pessoas, rege a sua lei pessoal (art.º 25.º), a qual corresponde à nacionalidade do indivíduo (art.º 31.º n.º 1).

Em relação às relações entre pais e filhos, aplica-se a lei pessoal do progenitor sobrevivo, no caso do falecimento de um deles (art.º 57.º n.º 2, segunda parte).

A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do seu falecimento, competindo-lhe também definir os poderes do administrador da herança (art.º 62.º).

Na República da Guiné-Bissau, a Lei n.º 1/73, de 24.9.1973, publicada no Boletim Oficial n.º 1, de 04.01.1975, manteve em vigor a legislação portuguesa vigente à data da proclamação do Estado soberano da Guiné-Bissau, ou seja, em 24.9.1973, na medida em que não contrariasse a soberania nacional, a Constituição da República guineense, as leis ordinárias da República e os princípios e objetivos do PAIGC.

É assim que se mantém em vigor o Código Civil português, na redação vigente em 24.9.1973, na medida em que não se deva ter por revogado nos termos supra referidos.

Daí que não haja de cuidar de problemas decorrentes de normas de reenvio ao nível do direito internacional privado (artigos 17.º e 18.º do Código Civil).

Tiago é guineense, pelo que a determinação da sua capacidade jurídica em geral cabe ao direito guineense.

Segundo a lei guineense, a maioridade atinge-se aos 18 anos (Lei n.º 5/76, de 3.5.1976, publicada no 1.º Suplemento ao Boletim Oficial n.º 18, de 04.5.1976).

Assim, Tiago, nascido em 21.6.2000, é menor.

Às relações entre pais e filhos, nomeadamente os direitos e deveres dos pais em relação à pessoa e aos bens dos filhos, rege, no caso da morte de um dos progenitores, a lei pessoal do progenitor sobrevivo. Ou seja, no caso destes autos, a lei guineense.

Face à sobrevigência do Código Civil português, na redação em vigor em 24.9.1973 (que doravante será a tida em consideração, quando nada seja dito em contrário, e que passaremos a designar por Código Civil guineense), temos que, tal como atualmente no direito português, os pais devem, durante a menoridade dos filhos, administrar os bens destes (art.º 1879.º n.º 2). No atual Código Civil português, após a entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 496/77, de 25.11, os pais não têm usufruto legal sobre os bens dos filhos (que estava previsto no art.º 1891.º). Mas “podem utilizar os rendimentos dos bens do filho para satisfazerem as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação deste, bem como, dentro de justos limites, com outras necessidades da vida familiar” (art.º 1896.º n.º 1 do CC português). No código civil guineense, os pais têm o usufruto dos bens dos filhos menores (art.º 1891.º), pertencendo-lhes os frutos desses bens (art.º 1894.º). Quanto aos bens dos menores usufruídos pelos pais ou quaisquer outros bens pertencentes ao menor, os atos suscetíveis de os alienarem ou onerarem estão sujeitos a prévia autorização do tribunal, que no CC português está regulada no art.º 1889.º e no CC guineense no art.º 1887.º. Em ambos os artigos se estipula que os pais não poderão alienar ou onerar bens do filho sem autorização do tribunal, a menos que se trate de alienação onerosa de coisas móveis suscetíveis de perda ou deterioração (alínea a) do n.º 1). E em ambos os artigos se estipula que carece de autorização do tribunal a aceitação de herança com encargos (alínea e) do n.º 1). No Código Civil português acrescenta-se que carece de autorização judicial “convencionar partilha extrajudicial” (alínea l) do n.º 1 do art.º 1889.º). Tal aditamento decorre do facto de, após a entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 227/94, de 08.9, a aceitação e partilha de herança de que seja beneficiário menor deixaram de ser necessariamente realizadas em inventário, tendo-se alterado os artigos 2053.º e 2102.º, mas passando-se a exigir prévia autorização para a realização de partilha extrajudicial. Uma vez que estas alterações à obrigatoriedade da realização de inventário se inserem no regime das sucessões e serão, assim, aplicáveis ao caso sub judice, atenta a nacionalidade portuguesa do “de cujus”, há a necessidade de harmonizar normas, admitindo-se, assim, que se aplique ao caso a dispensa da obrigatoriedade da realização de inventário, mas em contrapartida se submeta a prévia autorização a realização de partilha extrajudicial.

A requerente solicitou, precisamente, autorização para outorgar partilha extrajudicial dos bens da herança de que o menor Pedro é um dos beneficiários. Mas os termos em que formulou o pedido, na forma de autêntica passagem de um “cheque em branco”, está bem de ver que lhe retiraria qualquer conteúdo útil. A autorização de outorga de partilha extrajudicial pressupõe a apresentação de um projeto ou menção dos termos em que a partilha se realizará, com indicação do património abrangido e previsão da utilização a dar ao quinhão que couber ao menor (vide Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, volume II, 2.ª edição, 2004, páginas 311 e 312; acórdão da Relação de Lisboa, de 27.6.2006, processo n.º 4669/2006-7). Havendo também lugar à nomeação de curador especial para representar os interesses do menor na partilha, nos casos em que, como é o destes autos, o progenitor com ele concorra na sucessão (vide n.º 4 do art.º 1890.º do CC português, doutrina e jurisprudência acima citadas e, ainda, 2.ª parte do n.º 5 do art.º 1014.º do CPC: “é sempre admissível a cumulação dos pedidos de autorização para aceitar a herança deferida a incapaz, quando necessária, e de autorização para outorgar na respetiva partilha extrajudicial, em representação daquele; neste caso, o pedido de nomeação de curador especial, quando o representante legal concorra à sucessão com o seu representado, é dependência do processo de autorização). Aliás, é o facto de a mãe do menor com ele concorrer na sucessão, havendo que nomear curador especial, que justifica que a apreciação da autorização não caiba ao Ministério Público, nos termos do Decreto-Lei n.º 272/2001 de 13.10 (vide alínea b) do n.º 2 do art.º 2.º do diploma citado). In casu a requerente solicitou a nomeação de curador especial, sem que o tribunal a quo se tenha pronunciado sobre tal requerimento. Sendo certo que tal curador não poderá ser nenhum dos irmãos do menor, uma vez que com ele concorrem à sucessão. Quanto à determinação, pelo tribunal a quo, de que o quinhão da partilha, de que o menor seja beneficiário, seja aplicado em certificados de aforro, ela parte da constatação de que tal quinhão é um bem que não deve nem pode ser dissipado, nomeadamente na aquisição de bens de consumo, a pretexto de servir os interesses do menor, a menos que tal seja especificadamente autorizado, mediante demonstração da sua necessidade e conveniência. De facto, aos pais cabe sustentar o menor, podendo servir-se, para esse efeito, no que concerne ao património do menor, apenas dos rendimentos dele, que não do próprio capital. Quando, no n.º 2 do art.º 1889.º do CC português, correspondente ao n.º 2 do art.º 1887.º do CC guineense, se estipula que “não se considera abrangida na restrição da alínea a) [necessidade de autorização judicial para “alienar ou onerar os bens do filho…”] a aplicação de dinheiro ou capitais do menor na aquisição de bens”, a aquisição de bens referida no citado nº 2 tem que ser entendida como aquisição de bens cujo valor substitua – ou até aumente – o património do menor e não o diminua, como seria o caso da aquisição de bens de consumo ou despesas equiparadas (neste sentido, vide acórdão do STJ, de 18.11.2010, processo 125/08.4TBVLN.G1.S1, acessível in www.dgsi.pt). É certo que a apelante vem agora afirmar que não há perspetivas de que o menor, quando atingir a maioridade, tenha possibilidade de vir a Portugal, havendo sérios riscos de essa forçada aplicação em títulos de dívida de um estado com quem não tem afinidade se transformar na apropriação indevida e ilegítima do estado português de bens alheios, pertencentes a cidadão estrangeiro (artigos 10.º e 11.º da alegação do recurso). Poderá responder-se a isso que, residindo a requerente em Portugal, sempre poderia auxiliar o seu filho, através do uso de instrumento de representação, no resgate de tais títulos. Mas o eventual regresso da requerente à Guiné-Bissau, ou deslocação para outro país, poderia criar as alegadas dificuldades. Uma forma de contornar o problema seria deixar à requerente a possibilidade de aplicar o quinhão da herança, que caiba ao menor, noutros títulos de crédito nominativos, para além dos certificados de aforro, à semelhança com o que ocorre com as medidas substitutivas da omissão de prestação de caução por parte dos pais, quando esta lhes é exigida (vide artigos 1898.º e 1470.º do CC - tanto português, como guineense).

Seja como for, constata-se as seguintes omissões:
a) A requerente não explicitou quais são os bens e encargos que compõem a herança – não estando claro se outros existem, para além do aludido saldo bancário;
b) Não apresentou projeto de partilha extrajudicial;
c) Não foi nomeado curador especial que represente o menor na partilha, sendo certo que a requerente não indicou alguém que possa desempenhar tal cargo, atendendo a que não poderá ser pessoa que concorra com o menor na herança.

Assim, atendendo a que se trata de omissões atinentes a normas imperativas e a direitos indisponíveis, de que esta Relação pode e deve conhecer oficiosamente (artigos 608.º n.º 2 parte final e 663.º n.º 2 do CPC), e por se considerar, tal como no acórdão desta Relação, de 27.6.2006, supra referido, que razões de economia processual aconselham a que se dê à parte a possibilidade de, ainda neste processo, ultrapassar tais obstáculos, aperfeiçoando o requerimento inicial (possibilidade que encontra sustentação, no ordenamento jurídico processual, em normas como as contidas nos artigos 547.º, 590.º, n.º 2, 986.º n.º 2, 987.º, do CPC), decide-se revogar a decisão recorrida, a fim de que a requerente seja convidada a sanar tais lacunas.

DECISÃO.

Pelo exposto, embora por razões diversas das apresentadas na apelação, revoga-se a sentença recorrida e em sua substituição determina-se que o tribunal a quo convide a requerente a aperfeiçoar o requerimento inicial, aditando-lhe as indicações supra mencionadas nas alíneas a) a c) e outras que porventura considere adequadas.
As custas da apelação ficarão a cargo de quem for julgado responsável pelas custas da ação a final.



Lisboa, 02.06.2016



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Lúcia Sousa

Decisão Texto Integral: