Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL FONSECA | ||
Descritores: | PROPRIEDADE INDUSTRIAL REGISTO MARCAS DIREITOS DE AUTOR TÍTULO NOBILIÁRQUICO INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/28/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Estando em causa aferir se a decisão do INPI que concedeu ao réu o direito de propriedade industrial, permitindo o registo de uma marca, violou direitos do autor, essa aferição deve ser feita tendo em conta o regime jurídico vigente à data de apresentação do pedido de registo, que era o mesmo que vigorava na data em que foi proferida a decisão contra a qual se insurge o autor, por via desta acção anulatória (no caso o regime jurídico do CPI na versão introduzida pelo Dec. lei 36/2003 de 5 de Março); 2. Os títulos nobiliárquicos foram extintos pelo Decreto de 18 de Outubro de 1910. Sem prejuízo, encontramos diversas disposições que reconhecem o uso de títulos nobiliárquicos, em determinadas circunstâncias, não podendo deixar de se atribuir alguma relevância jurídica no contexto do direito de afirmação e de defesa do nome, direitos tutelados pelo ordenamento jurídico (arts. 72º e 73º do Cód. Civil), entendendo-se que, por via de interpretação extensiva do artigo 72º do Cód. Civil, o titular legítimo tem o direito a usar o próprio título nobiliárquico e o direito a opor-se a que outrem o use ilicitamente. 3. Padece de inconstitucionalidade orgânica a alteração que o Dec. Lei 324/2007 de 28/09 introduziu ao art. 40º Código do Registo Civil. (Sumário da Relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa 1. RELATÓRIO SJ propõe contra o Município de O a presente acção declarativa de condenação, que segue a forma de processo ordinário, pedindo: a) Que se declare “a anulação do registo n.º … da marca “CO”; b) Que se condene o réu “a abster-se de usar a marca CO em qualquer produto”; c) A condenação do réu a “proceder à recolha de todas as garrafas de vinho com a marca CO”, d) A condenação do réu a pagar ao autor “nos termos do art. 829º-A do CC, a quantia de €100,00 euros por cada dia, contado do trânsito em julgado da sentença, em que não pratique ou se abstenha de não praticar, os actos mencionados nas anteriores b) e c)”. Para fundamentar a sua pretensão invoca, em síntese, que é o o actual CO, não tendo dado autorização para o réu ser titular de marca composta por esse título nobiliárquico. O réu apresentou contestação, excepcionando a ilegitimidade do autor e invocando que não são tutelados os direitos a qualquer espécie de título, não sendo aplicável o disposto no art. 34º do CPI. O autor apresentou réplica. Proferiu-se decisão, que concluiu nos seguintes termos: “Em face de tudo quanto ficou exposto, julgo improcedente a presente acção e, em consequência, absolvo o réu do peticionado. Custas pelo autor, devendo atender-se ao valor da acção supra fixado — cf. artigos 446.º, n.os 1 e 2, 305.º, 306.º, n.os 1 e 2, 308.º, n.º 1, 312.º e 315.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil. Registe e notifique. Após trânsito em julgado, comunique ao INPI nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 3, do CPI”. Não se conformando, o autor apelou formulando as seguintes conclusões: “1. A apresentação pelo R. do registo da marca nº … foi efectuado em 1 de Março de 2005; 2. Na altura encontrava-se em vigor o Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Dec. Lei nº 36/2003 de 5 de Março de 2003; 3. A apreciação da validade do registo efectuado pelo INPI deve ser efectuada à luz das disposições legais que estavam em vigor na altura, o Dec. Lei nº 36/2003 de 5 de Março, e não do Dec. Lei nº 143/2008 de 25 de Julho; 4. De acordo com o nº 2 do art. 234º do Dec. Lei nº 36/2003 de 5 de Março, o R. deveria ter comprovado o seu direito ao uso do título “CO” para efectuar o pedido de registo nº …; 5. O R. apenas tinha autorização do A. para o nome de CO a uma série limitada de 500 garrafas de Vinho de C…, destinada a comemorar os 250 anos da subida de O… a concelho; 6. Nos termos do nº 1 do art. 239º do CPI, constitui fundamento de recusa do registo de marca o emprego de nomes sem que tenha sido obtida autorização das pessoas a que respeitem; 7. Não tendo o R., ora recorrido, demonstrado o direito ao uso do título “CO”, deveria o INPI ter recusado o registo da marca nº …; 8. A douta sentença recorrida violou o disposto nos arts. 234º e 239º do Dec. Lei nº 36/2003 de 5 de Março e arts. 34º e 266º do Dec. Lei nº 143/2008; 9. Termos em que deverá ser considerado procedente o presente recurso e revogada a douta sentença recorrida”. O réu apresentou contra-alegações. II. FUNDAMENTOS DE FACTO A primeira instância deu por assente os seguintes factos: 1. O autor é o 13.º CO. 2. O réu é titular do registo da marca nacional n.º … “C… D.O.C CO” (mista), tendo a seguinte configuração: (…) 3. Encontra-se associada a produtos da classe 33 da classificação internacional de Nice: «bebidas alcoólicas (com excepção de cervejas)». 4. Obteve tal registo por pedido apresentado a 01 de Março de 2005, tendo o despacho que concedeu o registo sido publicado no BPI em Abril de 2006. 5. O autor somente autorizou o réu a dar o nome de CO a uma série limitada de 500 garrafas de Vinho de C… destinada a comemorar os 250 anos da subida de O… a concelho. 6. Por carta datada de 18 de Abril de 2012, o autor intima o réu a abster-se de proceder à comercialização de qualquer produto sob a marca “CO”, bem como a proceder ao cancelamento do registo da referida marca. 7. O réu participa em diversos concursos nacionais e internacionais com a marca “CO”, tendo, recentemente, em Maio de 2012, recebido um prémio internacional num concurso realizado em Itália. III. FUNDAMENTOS DE DIREITO 1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo C.P.C. [ [1] ] – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma. No caso, impõe-se apreciar: - da lei aplicável ao caso: o Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Dec. Lei 36/2003 de 5 de Março versus a versão resultante do Dec. Lei 143/2008 de 25/07; - dos fundamentos de invalidade (nulidade/anulação) do registo de marca; - da protecção do título nobiliárquico; - da constitucionalidade das alterações introduzidas pelo Dec. Lei Dec. Lei 324/2007 de 28/09 ao art. 40º Código do Registo Civil. 2. A primeira questão a resolver prende-se com a delimitação do regime legal aplicável. A primeira instância convocou para a resolução do litígio o Cód. da Propriedade Industrial (doravante CPI) com a redacção introduzida pelo Dec. Lei 143/2008 de 25/07. O apelante insurge-se pugnando pela aplicabilidade do CPI com a redacção introduzida por diploma anterior, mais precisamente o Dec. lei 36/2003 de 5 de Março. A questão assume relevância atenta a alteração verificada, nomeadamente, no art. 239º do CPI e ponderando a estrutura argumentativa plasmada na decisão. Assim, nos termos do art. 239º do CPI, na redacção do Dec. Lei 36/2003, impunha-se a recusa do registo de marcas que contenham, em todos ou alguns dos seus elementos, “[b]rasões ou insígnias heráldicas, medalhas, condecorações, apelidos, títulos e distinções honoríficas a que o requerente não tenha direito ou, quando o tenha, se daí resultar o desrespeito e o desprestígio de semelhante sinal” – alínea c). Essa referência foi inteiramente abolida aquando da alteração introduzida pelo Dec. Lei 43/2008, deixando de se fazer qualquer alusão a esse fundamento de recursa de registo de marca [ [2] ]. Ou seja, suprimiu-se a previsão que anteriormente constava da alínea c), inexistindo agora qualquer menção expressa aos títulos e distinções honoríficas, sendo inequívoco que aqui se incluem os títulos nobiliárquicos [ [3] ]. Volvendo à questão assinalada temos que, no caso, o pedido de registo de marca foi apresentado a 01 de Março de 2005, tendo o despacho que concedeu o registo sido publicado no Banco P em Abril de 2006, ou seja, necessariamente, tudo no âmbito do CPI na redacção anterior ao citado diploma (Dec. Lei 143/2008), não podendo o INPI ater-se a outro regime jurídico senão àquele que resultava do C.P.I. em vigor à data, ou seja, o código publicado em anexo ao Dec. Lei 36/2003 de 5 de Março e que entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2003. Não se olvidando que o despacho de concessão do registo de marca é aqui atacado por via de acção anulatória – e não por recurso judicial incidindo sobre aquele despacho –, o que significa uma maior amplitude de análise [ [4] ], entendemos que o novo código não pode aplicar-se a uma situação constituída e consolidada à luz do direito anterior – art. 12º do Cód. Civil [ [5] ]. É aliás isso que decorre, a contrario, do Dec. Lei 143/2008, aí se encontrando, em sede de disposições finais e transitórias, norma específica alusiva à “[a]plicação no tempo”. Assim, estabelece o art. 4º do referido diploma: 1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, as alterações ao Código da Propriedade Industrial introduzidas pelo presente decreto-lei aplicam-se: a) Aos pedidos de patente, de modelo de utilidade e de registo de direitos de propriedade industrial que tenham sido apresentados antes da entrada em vigor do presente decreto -lei e que não tenham sido ainda objecto de despacho; b) Aos requerimentos que tenham sido apresentados antes da entrada em vigor do presente decreto -lei e que não tenham sido ainda objecto de despacho; c) Às patentes, aos modelos de utilidade e aos registos existentes à data da entrada em vigor do presente decreto- -lei. 2 - Às reclamações e documentos análogos apresentados fora de prazo antes da entrada em vigor do presente decreto -lei e que não tenham sido ainda objecto de despacho aplicam -se as disposições anteriormente vigentes sobre esta matéria. Em suma, estando em causa aferir se a decisão do INPI que concedeu ao réu o direito de propriedade industrial, permitindo o registo de uma marca, violou direitos do autor, essa aferição deve ser feita tendo em conta o regime jurídico vigente à data de apresentação do pedido de registo, que era o mesmo que vigorava na data em que foi proferida a decisão contra a qual se insurge o autor, por via desta acção anulatória. Assentamos, pois, na aplicação ao caso do regime jurídico do CPI na versão introduzida pelo Dec. lei 36/2003 de 5 de Março – sem prejuízo de breves incursões, a título comparativo, pelo Dec. Lei 143/2008 de 25 de Julho –, pelo que nos afastamos da solução que a este propósito foi propugnada na decisão recorrida, dando-se razão ao apelante [ [6] ]. 3. Quanto aos fundamentos de invalidade do registo de marca, dispõem os arts. 33º (nulidade) e 34º (anulabilidade) do C.P.I. relevando ainda, para além dessas causas gerais, o disposto nos arts. 265 e 266º, preceitos inseridos na secção V, reportada à “[e]xtinção do registo de marca ou de direitos dele derivados” O autor invoca a violação dos arts. 234º, nº2, alínea d) e 239º, alínea c) do C.P.I. alegando que o réu não comprovou o seu direito ao uso do título “CO”, porque não tem qualquer direito relativamente a esse nome, que pertence ao autor – cfr. os arts. 11º, 12º e 14º da petição inicial. Não está em causa nos autos, portanto, a protecção de qualquer marca [ [7] ] pertencente ao autor, como se referiu na decisão recorrida, a propósito da legitimidade do autor para a instauração da acção; está também assente que o autor é o 13º CO [ [8] ], sendo o réu titular de registo de marca de vinho que inclui essa designação – “CO” – e que ora esta em causa. Assim sendo, o vício apontado reconduzir-se-ia à nulidade do registo da marca, estando a causa de invalidade directamente conexionada com os fundamentos da recusa do registo – arts. 239º, alínea c) e 265º, nº1, alínea b) [ [9] ] – e não com a anulação. Como refere Carvalho Fernandes, “[t] rata-se, como é manifesto, de uma solução correcta, pois, em tais circunstâncias, tendo sido feito um registo que devia ter sido recusado, seria desrazoável não o considerar nulo” [ [10] ]. Nada obstando ao reconhecimento judicial da existência de uma nulidade – com a consequente declaração de nulidade – porquanto se trata de matéria de direito, não estando o tribunal vinculado à interpretação jurídica proposta pelo demandante, que labora em erro na qualificação jurídica do efeito pretendido – art. 5º, nº3 do CPC. 4. A questão que verdadeiramente se coloca nos autos consiste em saber, como se indicou na decisão recorrida, se pode uma marca que use título nobiliárquico ser registada sem autorização do respectivo titular do direito. O que nos remete para questão logicamente anterior, que é a de saber se os títulos nobiliárquicos gozam de protecção (e em que medida) no direito português. Os títulos nobiliárquicos foram extintos pelo Decreto de 18 de Outubro de 1910 [[11]]. Sem prejuízo, encontramos diversas disposições que reconhecem o uso de títulos nobiliárquicos, em determinadas circunstâncias, não podendo deixar de se atribuir alguma relevância jurídica no contexto do direito de afirmação e de defesa do nome, direitos tutelados pelo ordenamento jurídico (arts. 72º e 73º do Cód. Civil), partilhando-se a orientação de Meneses Cordeiro que preconiza, por via de interpretação extensiva do artigo 72º do Cód. Civil, que o titular legítimo tenha o direito a usar o próprio título nobiliárquico e o direito a opor-se a que outrem o use ilicitamente [ [12] ]. Afigura-se-nos, aliás, incompreensível que a tutela dispensada ao nome não possa abranger, em certa medida, o título nobiliárquico, num ordenamento jurídico que confere protecção ao pseudónimo, nos moldes previstos no art. 74º do Cód. Civil [ [13] ] [ [14] ]. Acentuando-se que o conteúdo do direito ao nome [a]brange igualmente a faculdade de defender o uso exclusivo do nome contra uma “usurpação” por parte de terceiro [ [15] ]. A par desse elemento identificador afigura-se-nos igualmente que o título nobiliárquico exerce uma função honorífica [ [16] ] e, nessa medida, não pode deixar de considerar-se que partilha também das características e natureza dos títulos honoríficos [ [17] ] [ [18] ]. Acrescente-se que não equacionamos a violação do princípio da igualdade (art. 13º da CRP) porquanto, como refere Meneses Cordeiro o cidadão possuidor de título honorífico “tem, perante o sistema jurídico vigente, precisamente os mesmos direitos e os mesmos deveres de qualquer cidadão que o não seja” [ [19] ] [ [20] ]. Tudo apontando, em nosso entender de forma inequívoca, pela sua inclusão, na alínea c) do citado preceito (art. 239º do CPI, na redacção do Dec. Lei 36/2003). 5. E, assim sendo, não tendo o réu, Município de O, autorização do autor para a utilização desse título, como comprovadamente assumiu no processo, defendendo que tal não era exigível – de forma que temos por contraditória com atitude assumida anteriormente porquanto, com referência a uma série limitada de 500 garrafas de Vinho de C…, pediu e obteve a anuência do autor (cfr. o número 5 dos factos assentes), sabendo-se que o pedido e autorização se reportam a Agosto de 2009, conforme documento junto a fls. 15 dos autos, não impugnado (doc. nº 4 junto com a petição inicial) – concluímos que se impunha a recusa do requerido registo de marca, que enferma de vício gerador de nulidade. 6. O Meritíssimo Juiz aduz ainda outro argumento coadjuvante. Pode ler-se na decisão recorrida: “Esta alteração vai ao encontro da eliminação na tutela no nosso Direito dos títulos nobiliárquicos levado a cabo pela revogação dos números 2 a 4 do artigo 40.° do Código do Registo Civil que previam: «2. São permitidas referências honoríficas ou nobiliárquicas, antecedidas do nome civil dos intervenientes nos actos de registo, desde que estes provem, por documento bastante, que deve ficar arquivado, o direito ao seu uso. 3. A referência a títulos nobiliárquicos portugueses só é permitida quando os interessados provem que têm direito à posse e uso de título existente antes de 5 de Outubro de 1910 e que as taxas devidas foram pagas. 4. São documento suficiente para prova das circunstâncias previstas no número anterior as certidões extraídas de documentos ou registos das Secretarias de Estado, do antigo Ministério do Reino, do Arquivo Nacional, de outros arquivos ou cartórios públicos ou a portaria a que se refere o Decreto n.° 10 537, de 12 de Fevereiro de 1925». Defender que pode constituir motivo de recusa ou de anulação do registo de uma marca a mesma conter título nobiliárquico significaria reconhecer o direito de poder haver ingerência na vida económica com fundamento nesse título quando a lei não reconhece ao titular desse título o direito de o usar. Donde, não pode o titular do título ser identificado ou confundir-se com o respectivo título nobiliárquico, não se podendo, por conseguinte, apoderar do mesmo. Concorde-se ou não foi esta a opção do legislador”. Entendemos, como Meneses Cordeiro [ [21] ], que padece de inconstitucionalidade orgânica a alteração que o Dec. Lei 324/2007 de 28/09 introduziu ao Código do Registo Civil, no que a esta matéria concerne [ [22] ]. Em primeiro lugar não se encontra, no preâmbulo do diploma, qualquer referência específica a esta matéria pelo que não se pode aí perscrutar a intenção do legislador. Depois, a propósito dos títulos nobiliárquicos [[23]] colocando-se o acento tónico no valor identidade pessoal (direito ao nome) ou no valor honra (no sentido de “bom nome”, a que se reporta o art. 26º da CPR) [ [24] ], não temos dúvidas em afirmar que nos situamos no campo dos direitos da personalidade pelo que o Governo só podia legislar sobre essa matéria com autorização da Assembleia da República, o que não aconteceu. Donde, nos termos dos arts. 165º, nº1 alínea b) e 277º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, conclui-se pela inconstitucionalidade orgânica da referida alteração legislativa. A recusa de aplicação dessa norma – art. 40º, na redacção do Dec. Lei 324/2007 de 28/09 – leva a que tenha de atender-se ao primitivo diploma, pelo que não temos por válido o raciocínio jurídico exposto na decisão recorrida. 7. Impõe-se, pois, a revogação da decisão, em ordem a declarar-se a invalidade do registo da marca em causa, com a consequente condenação do réu Município de O a abster-se de usar essa marca. Estamos perante uma prestação de facto negativo, justificando-se a fixação de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do art. 829º-A, nº1, do Cód. Civil, fixando-se a mesma com referência ao dia e relativamente a infracções cometidas. Nesse contexto, afigura-se-nos equilibrado o montante pecuniário indicado pelo autor, tendo em conta a capacidade financeira do réu, embora em termos não inteiramente coincidentes com os que o autor pretende. Efectivamente, não se trata aqui de condenar directamente o réu a pagar qualquer quantia ao autor, mas fixar um valor que, nos termos do nº 3 do referido preceito, se destina, em partes iguais, ao credor e ao Estado. Quanto ao pedido de condenação do réu a proceder à recolha de todas as garrafas de vinho com a marca CO, trata-se de pretensão que não tem viabilidade. Efectivamente, quanto às garrafas de vinho que o réu ainda possua, está o mesmo impedido de as comercializar ou, por qualquer forma, usar e fruir, por via da condenação (de abstenção) supra aludida. Quanto às demais garrafas já comercializadas, não é viável a condenação do réu na sua recolha, que afectaria direitos de terceiros não demandados. * Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogando a sentença recorrida, decide-se: a) Declarar nulo o registo n.º ... da marca “CO”; b) Condenar o réu a abster-se de usar a marca CO em qualquer produto; c) Fixar a sanção pecuniária compulsória de 100,00€ diários, nos termos supra indicados. Custas, quer em primeira instância quer nesta Relação por ambas as partes, na proporção de 1/10 para o autor e 9/10 para o réu percentagem que, pese embora a dificuldade de aferição dos interesses em jogo, se nos afigura equilibrada ponderando o grau de decaimento do autor, que temos por pouco significativo. Notifique e oportunamente, após trânsito em julgado, proceder-se-á à comunicação ao INPI. Lisboa, 28 de Janeiro de 2014 Isabel Fonseca Maria Adelaide Domingos Eurico José Marques dos Reis ---------------------------------------------------------------------------------------- [1] Aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06, em vigor desde 1 de Setembro de 2013. [2] O preceito passou a ter a seguinte redacção: Artigo 239.º Outros fundamentos de recusa 1 - Constitui ainda fundamento de recusa do registo de marca: a) A reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor ou que compreenda o risco de associação com a marca registada; b) A reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de logótipo anteriormente registado por outrem para distinguir uma entidade cuja actividade seja idêntica ou afim aos produtos ou serviços a que a marca se destina, se for susceptível de induzir o consumidor em erro ou confusão; c) A infracção de outros direitos de propriedade industrial; d) O emprego de nomes, retratos ou quaisquer expressões ou figurações, sem que tenha sido obtida autorização das pessoas a que respeitem e, sendo já falecidos, dos seus herdeiros ou parentes até ao 4.º grau ou, ainda que obtida, se produzir o desrespeito ou desprestígio daquelas pessoas; e) O reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal ou de que esta é possível independentemente da sua intenção. 2 - Quando invocado em reclamação, constitui também fundamento de recusa: a) A reprodução ou imitação de firma, de denominação social e de outros sinais distintivos, ou apenas parte característica dos mesmos, que não pertençam ao requerente, ou que o mesmo não esteja autorizado a usar, se for susceptível de induzir o consumidor em erro ou confusão; b) A infracção de direitos de autor; c) O emprego de referências a determinada propriedade rústica ou urbana que não pertença ao requerente; d) A infracção do disposto no artigo 226.º 3 - No caso previsto na alínea d) do número anterior, em vez da recusa do registo pode ser concedida a sua transmissão, total ou parcial, a favor do titular, se este a tiver pedido. [3] “Se nos parece correcta a firmação de harmonia com a qual os títulos nobiliárquicos pertencem a uma zona de não- direito, não deve, todavia, negar-se que existem direitos subjectivos cujo exercício se funda na titularidade do direito ao uso desses títulos ou referências nobiliárquicas: pense-se no direito de oposição desses titulares relativamente a pedidos de concessão de marcas que contenham, em todos ou em alguns dos seus elementos, insígnias heráldicas, títulos e distinções honoríficas a que o requerente da marca não tenha direito (art. 189º/1, alínea c), do Código da Propriedade Industrial)” (Remédio Marques, Revista Lusíada, Alteração de Nome- Referências Nobiliárquicas, nºs 1 e 2, 2001, Coimbra Editora, 2001, pp. 157-158). [4] Aludindo aos vários tipos processuais previstos no CPI e confrontando o recurso do despacho de concessão de registo e a acção anulatória, refere António Maria Pereira (in ROA, Ano 14, Espécies processuais no Código da Propriedade Industrial, p. 37):”Agora já a missão do tribunal chamado a resolver o pleito é outra, inteiramente diferente da de há pouco. Já não se terá que entrar em consideração apenas com os elementos fornecidos pelo processo administrativo até ao despacho de concessão ou denegação. Aqui, em acção anulatória, há já um amplo e ilimitado campo de acção para apreciação do litígio: todas as circunstâncias contemporâneas ou supervenientes à data do despacho, alegadas ou não no processo administrativo podem e devem ser consideradas pelo tribunal, desde que as partes as tragam ao processo”. [5] Neste sentido, cfr. o acórdão do STJ de 12/09/2006, processo nº 06A1671 (Relator: Paulo Sá), acessível in www.dgsi.pt. Aí se considerou que “[t]endo o pedido de registo dos modelos sido formulado pela Ré em 31-10-1996, e concedido em 29-01-1999, não se aplica ao caso o Código da Propriedade Industrial de 2003, aprovado pelo DL n.º 36/2003, de 05-03, mas antes o CPI de 1995, aprovado pelo DL n.º 16/95, de 24-01, como decorre a contrario do art. 2.º daquele primeiro diploma legal, do art. 10.º do mesmo, e ainda do art. 12.º, n.ºs 1 e 2, do CC.” [6] Salienta-se que na petição inicial o autor deambulou inexplicavelmente entre as duas versões do código, não se alcançando o fio condutor do raciocínio e dando azo a incoerência de articulação entre a identificação do vício e o respectivo regime de invalidade, como se verá infra. [7] Genericamente, enquanto sinal que identifica no mercado os produtos ou serviços de uma empresa, distinguindo-os dos de outra empresa. Sobre a noção de marca cfr. Luís Couto Gonçalves, Função Distintiva da Marca, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 25-34. [8] O réu não questiona que o título “CO” foi atribuído por Carta de … a … nem a linha de descendência invocada nos arts. 3º a 7º da petição inicial. [9] Dispõe o art. 265.º, sob a epígrafe “[n]ulidade”: 1 - Para além do que se dispõe no artigo 33.º, o registo de marca é nulo quando, na sua concessão, tenha sido infringido o previsto: a) Nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 238.º; b) Nas alíneas a) a e) e i) a l) do artigo 239.º 2 - É aplicável às acções de nulidade, com as necessárias adaptações, [10] In ROA, 2003, Ano 63 - Vol. I / II , A nova disciplina das invalidades dos direitos industriais. [11] Diário do Governo, 18 de Outubro de 1910: “O Governo Provisório da República Portuguesa, em nome da República, faz saber que se decretou, para valor como lei, o seguinte: Artigo 1.º A Republica Portuguesa tem por abolidos e não reconhece qaesquer títulos nobiliarchicos, distincções honoríficas ou direitos de nobreza. Art. 2.º As antigas ordens nobiliarchicas são declaradas extinctas para todos os effeitos. Art. 3.º É mantida a Ordem Militar da Torre e Espada, cujo quadro será revisto para a radiação pura e simples de todos os seus dignitários que não houverem sido agraciados por actos de valor militar em defesa da pátria. Art. 4.º Os indivíduos que actualmente usam títulos que lhes fora, conferidos, e de que pagaram os respectivos direitos, podem continuar a usá-los, mas nos actos e contratos qie tenham de produzir direitos ou obrigações era necessário o emprego do nome civil para que tenham validade”. [12] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, p.293. [13] Meneses Cordeiro, obr.cit. pp.217-218. [14] Carvalho Fernandes engloba os títulos nobiliárquicos – para além do nome artístico e literário, do pseudónimo e das referências honoríficas – como elementos de individualização, “figuras afins do nome civil” (Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 2ª edição, Lex, Lisboa, 1995, pp. 156-159). [15] Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1983, p. 209. [16] A propósito dos títulos nobiliárquicos refere Adalberto Costa: “Um outro modo acessório de designação e de individualização de uma pessoa é o título nobiliárquico. Este título tem uma função, a honorífica mas, mesmo assim designa e individualiza a pessoa que o possui. O titulo nobiliárquico é composto por dois elementos essenciais, o primeiro que representa uma menção de qualidade honorífica: conde, barão, marquês, etc., o segundo que se encontra ligado a uma terra, cidade, lugar, nome, facto histórico ou notável” (ROA, 2012, Ano 72, nº4, Out/Dez., O Direito à Imagem) [17] Como se refere no Ac. STJ de 31/03/2009, processo nº 09B0523 (Relator: João Bernardo), acessível in www.dgsi.pt, incidindo sobre os vários diplomas alusivos às ordens honoríficas, dos mesmos resulta que “[n]a concessão das ordens honoríficas está presente, primacialmente, o valor imaterial da distinção conferida ao agraciado”. [18] Sobre os fundamentos da tutela (o direito à honra/ o direito ao nome/ a defesa do património cultural) e recenseando os diplomas legais que, ao longo do tempo, desde a proclamação da República, incidiram especificamente sobre os títulos honoríficos, cfr. Meneses Cordeiro ROA, 2009, Ano 69 vol. I/II, Titulos nobiliárquicos e registo civil: A inconstitucionalidade da reforma de 2007. [19] ROA, 2009, Ano 69, estudo cit. [20] Aponta-se, no entanto, o Acórdão de 22/12/2010, proferido pelo Tribunal de Justiça (Segunda Secção) no processo C-208/09, Ilonka Sayn-Wittgenstein / Landeshauptmann von Wien, acessível in www.curia.eu.int. em que, em sede de reenvio, o Tribunal de Justiça declarou: “O artigo 21.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que as autoridades de um Estado‑Membro possam, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, recusar reconhecer, em todos os seus elementos, o apelido de um nacional desse Estado, nos termos determinados num segundo Estado‑Membro, no qual o referido nacional reside, aquando da sua adopção na idade adulta por um nacional deste segundo Estado‑Membro, quando este apelido engloba um título nobiliárquico que não é admitido no primeiro Estado‑Membro por força do seu direito constitucional, desde que as medidas tomadas por estas autoridades neste contexto sejam justificadas por razões de ordem pública, isto é, sejam necessárias para a protecção dos interesses que visam garantir e proporcionadas ao objectivo legitimamente prosseguido”. Em momento anterior, em sede de fundamentos, o tribunal referiu como seque: “93. No caso em apreço, importa salientar que não se afigura desproporcionado que um Estado‑Membro pretenda realizar o objectivo de preservar o princípio da igualdade proibindo a aquisição, a posse ou a utilização, pelos seus nacionais, de títulos nobiliárquicos ou de elementos nobiliárquicos susceptíveis de fazer pensar que o portador do nome é titular dessa dignidade. Não se afigura que as autoridades austríacas competentes em matéria de estado civil, ao recusarem reconhecer os elementos nobiliárquicos de um nome como o da recorrente no processo principal, tenham ido além do que é necessário para assegurar a realização do objectivo constitucional fundamental que prosseguem. 94. Nestas condições, a recusa, por parte das autoridades de um Estado‑Membro, de reconhecer, em todos os seus elementos, o apelido de um nacional desse Estado, nos termos determinados num segundo Estado‑Membro, no qual o referido nacional reside, aquando da sua adopção na idade adulta por um nacional deste segundo Estado‑Membro, pelo facto de este apelido conter um título nobiliárquico que não é admitido no primeiro Estado‑Membro por força do seu direito constitucional, não pode ser considerada uma medida que prejudica de forma injustificada a livre circulação e a livre permanência dos cidadãos da União. 95.Por conseguinte, há que responder à questão submetida que o artigo 21.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que as autoridades de um Estado‑Membro possam, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, recusar reconhecer, em todos os seus elementos, o apelido de um nacional desse Estado, nos termos determinados num segundo Estado‑Membro, no qual o referido nacional reside, aquando da sua adopção na idade adulta por um nacional deste segundo Estado‑Membro, quando este apelido engloba um título nobiliárquico que não é admitido no primeiro Estado‑Membro por força do seu direito constitucional, desde que as medidas tomadas por estas autoridades neste contexto sejam justificadas por razões de ordem pública, isto é, sejam necessárias para a protecção dos interesses que visam garantir e proporcionadas ao objectivo legitimamente prosseguido” [21] ROA, 2009, Ano 69, estudo cit. [22] O art. 40º do Código do Registo Civil, tinha a seguinte redacção (anterior à reforma de 2007): “Identificação do declarante; referências honoríficas ou nobiliárquicas 1 - Os declarantes são identificados, no texto dos assentos em que intervierem, mediante a menção do seu nome completo e residência habitual. 2 - São permitidas referências honoríficas ou nobiliárquicas, antecedidas do nome civil dos intervenientes nos actos de registo, desde que estes provem, por documento bastante, que deve ficar arquivado, o direito ao seu uso. 3 - A referência a títulos nobiliárquicos portugueses só é permitida quando os interessados provem que têm direito à posse e uso de título existente antes de 5 de Outubro de 1910 e que as taxas devidas foram pagas. 4 - São documento suficiente para prova das circunstancias previstas no número anterior as certidões extraídas de documentos ou registos das Secretarias de Estado, do antigo Ministério do Reino, do Arquivo Nacional, de outros arquivos ou cartórios públicos ou a portaria a que se refere o Decreto n.º 10537, de 12 de Fevereiro de 1925. O Dec. Lei 324/2007, 28/9 revogou os números 2, 3 e 4 do preceito. [23] O conceito de título nobiliárquico não se confunde com o conceito de nobreza, nem de aristocracia. [24] Nos termos do art. 26º, nº1 da CRP, sob a epígrafe “[o]utros direitos pessoais”, “[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. |