Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1775/11.7IDLSB.L2-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
DISPENSA DE PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – Tendo por acórdão deste Tribunal da Relação sido determinada a reabertura da audiência na 1ª instância exclusivamente para comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nos termos do estabelecido no artigo 358º, nºs 1 e 3, do CPP, e reaberta ela, apresenta-se como notoriamente irrelevante para efeito de defesa perante essa alteração a inquirição de novas testemunhas impetrada pelos arguidos, não se verificando a nulidade prevista no artigo 120º, nº 1, alínea d), do CPP, nem violação do direito de defesa, porquanto não foram omitidas, em sede de audiência de julgamento, diligências essenciais para a descoberta da verdade.
II - A circunstância de o agente canalizar as verbas não entregues à administração tributária para o pagamento de salários e outros pagamentos que permitam manter a empresa a funcionar, não integra a figura do direito de necessidade, do estado de necessidade desculpante, do conflito de deveres ou de qualquer outra situação de inexigibilidade de comportamento diverso e, portanto, não integra causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

III - No âmbito dos crimes tributários, no que diz respeito à dispensa de pena, rege o estabelecido no artigo 22º, nº 1, do RGIT, pelo que, sendo o crime pelo arguido praticado – previsto nos artigos 6º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 – punível, em abstracto, com pena de prisão de um a cinco anos, afastada está a possibilidade da sua aplicação.

IV – O artigo 22º, nº 1, do RGIT, não prevê expressamente a aplicação da dispensa de pena a crimes puníveis com pena de multa, apenas aos com pena de prisão, de onde se pode concluir que não pretendeu o legislador que a dispensa de pena abrangesse aqueles crimes.

V – Mas, ainda que se considere que a referência feita nessa norma a pena de prisão igual ou inferior a três anos concerne ao respectivo tipo legal e daí se retire que a intenção do legislador foi definir os tipos legais a que pretendia aplicar a dispensa, abrangendo quer as pessoas singulares, que são punidas nessa moldura, quer as pessoas colectivas que são aí punidas na moldura equivalente de multa, sempre estaria arredada a possibilidade da sua aplicação, pois a moldura penal máxima para as pessoas singulares no crime de abuso de confiança fiscal agravado – a que, de acordo com este entendimento, equivale a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas – é de 5 anos de prisão.

(Sumariado pelo relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Texto integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa



I - RELATÓRIO


1. Nos presentes autos com o NUIPC 1775/11.7IDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Instância Local – Secção Criminal - J8, com intervenção do Tribunal Singular, foram os arguidos A e “CRH – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.” condenados, por sentença de 14/07/2014, nos seguintes termos:

O A, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 (RGIT), em conjugação com o disposto nos artigos 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do Código Penal;

A “CRH”, na pena de 560 dias de multa, à razão diária de 5,00 euros, o que perfaz o montante global de 2.800,00 euros, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 (RGIT), em conjugação com o disposto nos artigos 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do Código Penal.


2. Os arguidos, bem como o Ministério Público, não se conformaram com a decisão e dela interpuseram recurso, tendo sido lavrado neste Tribunal da Relação acórdão, aos 24/02/2015, que decidiu:

Declarar a nulidade da sentença de 14/07/2014 e dos actos subsequentes da mesma dependentes, determinando-se a reabertura da audiência para que seja dado cumprimento ao estabelecido no artigo 358º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal;

Declarar prejudicada, pela anterior declaração de nulidade, a apreciação das demais questões suscitadas no recurso interposto pelo arguido A, bem como as que o foram nos recursos interpostos pela arguida “CRH – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.” e Ministério Público.
3. Proferida foi nova sentença na 1ª instância aos 17/09/2015, que condenou os arguidos nos seguintes termos:

O A, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 (RGIT), em conjugação com o disposto nos artigos 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do Código Penal;

A “CRH”, na pena de 400 dias de multa, à razão diária de 5,00 euros, o que perfaz o montante global de 2.000,00 euros, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 (RGIT), em conjugação com o disposto nos artigos 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do Código Penal.


4. Os arguidos A e “CRH”, inconformados com o despacho proferido em 02/07/2015, que indeferiu a arguida nulidade do despacho lavrado em 29/06/2015, que não admitiu a audição de testemunhas pelos mesmos impetrada, dele interpuseram recurso, com as conclusões que se transcrevem:

1. Na sequência da alteração da qualificação jurídica e, não tendo sido comunicada essa alteração aos arguidos, após recursos interpostos, veio o douto Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 24/02/2015, declarar a nulidade da sentença preferida em 14/07/2014 e dos actos subsequentes da mesma dependentes, tendo determinado a reabertura da audiência para que fosse dado cumprimento ao estabelecido no artigo 358º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal; tendo ainda declarado prejudicada, por força dessa declaração de nulidade, a apreciação das demais questões suscitadas nos recursos interpostos.

2. Na data designada para a reabertura da audiência, foi então comunicada aos arguidos a alteração da qualificação jurídica, tendo por estes sido requerido prazo para a preparação da defesa, o qual foi concedido.

3. Com a apresentação da defesa, arrolaram os arguidos duas testemunhas. ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP, os quais são Administradores da sociedade que adquiriu a sociedade arguida, e se mostram conhecedoras de factos essenciais para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, e que se prendem com a gestão de facto da sociedade, sendo que apenas se teve conhecimento superveniente das mesmas, motivo pelo qual não foram indicadas anteriormente.

4. Sucede que, tal produção de prova foi indeferida pela Mma Juiz a quo, por entender que:"(...) não se afigura viável a apresentação de defesa quanto à alteração da qualificação jurídica mediante a produção de prova testemunhal (...).

5. Ora, não podem os arguidos concordar com tal decisão.

6. Porquanto, gozam os arguidos do mais amplo direito de defesa, estando este consagrado no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.

7. De facto, o referido art. 340º CPP, consagra o denominado princípio da investigação ou da verdade material.

8. Este princípio significa, mesmo no quadro de um processo penal orientado pelo principio acusatório (art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa), que o Tribunal de julgamento tem o poder-dever de investigar por si o facto, isto é, de fazer a sua própria "instrução" sobre o facto, em audiência, atendendo a todos os meios de prova não irrelevantes para a descoberta da verdade, sem estar em absoluto vinculado pelos requerimentos das partes, com o fim de determinar a verdade material.

9. Daqui resulta que o Tribunal deve, oficiosamente, ou a requerimento das partes, ordenar a pro­dução de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

10. Sendo que este princípio tem limites, os quais se encontram previstos nos nºs. 3 e 4 do citado artigo 340º do CPP.

11. Ora. o cumprimento do Acórdão da Relação de Lisboa de 24/02/2015, implicava a reabertura da audiência para que fosse dado cumprimento ao estabelecido no art. 358º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, mas não impedia a produção de novos meios de prova e o exercício cabal da defesa dos Arguidos.

12. Consequentemente, o indeferimento do requerimento apresentado pelos Arguidos, não pode encontrar-se no cumprimento estrito do que fora superiormente ordenado.

13. Na verdade, as razões que levaram ao indeferimento do requerido pelos Arguidos não se situam no núcleo essencial da questão, isto é, não se prenderam diretamente com o se (ou não) «afigurar necessário para a descoberta da verdade e boa decisão da causa», mas antes em razões externas e improcedentes, sem mesmo, se haver tentado previamente uma aproximação indiciária à utilidade intrínseca da diligência.

14. Por tudo o exposto, deve ser revogado o despacho em crise e, consequentemente, ser substituído por outro que admita a requerida audição das testemunhas.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho em crise, devendo ser admitida a produção da prova requerida.



5. O Ministério Público respondeu à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, por se não verificar qualquer nulidade.


6. O arguido A interpôs recurso da sentença de 17/09/2015, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1. Entende o arguido A, que não deveria ter sido condenado como autor de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6.º e 105.º, n.º 1, 4, 5 e 7 da Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), em conjugação com o disposto nos artigos 30º, n. 2 e 79º, n. 1, ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa por igual período, uma vez que da prova produzida em audiência de julgamento não resulta sem margem para dúvidas que o recorrente passasse a tomar as decisões inerentes à gestão patrimonial da sociedade, desde Julho a Novembro de 2011.

2. O aqui Recorrente não se conforma, com a fundamentação da matéria de facto assente pelo Tribunal «a quo», nomeadamente no que diz respeito aos factos dados como provados e à valoração dos depoimentos feitos pelo Tribunal «a quo» na decisão em crise.

3. Vem o Recorrente impugnar a matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP, na medida em que, salvo o devido respeito, que, aliás, muito o é, afigura-se-nos que a decisão proferida através da mui douta sentença do Tribunal «a quo» merecerá reparo pela parte do aqui Recorrente, uma vez que considera diversos pontos da matéria de facto provada incorretamente julgados, nomeadamente os Pontos 9, 11, 17, 18, 19 e 20.

4. Assim, conjugado o teor dos depoimentos áudio gravados em suporte informático, bem como outros meios de prova juntos aos presentes autos, com os restantes factos dados como provados na douta sentença, não deveria o arguido, aqui Recorrente, ter sido condenado.

5. Há alguns factos dados como provados, que no modesto entendimento do Recorrente não o poderiam ter sido em face da prova produzida em audiência, pelo que, foram violados os princípios da presunção de inocência, da verdade material, da legalidade, da livre apreciação da prova e do in dúbio pro reo.

6. Com efeito, não existe qualquer documento junto aos autos que comprometa o aqui Recorrente, na gestão de facto da sociedade arguida.

7. No que tange à prova testemunhal o Tribunal apreciou erradamente as declarações de duas testemunhas, cujos testemunhos assumiram especial relevo para decisão da causa, JC e CS, já que dos mesmos não podia retirar qualquer premissa que concluísse que o Recorrente exercesse de facto a gestão da sociedade arguida,

Vejamos,

8. Refira-se, tal como consta também da sentença em crise, nos factos provados - ponto 3 – "Por sentença proferida em 30.11.2010, no âmbito do processo nº 1516/10.6TYLSB, que corre termos no 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, foi declarada a insolvência da sociedade arguida, tendo sido nessa mesma data nomeado como Administrador da Insolvência o arguido A." E ainda – ponto 4 – "No âmbito desses autos de insolvência, no dia 24.02.2011 realizou-se a assembleia de credores para apreciação de relatório, tendo o administrador da insolvência proposto a continuidade da empresa. tendo sido aprovada deliberação de manutenção da actividade pelo devedor."

9. Tendo, apenas, por despacho judicial proferido a 17/06/2011, sido declarada cessada a administração da massa insolvente pelo devedor, nos termos previstos no artigo 228º, nº 1, alínea e) do CIRE.

10. Despacho este, que o arguido apenas tomou conhecimento em finais de Julho de 2011 (por se encontrar ausente do País), a fim de proceder à liquidação da sociedade.

11. Pelo que, tal como ficou provado, aquando da insolvência, a administração ficou a cargo da devedora, sob supervisão do administrador da insolvência, nos termos do art. 226º do CIRE (diga-se acompanhamento e fiscalização para não dissipação de património).

12. Ademais, aquando do despacho que declara cessada a administração da massa pelo devedor, foram atribuídas ao administrador judicial as funções, de apenas e tão só, para vender o património, isto é, para proceder à liquidação.

13. A bem da verdade se diga que só a partir deste momento o arguido praticou actos de administração — venda das instalações.

14. Logo, os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador de insolvência – disposição dos bens – liquidação.

15. Acresce ainda que, nunca no processo de insolvência foi fixada remuneração ao Administrador de Insolvência, ora arguido, nos termos do estatuto do administrador de insolvência, pelos poderes de administração, nem podia, pois nunca praticou actos de gestão.

16. Por um lado, porque não era administrador de direito – conforme certidão da Conservatória do Registo Comercial - nem de facto, por outro lado também não foi nomeado para tal.

17. Logo, entenda-se que a sociedade, desde a sentença de insolvência, já enviava os documentos ao administrador judicial a dar-lhe conhecimento dos pagamentos que havia a efectuar.

18. Ao que este remetia, por vezes até escrevendo nos próprios documentos, a informar que tomou conhecimento dos mesmos.

19. Sendo certo que, não era este quem dava as ordens para efectuar este ou aquele pagamento. nem podia, pois não tinha qualquer legitimidade para tal. para além de que não consta como titular nas contas da empresa, apenas e só lhe davam conhecimento dos pagamentos que estavam em curso.

20. Aliás, outro entendimento não pode resultar do depoimento da testemunha CS, quando afirma, a questão da Digníssima Procuradora do Ministério Público, sobre quem, a partir de Julho 2011, passa a dar ordens, quem passa a decidir, se assim o poderia dizer, o giro da empresa e os pagamentos, as ordens de pagamento, isso...e esta afirma, ao minuto 04'12" da gravação, que: 'Não, isso ele já dava antes, o Administrador de Insolvência já dava ordens de pagamento antes, antes dessa altura." E ainda, ao afirmar quando questionada sobre quem decidia, que uma coisa é executar uma ordem, outra coisa é decidir, responde ao minuto 4'28- do seu depoimento: "Não sei, isso não sei."; E ao minuto 4'33": "Eu sei que nós enviávamos tudo aquilo que tínhamos para pagamento, enviávamos para o Administrador de Insolvência, ele é que dava as ordens ao Banco, ele é que decidia o que é que havia de pagar ou não, penso eu, mas não tenho a certeza" E ainda ao minuto 8'21" da gravação: "Quem é que fazia a gestão nessa altura? Eu penso que era o Administrador de Insolvência. Mas também não tenho... Nós ali recebíamos ordens praticamente do director financeiro, estávamos um bocadinho afastados."

21. Refere ainda a testemunha JC, que era a contabilidade que lhe dava as informações e, este elaborava os relatórios do que havia para pagar (sendo que nenhum dos documentos juntos aos autos demonstra qualquer atraso de pagamento), bem como as ordens de pagamento, e que depois os enviava para o administrador judicial, sendo que, não se recorda de ter falado com o administrador de insolvência sobre os referidos pagamentos, até porque um estava em Lisboa e outro no Porto.

22. Pelo que, a gestão de facto, sempre se manteve na mão da devedora! Não resulta, pelo menos do depoimento destas testemunhas, que tenha havido qualquer alteração a partir de Julho de 2011! Aliás, é a própria testemunha, na qual o Tribunal «a quo» firmou a sua convicção para assim condenar o ora Recorrente,CS, que diz ao minuto 5'29" do seu depoimento que: "(...) eu sei que houve uma grande mexida na empresa em Março de 2011, não sei se foi na altura que ele tomou posse e a partir daí, acho que foi ele começou a tomar a maior parte das decisões. Mas ali não nos chegava muito essas informações."

23. Resulta do depoimento da testemunha M que a partir de Outubro, da assembleia geral, quem geriu a empresa no total foi o presidente da SGPS.

24. Bem como, resulta do depoimento a testemunha CO. que a empresa continuou a funcionar como até então (altura em que foi declarada cessada a administração da massa insolvente pelo devedor), tanto mais, face ao adiantado das negociações para a venda da sociedade, o que de facto veio a acontecer poucos meses depois, mais concretamente em finais de Setembro de 2011.

25. Acresce que, conforme resulta dos autos, durante o mês de Julho de 2011. houve um incidente com o contrato de factoring com o BCP, não tendo este processado a OP 83, no valor de 1 milhão de euros, na qual constava, nomeadamente salários e o IVA de Julho/2011.

26. Pelo que, com a quebra do factoring, a empresa ficou sem liquidez.

27. Ora, conforme também refere a testemunha João Gonçalves, esse incidente quase colocou em risco o negócio da venda, uma vez que a venda seria efectuada englobando os clientes e, como também referido por esta testemunha, o não pagamento de salários, neste tipo de actividade, leva a que os trabalhadores não compareçam nos locais de trabalho. o que legitima os clientes a rescindir o contrato.

28. Assim, a solução encontrada foi um empréstimo da parte da "Manpower" (empresa que veio a comprar a sociedade devedora) a título de adiantamento e princípio de pagamento do contrato de compra e venda, a fim de ser possível o pagamento dos salários aos trabalhadores. Sem o qual. com toda a probabilidade. não teria sido realizável o negócio.

29. Sucede ainda que, conforme consta dos factos dados como provados na sentença, foi reposta a verdade fiscal, tendo sido liquidados os montantes em dívida, referentes a IRS e as relativas a IVA dos meses de Agosto e Setembro de 2011, os quais apenas foram pagos em Dezembro de 2013, por dificuldades com a comissão de credores, maioritariamente com o Millennium BCP, que se mostravam contra esse pagamento.

30. Sendo que o IVA referente ao mês de Julho de 2011, no montante de €464.934,30 (quatrocentos e sessenta e quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e trinta cêntimos). foi igualmente pago no dia 29/06/2015, e, apenas e tão só este valor não foi liquidado anteriormente. por culpa da comissão de credores, em particular do Millennium Bcp, que se opôs a esse pagamento.

31. Contudo, refira-se que este valor não foi revertido pela AT para o arguido, ora Recorrente, porquanto, as finanças não o consideravam como responsável pela sociedade, não sendo este, de facto, o representante legal da sociedade, pois a gestão estava a cabo da devedora.

32. Ademais, este valor não foi liquidado na data devida, em virtude da confusão gerada com o incidente (OP 83) com o Millennium BCP, porquanto, não se sabia se este valor tinha ou não sido, efectivamente, pago, até porque, como referido, este valor não foi revertido para o administrador iudicial, sendo que os restantes montantes pagos foram liquidados em sede de reversão.

33. Pelo que, o Administrador Judicial, ora arguido, tinha até a convicção que esse IVA (Julho/2011) já tinha sido pago, não tendo, por isso, consciência de haver qualquer acto ilícito.

Por tudo o exposto,

34. Consideramos que o Tribunal «a quo» não valorou corretamente a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento pelo que se impunha uma decisão diferente.

35. De facto, a prova produzida em audiência de julgamento não permite concluir, sem margem para duvidas, que o Recorrente exercia a gestão de facto da sociedade.

36. Antes pelo contrário, apenas se pode concluir, que a gestão da sociedade se manteve inalterada até à data da venda da sociedade, o que sucedeu cerca de 2 meses depois, e só para a venda – liquidação - ter sido cessada a administração pela devedora, sendo um imposição legal.

37. Resulta claramente do acima relatado que o Tribunal «a quo» não fez, assim, uma correcta interpretação dos factos nem, tão pouco, uma adequada subsunção dos mesmos à norma jurídica.

38. Além do mais, e ao arrepio dos princípios orientadores do processo penal, nomeadamente do princípio in dúbio pro reo, a douta decisão do Tribunal «a quo» assentou, no que respeita à condenação do Recorrente, em prova testemunhal, concluindo em sentido contrário à realidade dos factos.

Com efeito,

39. Fazendo uma criteriosa análise ao julgamento da matéria de facto, propugnamos pelo entendimento que a decisão recorrida constitui uma afronta às mais elementares regras da experiência comum, verificando-se, em concreto, a violação do princípio constitucional in dúbio pró reo e o da livre apreciação da prova, consagrada expressamente no artigo 127.º do CPP.

40. O Tribunal «a quo» decidiu, incorrectamente, proferindo decisão condenatória, não obstante, terem subsistido dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito, sendo forçoso concluir pela desconformidade entre a convicção daquele Juízo e as regras do saber e da experiência comuns.

41. É certo que, no nosso ordenamento vigora o principio da livre apreciação de prova, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador – art. 127º CPP.

42. Não se trata, contudo, de apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio. Daqui que à convicção do julgador ande associada a obrigatoriedade da sua fundamentação em elementos objectivos que a tornem credível (cfr. art. 374º /2 do CPP).

43. Não descreveu o Tribunal «a quo», qual o processo racional por si utilizado que lhe permitiu e que, permitiria ao homem comum, extrair de uns e outros, com certeza, formando assim a convicção de serem verdadeiros ou falsos certos factos.

44. O dever de fundamentar a sentença exige também a indicação dos motivos de credibilidade das testemunhas, documentos ou exames e, designadamente, a indicação dos motivos por que não se atende a provas de sentido contrário – vide Ac. do TC n.º 546/98, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.

45. A forma vaga e genérica utilizada pelo tribunal, impossibilita a apreensão do processo lógico que levou à credibilização do mesmo e, em que medida, o mesmo contribuiu para os factos dados como provados.

46. Ora, na sentença sob sindicância enunciam-se as provas que serviram para o tribunal chegar à convicção que chegou em termos de prova dos factos provados e não provados.

47. Não justifica o porquê de acreditar em certas testemunhas em detrimento de outras, nem se entende como pode afirmar que os depoimentos das testemunhas: MJG, CLT, "(...) reconduzindo-se os seus depoimentos a afirmações genéricas e pouco sustentadas. insusceptíveis de abalarem os depoimentos seguros e circunstanciados das restantes testemunhas, em particular de JC e CS", quando, na verdade, estes depoimentos, como supra demonstrado, também eles foram genéricos e inconclusivos, tendo pelos mesmos sido utilizadas as palavras "penso eu", "não tenho a certeza", "não me recordo".

48. Certo é que, em momento algum do seu depoimento, estas testemunhas que assumiram especial relevo para a convicção do tribunal, referem que era o arguido que tomava todas as decisões inerentes à gestão patrimonial da sociedade arguida, nomeadamente as relativas a pagamentos de salários e impostos devidos ao Estado.

49. Podemos concluir que para a descoberta da verdade material, discutida nos presentes autos, não podemos retirar, do depoimento das testemunhas, qualquer premissa que permita concluir que o arguido era administrador de facto da sociedade em causa, em particular da testemunha CS que, inclusive afirma que não tinha conhecimento directo dos factos.

50. Daí que, a fundamentação se revele manifestamente insuficiente.

51. Incorreu, por isso, a douta sentença na nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º, nulidade que aqui expressamente se argui.

52. Assim, face à prova produzida em audiência de julgamento impõe-se a absolvição do ora Recorrente.

53. O conjunto probatório carreado nos autos é, manifestamente, insuficiente para a formulação de um juízo de certezas sobre a culpabilidade do recorrente.

54. A condenação depende da certeza da culpabilidade do arguido e, essa certeza, vinca-se, assenta e sustenta-se numa convicção profunda dos julgadores, objectivada pela prova.

55. No caso sub iudice, não existe qualquer certeza que permita concluir pela responsabilidade do Recorrente e, em sede de prova, subsistindo a dúvida, esta terá sempre de beneficiar o arguido (princípio in dubio pro reo).

56. A livre convicção ou apreciação não pode confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador.

57. Fundamentar uma condenação nos termos em que fez o Tribunal «a quo», parece-nos ser um abuso do princípio da livre apreciação da prova.

58. Muitas questões suscitam dúvidas à defesa e que deveriam ter suscitado de igual forma ao Tribunal.

59. Sendo que, a base de todo o Direito Penal e Processo Penal está constitucionalmente prevista e nunca, jamais, poderá ser olvidado ou ignorado - o princípio in dublo pro reo.

60. De facto, a violação do princípio in dúbio pro reo, traduz o postergar de 'leges artis" e é resultante de dois postulados - o de que o juiz terá de decidir sempre e o da inadmissibilidade de condenação penal quando o juiz não se convença da efectiva responsabilidade do arguido.

61. Decorre do princípio que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.

62. O princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que em caso de falta de prova sobre um facto a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.

63. Pelo que, no caso de, após produzida toda a prova, o tribunal ficar com uma dúvida razoável sobre a questão de facto, não poderá dar como provados os factos por que o arguido era acusado, devendo absolvê-lo por falta de provas.

64. Estão assim, erradamente, julgados os seguintes factos: "Ponto 9 — "A partir dessa data, o arguido passou a tomar as decisões inerentes à gestão patrimonial da sociedade arguida, a qual se mantinha em laboração, cabendo-lhe nomeadamente decidir acerca do pagamento de salários aos trabalhadores e da entrega das declarações e respectivos impostos devidos ao Estado."

Ponto 9 – "A partir dessa data. o arguido passou a tomar as decisões inerentes à gestão patrimonial da sociedade arguida, a qual se mantinha em laboração, cabendo-lhe nomeadamente decidir acerca do pagamento de salários aos trabalhadores e da entrega das declarações e respectivos impostos devidos ao Estado."

Ponto 11 – "Tendo o arguido A, no referido período, em representação da sociedade arguida. diligenciado pelo envio à administração fiscal das respectivas declarações periódicas de IVA, sem proceder, no entanto, ao respectivo pagamento do imposto devido em cada período, nos valores de €464.934,30. relativo ao período de 2011/07, cujo términus do prazo de pagamento era 12.09.2011: €434.199.36, relativo ao período de 2011/08, cujo términus do prazo de pagamento era 10.10.2011 e €372.931,38, relativo ao período de 2011/09, cujo términus do prazo de pagamento era 10.11.2011."

Ponto 17 – “O arguido A agiu em nome e no interesse da sociedade arguida "CRH – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, SA", ciente de que as importâncias que não entregaram à administração fiscal a título de IVA e IRS pertenciam ao Estado e que a este deviam ser entregues, sabendo que desse modo causava um prejuízo patrimonial de valor equivalente."

Ponto 18 – "O arguido A reteve as referidas quantias a partir de Julho de 2011, e desde então até Novembro de 2011, motivado pela facilidade com que o podia fazer e pelo êxito de tal prática, renovando sucessivamente o seu propósito de integrar na esfera patrimonial da sociedade arguida as quantias em causa para fazer face a outros encargos da referida sociedade."

Ponto 19 – "Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei."

Ponto 20 – arguido A não diligenciou pela entrega nos cofres do Estado das quantias supra referidas no prazo legal e no que posteriormente lhe foi concedido devido a dificuldades de tesouraria da sociedade arguida, privilegiando o pagamento dos salários líquidos aos trabalhadores, de molde a que estes não abandonassem os postos de trabalho, o que, a verificar-se, colocaria em risco a alienação da empresa, cujas negociações se encontravam em curso."

65. Que atento às provas concretas que supra se indicam impunham uma decisão diversa da recorrida.

66. Dão-se como provados factos que face às regras da experiência comum e à lógica de um homem médio, não se poderiam ter verificado.

67. Entende o ora Recorrente, que claramente foi violado o princípio do In Dubio Pro Reo, princípio este que estabelece que na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu, identificando-se com o da presunção da inocência do arguido e impõe que o julgador valore sempre em favor dele (arguido) un non liquet, e ainda que em processo penal não seja admitida a inversão da prova em seu detrimento.

68. Em consequência, a douta sentença recorrida, violou por errada interpretação o disposto nos art.ºs 97º/5, 374.º/2, 379.º do CPP e art. 32.º da CRP.

69. Daí que a fundamentação se revele manifestamente insuficiente. Incorreu, por isso, o douto acórdão na nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º CPP, nulidade que expressamente se vem arguir.

70. Sendo ainda certo que, a empresa foi vendida em Setembro de 2011, noventa e muitos por cento dos trabalhadores (como refere a testemunha CO), foram transferidos para a nova empresa, evitando-se assim, que cerca de 3000 pessoas fossem para o desemprego, e com isso representando um prejuízo para o Estado a rondar os doze milhões de euros, com o fundo de garantia salarial e impostos, valor este verificado com a própria segurança social, não contabilizando o subsídio de desemprego.

71. Pelo que, ainda que se entenda que resultaram provados os factos de que vem acusado - o que não se concede -, em face de toda a matéria de facto que consta dos autos, sempre se dirá que, a conduta dos administradores e do arguido - apesar de ilícita - era adequada/imprescindivel à manutenção do funcionamento da empresa, e que, perante os interesses em presença, não era razoável exigir-lhe outro comportamento ou a quem exercia de facto a administração.

72. Ou seja. ainda que não seja da responsabilidade do administrador judicial, bem andou a administração ao evitar um mal maior para o Estado, evitando assim que o Estado despendesse cerca de doze milhões de euros por contrapartida com os quatrocentos e sessenta e quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e trinta cêntimos, que até já recebeu, e apenas e tão só não recebeu mais cedo, por culpa da comissão de credores, em particular o Millennium Bcp, que sempre se opôs a esse pagamento.

73. De facto, salvo o devido respeito por diversa opinião, na senda do atrás referido, entende o ora Recorrente estarmos perante um conflito de interesses, encontrando-se, de facto, os deveres em causa no mesmo patamar, por um lado temos uma despesa para o Estado com o fundo de garantia salarial e impostos na ordem dos doze milhões e, por outro, temos a não receita de quatrocentos e sessenta e quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e trinta cêntimos, a qual foi já, entretanto, paga em 29/06/2015.

74. Neste sentido, considera-se que o crime de abuso de confiança fiscal se encontra totalmente desfasado da realidade social e, principalmente, económica de um país que vive permanentemente em crise e que, quando os administradores/gerentes são confrontados com a escolha entre manter a solvabilidade de uma sociedade comercial e, em última instância a sua sobrevivência, e pagar os impostos que, de facto, são devidos ao Estado, tem a coragem de optar pela primeira solução, agindo sem dolo e mesmo no contexto de estado de necessidade ou de conflito de interesses ou ainda de inexigibilidade de outro comportamento, o que se invoca não obstante ser pacífica a posição da doutrina e da jurisprudência neste ponto, embora com tal posição não possa o Recorrente concordar.

75. Assim, nenhum dolo pode ser imputado ao ora Recorrente, quer porque, como supra referido, este nunca exerceu a gestão de facto, isto porque, aquando do despacho que declara cessada a administração da massa pelo devedor, foram atribuídas ao administrador judicial as funções de apenas e tão só para vender o património, isto é, para proceder à liquidação, quer porque, não houve qualquer intenção de obter uma vantagem patrimonial, com a concomitante diminuição de receitas fiscais ou a obtenção de um beneficio fiscal injustificado, uma vez que os referidos impostos já se encontram liquidados na totalidade.

76. E ainda que se entenda que o ora Recorrente era representante da sociedade "CRH" - o que não se concede -, devem ser tidas em consideração as circunstâncias em que o crime se verificou, bem como ter em consideração o grau de culpa do Recorrente, que como uma vez mais se refere, não detinha a gestão da sociedade, a própria sentença faz referência a que assumindo a culpa a modalidade de dolo directo, ainda que de reduzida intensidade, tendo em conta a razão subjacente à conduta adoptada importa ainda considerar que a totalidade dos impostos em causa nos autos foram integralmente repostos nos cofres do Estado, o que denota o esforço envidado no sentido da reparação do crime.

77. Ora, se a dispensa de pena surge como uma possibilidade, um poder-dever, desde que se verifiquem os respetivos requisitos, já a atenuação especial surge como uma obrigatoriedade - ver neste sentido Ac. do Tribunal da Relação do Porto, Proc. nº 2392/08.4TAVCD.R1 de 25/05/2011, disponível em www.dqsi.pt.

78. Assim, de tudo o exposto, resulta que, e a ser considerada a culpa do Arguido - o que não se concede -, esta não é muito grave, como aliás refere a própria sentença.

79. Haverá ainda que atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuseram a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as circunstâncias de carácter geral enumeradas de forma exemplificativa no art. 71º, nº 2 do C.P., considerando, sempre que possível, o prejuízo sofrido (art.13º do RGIT).

80. Concluindo, não resultam factos que determinem exigências de prevenção, nada se verificando, em concreto, que permita afirmar que as exigências de prevenção geral serão seriamente [pos­tergadas pela concessão da dispensa de pena ao arguido.

81. Por tudo o exposto, deve ser revogada a sentença em crise e, consequentemente, ser o Arguido Absolvido do crime de que vem acusado; ou caso assim não se entenda - o que não se concede - e na sequência da reposição da verdade sobre a situação tributária, a exigência de prevenção geral ficará suficientemente acautelada com a circunstância de o agente ser declarado culpado, alcançando-se, por esta via, o limiar mínimo de prevenção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico; não se vislumbrando, então, como necessária, a satisfazer as necessidades que a mesma deveria cumprir - previstas no artigo 40º C Penal - a aplicação de uma qualquer pena ao arguido.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser revogada a"sentença, modificando-se a decisão recorrida, Absolvendo-se o Arguido do crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada.



7. Também a arguida “CRH” – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.” interpôs recurso da sentença lavrada em 17/09/2015, com as conclusões que seguem (transcrição):

1. Entende a arguida CRH – CONSULTORIA E VALORIZAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS, S.A., que não deveria ter sido condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, p. e p. pelos artigos 7.º e 105.º, n.º 1, 4, 5 e 7, todos da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, em conjugação com o disposto nos artigos 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do Código Penal, na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a multa global de €2.000,00 (dois mil euros).

2. A aqui Recorrente não se conforma, com a fundamentação da matéria de facto assente pelo Tribunal «a quo», nomeadamente no que diz respeito aos factos dados como provados e à valo-ração dos depoimentos feitos pelo Tribunal «a quo» na decisão em crise.

3. Vem a Recorrente impugnar a matéria de facto, nos termos do art.412.º, n.º 3, do CPP, na medida em que, salvo o devido respeito, que, aliás, muito o é, afigura-se-nos que a decisão pro­ferida através da mui douta sentença do Tribunal «a quo» merecerá reparo pela parte da aqui Recorrente, uma vez que considera diversos pontos da matéria de facto provada incorretamente julgados.

4. Assim, conjugado o teor dos depoimentos áudio gravados em suporte informático. bem como outros meios de prova juntos aos presentes autos, com os restantes factos dados como provados na douta sentença, não deveria a arguida, aqui Recorrente, ter sido condenada.

5. Pois, entende a recorrente que se provaram factos nos autos que não foram tidos em conta pelo Tribunal «a quo».

Vejamos,

6. Resulta do depoimento da testemunha CO que a empresa ora arguida foi vendida em finais de Setembro de 2011 (ou, pelo menos, ultimado o contrato promessa de compra e venda), sendo que, como refere esta testemunha, os trabalhadores foram transferidos para a nova empresa em Outubro de 2011, pelo que estamos a falar de um período de menos de 3 meses, desde o mês em que a empresa realizou as transacções comerciais Julho e o mês em que os trabalhadores saíram para a outra empresa Outubro, sendo que o pagamento do IVA relativo a Julho deveria ter sido pago em Setembro.

7. Acresce que, conforme resulta dos autos, durante o mês de Julho de 2011, houve um incidente com o contrato de factoring com o BCP, não tendo este processado a OP 83, no valor de 1 milhão de euros.

8. Pelo que, com a quebra do factoring, a empresa ficou sem liquidez.

9. Ora, conforme refere a também a testemunha João Gonçalves, esse incidente quase colocou em risco o negócio da venda, uma vez que a venda seria efectuada englobando os clientes e, como também referido pela testemunha CO o não pagamento de salários, neste tipo de actividade, leva a que os trabalhadores não compareçam nos locais de trabalho, o que legitima os clientes a rescindir o contrato.

10. Assim, a solução encontrada foi um "empréstimo" da parte da "Manpower" (empresa que veio a comprar a sociedade devedora) a titulo de adiantamento e princípio de pagamento do contrato de compra e venda, a fim de ser possível o pagamento dos salários aos trabalhadores. Sem o qual, com toda a probabilidade, não teria sido realizável o negócio.

11. Sucede ainda que, conforme consta dos factos dados como provados na sentença, foi reposta a verdade fiscal, tendo sido liquidados os montantes em dívida, referentes a IRS e as relativas a IVA dos meses de Agosto e Setembro de 2011, os quais apenas foram pagos em Dezembro de 2013, por dificuldades com a comissão de credores, maioritariamente com o Millennium BCP, que se mostravam contra esse pagamento.

12. Sendo ainda certo que o IVA referente ao mês de Julho de 2011, no montante de €464.934,30 (quatrocentos e sessenta e quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e trinta cêntimos), foi igualmente pago em 29/06/2015, e que, apenas e tão só este valor não foi liquidado anteriormente, por culpa da comissão de credores, em particular p Millennium Bcp, que se opôs a esse pagamento.

13. Ademais, este valor não foi liquidado na mesma data que os outros impostos, em virtude da confusão gerada com o incidente (OP 83) com o Millennium BCP, porquanto, não se sabia se este valor tinha ou não sido, efectivamente, pago, até porque, este valor não foi revertido para o administrador judicial, sendo certo que o património da empresa não se encontra totalmente excutido e como tal podia ter sido liquidado este valor.

Por tudo o exposto,

14. Consideramos que o Tribunal «a quo» não valorou corretamente a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento pelo que se impunha uma decisão diferente.

15. Aliás, resulta claramente do acima relatado que o Tribunal «a quo» não fez, assim, uma correcta interpretação dos factos nem, tão pouco, uma adequada subsunção dos mesmos à norma jurídica.

Com efeito,

16. Fazendo uma criteriosa análise ao julgamento da matéria de facto, propugnamos pelo entendimento que a decisão recorrida constitui uma afronta às mais elementares regras da experiência comum, verificando-se, em concreto, o princípio da livre apreciação da prova, consagrada expressamente no artigo 127.º do CPP.

17. Com efeito, o princípio da livre apreciação da prova, não se trata de apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio. Daqui que à convicção do julgador ande associada a obrigatoriedade da sua fundamentação em elementos objectivos que a tornem credível (cfr. art. 374º/2 do CPP).

18. Não descreveu o Tribunal «a quo», qual o processo racional por si utilizado que lhe permitiu e que, permitiria ao homem comum, extrair de uns e outros, com certeza, formando assim a convicção de serem verdadeiros ou falsos certos factos.

19. O dever de fundamentar a sentença exige também a indicação dos motivos de credibilidade das testemunhas, documentos ou exames e, designadamente, a indicação dos motivos por que não se atende a provas de sentido contrário - vide Ac. do TC n.º 546/98, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.

20. A forma vaga e genérica utilizada pelo tribunal, impossibilita a apreensão do processo lógico que levou à credibilização do mesmo e, em que medida, o mesmo contribuiu para os factos dados como provados.

21. Ora, na sentença sob sindicância enunciam-se as provas que serviram para o tribunal chegar à convicção que chegou em termos de prova dos factos provados e não provados.

22. Não justifica o porquê de acreditar em certas testemunhas em detrimento de outras.

23. Daí que, a fundamentação se revele manifestamente insuficiente.

24. Incorreu, por isso, a douta sentença na nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º, nulidade que aqui expressamente se argui.

25. Assim, face à prova produzida em audiência de julgamento impõe-se a absolvição da ora Recorrente.

26. Estão assim, erradamente, julgados os seguintes factos, os quais deveriam constar da matéria dada como provada:

"A arguida tinha cerca de 3.000 trabalhadores;

A empresa foi vendida em finais de Setembro de 2011, tendo os trabalhadores sido transferidos para a nova empresa em Outubro de 2011;

Durante o mês de Julho de 2011, ocorreu um incidente com o contrato de factoring com o BCP, ou seja, foi emitida uma ordem de pagamento, com o nº 83, a qual se encontra junta aos autos (Doc. 3), com um pedido de antecipação de facturas, melhor dizendo, um pedido de adiantamento do pagamento de facturas, antecipando o recebimento dos clientes, para fazer face às despesas, sendo que essa OP (ordem de pagamento) tinha o valor de cerca de um milhão de euros.

O BCP não processou a OP 83, pelo que, com a quebra do factoring a empresa ficou sem liquidez.

Esse incidente quase colocou em risco o negócio da venda, caso não fossem pagos os salários aos trabalhadores, uma vez que a falta de pagamento de salários neste tipo de actividade, leva a que os trabalhadores não compareçam nos locais de trabalho, o que legitima os clientes a rescindir o contrato;

A solução encontrada foi um "empréstimo" da parte da "Manpower" (empresa que veio a comprar a sociedade devedora) a título de adiantamento e principio de pagamento do contrato de compra e venda, a fim de ser possível o pagamento dos salários aos trabalhadores."

27. Dão-se como provados factos que face às regras da experiência comum e à lógica de um homem médio, não se poderiam ter verificado.

28. Entende a ora Recorrente, que claramente não foram tidos em conta o depoimento de outras testemunhas, nomeadamente, a testemunha CO sem qualquer justificação.

29. Em consequência, a douta sentença recorrida, violou por errada interpretação, o disposto nos art.ºs 97º/5, 374.º/2, 379.º do CPP.

30. Daí que a fundamentação se revele manifestamente insuficiente. Incorreu, por isso, a douta sentença na nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º CPP, nulidade que expressamente se vem arguir.

31. Sendo certo que, a empresa foi vendida em Setembro de 2011, noventa e muitos por cento dos trabalhadores (como refere a testemunha CO), foram transferidos para a nova empresa, evitando-se assim, que cerca de 3000 pessoas fossem para o desemprego, e com isso representando um prejuízo para o Estado a rondar os doze milhões de euros, com o fundo de garantia salarial e impostos, valor este verificado com a própria segurança social, não contabilizando o subsidio de desemprego.

32. Pelo que, ainda que se entenda que resultaram provados os factos de que vem acusada, em face de toda a matéria de facto que consta dos autos, sempre se dirá que, a conduta dos administradores - apesar de ilícita - era adequada/imprescindível à manutenção do funcionamento da empresa, e que, perante os interesses em presença, não era razoável exigir-lhes outro comportamento.

33. Ou seja, bem andou a administração ao evitar um mal maior para o Estado, evitando assim que o Estado despendesse cerca de doze milhões de euros por contrapartida com os quatrocentos e sessenta e quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e trinta cêntimos que não recebeu, anteriormente, mas que já recebeu em 29/06/2015.

34. De facto, salvo o devido respeito por diversa opinião, na senda do atrás referido, entende a ora Recorrente estarmos perante um conflito de interesses, encontrando-se, de facto, os deveres em causa no mesmo patamar, por um lado temos uma despesa para o Estado com o fundo de garantia salarial e impostos na ordem dos doze milhões e, por outro, temos a não receita de quatrocentos e sessenta e quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e trinta cêntimos, a qual já foi arrecadada, como já referido.

35. Pelo que, o Tribunal «a quo» decidiu, incorretamente, proferindo decisão condenatória, não obstante, existirem provas que indicam causas de justificação e de exclusão da culpa, nomeadamente, o conflito de deveres previsto no nº 1 do art. 36º do Código Penal.

36. Sem prescindir, devem ainda ser tidas em consideração as circunstâncias em que o crime se verificou, bem como ter em consideração o grau de culpa do Recorrente, a própria sentença faz referência a que assumindo a culpa a modalidade de dolo directo, ainda que de reduzida intensidade, tendo em conta a razão subjacente à conduta adoptada importa ainda considerar que a totalidade dos impostos em causa nos autos foram integralmente repostos nos cofres do Estado, o que denota o esforço envidado no sentido da reparação do crime.

37. Neste sentido, considera-se que o crime de abuso de confiança fiscal se encontra totalmente desfasado da realidade social e, principalmente, económica de um pais que vive permanentemente em crise e que, quando os administradores/gerentes são confrontados com a escolha entre manter a solvabilidade de uma sociedade comercial e, em última instância a sua sobrevivência, e pagar os impostos que, de facto, são devidos ao Estado, tem a coragem de optar pela primeira solução, agindo sem dolo e mesmo no contexto de estado de necessidade ou de conflito de interesses ou ainda de inexigibilidade de outro comportamento, o que se invoca não obstante ser pacífica a posição da doutrina e da jurisprudência neste ponto, embora com tal posição não possa a Recorrente concordar.

38. Na verdade, refere o nº 2 do art. 22º do RGIT, que: “2 - A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado.”

39. Como prova da boa-fé, logo que foi possível equilibrar a situação económica da sociedade, foram liquidados os impostos em falta, o que, de resto, foi sempre encarado como uma prioridade por qualquer um dos representantes da sociedade.

40. Ora, se a dispensa de pena surge como uma possibilidade, um poder-dever, desde que se verifiquem os respetivos requisitos, já a atenuação especial surge como uma obrigatoriedade - ver neste sentido Ac. do Tribunal da Relação do Porto, Proc. nº 2392/08.4TAVCD.P1 de 25/05/2011, disponível em www.dqsi.pt.

41. Concluindo, não resultam factos que determinem exigências de prevenção, nada se verificando, em concreto, que permita afirmar que as exigências de prevenção geral serão seriamente postergadas pela concessão da dispensa de pena à arguida.

42. Por tudo o exposto, deve ser revogada a sentença em crise e, consequentemente, ser a Arguida Absolvida do crime de que vem acusada.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença, modificando-se a decisão recorrida, Absolvendo-se a Arguida do crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada.



8. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo à motivação de recurso dos arguidos, concluindo por deverem os recursos serem rejeitados por manifesta improcedência.


9. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de não ter sido feita pelos recorrentes a menção a que se reporta o nº 5, do artigo 412º, do CPP, pelo que se deve entender que não têm interesse em que o recurso interposto no dia 02/07/2015 seja por este Tribunal da Relação conhecido.

Quanto aos recursos interpostos da sentença, pronuncia-se pela manutenção desta na íntegra.


10. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelos recorrentes em que manifestam o seu interesse em que o recurso interlocutório seja conhecido e reiteram o já explicitado nos recursos da decisão final.


11. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


Cumpre apreciar e decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO


1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/95, DR I Série A, de 28/12/95.


No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação dos recursos, as questões que se suscitam são as seguintes:

Recurso interlocutório interposto pelos arguidos

Verificação da nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP.


Recurso do arguido A

Nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido/verificação de situação de conflito de deveres, estado de necessidade ou inexigibilidade de outro comportamento.

Dispensa de pena/atenuação especial da pena.
Recurso da arguida “CRH”

Nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.

Enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida.

Verificação da causa de exclusão da ilicitude de conflito de deveres/estado de necessidade/conflito de interesses/inexigibilidade de outro comportamento.

Dispensa de pena/atenuação especial da pena.


2. O despacho recorrido, proferido aos 02/07/2015, tem o seguinte teor (transcrição):

Por requerimento apresentado no dia de hoje veio a defesa do arguido arguir a nulidade do despacho exarado a fls. 974 a 976 invocando para o efeito o disposto no art.º 120.º n.º 2 al. d) e n.º 3 do Código de Processo Penal.

Pronunciou-se o Ministério Público pugnando pelo indeferimento da arguida nulidade.

Compulsado o requerimento em causa o mesmo resulta claro que a Exma. Mandatária dos arguidos discorda do entendimento propugnado pelo Tribunal em tal despacho.

Todavia, entende-se que e posição jurídica aí expressa é clara e mostra-se devidamente fundamentada, não se vislumbrando que o aludido despacho enferme da invocada nulidade pois que aí se explicou por que razão a produção de prova testemunhal suplementar não foi admitida – a qual. naturalmente, não se destinava a sindicar a alteração da qualificação jurídica operada, mas sim a contraditar os factos vertidos na acusação e discutidos na causa, sendo certo que os factos constantes da acusação – frise-se novamente – não foram objecto de qualquer alteração por parte do Tribunal - e tendo em conta a razão de ser da reabertura da audiência (apenas para comunicação da alteração da qualificação jurídica) e o alegado no requerimento apresentado pela defesa, entendeu-se que tal meio de prova não era admissível no presente momento processual nem tão pouco tal diligência probatória se reputava essencial para a descoberta da verdade, tendo em conta toda a prova produzida até esse momento.

Nestes termos, por entender que o despacho judicial de fls. 974-976 não padece da invocada nulidade indefere-se a requerida arguição de nulidade.


3. A No que tange à sentença recorrida:

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. A sociedade arguida “CRH - Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.”, constituída em 1.06.1989, dedica-se à actividade de prestação de serviços de consultoria e valorização de recursos humanos no âmbito dos estudos, gestão, recrutamento, selecção e formação, gestão e comercialização de títulos de transporte e atendimento de pessoal de contacto.

2. No tocante a IVA, pelo menos no ano 2011, a referida sociedade estava enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.

3. Por sentença proferida em 30.11.2010 no âmbito do processo n.º 1516/10.6TYLSB, que corre termos no 3.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, foi declarada a insolvência da sociedade arguida, tendo sido nessa mesma data nomeado como Administrador da Insolvência o arguido A.

4. No âmbito desses autos de insolvência, no dia 24.02.2011 realizou-se a assembleia de credores para apreciação de relatório, tendo o administrador da insolvência proposto a continuidade da empresa, tendo sido aprovada deliberação de manutenção da actividade pelo devedor.

5. Foi ainda deliberado e aprovado a manutenção da administração pelo devedor, sob supervisão do administrador da insolvência, nos termos previstos no artigo 226.º do CIRE.

6. Por despacho judicial proferido a 17.06.2011 no âmbito do referido processo de insolvência foi declarada cessada a administração da massa insolvente pelo devedor, nos termos previstos no artigo 228.º, n.º 1, alínea e) do CIRE.

7. Despacho que foi notificado ao arguido por via postal registada, expedida para o seu domicílio profissional no dia 30.06.2011.

8. Tendo o arguido tomado efectivo conhecimento dessa decisão judicial em data não concretamente apurada do mês de Julho de 2011.

9. A partir dessa data, o arguido passou a tomar as decisões inerentes à gestão patrimonial da sociedade arguida, a qual se mantinha em laboração, cabendo-lhe nomeadamente decidir acerca do pagamento de salários aos trabalhadores e da entrega das declarações e respectivos impostos devidos ao Estado.

10. No período compreendido entre Julho e Setembro de 2011, a sociedade arguida realizou várias transacções comerciais, emitindo diversas facturas aos seus clientes, nas quais liquidou IVA à taxa legal, quantias essas que recebeu daqueles clientes.

11. Tendo o arguido A, no referido período, em representação da sociedade arguida, diligenciado pelo envio à administração fiscal das respectivas declarações periódicas de IVA, sem proceder, no entanto, ao respectivo pagamento do imposto devido em cada período, nos valores infra referidos, conforme tabela que segue:
Período de IVA não entregueTérminus do prazo de
Imposto pagamento
2011/07 € 464.934,30 12.09.2011
2011/08 € 434.199,36 10.10.2011
2011/09 € 372.931,38 10.11.2011
12. Os montantes supra referidos, relativos a IVA, foram apurados de acordo com os montantes efectivamente pagos pelos clientes da sociedade arguida e por esta recebidos.

13. Acresce que no período compreendido entre Agosto e Outubro de 2011 a sociedade arguida tinha trabalhadores ao seu serviço, aos quais pagou os salários acordados, procedendo ao desconto mensal da quantia devida a título de IRS no montante das remunerações que pagou.

14. O arguido A, no período supra referido, em representação e no interesse da sociedade arguida, diligenciou pelo envio à administração fiscal das respectivas declarações de retenção na fonte de IRS, não tendo, contudo, procedido à entrega dos valores retidos nos cofres do Estado no prazo legal, nos termos e valores infra descritos:
Período de IRS retido e não entregueTérminus do prazo de
Imposto pagamento
2011/08 € 78.169,29 20.09.2011
2011/09 € 81.449,76 20.10.2011
2011/10 € 23.050,14 20.11.2011
15. Os valores de IVA e IRS supra referidos não foram pagos nos prazos legais supra referidos, nem nos 90 dias subsequentes ao termo desses prazos.

16. Os arguidos foram notificados, sendo a sociedade arguida através do arguido A, para em novo prazo de 30 dias procederem ao pagamento dos impostos em dívida, juros e coimas, pagamento que não fizeram dentro desse prazo.

17. O arguido A agiu em nome e no interesse da sociedade arguida “CRH - Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.”, ciente de que as importâncias que não entregara à administração fiscal a título de IVA e IRS pertenciam ao Estado e que a este deviam ser entregues, sabendo que desse modo causava um prejuízo patrimonial de valor equivalente.

18. O arguido A reteve as referidas quantias a partir de Julho de 2011, e desde então e até Novembro de 2011, motivado pela facilidade com que o podia fazer e pelo êxito de tal prática, renovando sucessivamente o seu propósito de integrar na esfera patrimonial da sociedade arguida as quantias em causa para fazer face a outros encargos da referida sociedade.

19. Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

20. O arguido A não diligenciou pela entrega nos cofres do Estado das quantias supra referidas no prazo legal e no que posteriormente lhe foi concedido devido a dificuldades de tesouraria da sociedade arguida, privilegiando o pagamento dos salários líquidos aos trabalhadores, de molde a que estes não abandonassem os postos de trabalho, o que, a verificar-se, colocaria em risco a alienação da empresa, cujas negociações se encontravam em curso.

21. Todas as quantias supra referidas referentes a IRS e as relativas a IVA dos meses de Agosto e Setembro de 2011 foram pagas em Dezembro de 2013.

22. Sendo que o IVA referente ao mês de Julho de 2011, no montante de € 464.934,30 (quatrocentos e sessenta e quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e trinta cêntimos), foi igualmente pago no passado dia 29.06.2015.

23. O arguido desenvolve a actividade de administrador judicial, tendo auferido no ano 2013 cerca de € 60.000,00.

24. Vive em casa da sua companheira, com esta e dois filhos menores de 16 e 9 anos.

25. A sua companheira é empresária na área de contabilidade, auferindo mensalmente cerca de € 485,00.

26. Como habilitações literárias o arguido possui uma licenciatura em Gestão.

27. No certificado de registo criminal do arguido encontra-se averbada a seguinte condenação:

a) Por sentença transitada em julgado a 22.04.2013, proferida a 05.02.2013 pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, foi o arguido condenado na pena de 115 dias de multa, à taxa diária de € 15,00, pela prática, em 1.03.2012, de um crime de desobediência, pena que já se encontra extinta.

28. No certificado de registo criminal da sociedade arguida encontra-se averbada a seguinte condenação:

a) Por acórdão transitado em julgado a 22.04.2014, proferido em 13.03.2014 pela 7.ª Vara Criminal de Lisboa, foi a sociedade arguida condenada na pena de 730 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática, em Dezembro de 2009, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado.



Quanto aos factos não provados, considerou que inexistem.


Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova deve ser apreciada no seu conjunto, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.º do Código do Processo Penal).

Assim, o Tribunal firmou a sua convicção na análise crítica de toda a prova documental constante dos autos, designadamente a de fls. 14, 19, 20, 28, 44, 48-50, 70 a 92, 100, 104, 105, 108, 110 a 124, 137 a 182, 183 a 217, 218 a 228, 233-235, 238-242, 299 a 309, 472-483, 586 a 589, 590-592, 593 a 595, 596 a 675, 693-701, 702-703, 746-748, os CRC de fls. 947-949 e 952-953 e ainda a informação obtida junto da Direcção de Finanças de Lisboa, constante de fls. 1024-1026, prova essa que foi conjugada com as declarações prestadas pelo arguido A e com os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência, assumindo especial relevo os testemunhos de JC eCS, que na data dos factos exerciam, respectivamente, funções de director financeiro e técnica oficial de contas na sociedade arguida.

O arguido reconheceu na generalidade os factos que lhe são imputados no que tange à não entrega nos cofres do Estado das quantias referidas na acusação, relativas a IVA recebido de clientes da sociedade arguida por conta da actividade desenvolvida, e ainda a IRS retido nas remunerações pagas aos trabalhadores. Procedeu ao enquadramento dos factos, quer no que tange ao momento em que assumiu a efectiva gestão da sociedade arguida – o que ocorreu em Julho de 2011, quando tomou efectivo conhecimento do despacho judicial que declarou cessada a administração da massa insolvente pelo devedor –, quer quanto às dificuldades financeiras com que se confrontou e as decisões que teve de tomar para manter viável a alienação do estabelecimento (que estava em negociações), reconhecendo o arguido que perante a falta de liquidez constatada, optou por pagar em primeiro lugar os salários líquidos dos trabalhadores, levando ao incumprimento das obrigações fiscais.

Tais declarações do arguido foram ao encontro do já declarado na primeira sessão de julgamento pelas testemunhas JC eCS, que em face das funções profissionais que desenvolviam na sociedade arguida na época em análise, revelaram profundo e sustentado conhecimento acerca da situação financeira da sociedade arguida e ainda acerca de quem dirigia os destinos da mesma nos meses em causa (Julho a Novembro de 2011), não tendo, pois, subsistido qualquer dúvida quanto ao facto de ser o arguido A, administrador de insolvência nomeado quem, pelo menos nesse período, tomava todas as decisões de inerentes à gestão patrimonial da sociedade arguida, nomeadamente as relativas a pagamentos de salários e de impostos devidos ao Estado. Esclareceu aindaCS com rigor e isenção que apresentava as declarações periódicas de acordo com o apuramento efectuado através da documentação contabilística da empresa, remetendo ao director financeiro as guias para pagamento dos impostos devidos, o qual por sua vez reportava ao administrador da insolvência, que tomava as decisões quanto à ordem de pagamento, afirmação que foi igualmente corroborada por JC. Para além disso,CS asseverou de forma clara e segura que os salários dos trabalhadores sempre foram pagos e que o IVA em causa nos autos fora integralmente recebido, quer por via do pagamento das facturas pelos clientes, quer por via dos contratos de factoring que a sociedade arguida mantinha com duas instituições bancárias.

No que respeita ao valor dos impostos em dívida e o efectivo recebimento do IVA declarado no momento do cumprimento da prestação tributária, sopesou-se ainda o testemunho deMJO, técnica da Autoridade Tributária, que elucidou acerca das diligências investigatórias que levou a cabo no âmbito destes autos, tendo apurado, nomeadamente através da análise documentação recolhida, o efectivo recebimento do IVA e o pagamento dos salários aos trabalhadores. Para além disso, concretizou a testemunha quais os montantes ainda em dívida e os já liquidados pelo contribuinte, o que se mostrou igualmente consentâneo com as declarações do arguido, sendo certo que da documentação entretanto recolhida no decurso da audiência de julgamento e após a comunicação da alteração da qualificação jurídica, foi possível apurar o recente pagamento do IVA ainda em falta, referente ao mês de Julho de 2011, pagamento ocorrido no passado dia 29.06.2015.

Já os depoimentos de MJG, CT não assumiram relevo para a decisão, porquanto nada de concreto souberam esclarecer acerca da gestão da sociedade arguida no período situado entre Julho e Novembro de 2011, reconduzindo-se os seus depoimentos a afirmações genéricas e pouco sustentadas, insusceptíveis de abalarem os depoimentos seguros e circunstanciados das restantes testemunhas, em particular de JC eCS.

A factualidade atinente às condições pessoais e de vida do arguido apurou-se das declarações por este prestadas, que se reputaram credíveis, e da análise da documentação apresentada.



Apreciemos.


Recurso interlocutório interposto pelos arguidos


Verificação da nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP

Em cumprimento do decidido no acórdão deste Tribunal da Relação de 24/02/2015, no tribunal a quo procedeu-se à reabertura da audiência para cumprimento do estabelecido no artigo 358º, nºs 1 e 3, do CPP, no dia 16/06/2015, sendo proferido o seguinte despacho:

Tendo em conta a factualidade vertida na acusação e aquela que é susceptível de resultar provada, verifica-se que a mesma é subsumível ao tipo legal agravado do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições legais previstas na acusação e ainda nos artº 6 e 105, nº 5 e 7 do RGIT, bem como, art.º 79º do Código Penal.

Assim, procedendo à alteração da qualificação jurídica dos factos nos termos sobreditos, comunica-se a mesma à defesa, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 358º, nº 3 e 1 do C. Processo Penal.


A ilustre mandatária do arguido requereu prazo para apresentação de defesa, o que foi concedido.

No dia 26/06/2015, os arguidos apresentaram a sua peça processual de defesa em que contestam a factualidade constante da acusação pública, apresentam a sua versão dos factos e concluem pela respectiva absolvição.

Na mesma requerem, ao abrigo do estabelecido no artigo 340º, do CPP, a inquirição de duas testemunhas, a inquirir sobre toda a matéria de facto alegada e cujo depoimento se mostra necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, uma vez que as testemunhas a seguir designadas, Administradores da sociedade que adquiriu a sociedade arguida, se mostram conhecedoras dos factos essenciais para a descoberta da verdade material, sendo que apenas se teve conhecimento superveniente das mesmas, motivo pela qual não foram arroladas anteriormente.

No dia 29/06/2015 – fls. 975/976 - foi lavrado o seguinte despacho, na parte que releva:

Na sequência de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e em observância do determinado em tal aresto pelo Tribunal superior foi designada data para reabertura da audiência a fim de ser dado cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal.

Como resulta claro do despacho judicial exarado nos autos a fls. 955 o tribunal procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação e não a qualquer alteração de factos, na esteira, aliás, do já apreciado e decidido pelo tribunal superior, onde se concluiu pela inexistência de qualquer modificação ou alteração dos factos descritos na acusação pública (cfr. fls. 923).

Notificados de tal alteração da qualificação jurídica, vieram os arguidos apresentar a sua defesa, constante do requerimento de fls. 964 e seguintes.

Contudo, compulsado tal requerimento verifica-se que a defesa do arguido laborou em erro, porquanto todo o aludido requerimento assenta no pressuposto de ter sido comunicada uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação o que, como já se deixou expresso, não ocorreu.

Perante tal circunstancialismo e o demais alegado em tal requerimento, verifica-se que a defesa dos arguidos pretende agora, por via da comunicação de uma alteração da qualificação jurídica, produzir prova testemunhal suplementar de molde a colocar em crise os factos descritos na acusação, relativamente aos quais já deveria ter exercido o contraditório, em sede de contestação o que, todavia, não fez.

Verifica-se, pois, que não é este o momento próprio para os arguidos apresentarem a sua defesa quanto aos factos descritos na acusação, sendo certo que também não se afigura viável a apresentação de defesa quanto à alteração da qualificação jurídica mediante a produção de prova testemunhal, tendo em conta a alteração comunicada (referência ao disposto no artigo 105.º, n.º 5 e 7 do RGIT, que não constava da acusação, pese embora os valores aí vertidos no tocante ao valor do imposto devido) e o teor do requerimento apresentado.

Nestes termos, não admito a requerida audição de testemunhas.


No dia 02/07/2015, vieram os arguidos arguir a nulidade do despacho de 29/06/2015 – prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP – impetrando a sua substituição por outro que admita a inquirição das testemunhas.

No decurso da sessão do dia 02/07/2015 da audiência de julgamento foi então proferido o despacho recorrido, em que se indefere a arguição de nulidade.

A análise dos recursos interpostos pelos arguidos iniciar-se-á pelo interlocutório, atento sua eventual prejudicialidade face aos recursos da decisão final.

Como vimos, a questão a decidir no recurso interlocutório é a da verificação de omissão de diligência essencial à descoberta da verdade, traduzida na não inquirição das duas testemunhas indicadas pelos arguidos, ou seja, omissão, em fase de julgamento, de diligência que possa reputar-se essencial para a descoberta da verdade.


Analisemos então.

O acórdão deste Tribunal da Relação de 24/02/2015 determinou a reabertura da audiência para que fosse dado cumprimento ao estabelecido no artigo 358º, nºs 1 e 3, do CPP, porquanto, como no mesmo se pode ler, o Ministério Público imputa aos arguidos factos que na mesma (a acusação, entenda-se) surgem enquadrados como integrando a prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º do Código penal e 105 nºs 1, 2 e 4 do R.G.I.T.”, mas a sentença condenou o recorrente A pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 (RGIT), em conjugação com o disposto nos artigos 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do Código Penal e a recorrente “CRH” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 (RGIT), em conjugação com o disposto nos artigos 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do Código Penal, sendo certo que, como no mesmo também se explicita, confrontados os factos descritos na acusação pública imputados ao arguido (e bem assim à arguida “CRH – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.”) com aqueles por que veio a ser condenado, conclui-se que não existe qualquer modificação ou alteração dos mesmos.

Estamos, assim, como é manifesto, no domínio da mera alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação e não da alteração destes.


Ora, desde logo, não prevê o artigo 358º, do CPP, concretamente o nº 1 (e 3) que, em virtude da comunicação a que alude, tem o arguido assegurado o direito de, no exercício da sua defesa, produzir nova prova.

Assim, se dentro do prazo para a preparação da defesa for pelo arguido requerida a inquirição de novas testemunhas, tem o julgador de analisar da sua necessidade de acordo com os princípios gerais estabelecidos no artigo 340º, do mesmo diploma legal.

Em processo penal vigora o princípio da investigação, da oficiosidade ou da verdade material, devendo o tribunal ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade, como se consagra no artigo 340º, nº 1, do CPP.

Quer dizer, é atribuído ao tribunal o poder-dever de, mesmo por sua iniciativa e com autonomia relativamente às iniciativas da acusação e da defesa, proceder à realização das diligências probatórias que entender necessárias e pertinentes para o esclarecimento dos factos e descoberta da verdade material.

Este princípio da investigação sofre, no entanto, as limitações impostas pelos princípios da necessidade – só são admissíveis os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade – da legalidade – só são admissíveis os meios de prova não proibidos por lei – e da adequação – não são admissíveis os meios de prova notoriamente irrelevantes, inadequados ou dilatórios – cfr. Ac. R. de Coimbra de 01/02/2012, Proc. nº 416/10.4JACBR.C1, disponível em www.dgsi.pt.

No caso em apreço, não foram os arguidos confrontados com qualquer alteração da factualidade descrita na acusação pública, apresentando-se a pretendida inquirição das testemunhas como notoriamente irrelevante para o efeito da defesa perante a alteração da qualificação jurídica.

Aliás, decorre até do requerimento apresentado pelos arguidos que este não é o seu escopo, pois concretizam que as testemunhas são “a inquirir sobre toda a matéria de facto alegada e cujo depoimento se mostra necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, uma vez que as testemunhas a seguir designadas, Administradores da sociedade que adquiriu a sociedade arguida, se mostram conhecedoras dos factos essenciais para a descoberta da verdade material, sendo que apenas se teve conhecimento superveniente das mesmas, motivo pela qual não foram arroladas anteriormente”, pretendendo, desta forma, produzir nova prova em relação aos factos que lhes são imputados, quando não foi para esse efeito que se determinou a reabertura da audiência.

Termos em que, não merece censura a decisão que indeferiu a requerida inquirição de testemunhas, não se verificando a apontada nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP, nem violação alguma do direito de defesa, porquanto não foram omitidas, em sede de audiência de julgamento, diligências essenciais para a descoberta da verdade.


Improcede, pois o recurso interlocutório.



Recurso do arguido A


Nulidade da sentença por falta de fundamentação


Censura o recorrente a sentença revidenda por não ter descrito qual o processo racional utilizado para formar a sua convicção em relação aos factos dados como provados, bem como não explicitar a razão de atribuir credibilidade a certos depoimentos em detrimento de outros, o que consubstanciaria a nulidade prevista na alínea a), do nº 1, do artigo 379º, do CPP.

Conforme resulta do estabelecido no artigo 374º, do CPP, a estrutura de uma sentença comporta três partes distintas, a saber: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, sendo que a fundamentação deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Quando tal não suceda, a sentença está ferida de nulidade, por força do preceituado no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP.

Esta imposição de fundamentação, acolhida no texto constitucional no seu artigo 205º, n° 1 e materializada também no artigo 97º, n° 5, do CPP, como tem acentuado a doutrina e a jurisprudência, - vd. Sérgio Poças, Da Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Revista Julgar, nº 3, 2007, pág. 23 e, por todos, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 408/07, de 11/07/2007, in www.pgdl.pt. - cumpre duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, afirmada nas leis adjectivas, que visa essencialmente: impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão; permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação; colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de tudo tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.

Os motivos de facto não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – cfr. Marques Ferreira, Meios de Prova - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 228 e segs - traduzindo-se, pois, o exame crítico, na menção das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a afirmação das provas que mereceram aceitação e das que lhe mereceram rejeição, a razão de determinada opção relevante por uma ou outra das provas, os motivos substanciais da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal priveligiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção – neste sentido, Acórdãos do STJ de 16/01/2008, Proc. nº 07P4565, de 26/03/2008, Proc. nº 07P4833 e de 15/10/2008, Proc. nº 08P2864, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Ora, percorrendo a motivação da decisão recorrida, verifica-se que contém a especificação dos factos provados, a menção aos não provados (que inexistem) a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, mormente aqueles em que assentou a convicção do tribunal e o exame crítico desses meios de prova, com explicitação da credibilidade dos meios probatórios.

Na verdade, o tribunal a quo explicitou, de forma suficiente (como resulta da leitura da “Motivação da decisão de facto” da sentença que retro se mostra transcrita) sendo certo que não é exigível que o faça de forma exaustiva, as razões da sua convicção, dando a conhecer como, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, ela se formou nesse determinado sentido.

E, em concreto, quanto às razões de atribuir credibilidade a certos depoimentos em detrimento de outros, estão elas bem claras, quando se afirma
que (…) as testemunhas JC e CS, que em face das funções profissionais que desenvolviam na sociedade arguida na época em análise, revelaram profundo e sustentado conhecimento acerca da situação financeira da sociedade arguida e ainda acerca de quem dirigia os destinos da mesma nos meses em causa (Julho a Novembro de 2011) (…) Esclareceu ainda CS com rigor e isenção (…) afirmação que foi igualmente corroborada por JC. Para além disso,CS asseverou de forma clara e segura que os salários dos trabalhadores sempre foram pagos (…) No que respeita ao valor dos impostos em dívida e o efectivo recebimento do IVA declarado no momento do cumprimento da prestação tributária, sopesou-se ainda o testemunho de MJO, técnica da Autoridade Tributária, que elucidou acerca das diligências investigatórias que levou a cabo no âmbito destes autos, tendo apurado, nomeadamente através da análise documentação recolhida, o efectivo recebimento do IVA e o pagamento dos salários aos trabalhadores. Para além disso, concretizou a testemunha quais os montantes ainda em dívida e os já liquidados pelo contribuinte, o que se mostrou igualmente consentâneo com as declarações do arguido (…) Já os depoimentos de MJG,CLT não assumiram relevo para a decisão, porquanto nada de concreto souberam esclarecer acerca da gestão da sociedade arguida no período situado entre Julho e Novembro de 2011, reconduzindo-se os seus depoimentos a afirmações genéricas e pouco sustentadas, insusceptíveis de abalarem os depoimentos seguros e circunstanciados das restantes testemunhas, em particular de JC eCS.

É, pois, manifesto que o recorrente não tem razão.

Quanto ao mais, tendo em vista que a prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência, em que se incluem as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª edição, Editorial Verbo, 202, pág. 132) a sentença revidenda não deixa de apresentar, com meridiana clareza, as razões pelas quais concluiu pela prática pelo arguido/recorrente da factualidade contra a qual agora se insurge.

E a nulidade da sentença por falta ou deficiência de fundamentação, mormente por falta de exame crítico das provas, no fundo por não ter explicitado o processo racional que permitiu ao julgador extrair de determinada prova a convicção da verdade histórica dos factos por que foi condenado, apenas se verifica quando inexistem ou são ininteligíveis as razões do tribunal a quo, não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o mesmo chegou (o que não significa também que no caso sub judice o sejam).

Percebidas as razões do julgador, assiste aos sujeitos processuais, com recurso ao registo da prova, argumentar para que o tribunal de recurso altere a matéria de facto fixada. Aqui, porém, já se está em sede de impugnação da matéria de facto e não de nulidade da sentença, como se salienta no Ac. R. de Guimarães de 12/07/2010, Proc. nº 4555/07.0OTDLSB.G1, disponível em www.dgsi.pt.

Pode, pois, o arguido/recorrente discordar do julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal recorrido, mas carece de razão quando pretende que a sentença padece da invocada nulidade, pois foi aquele tribunal lógico e congruente, consistente e suficiente, explicando as razões pelas quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como deu como provado.

Face ao exposto, a decisão recorrida não padece de nulidade, considerando o disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP, pelo que improcede o recurso quanto a esta questão.


Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre confinada aos limites fornecidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do CPP.

Esta modalidade de impugnação não visa, porém, a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Tal recurso não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos, que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados – cfr. Ac. do STJ de 29/10/2008, Proc. nº 07P1016 e Ac. do STJ de 20/11/2008, Proc. nº 08P3269, in www.dgsi.pt.

Resulta assim que, quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, as conclusões de recurso têm de fazer a discriminação estabelecida no artigo 412º, nºs 3 e 4, do CPP.

Analisando a peça processual recursória, constata-se que o recorrente impugna em concreto a factualidade dada como provada nos pontos 9, 11, 17, 18, 19 e 20 dos fundamentos de facto da sentença recorrida, afirmando que a prova produzida, dada a sua insuficiência e errada apreciação, conduz a conclusões diversas quanto a eles, tendo cumprido minimamente as exigências legais.

Assim se entendendo, importa analisar então a prova produzida com o objectivo de determinarmos se consente a convicção formada pelo tribunal recorrido, norteados pela ideia – força de que o tribunal de recurso não procura uma nova convicção, mas apurar se a convicção expressa pela 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si (partindo das concretas provas indicadas pelo recorrente que, na sua tese, impõem decisão diversa, mas não estando por estas limitado) sendo certo que apenas poderá censurar a decisão revidenda, alicerçada na livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se for manifesto que a solução por que optou, de entre as várias possíveis e plausíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum - artigo 127º, do CPP.

E, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção”, pois “doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.

Cumpre ter em atenção também que os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confortam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.

Analisemos então a factualidade que provada foi considerada, que o recorrente critica, sob a óptica da censura que lhe faz (e seguindo a ordem que também adoptou) e se tem ela suporte na prova produzida.
Começa por referir o recorrente que não existe qualquer documento junto aos autos que o comprometa na gestão de facto da sociedade arguida, reportando-se à factualidade vertida nos pontos 9, 11 e 17.

Mas, este argumento não merece acolhimento, pois a demonstração dos factos em causa não está vinculada à prova documental, uma vez que em processo penal rege o estabelecido no artigo 125º, do CPP, segundo o qual “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.


Ora, como se extrai da decisão recorrida, o tribunal a quo formou a sua convicção quanto a esta materialidade tendo em consideração as declarações do arguido, prestadas em audiência de julgamento, que procedeu ao enquadramento dos factos, quer no que tange ao momento em que assumiu a efectiva gestão da sociedade arguida – o que ocorreu em Julho de 2011, quando tomou efectivo conhecimento do despacho judicial que declarou cessada a administração da massa insolvente pelo devedor, sendo que tais declarações do arguido foram ao encontro do já declarado na primeira sessão de julgamento pelas testemunhas JC e CS, que em face das funções profissionais que desenvolviam na sociedade arguida na época em análise, revelaram profundo e sustentado conhecimento acerca da situação financeira da sociedade arguida e ainda acerca de quem dirigia os destinos da mesma nos meses em causa (Julho a Novembro de 2011), não tendo, pois, subsistido qualquer dúvida quanto ao facto de ser o arguido A, administrador de insolvência nomeado quem, pelo menos nesse período, tomava todas as decisões de inerentes à gestão patrimonial da sociedade arguida, nomeadamente as relativas a pagamentos de salários e de impostos devidos ao Estado. Esclareceu aindaCS com rigor e isenção que apresentava as declarações periódicas de acordo com o apuramento efectuado através da documentação contabilística da empresa, remetendo ao director financeiro as guias para pagamento dos impostos devidos, o qual por sua vez reportava ao administrador da insolvência, que tomava as decisões quanto à ordem de pagamento, afirmação que foi igualmente corroborada por JC.


Sustenta o arguido que os depoimentos das testemunhas CS e JC foram erradamente apreciados, mas não se vê como.


Na verdade, tendo-se procedido à audição das declarações e depoimentos do arguido e das testemunhas mencionadas, respectivamente, prestados em audiência de julgamento, resulta o seguinte:

Referiu o arguido que tomou conhecimento da decisão do tribunal a que se refere o ponto 6 dos factos provados em Julho de 2011, quando se encontrava em Moçambique por ter contactado com o seu escritório em Portugal.

Mais afirmou que sabia que havia impostos para entregar ao Estado, concretamente IVA e quantias de IRS provenientes de retenções efectuadas nos salários dos trabalhadores da empresa e quando me diziam que não havia dinheiro suficiente para pagar salários e para pagar impostos e que propunham que o pagamento que fosse feito em primeira instância era de salários, eu nunca me opus a que isso acontecesse. Tão simples como isso.

Pergunta: pese embora soubesse que havia a obrigação de pagar os impostos, sabia disso?

Resposta: perfeitamente consciente.

Pergunta: No fundo o que o senhor fez foi uma gestão dos poucos fundos que havia para pagar os salários dos trabalhadores?

Resposta: exactamente.Com o fim claro, com o objectivo claro de poder alienar o estabelecimento como um todo e para o alienar tinha de o ter em funcionamento.

Pergunta: mas para isso fez uma opção (…) optou por fazer o pagamento dos salários aos trabalhadores para manter aquele estabelecimento em funcionamento e desse modo ficando por pagar o IVA e o IRS que estamos aqui a falar no processo?

Resposta: meritíssima sim, sim, com certeza.

Quanto à testemunha CS, descreveu que desempenhou funções para a arguida de Setembro de 2004 a Outubro de 2011 e foi quem emitiu as guias de pagamento relativas às declarações para pagamento do IVA e IRS até Outubro de 2011. A gestão passou para o administrador de insolvência deve ter sido em Junho Julho, mas não tenho a certeza (…) de 2011. O administrador de insolvência (entenda-se, o arguido) já dava ordens de pagamento antes dessa altura (…) eu sei que nós enviávamos tudo aquilo que tínhamos para pagamento, enviávamos para o administrador de insolvência, ele é que dava as ordens ao banco, ele é que decidia o que é que havia de pagar ou não, penso eu, mas não tenho a certeza.

Mais referiu que nós não podíamos dar ordens ao banco, quem as dava era o administrador de insolvência, reportando-se ao último período em que prestou serviço na empresa e que antes de Junho/Julho ele já dava as ordens ao banco (referindo-se ao arguido A).


No que tange à testemunha JC, relatou ter exercido funções como director financeiro da sociedade arguida de Abril de 2008 até 15 de Dezembro de 2011. No período de Julho a Outubro de 2011 já lidava directamente com o doutor A, que era quem geria a empresa. A gestão foi retirada à entidade devedora, não é, à empresa e passou para o administrador de insolvência. A partir de meados de 2011 era o doutor A que tomava as decisões. Mais acrescentou que fazia uns pequenos relatórios de síntese para o administrador de insolvência dando conta dos impostos que havia para pagar e também dos que estavam em atraso, desconhecendo se ele lia os relatórios ou não.

Referiu ainda esta testemunha: o que eu fazia basicamente era também, para além desses relatórios de síntese, produzia ordens de pagamento e depois ele apreciava e ele é que entrava em contacto com os bancos para fazer os pagamentos por assim dizer.

Como se alcança dos mencionados depoimentos e declarações, à luz dos documentos juntos aos autos e descriminados na decisão sob censura, conjugados entre si, as conclusões fácticas a que chegou o tribunal recorrido nos pontos 9, 11 e 17 estão suficientemente alicerçadas nos relatos das testemunhas (e nas próprias declarações do arguido), sendo que deles se retira que, mesmo já antes de Julho de 2011, era o arguido quem efectivamente exercia a gestão patrimonial da sociedade arguida, tendo conhecimento de quais os impostos para pagar e aqueles em atraso e decidia quais os pagamentos (todos os pagamentos, incluindo os dos impostos) a fazer, autorizando as respectivas ordens de pagamento, não sendo relevante, para o efeito, quem é que fisicamente produzia as declarações periódicas de IVA e as submetia via internet à administração fiscal, pois a decisão era do recorrente.

Mas, discorda o recorrente destas conclusões, transcrevendo também, para sustentar a sua divergência, excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas JM e CO que entende terem sido desconsiderados pelo tribunal recorrido.

Só que, a testemunha M, como resulta da respectiva gravação a que acedemos, começou por elucidar o tribunal que desenvolveu actividade na sociedade arguida de Outubro de 2007 até Março de 2011, sendo seu administrador, mas que a terceira fase, foi a fase da insolvência, passou a ser ele o administrador (referindo-se ao arguido/recorrente). A insolvência da empresa foi declarada em Março ou Abril de 2010. A partir de Março de 2011 deixou de estar na empresa.

E, como a actuação em causa nos autos diz respeito ao período de Julho a Novembro de 2011, manifesto se torna que não tinha a testemunha conhecimento directo do funcionamento da mesma, como aliás refere expressamente ao lhe ser perguntado depois nesta última fase da declaração de insolvência quem é que passa a decidir os pagamentos? pois responde: repare, posso dar-lhe um palpite, mas não tenho conhecimento directo, portanto não vale a pena dizer.


A testemunha CO administrador da “CRH SGPS”, empresa que detinha posição de domínio sobre a sociedade arguida afirmou, entre o mais, ter conhecimento que o arguido foi nomeado no final do 1º semestre de 2011 e que a testemunha não fiscalizava, mas tinha um conhecimento genérico das situações relevantes que me eram comunicadas (…) todos os pagamentos eram informados, ou validados ou enviados previamente ao arguido.

Contudo, esclareceu em passagem posterior, não saber dizer em concreto se era o arguido que validava cada pagamento, se era informado depois, o que é que se passava em concreto na arguida, pois as instruções que a SGPS deu à participada (a sociedade arguida, entenda-se) é que toda e qualquer decisão financeira fosse previamente validada com o administrador (o arguido), penso que a prática fosse fazer.

Ou seja, como bem se assinala na decisão revidenda, os depoimentos de M (…) C(trata-se, como infra está esclarecido, da testemunha CO) (…) não assumiram relevo para a decisão, porquanto nada de concreto souberam esclarecer acerca da gestão da sociedade arguida no período situado entre Julho e Novembro de 2011, reconduzindo-se os seus depoimentos a afirmações genéricas e pouco sustentadas, insusceptíveis de abalarem os depoimentos seguros e circunstanciados das restantes testemunhas, em particular de JC eCS.

No que concerne à factualidade que descrita está nos pontos 18, 19 e 20, dos factos provados, extrai-se também do que provado se mostra nos pontos 6 a 16 dos mesmos, apreciado de acordo com as regras da experiência comum e admitido está, até, pelo arguido/recorrente nas suas declarações prestadas em audiência, concretamente dos excertos que retro transcrevemos.

Chama ainda à colação o recorrente os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, considerando que se verifica a sua violação.


Mas, sem razão.

A violação do princípio in dubio pro reo, princípio relativo à prova e corolário do da presunção de inocência constitucionalmente tutelado – que se traduz na imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”, como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pág. 203 - pressupõe “um estado de dúvida insanável no espírito do julgador”, só podendo concluir-se pela sua verificação quando do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal encontrando-se nesse estado, optou por decidir contra o arguido (fixando como provados factos dubitativos ao mesmo desfavoráveis ou assentando como não provados outros que lhe são favoráveis) ou, quando embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da análise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter – cfr. Acs. do STJ de 27/05/2009, Proc. nº 05P0145 e 30/10/2013, Proc. nº 40/11.4JAAVR.C2.S1; Ac. R. de Évora de 30/01/2007, Proc. nº 2457/06-1, disponíveis em www.dgsi.pt.

Analisando a decisão recorrida, dela não resulta que o tribunal a quo tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis ao arguido/recorrente e nem a essa conclusão (dubitativa) se chega da análise desse mesmo texto à luz das regras da experiência comum ou considerando a prova que gravada se mostra, ou seja, não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter.

Não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida e nada nos permitindo concluir que o devesse estar, não se manifesta violado o invocado princípio.


Face ao exposto, os factos que o arguido impugna mostram-se sustentados por prova suficiente, valorada de forma que não atropela as regras da experiência comum, sendo certo que, para que se proceda à alteração da matéria de facto no sentido propugnado pelo recorrente teria este que demonstrar que a convicção obtida pelo tribunal a quo constitui uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das aludidas regras, uma manifestamente errada utilização de presunções naturais, não bastando que apresente uma argumentação no sentido de que outra convicção era possível.

A demonstração de que as provas que aponta conduzem inequivocamente a uma convicção diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido (concretamente a que defende) não a fez o recorrente, pelo que não merece acolhimento a sua pretensão, considerando-se definitivamente assentes os factos como tal dados pela 1ª instância.


Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido/verificação de situação de conflito de deveres, estado de necessidade ou inexigibilidade de outro comportamento

Mas, aduz ainda o recorrente que terá actuado em situação de conflito de deveres, estado de necessidade ou inexigibilidade de outro comportamento.

O recorrente alude e provado está que não diligenciou pela entrega nos cofres do Estado das quantias supra referidas no prazo legal e no que posteriormente lhe foi concedido devido a dificuldades de tesouraria da sociedade arguida, privilegiando o pagamento dos salários líquidos aos trabalhadores, de molde a que estes não abandonassem os postos de trabalho, o que, a verificar-se, colocaria em risco a alienação da empresa, cujas negociações se encontravam em curso.

Mas, como tem afirmado repetidamente a jurisprudência dos Tribunais Superiores, acompanhada pela doutrina, a circunstância de o agente canalizar as verbas não entregues à administração tributária (ou Segurança Social) para o pagamento de salários e outros pagamentos que permitam manter a empresa a funcionar, não integra a figura do direito de necessidade – artigo 34º, do Código Penal - do estado de necessidade desculpante – artigo 35º - ou do conflito de deveres – artigo 36º, do mesmo diploma - e, portanto, não constitui uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa – cfr. por todos, Acs. do STJ de
13/12/2001, Proc. nº 01P2448 e de 31/05/2006, Proc. nº 06P1294; Acs. R. de Lisboa de 22/09/2004, Proc. nº 4855/2004-3 e 15/02/2007, Proc. nº 1552/07-9; Acs. R. do Porto de 18/02/2009, Proc. nº 0846954 e de 14/01/2015, Proc. nº 2689/13.1IDPRT.P1; Acs. R. de Coimbra de 25/05/2011, Proc. nº 472/04.4TAAGD.C1 e 28/03/2012, Proc. nº 1133/10.0IDLRA.C1; Ac. R. de Guimarães de 04/02/2013, Proc. nº 285/11.7IDBRG.G1; Ac. R. de Évora de 15/11/2011, Proc. nº 120/03.0IDFAR.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.


Como se elucida cabalmente no referenciado Ac. R. de Coimbra de 28/03/2012:

Quanto ao facto de saber se as dificuldades financeiras e económicas da empresa, justificam a conduta do arguido, tem vindo a ser afirmado jurisprudencialmente, que a obrigação legal de entregar impostos ao Estado é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores.

Já decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 17/1/2007 que:

I – No nosso ordenamento jurídico optou-se por criminalizar a apropriação de prestações tributárias ou equiparadas, o que significa que o dever de não apropriação das mesmas prevalece sobre o dever de as entidades patronais pagarem os salários.

II – Não se pode apelar, neste âmbito, à figura do conflito de deveres, já que estão em confronto interesses próprios (que emergem da necessidade de manutenção do negócio) e interesses alheios (a obrigação de entregar ao Estado as quantias que lhe pertencem).

III - O estado de necessidade abrange as situações perigosas em que se encontra significativamente diminuído o desvalor da acção ilícita e que colidem com o processo de formação da vontade de tal forma que não é exigível ao agente comportamento diverso.

IV - Não se verifica tal estado de necessidade quando inexistem dados de facto que apontem no sentido de se encarar o não pagamento dos salários como tendo um perigo actual, nem no sentido de o único meio de que o arguido dispunha para pagar os salários consistia na assunção da conduta criminosa»”.

Este é também o entendimento que perfilhamos, pelo que não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, concretamente as pelo recorrente invocadas.


Face ao que, compulsando a factualidade que provada se encontra, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime por que foi o recorrente condenado, bem como as condições objectivas de punibilidade, pelo que carece também de razão nesta parte.



Dispensa de pena/atenuação especial da pena

Considera o recorrente que devia ter o tribunal recorrido se determinado pela dispensa de pena, pois “não resultam factos que determinem exigências de prevenção, nada se verificando, em concreto, que permita afirmar que as exigências de prevenção serão seriamente postergadas pela concessão da dispensa de pena ao arguido”.


Ora, no âmbito dos crimes tributários, no que diz respeito à dispensa de pena rege o estabelecido no artigo 22º, do RGIT que, à data da prática dos factos, tinha a seguinte redacção:

“1 - Se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a pena pode ser dispensada se:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves;

b) A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos;

c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.”

Actualmente (por força da redacção introduzida pela Lei nº 83-C/2013, de 31/12) consagra-se o seguinte:

“1 - Se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a 2 anos, a pena pode ser dispensada se:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves;

b) A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos, até à dedução da acusação;

c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.”


Como resulta da simples leitura do normativo em causa, para a dispensa de pena tem de verificar-se, entre outros, o pressuposto de que o crime seja punível em abstracto com pena de prisão igual ou inferior a três anos (ou dois anos, na versão actual).


No caso em apreço, o crime pelo recorrente praticado – previsto nos artigos 6º e 105º, nºs 1, 4, 5 e 7, da Lei nº 15/2001, de 05/06 (RGIT) – é punível com pena de prisão de um a cinco anos.

Porque assim é, afastada está a possibilidade de dispensa de pena.

Mas, determina-se no nº 2, do mesmo artigo 22º, do RGIT (que não sofreu alteração de redacção) que “a pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado”, o que o recorrente também almeja.

Só que, como acertadamente se refere na decisão revidenda, não tem aplicabilidade ao caso em apreço o disposto no artigo 22.º, n.º 2 do RGIT porquanto resulta dos elementos carreados para os autos que apesar do pagamento da última prestação tributária ainda em dívida, os respectivos juros de mora em dívida não foram liquidados (cfr. fls. 1024-1026), juros que constituem um acréscimo legal.

Ainda que não explicitamente impetrado – mas parece resultar das conclusões 78 e 79 da motivação de recurso que está também colocada em causa - apreciaremos a dosimetria da pena aplicada.

Conforme resulta do estabelecido no artigo 40º, do Código Penal, toda a pena tem como finalidades “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” – nº 1, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” – nº 2.

Nos termos do artigo 71º, do mesmo Código, para a determinação da medida da pena tem de se atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele, sendo que, no caso em apreço, por imposição do artigo 13º, do RGIT, cumpre ainda ter em consideração o prejuízo causado pelo crime.

De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.

A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.

Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade. – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 227 e segs.

Percorrendo a decisão recorrida, como enunciada se mostra, verifica-se que, para a determinação da medida da pena, ponderou o tribunal a quo:

As exigências de prevenção geral revelam-se relativamente elevadas, dado o número crescente de crimes desta natureza, o que justifica uma necessidade de afirmação da norma violada.

Já as necessidades de prevenção especial mostram-se bem mais reduzidas, considerando que o arguido conta apenas com uma condenação criminal por crime de desobediência e por factos posteriores, não configurando, pois, um verdadeiro antecedente criminal.

Em concreto, verifica-se que a ilicitude do facto é elevada (tendo em conta o montante de impostos em causa, que suplanta os € 1.400.000,00), assumindo a culpa a modalidade de dolo directo, ainda que de reduzida intensidade, tendo em conta a razão subjacente à conduta adoptada. Importa ainda ponderar as circunstâncias que determinaram o arguido à prática do crime, que apesar de não poderem ser consideradas como justificadoras da conduta não podem deixar de ser factor a considerar na determinação da medida da pena. Por outro lado, importa ainda considerar que a totalidade dos impostos em causa nos autos foram integralmente repostos nos cofres do Estado, o que denota o esforço envidado no sentido da reparação do crime.

Por último sopesa-se a inserção familiar e profissional evidenciadas pelo arguido.


Face ao que supra ficou transcrito, é patente que a sentença revidenda levou em linha de conta os factores relevantes para a determinação concreta da pena, nos termos estabelecidos no artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal e artigo 13º, do RGIT, em termos que não merece crítica, atentos os factos que provados se encontram,

Com efeito, o grau de ilicitude patente nos factos é muito elevado, tendo em atenção o valor global do prejuízo causado – 1.454.734,00 euros - sendo certo, porém, que foi efectuado entretanto o ressarcimento da quantia devida a título de impostos.

A conduta delituosa ocorreu entre 13/09/2011 (fim do prazo de pagamento do IVA relativo a Julho de 2011) e 20/11/2011 (fim do prazo de entrega ao Estado das quantias relativas a retenção de IRS dos salários de Outubro de 2011) e o valor da parcela mais elevada de 464.934,30 euros.

O dolo revestiu a sua modalidade mais grave, o directo, mas a culpa não é acentuada, consideradas as razões que determinaram a conduta.

O arguido não averba condenações criminais anteriores, o que, militando a seu favor, não tem grande relevância atenuativa, pois o mínimo que se pode exigir a um cidadão é que não pratique crimes. Foi condenado em 05/02/2013, em pena de multa, pela prática de um crime de desobediência.

No ano de 2013, o recorrente auferiu cerca de 60.000,00 euros do exercício da sua actividade de administrador judicial; vive com a companheira e dois filhos menores; como habilitações literárias possui licenciatura em Gestão.

Importa ainda ter em consideração o lapso de tempo decorrido desde a prática dos factos.

As exigências de prevenção geral nos crimes tributários e particularmente no que concerne, como no caso em apreço, à não entrega de quantias relativas ao IVA e IRS, são muito intensas, considerando a elevada frequência com que são praticados e a considerável margem de impunidade de que as condutas ilícitas dessa natureza continuam a beneficiar.


Quanto às de prevenção especial, assumem intensidade mediana, tendo em consideração a ausência de antecedentes criminais à data dos factos.

Pelo exposto, efectuado juízo de ponderação sobre a culpa, como medida da pena e considerando as exigências de prevenção e as demais circunstâncias previstas no artigo 71º, do Código Penal e 13º, do RGIT, não se mostra que a pena em que foi condenado de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, extravase a medida da respectiva culpa e também não ultrapassa o limite máximo a considerar para que a justiça relativa seja encontrada, mostrando-se, pelo contrário, até dominada pela excessiva benevolência.

Termos em que, improcede também o recurso nesta parte e, por conseguinte, na totalidade.

Recurso da arguida “CRH”

Nulidade da sentença por falta de fundamentação

Também esta recorrente vem arguir a nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação, sendo que à total e absoluta ausência de fundamentação se deve equiparar a fundamentação insuficiente, posto que uma decisão parcialmente fundamentada tem de ser entendida como não fundamentada.

O argumentário trazido à colação para sustentar a verificação da nulidade coincide com o explanado pelo recorrente A, pelo que damos por reproduzido o que a propósito foi afirmado quando da apreciação da mesma questão por este suscitada, dispensando-nos de o repetir, por constituir acto inútil e, por isso, proibido.

Mas diz a recorrente que não foi tido em conta o depoimento da testemunha CO sem qualquer justificação para tanto por parte do tribunal a quo.

A fls. 583 (primitivamente fls. 579) a recorrente requereu a inquirição como testemunha do Eng.ºC, Rua ... Oeiras (que na mesma peça escrita, dois parágrafos antes, indica como “Sr. Eng.º CO, Presidente da SGPS que detinha a arguida CRH – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.”) o que foi deferido por despacho de fls. 679 nos seguintes termos: tendo em conta o teor de tais declarações e por poder assumir relevo para o cabal esclarecimento dos factos, admito a audição na qualidade de testemunha do Engenheiro C, melhor identificado a fls. 579.

Compulsada a acta da sessão de 26/06/2014 da audiência de julgamento, constata-se que assinalada está a inquirição nesse dia da testemunha CO engenheiro, que “também trabalhava para a CRH, mas a SGPS, desde finais de 2009 até finais de 2011”.

Deste modo, resulta que a testemunha que na sentença é referenciada como C é na verdade a testemunha CO configurando-se a troca de nomes como um mero lapso de escrita (até porque não foi inquirida testemunha alguma que se identificasse como C) produzido sem dúvida até pela confusão suscitada no requerimento da ora recorrente quanto ao apelido da pessoa a inquirir.

Face ao que, expressa se mostra na sentença a valoração feita pelo julgador da 1ª instância referente ao depoimento da testemunha, improcedendo o recurso nesta parte.


Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida/verificação da causa de exclusão da ilicitude de conflito de deveres/estado de necessidade/conflito de interesses/inexigibilidade de outro comportamento

No que concerne a estas questões vale o que a propósito se explicitou quando da apreciação do recurso antecedente, cumprindo apenas acrescentar que a responsabilidade da arguida/sociedade decorre do estabelecido no artigo 7º, do RGIT, e de se ter provado que o arguido pessoa singular agiu em nome e no interesse da mesma.

Cumpre, destarte, negar provimento ao recurso quanto a estas questões.


Dispensa de pena/atenuação especial da pena

Pretende a arguida/recorrente que lhe seja concedida dispensa de pena, também pelos fundamentos pelo arguido/recorrente adiantados.

Já ficaram explicitados os pressupostos da dispensa de pena consagrados no artigo 22º, do RGIT, nas duas versões a ter em conta.

Ora, como resulta de qualquer delas, não se prevê expressamente a sua aplicação a crimes puníveis (em abstracto, como se disse) com pena de multa, apenas aos com pena de prisão, de onde se pode concluir que não pretendeu o legislador que a dispensa de pena abrangesse aqueles crimes.

Mas, mesmo que assim não fosse e que se perfilhasse o entendimento expresso no Ac. R. do Porto de 04/02/2009, Proc. nº 0643542, consultável em www.dgsi.pt., de que a solução “é entender [e estender] a referência que é feita no art.º 22º n.º 1 do RGIT, a pena de prisão igual ou inferior a três anos, ao respectivo tipo legal, e daí retirar que a intenção do legislador foi definir os tipos legais a que pretendia aplicar a dispensa, abrangendo quer as pessoas singulares, que são punidas nessa moldura, quer as pessoas colectivas que são aí punidas na moldura equivalente de multa”, sempre estaria arredada a possibilidade da sua aplicação, pois a moldura penal máxima para as pessoas singulares no crime de abuso de confiança fiscal agravado – a que, nesta tese, equivale a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas – é de 5 anos de prisão.

Face ao que, por ausência do aludido pressuposto, afastada também estaria a admissibilidade da dispensa de pena no caso em apreço.

Quanto à atenuação especial da pena, aplica-se à recorrente o que ficou afirmado quando da apreciação desta questão suscitada pelo arguido/recorrente, mostrando-se inadmissível a sua aplicação in casu.



III – DISPOSITIVO


Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em:

A) Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pelos arguidos “CRH – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.” e A e confirmar a decisão recorrida;

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC para cada um deles;


B) Negar provimento ao recurso interposto da sentença pela arguida “CRH – Consultoria e Valorização de Recursos Humanos, S.A.” e confirmar a decisão recorrida;

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.


C) Negar provimento ao recurso interposto da sentença pelo arguido A e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.


Lisboa, 15 de Março de 2016.

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)


(Artur Vargues)

(Jorge Gonçalves)