Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
547/13.9TBRGR.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: CONCESSIONÁRIO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (do relator):

“Os tribunais administrativos são os competentes para conhecer de ação em que os AA. peticionem indemnização, em razão de invocada responsabilidade extracontratual da Ré, decorrente de omissão de dever a que estava obrigada na qualidade de concessionária de SCUT

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação

I – A. e B., intentaram ação declarativa, com processo comum, contra C., pedindo a condenação da Ré:

 - No pagamento ao primeiro A. da quantia global de € 4448,50, sendo €2.413,00 referente aos custos da reparação do veículo automóvel; €35,00 às despesas de deslocação; €2.000,00 aos danos não patrimoniais sofridos.

- No pagamento ao 2º autor da quantia global de € 2550,00 sendo a €1.050,00 pelo dano da privação do uso e €1.500,oo pela desvalorização do veículo automóvel.

Sendo todas as quantias acrescidas dos juros moratórios contabilizados desde a interpelação da Ré, até efetivo e integral pagamento.


Alegando, para tanto e em suma, que no dia 19 de Abril de 2013, pelas 16h26m, o 1.º Autor conduzia um veículo automóvel, propriedade do 2.º Autor, com a matrícula (…), na via concessionada (…).

Sendo então que, ao quilómetro 16, sem que nada o fizesse prever, veio a dita viatura a ser atingida por um canídeo que atravessou as faixas de rodagem, de uma berma para a outra, voltando a sair da via para as terras de pastagem contíguas.

Sem que exista ao quilómetro 16, qualquer entrada ou saída da sobredita via.

Nem qualquer acesso que permitisse a entrada do animal na faixa de rodagem.

Certo sendo que, dada a forma como o animal surgiu na via, não teve o 1º A. A possibilidade de evitar a colisão lateral com o animal, o que provocou o despiste e destruição parcial do veículo no embate com o rail de proteção lateral direito.

Em consequência do que sofreu o veículo danos cuja reparação montou a € 2.413,50, pagos pelo 1º A., que não dispondo de meios para o efeito se viu obrigado a contrair financiamento junto da Caixa económica Montepio Geral, no valor de € 3.952,24.

O 2º A. viu-se, na circunstância, impedido de utilizar a viatura por período de 35 dias, em que esta esteve impossibilitada de circular, despendendo com uma viatura de substituição, € 1.050,00.

Apesar de reparada, a viatura do 2º A. sofreu uma desvalorização em montante não inferior a € 1.500,00.

Para além disso o 1º A. sofreu danos morais, decorrentes da situação vivida, cujo ressarcimento computa em quantia nunca inferior a € 2.000,00.

Sendo que o facto insólito da entrada do animal na estrada concessionada à Ré aconteceu por culpa desta, uma vez que se verificou omissão do dever de vigilância da mesma.

Estando preenchidos os requisitos da responsabilidade da Ré por facto ilícito.

Contestou a Ré, arguindo a exceção de incompetência absoluta do tribunal, sustentando dever ser demandada perante os tribunais administrativos, e mais arguindo a sua própria ilegitimidade, deduzindo ainda impugnação.

Em audiência prévia foi proferido despacho que decidindo “pela competência material do Tribunal Administrativo para conhecer do pedido de indemnização por responsabilidade civil extra contratual da Ré (…) Sociedade Concessionária da Scut  S.A.”, julgou “procedente a exceção dilatória da incompetência absoluta invocada pela Ré”, absolvendo-a da instância.

Inconformados, recorreram os AA., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

“I) No saneador sentença em crise, entendeu o Tribunal a quo, declinar a apreciação da presente causa, por se considerar materialmente incompetente, deixando entender, na fundamentação produzida, que a referida causa deverá ser apreciada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal, achando, assim, verificada a exceção de incompetência material, absolvendo a Ré da instância, cfr. artigos 96.º al. a), 97.º n.º 1, 99.º n.º 1e 577.º al. a), todos do CPC.

II) Ora, com a devida vénia, entendem os Recorrentes que não andou bem este Tribunal.

III) Isto porque, a Ré é uma sociedade anónima, pessoa colectiva de direito privado, sujeita à jurisdição dos tribunais judiciais e não administrativos, não sendo aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado, nem se enquadrando a situação no disposto na alínea i) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

IV) E entende-o por convicção, ou não teria intentado a ação de responsabilidade civil extracontratual, no Tribunal em que o fez, isto é, no Tribunal do local da ocorrência – cfr. artigo 71.º, n.º 2 do CPC – também na esteira da Jurisprudência mais recente que entendem que são os Tribunais Judicias competentes, em razão da matéria, para julgarem as ações relativas à responsabilidade civil da concessionária de uma estrada decorrente de um acidente causado pelo aparecimento de animais na via: cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/07/2013, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/05/2013, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/09/2013 – todos disponíveis em www.dgsi.pt

V) Desta feita, só é competente a jurisdição administrativa para conhecer o litígio decorrente da eventual responsabilidade civil extracontratual de um sujeito privado, exclusivamente, quando lhe seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

VI) Ora, tendo por certo que a causa de pedir sub iudice se prende com a eventual responsabilidade extracontratual da actuação da Ré e que esta, claramente, é uma pessoa colectiva de direito privado, não integrando, em qualquer uma das suas dimensões a Administração Pública

VII) In casu, não está em causa o recurso ao regime da relação jurídica administrativa envolvida pelo referido contrato de concessão, a que são aplicáveis normas de direito administrativo substantivo, mas sim o da responsabilidade civil extracontratual derivada por danos causados a terceiros pelo incumprimento dos deveres da concessionária previstos no referido contrato de concessão.

VIII) Ora, ao invés do que a Ré alega, e o Tribunal a quo parece acompanhar num primeiro momento, não resulta do Decreto Legislativo Regional 44/2006/A de 02 de Novembro, que a responsabilidade civil extracontratual nos termos expostos seja regida por quaisquer normas de direito público.

IX) Ademais, o que resulta desse diploma, e que o Tribunal a quo olvida, é que, na sua posição de concessionária, responde, nos termos gerais, perante terceiros, por culpa ou risco, pelos prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão - cfr.: Base LXXI -, remetendo-nos, assim, para a lei geral, o dever de indemnizar fundado em responsabilidade civil, sendo da responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão.

X) Inexistindo, nessa medida, qualquer disposição legal que a sujeite, neste plano de responsabilidade civil extracontratual objecto da acção, ao regime da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.

XI) Ao invés, o que tal ínsito normativo nos permite aferir é que o Estado, através do sobredito contrato de concessão afasta de si, e da sua natureza pública, as relações da [Ré] com terceiros, reconduzindo a concessionária à sua natureza de pessoa colectiva de direito privado - cfr.: Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, relatado por Pires da Rosa, com o n.º de Proc. 015/06, 26.04.2006 - responsável, nos termos gerais da lei civil, perante terceiros.

XII) Aliás é a essa conclusão que o Tribunal a quo parece chegar num segundo momento, uma vez que refere que a Ré deve vir a ser julgada “no âmbito da responsabilidade civil extracontratual que vier a ser apurada, nessa qualidade irá responder nos termos do C. Civil”.

XIII) Posto isto, é latente a conclusão de que só é passível a atribuição da competência à jurisdição administrativa à luz do disposto na alínea i), do n.º 1, do art. 4.º do ETAF, quando a lei expressa e inequivocamente atribua ao ente privado a sua sujeição ao regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

XIV) Desta feita, sendo a Ré uma pessoa colectiva de direito privado, cuja natureza não é alterada por ser concessionária de um serviço público, e inexistindo qualquer norma especial que a submeta ao regime substantivo da responsabilidade civil extracontratual aplicável ao Estado ou a outras pessoas colectivas de direito público (atribuindo, nessa medida, competência aos tribunais administrativos), não estamos, por isso, perante as situações de competência jurisdicional dos tribunais da ordem administrativa a que se reporta a alínea i) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, sendo, então, competentes para conhecer o litígio em causa os tribunais da ordem judicial

Sem prescindir,

XV) Ainda que se entenda, o que não se concebe nem concede, que ao caso em apreço é aplicável o nº 5 do art. 1º do Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, tal não significa, só por isso, que o tribunal competente seja o administrativo.

XVI) “Os tribunais administrativos são incompetentes em razão da matéria para o conhecimento de uma acção de indemnização com vista a efectivação da responsabilidade civil extracontratual de uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, pessoa colectiva de direito privado, sendo competentes os tribunais judiciais (artigo 211º n° 1 da CRP, 18º da LOTJ e 66º do Cód. Proc. Civil)” – Ac. do STA de 13-11-2008, Processo 0423/08, in www.dgsi.pt.

XVII) Assim, a decisão aqui em crise deve ser revogada, substituindo-se por outra que declare que o Tribunal competente para apreciar e decidir a questão dos autos, é o tribunal comum, ou seja, o Tribunal Judicial da Ribeira Grande.

XVIII) Uma vez que tal decisão viola por errada interpretação e aplicação, o disposto na alínea i) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, o artigo 1.º n° 5 da Lei 67/2007, o artigo 18.º da LOFTJ e os artigos 64.º, 71.º n.º 2 do CPC, entre outros.”.

Não se mostram produzidas contra-alegações.

II – Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.

Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do Código de Processo Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal a de saber se assiste competência, em razão da matéria, aos tribunais judiciais, civis, para a presente ação.

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Com interesse emerge da dinâmica processual o que se deixou referido em sede de relatório.

Dando-se ainda por reproduzido o “contrato de concessão” entre a Região Autónoma dos Açores e a B. “Sociedade Concessionária da SCUT (…), S.A., relativo à Concessão Rodoviária em Regime SCUT na Ilha de (…), celebrado em (…), aos 15 de Dezembro de 2006, junto a folhas 86 a 142.

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Vejamos.

1. Como é sabido, a competência é a medida da jurisdição dos diversos tribunais.

E, como refere Manuel de Andrade,[1] citando Redenti, “A competência do tribunal… «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos da pretensão”.

Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, na linha de jurisprudência uniforme, decidido no seu Acórdão de 10-04-2008,[2] que “A competência em razão da matéria dos tribunais é determinada pela forma como o autor configura a ação na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir.”.

E, de modo particularmente expressivo, no seu Acórdão de 13 de Maio de 2004,[3] considerou ser “a petição inicial que nos dá a pedra de toque que permite decifrar a competência; tal o modo como o pedido nos aparece concretamente delineado, assim se fixa qual o tribunal competente para o conhecer.”.

Também o Tribunal de Conflitos assim tendo decidido no seu Acórdão de 23.9.2004.[4]

No mesmo sentido podendo ver-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-5-2009,[5] sublinhando contudo que o tribunal, apesar de atender apenas “aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada (causa de pedir e pedidos) não está vinculado às qualificações jurídicas do autor”.

2. Estabelece a Constituição da República Portuguesa, no seu art.º 211º, n.º 1, que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

Nesta linha dispondo o art.º 64º, do Código de Processo Civil que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

E definindo-se, no subsequente art.º 67º, que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.

Também no art.º 18º, n.º 1, da L.O.F.T.J. se dispondo que “1- São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”.

Tendo-se pois que os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual.

E, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais civis aqueles que possuem a competência residual,[6] cfr. art.ºs 34º e 57º da LOFTJ.

Por outro lado, dispõe o art.º 212º, n.º 3, da mesma Constituição que “Compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais”.

Desse modo estabelecendo, nas palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, “o critério de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa”.[7]

Referindo Mário Aroso de Almeida[8] que “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”.

Em anotação àquele inciso constitucional, escrevendo Gomes Canotilho e Vital Moreira[9] que “O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de actuação (acto, contrato e regulamento), complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à actividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado, Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do «novo direito administrativo», mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmática das formas de actuação administrativa.”.

 

Convergentemente dispõe-se, no art.º 1º, n.º 1, do ETAF – como dos autos se colhe, a ação deu entrada no dia 03 de Novembro de 2013, assim cobrando aplicação o atual ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2004, com as sucessivas alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2003, de 19-02; n.º 107-D/2003, de 31/12; n° 1/2008, de 14-01; n° 26/2008, de 27-06; n°52/2008, de 28-08; n.º 59/2008, de 11-09; pelo Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31/07; pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12; e n.º 20/2012, de 14 de Maio – que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”

Procedendo-se no art.º 4º do mesmo ETAF à enumeração, não taxativa, de litígios cuja apreciação, tendo em consideração o objeto daqueles, compete aos tribunais da jurisdição administrativa.

Na decisão recorrida, e como visto, apelou-se ao disposto na alínea i), do n.º 1, do referido art.º 4º.

Inciso de acordo com o qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham (nomeadamente) por objeto:

 “i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;”.

Como quer que seja – e se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-03-2008,[10] embora com enfoque sobre o n.º 1, al. g), do referido artigo 4.º – tais disposições terão sempre de ser interpretadas à luz do já citado artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

3. No caso em apreço temos que os AA. deduzem pedido de indemnização, alegando que circulando o 1º A. na via (…), no concelho de (…), via de que a Ré é concessionária, foi o veículo por si conduzido, propriedade do 2º A., atingido por um canídeo, que atravessou a faixa de rodagem, ocasionando um acidente que não pôde evitar, tudo porque a mesma R., não assegurou, como lhe cabia, de forma ininterrupta, as boas condições de segurança e comodidade na circulação dos utentes.

Em quadro normativo não includente da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, entendíamos que o conhecimento de situações idênticas à dos autos, cabiam na competência dos tribunais comuns.

Porém, com aquele diploma – vigente à data da propositura da presente ação – os dados da questão alteraram-se.

Com efeito, dispõe o art.º 1º, n.º 5 do Anexo à Lei n.º 67/2007, de 31/12, que “ As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Ora, como também se considerou, v.g., em Acórdão do Tribunal de Conflitos de 27-03-2014,[11] – no expresso seguimento, de resto, de jurisprudência daquele mesmo Tribunal ilustrada em Acórdãos de 20-01-2010[12] e de 30 de Maio de 2013 –[13] “face ao referido preceito do ETAF (art 4º, n.º 1, alínea i), o que temos de apurar é em que circunstâncias um sujeito privado assume a responsabilidade civil extracontratual própria do regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.”.

E “A resposta advém dos art.° 212.°, n.° 3, do CRP e 1° do ETAF, tendo por isso que se tratar duma situação em que o sujeito privado é responsável civilmente num litígio emergente de relações administrativas (ou fiscais) extracontratuais.”.

“Por outro lado (…) tal significa que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Por isso (…) resulta destas normas que a actividade desenvolvida pela concessionária reveste natureza pública sendo regulada por normas de direito administrativo, pois a construção de uma auto-estrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. E a concessão dessas obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade. E mesmo outorgando-a, por determinado período, a uma entidade privada, a quem permite o exercício duma actividade lucrativa, nomeadamente através das portagens que cobra, (estas também regulamentadas pelo Estado), continua a poder regular o exercício da concessão e a poder fiscalizá-la ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no respectivo contrato.

Por isso, as entidades privadas concessionárias são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), sendo a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo, desenvolvendo-se num quadro de índole pública”.

E, como igualmente se julgou no Acórdão do mesmo Tribunal de 27-02-2014,[14] “Uma Concessionária de uma autoestrada executa tarefas próprias do Estado, que este lhe endossou pela via dum contrato de concessão, como é o caso das funções relacionadas com o segurança do tráfego, onde se compreende nomeadamente o acionamento de sinalização de perigo ou de presença de obstáculos a alertar os condutores que circulem nessa autoestrada, tarefas essas de natureza essencialmente pública administrativa, susceptíveis de configurarem acções ou omissões que exprimem o exercício de prerrogativas de poder público e, como tais, enquadráveis no âmbito de aplicação do art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas).”. 

4. Na verdade, sendo a R. a concessionária da via SCUT onde ocorreu o acidente, é parte num contrato celebrado com o Estado, Região Autónoma (…) – a que se aplica o regime do Decreto Legislativo Regional n.º 44/2006/A, de 02 de Novembro – tendo a concessão por objeto “a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação e exploração, em regime de Portagem SCUT, dos Lanços e conjuntos viários associados identificados nos números seguintes”, cfr. Capítulo II – “Objecto, natureza e prazo da Concessão”, 5. Objecto, 5.1., do referido contrato, sendo nosso o sublinhado.

Nele se havendo consignado, no n.º 6.1., que “A concessão é de obra pública e é estabelecida em regime de exclusivo relativamente às Vias Concessionadas que integram o seu objecto.”.

Reiterando-se, no ponto 6.2, a natureza da concessão, com a imposição à Concessionária do dever de “desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade disponíveis em cada momento aplicáveis a um operador diligente e actuando de acordo com padrões de conduta e qualidade exigíveis ao tipo de actividade exercida pela Concessionária.” (o sublinhado, ainda e sempre, é nosso).

Natureza que se evidencia, v.g., na proibição de a Concessionária “recusar o fornecimento dos serviços concessionados a qualquer pessoa ou entidade, nem discriminar ou estabelecer diferenças ilegítimas de tratamento entre utentes.”, cfr. ponto 6.3.

Tudo, de resto, correspondendo à transcrição do disposto no Capítulo II – “Objecto, natureza e prazo da Concessão”, Base III “Natureza da Concessão”, n.ºs 1 a 3, do Anexo ao supra aludido Decreto Legislativo Regional n.º 44/2006/A.

Sem que se retire argumento definitivo, em sentido adverso ao entendimento de que assim se vem dando nota, do disposto no CAPÍTULO XII –“Responsabilidade extracontratual”, Base LXII - “Responsabilidade-extracontratual”, do mesmo Anexo.

É certo que se dispõe no n.º 1 daquela base – a que de resto corresponde o Capítulo XII (n.ºs 69, 69.1 e 69.2) do contrato de concessão – que “A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco”.

Ponto sendo, porém, que como se considerou no supracitado Acórdão do Tribunal de Conflitos de 30.05.2013 – no confronto da idêntica disposição da Base LXXIII do Decreto-Lei n° 248-A/99, de 6/7, alterado pelo Decreto-Lei n.° 44-E/2010, de 5/5 – «A referência na citada Base (…) acerca da responsabilidade extracontratual perante terceiros no sentido de que a concessionária responde nos termos da “lei geral”, além de não ser uma norma indicativa para efeitos de competência material, apenas pode significar, como diz o citado Acórdão de 30.05.2013, que “a responsabilidade pelos prejuízos resultantes de responsabilidade civil extracontratual não está regulada no contrato de concessão” e, daí a remissão “para as normas gerais que regulam tal matéria, sem tomar partido sobre a natureza administrativa ou comum”».

Acresce que nem a aplicabilidade, em matéria ressarcitória, de normas de direito civil deverá ser entendida como determinante nesta questão, e desde que é o próprio diploma matriz em matéria de responsabilidade civil, extracontratual do Estado e demais entidades públicas, a citada Lei n.º 67/2007, a dispor, no seu art.º 5.º - do corpo da Lei, que não do dito Anexo – que o direito à indemnização por tal responsabilidade, como o direito de regresso, “prescrevem nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo -lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição”.

Por último, assinalar-se-á encontrar a orientação assim perfilhada a concordância de Miguel Teixeira de Sousa, que, no BLOG do IPPC[15] – “Acidentes de viação e competência dos tribunais administrativos (3)” – escreveu, em 04/05/2014: “A mensagem do Cons. Urbano Dias é totalmente esclarecedora de qual é o regime legal: a concessionária da auto-estrada só pode ser demandada nos tribunais administrativos; a competência destes tribunais mantém-se quando, além da concessionária, seja demandado um particular; por isso, o lesado tem sempre o ónus de propor a acção nos tribunais administrativos, qualquer ou quaisquer que sejam os demandados. É esta a solução - no fundo, uma solução que representa uma extensão da competência material dos tribunais administrativos - que resulta do sistema e que aflora no disposto no art. 10.º, n.º 7, CPTA.” (Código de processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pelo art.º 1º da lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro).

Disposição legal, aquela, nos termos da qual "Podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares" (idem quanto ao sublinhado)

Nesse sentido, podendo ainda ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-02-2007.[16]

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Como assim, pretendendo os AA./recorrentes, ser ressarcidos com vista a receber uma indemnização, em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da Ré, decorrente de omissão de dever a que estava obrigada na qualidade de concessionária da SCUT respetiva, lícito é concluir que a sua eventual responsabilização se insere no âmbito de aplicação do art.° 1.°, n.º 5, da Lei 67/2007, de 31/12 e, logo, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer da causa, nos termos do art.° 4.° n.º 1 al. i) do ETAF.

Improcedendo as conclusões dos AA.

III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, e confirmam a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes.

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Lisboa, 2014-06-12

(Ezagüy Martins)

(Maria José Mouro)

(Maria Teresa Albuquerque)


[1] In "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra Editora, 1979, pág. 91.
[2] Proc. 08B845, Relator: SALVADOR DA COSTA, in www.dgsi.pt/jstj.nsf; no mesmo sentido, vejam-se ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13-03-2008, proc. 08A391, Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS; e de 31-10-2006, proc. 06A2917, Relator: NUNO CAMEIRA, no mesmo sítio.
[3] Proc. 04B875, Relator: NORONHA DO NASCIMENTO, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[4] Proc. 05/04, Relator: SANTOS BOTELHO, in www.dgsi.pt/con.nsf.
[5] Proc. 09S0232, Relator: SOUSA PEIXOTO, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[6] Cfr. neste sentido, Teixeira de Sousa, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, Lex, 1999, págs. 31-32.
[7] In “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pág. 147.
[8] In “Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2005, pág. 57.
[9] In “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Vol. II, 4ª Ed., revista, Coimbra Editora, 2010, pág. 567.
[10] Proc. 08A391, Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[11] Proc. 046/13, Relator: GONÇALVES ROCHA, in www.dgsi.pt/jcon.nsf.
[12] Proc. 025/09, Relator: GARCIA CALEJO, in www.dgsi.pt/jcon.nsf.
[13] Proc. 017/13, Relator: SANTOS CARVALHO, no mesmo sítio da internet.

[14] Proc. 048/13, Relator:  TAVARES DE PAIVA, in www.dgsi.pt/jcon.nsf. No mesmo sentido indo ainda, aparentemente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-01-2014, proc. 871/05.4TBMFRE.L1.S1, de que foi Relatora MARIA CLARA SOTTOMAYOR, aliás também subscritora, como adjunta, do Acórdão do Tribunal de Conflitos de 30-05-2013, citado supra, e a que se refere a nota de rodapé 13.
 
[15] In http://blogippc.blogspot.pt/
[16] Proc. 07B238, Relator: SALVADOR DA COSTA in www.dgsi.pt/jstj.nsf.