Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I- Relatório:
MF veio, em 11.7.2013, por apenso à acção declarativa de condenação sob a forma ordinária por si movida contra MG, S.A., e ao abrigo dos arts. 990 do Código de Processo Civil, e 154, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais, requerer incidente de prestação de caução contra a dita Ré e ainda contra CG e FR, liquidatários da referida sociedade. Invoca, para tanto e em síntese, que em virtude de ter sido aprovada a dissolução da Ré “MG, S.A.” e desta ter entrado em processo de liquidação, conforme consta do registo comercial, à mesma, através dos seus liquidatários, compete assegurar os direitos do A. credor que foram reclamados na acção principal, prestando a caução devida. Pede seja o valor da dita caução fixado em € 797.268,65, atento o pedido formulado na causa de atribuição pela Ré de uma pensão complementar de reforma vitalícia. Sustenta que tal pedido impõe a remição da pensão num valor de capital único, calculando-se este desde a data em que a pensão se tornou devida (Maio de 2010) e pelo tempo de vida previsível do A. (80 anos), logo até 31.12.2029, ainda, para efeito da determinação do montante da caução, com juros acrescidos sobre as prestações já vencidas.
Na acção principal pedira o A., enquanto ex-administrador da sociedade demandada, a declaração de que tem direito a receber desta uma pensão complementar de reforma que ascende ao montante mensal de € 3.358,25, sendo a Ré condenada a pagar-lhe as mensalidades vencidas e não pagas relativas a Maio e Junho de 2010 que somam € 6.716,50, com juros acrescidos até integral pagamento, e ainda condenada a pagar mensalmente ao A. o referido montante de € 3.358,25 actualizado de acordo com o que vier a ser deliberado em assembleia geral.
Na referida acção foi determinada a suspensão da instância, por acordão da Relação de Lisboa proferido em 15.12.2011, “até ao trânsito em julgado da decisão que aprecie a reconvenção deduzida pela Ré MG no processo nº …, que corre termos na 2ª secção da 14ª Vara Cível”.
A 1ª e os 2ºs requeridos vieram, em separado, deduzir oposição ao incidente de prestação de caução alegando, em síntese, que o A. não se encontra ainda reformado e que não tem, em qualquer caso, direito à pensão complementar de reforma que reclama na acção principal. Mais referem que apesar da dissolução e liquidação da sociedade, os credores da mesma não ficam desprotegidos pois a accionista única sucede na totalidade dos respectivos activo e passivo. Contestam, ainda, o valor da caução, não só porque o A. não se encontra ainda reformado junto da Segurança Social como pelo facto de com a extinção da sociedade cessar o direito dos ex-administradores à reforma, conforme previsto no art. 402, nº 3, do C.S.C.. Por conseguinte, sustentam, caso viesse a ser reconhecido ao A. o direito à pensão, a mesma só seria devida a partir da data da efectiva reforma e o período de referência para o cálculo do valor eventualmente devido nunca poderia ir para além de um ano, data que se estima venha a decorrer até ao encerramento da liquidação da sociedade. Nesses termos, nenhum valor será realmente devido, pois a extinção da sociedade ocorrerá ainda antes da data da reforma do requerente. Invocam, finalmente, que o valor é desproporcionado aos interesses que visa acautelar, não podendo paralisar a conclusão da liquidação. Pedem que a garantia, a ser prestada, o seja através de garantia bancária.
Em 16.12.2013, foi proferida nos autos decisão nos seguintes termos: “(...) Assinala-se desde já que a argumentação expendida pelos requeridos na oposição é, basicamente, a argumentação expendida na acção principal para pugnarem pela improcedência daquela.
Como se nos afigura óbvio não será nesta sede que irá discutir se a acção principal deverá proceder ou ser julgada improcedente; não é nesta sede que se irá discutir a validade/invalidade da deliberação social.
Nesta sede apenas se discute e constata o seguinte: o autor propôs contra a sociedade em liquidação acção com vista a que lhe sejam reconhecidos determinados direitos. A situação configurada pela pendência destes autos mostra-se enquadrável no disposto no nº 3 do art 154º do CSC.
Tanto basta para se ter o pedido de caução como justificado.
Quanto ao montante a caucionar, a quantia indicada pelo autor corresponde ao pedido formulado; ao litígio em causa.
Assim, e em conformidade com o que se deixa exposto, determina-se estar a requerida MG, SGPS, através dos 2º e 3º requeridos, obrigada a prestar caução a favor do autor.
Fixa-se em 797.268,65 euros o valor da caução a prestar por garantia bancária (como propuseram os requeridos).
Concede-se à requerida o prazo de 20 dias para prestar a caução. (...)”.
Inconformada, recorreu a requerida MG, S.A. desta decisão, apresentando as respectivas alegações que culmina com as conclusões a seguir transcritas:
(…)
Conclui, pedindo a revogação da decisão sob recurso, sendo indeferido o requerido. Pede, igualmente e em síntese, seja fixado efeito suspensivo ao recurso, nos termos do art. 647, nº 3, al. e), do C.P.C., sem necessidade de prestação de caução, ou, em qualquer caso, por razões de coerência do sistema e dos interesses em discussão. Requer ainda, caso assim não se entenda e atento o prejuízo considerável que lhe causa o cumprimento da decisão recorrida, seja fixado efeito suspensivo ao recurso oferecendo-se para prestar caução no valor de € 30.001,00, nos termos do art. 647, nº 4, do C.P.C..
Em contra-alegações, o requerente defende, no essencial, o acerto do julgado, invocando que ao recurso deve fixar-se o efeito devolutivo e que a recorrente não impugnou no incidente o valor da caução.
A fls. 210 a 212, foi o recurso admitido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. No aludido despacho justifica-se o efeito fixado, em súmula, por não se verificar a previsão do art. 647, nº 3, al. e), do C.P.C., e ainda pelo facto da recorrente não justificar nem comprovar o prejuízo considerável que lhe advém da execução da decisão recorrida. Mais se conclui pela inexistência das nulidades arguidas.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.
***
III- Fundamentos de Direito:
Cumpre apreciar do objecto do recurso.
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o seu âmbito. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Face às conclusões acima transcritas e considerando a questão preambular referente ao efeito do recurso, passamos a apreciar:
- do efeito do recurso;
- das nulidades da decisão (als. b) e d) do nº 1 do art. 615 do C.P.C. de 2013);
- do dever de prestar caução, nos termos do art. 154, nº 3, do C.S.C., e do valor desta.
A) Do efeito do recurso:
A apelante começa por defender que ao recurso por si interposto da decisão que lhe impôs a prestação de caução no montante de € 797.268,65 deve ser atribuído o efeito suspensivo. Invoca o art. 647, nº 3, al. e), do C.P.C., ou, em qualquer caso, a aplicação do referido regime por razões de coerência do sistema e dos interesses em discussão. Requer ainda, caso assim não se entenda e atento o prejuízo considerável que lhe causa o cumprimento da decisão recorrida, seja fixado efeito suspensivo ao recurso oferecendo-se para prestar caução no valor de € 30.001,00, ao abrigo do nº 4 do art. 647 do C.P.C..
O Tribunal a quo fixou ao recurso o efeito devolutivo, a fls. 210 a 212, considerando não ter o pretendido efeito suspensivo fundamento legal e a recorrente não ter justificado nem comprovado, além do mais, o prejuízo considerável que lhe advém da imediata execução da decisão recorrida.
Vejamos.
Tal como já sucedia no regime dos recursos aprovado pelo DL nº 303/07, de 24.8, o C.P.C. de 2013 prevê, no regime dos recursos ordinários, um só tipo de recurso em cada instância (regime monista), sendo na 2ª instância o de apelação.
De acordo com o art. 644 deste C.P.C., cabe recurso de apelação da decisão de 1ª instância que ponha termo à causa, a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente e do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos (nº 1) e, ainda, das decisões elencadas no nº 2 do mesmo dispositivo (que no Código de 1961, e antes da reforma de 2007, eram passíveis de recurso de agravo).
De acordo com o nº 3 do art. 644, as restantes decisões apenas poderão ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto daquelas outras previstas no nº 1 do artigo.
Assim, em regra as decisões interlocutórias do processo passam a ser somente impugnáveis com o recurso a interpor da decisão final (ou com as demais decisões referidas no nº 1 do art. 644), não transitando, por isso, em julgado. Caso não haja recurso dessa decisão final, podem ser impugnadas, em recurso único (a interpor após o trânsito em julgado da sentença), aquelas que mantenham interesse para o apelante (cfr. art. 644, nº 4, do C.P.C.).
O prazo geral para a interposição do recurso é de 30 dias contados da notificação da decisão (art. 638, nº 1, do C.P.C.) e o requerimento de interposição de recurso deve incluir a alegação do recorrente, nos termos do nº 2 do art. 637 do C.P.C.. O prazo do recurso será, todavia, reduzido para 15 dias nos processos urgentes, nas apelações previstas no nº 2 do art. 644 ou nas revistas referidas no art. 677 do C.P.C..
A apelante diz que o recurso deve ter efeito suspensivo nos termos do art. 647, nº 3, al. e), do C.P.C., visto que está em causa a previsão do disposto na al. e) do nº 2 do art. 644 do C.P.C., isto é, “decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual”.
Conforme se analisou em 1ª instância, é manifesta a sua falta de razão.
A decisão em apreço é claramente recorrível ao abrigo do nº 1 do art. 644 deste C.P.C., sendo, por isso, o prazo do recurso de 30 dias. Não está, assim, em causa nenhuma das situações previstas no nº 2 do referido normativo (caso em que o prazo do recurso seria apenas de 15 dias), isto é, não estamos perante qualquer decisão intercalar que, não pondo fim ao processo, seja imediatamente impugnável.
De todo o modo, sempre se dirá que a decisão que determina a prestação de caução e fixa o respectivo valor não condena em multa nem aplica sanção processual, pelo que, se outra razão não houvesse, jamais poderia compreender-se a decisão impugnada no âmbito da aludida al. e) do nº 2 do art. 644 do C.P.C..
De resto, a rebuscada tese da apelante justificadora da reclamada fixação do efeito suspensivo ao recurso seria sempre aplicável a quaisquer decisões que, apreciando do mérito da causa, condenassem no pagamento de quantias pecuniárias, quando é certo que, independentemente do montante em questão nesses casos, o efeito do recurso será sempre o devolutivo em conformidade com o nº 1 do art. 647 do C.P.C..
Requer ainda a apelante, subsidiariamente, que seja fixado efeito suspensivo ao recurso, atento o prejuízo considerável que lhe causa o cumprimento da decisão recorrida, oferecendo-se para prestar caução no valor de € 30.001,00, ao abrigo do art. 647, nº 4, do C.P.C.. Argumenta que o prejuízo considerável invocado é notório em face do montante da caução a prestar.
Dispõe o nº 4 do art. 647 do C.P.C. que quando a apelação tenha efeito devolutivo o recorrente, ao interpor o recurso, pode requerer que lhe seja fixado efeito suspensivo “quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efectiva prestação da caução no prazo fixado pelo tribunal”.
Com o devido respeito, e tal como avaliou o Tribunal a quo, afigura-se insuficiente justificar o prejuízo considerável emergente do cumprimento imediato da decisão recorrida apenas com o valor da caução arbitrada e com os eventuais encargos financeiros de uma garantia bancária (que foi a modalidade de caução escolhida pela sociedade Ré).
Parece evidente, face à formulação do aludido nº 4 do art. 647 do C.P.C., que o prejuízo considerável, tal como em geral nas sentenças que condenem no pagamento de quantias pecuniárias, não pode aferir-se apenas em função do montante fixado na decisão condenatória (estará fora de questão para o efeito, naturalmente, qualquer ponderação sobre o mérito da decisão) mas sobretudo nas especiais consequências que daí podem advir para o recorrente. Como nos explica Abrantes Geraldes, compete ao recorrente que pretenda o efeito suspensivo do recurso convencer o tribunal de que a execução imediata da sentença recorrida lhe causará prejuízo considerável “em termos semelhantes aos que se exigem para o decretamento de providências cautelares”, devendo o mesmo “alegar os factos cuja apreciação permita concluir pela verificação do específico periculum a que a lei se reporta”([1]).
Neste particular, no entanto, a apelante pouco adiantou, limitando-se a dizer que a imediata prestação da caução fixada na decisão recorrida lhe causa prejuízo considerável atento o valor respectivo. Tal alegação mais não traduz que a discordância quanto ao conteúdo da decisão, sendo através dela que a recorrente justifica, afinal, o risco do cumprimento imediato do decidido. Ou seja, a recorrente afirma que o imediato cumprimento da decisão lhe causa prejuízo considerável porque considera a mesma ilegal e o valor arbitrado injustificado.
Não fazendo, porém, sentido que a apelante justifique o prejuízo considerável com o próprio mérito da decisão, é evidente que este fica por demonstrar.
Nessa medida, não se mostra cabalmente verificada a previsão do nº 4 do art. 647 do C.P.C..
Em suma, e por tudo quanto se deixa dito, considera-se adequado o efeito devolutivo fixado à apelação.
B) Das nulidades da decisão (als. b) e d) do nº 1 do art. 615 do C.P.C. de 2013):
Defende a apelante que a decisão proferida é nula por não especificar os fundamentos de facto e de direito que a justificam e por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 615, nº 1, als. b) e d), do C.P.C..
Diz que o Tribunal devia ter ponderado sobre se o valor da caução era adequado e proporcional aos interesses que visa acautelar, se o complemento de reforma peticionado na acção era válido e suspender mesmo o apenso de caução até tal ser averiguado e decidido na causa principal, tanto mais que o incidente não é urgente. Além disso, refere, o Tribunal não se pronunciou sobre as várias questões suscitadas pela requerida nem justificou porque razão as mesmas não poderiam conduzir à improcedência do incidente.
O Tribunal recorrido sustenta que não se verificam as nulidades invocadas.
Vejamos.
As nulidades da decisão, previstas no art. 615 do C.P.C. de 2013 (Código a que doravante faremos referência, salvo menção em contrário), são – à semelhança do que sucedia com as antes previstas no art. 668 do C.P.C. de 1961 – deficiências da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal, resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito. Assim, haverá erro de julgamento, e não deficiência formal da decisão, se o tribunal decidiu num certo sentido, embora mal à luz do direito.
Por outro lado, as nulidades da sentença estão circunscritas aos casos previstos no nº 1 do art. 615 do C.P.C., pelo que não se verificando nenhuma das situações aí contempladas não haverá nulidade da decisão([2]).
A sentença será, por isso, nula apenas quando: “a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.” (art. 615, nº 1, do C.P.C.).
Vejamos.
No que se refere à ausência de fundamentação (al. b) do nº 1 do art. 615 do C.P.C.), temos que a razão de ser da sanção desta nulidade é a circunstância da motivação, quer de facto quer de direito, constituir pilar essencial da sentença ou, em geral, de uma qualquer decisão. Como explica J. Alberto dos Reis a tal propósito([3]): “Não basta, pois, que o juiz decida a questão posta; é indispensável que produza as razões em que se apoia o seu veredicto. A sentença, como peça jurídica, vale o que valerem os seus fundamentos.”
Também Antunes Varela([4]) refere que a falta de fundamentação, de facto ou de direito, que motiva a nulidade da sentença é a falta absoluta, sendo que “a concretização dos fundamentos de facto pode, em parte ou na totalidade, ser feita mediante simples referência à especificação ou às respostas do tribunal colectivo.”
Já no que respeita à omissão de pronúncia, a al. d) do nº 1 do art. 615 do C.P.C. deve conjugar-se com o actual nº 2 do art. 608 do mesmo Código, constituindo a nulidade da sentença a sanção para a inobservância deste último normativo. Assim, ao juiz cabe resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Nessa medida, se o mesmo deixar de pronunciar-se sobre questões que, nos moldes indicados, devia apreciar, a sentença é nula.
Tais questões são, em todo o caso, os problemas concretos a decidir e não os argumentos utilizados pelas partes na defesa das suas posições ou muito menos os factos que hão-de justificar a decisão. Como explica J. Alberto dos Reis a tal propósito([5]): “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Como também se refere no Ac. do STJ de 6.5.2004([6]), “A melhor resolução da questão a resolver deveria, porventura, levar à apreciação de várias questões jurídicas, como válidos argumentos e como fundamentos da decisão sobre tal questão. Se o juiz, porém, não apreciar todas essas questões jurídicas e não invocar todos os argumentos de direito, que cabiam na melhor ou mais desejável fundamentação da sua sentença ou acórdão, mas vier a proferir decisão, favorável ou desfavorável à parte, sobre a questão a resolver, haverá apenas fundamentação pobre ou, no máximo, falta de fundamentação, mas não omissão de pronúncia.”. E, mais adiante: “E se, eventualmente, o juiz, ao decidir das questões suscitadas, tem por assentes factos controvertidos ou vice-versa, qualifica juridicamente mal uma determinada questão, aplica uma lei inapropriada ou interpreta mal a lei que devia aplicar, haverá erro de julgamento, mas não nulidade por omissão de pronúncia.”
Recordamos, então, o que se discorreu na decisão ora em análise: “(...) a argumentação expendida pelos requeridos na oposição é, basicamente, a argumentação expendida na acção principal para pugnarem pela improcedência daquela.
Como se nos afigura óbvio não será nesta sede que irá discutir se a acção principal deverá proceder ou ser julgada improcedente; não é nesta sede que se irá discutir a validade/invalidade da deliberação social.
Nesta sede apenas se discute e constata o seguinte: o autor propôs contra a sociedade em liquidação acção com vista a que lhe sejam reconhecidos determinados direitos. A situação configurada pela pendência destes autos mostra-se enquadrável no disposto no nº 3 do art 154º do CSC.
Tanto basta para se ter o pedido de caução como justificado.
Quanto ao montante a caucionar, a quantia indicada pelo autor corresponde ao pedido formulado; ao litígio em causa. (...)”.
Por conseguinte, a decisão recorrida assentou em duas ideias-chave: a de que a prestação de caução era indiscutivelmente devida à luz do disposto no art. 154, nº 3, do C.P.C., sendo para o efeito apenas relevante o peticionado na acção principal mas já não o objecto do litígio; e a de que o montante a caucionar corresponde necessariamente ao pedido formulado na causa.
Nesta perspectiva o Tribunal a quo especificou os fundamentos de facto e de direito que teve por indispensáveis à decisão proferida e apenas deixou de conhecer as questões que, no seu entender, eram alheias e não deviam ser discutidas no incidente de prestação de caução. Por outras palavras, considerando o Tribunal recorrido que nenhum juízo cabia formular sobre a viabilidade do peticionado na causa, nenhum sentido faria dissecar as razões opostas pela requerida no incidente (porque coincidentes com as invocadas na acção), sendo suficiente e clara a argumentação expendida a tal propósito e, assim, a fundamentação do julgado.
Por conseguinte, parece-nos evidente que a decisão em análise não padece dos vícios formais que a apelante lhe assaca. O que sucede é que esta discorda do que foi sentenciado, mas tal reporta-se a um eventual erro de julgamento e não a qualquer deficiência formal da decisão respectiva.
Em suma, não se verificam as nulidades arguidas, improcedendo o recurso nesta parte.
C) Do dever de prestar caução, nos termos do art. 154, nº 3, do C.S.C., e do valor desta:
Defende a apelante que a prestação de caução prevista no art. 154, nº 3, do C.S.C., não ocorre de forma automática e impõe que seja efectuado um juízo prévio acerca da probabilidade da existência dos créditos a caucionar.
Diz ainda que entendendo-se que o invocado crédito do A. na acção é litigioso daí não pode retirar-se que esse direito corresponda ao valor da quantia peticionada em juízo. Defende que deveria ter-se averiguado qual o valor que o recorrido receberá da Segurança Social a título de reforma para aferir do cúmulo previsto no art. 402, nº 2, do C.S.C., e que cumpria considerar que a extinção da sociedade faz cessar o direito dos ex-administradores à reforma, nos termos do nº 3 do mesmo art. 402 do C.S.C., não podendo o valor da caução ser computado para além dessa data que deverá ocorrer num prazo de 3 anos a contar da dissolução (art. 150 do C.S.C.).
Refere, ainda, que se a ponderação de tais questões pressupõe a apreciação da causa principal, então deveria suspender-se o incidente de caução, que não é urgente, até a acção ser decidida, o que nunca prejudicaria o apelado face à responsabilidade pessoal dos liquidatários prevista no art. 158 do C.S.C., e tendo em vista que a accionista única da recorrente, a “…, SGPS, S.A.”, sucederá na totalidade dos seus activos e passivos.
O apelado, na resposta, defende o acerto da decisão recorrida.
Analisando.
A sociedade não se extingue quando se dissolve.
Como diz Pinto Furtado([7]), a dissolução é um facto extintivo de execução continuada, uma vez que, dissolvida a sociedade, esta entra em liquidação, mantendo a sua personalidade jurídica (art. 146, nºs 1 e 2, do C.S.C.). Em regra, os administradores da sociedade passam a liquidatários (art. 151, nº 1, do C.S.C.), competindo-lhes ultimar os negócios pendentes, cumprir as obrigações da sociedade, cobrar os créditos, reduzir a dinheiro o património residual e propor a partilha dos haveres sociais (art. 152, nº 3, do C.S.C.).
A liquidação consiste, afinal, no apuramento da situação patrimonial da sociedade dissolvida, o que pressupõe, “por um lado, a realização do activo patrimonial e, por outro lado, a satisfação do passivo e depois a determinação do destino do respectivo saldo líquido, positivo caso exista; sendo negativo nada haverá a fazer, contanto que os sócios tenham responsabilidade limitada.”([8])
A liquidação deve estar encerrada e a partilha aprovada no prazo de dois anos a contar da dissolução, prazo que só pode ser prorrogado por deliberação dos sócios e por período não superior a um ano, sob pena de ser promovida oficiosamente a liquidação por via administrativa (art. 150 do C.S.C., na redacção dada pelo DL nº 76-A/2006, de 29.3).
O relatório e as contas finais dos liquidatários são submetidos a deliberação da sociedade (art. 157 do C.S.C.), devendo os liquidatários requerer, depois de aprovada a deliberação, o registo do encerramento da liquidação com o que a sociedade se considera extinta, mesmo entre os sócios, sem prejuízo das acções pendentes e do activo e passivo supervenientes (arts. 160 e 162 a 164 do C.S.C.).
Por fim, antes de ultimada a liquidação, a sociedade pode ainda deliberar a retoma da actividade, nos termos e condições previstas no art. 161 do C.S.C..
Feito este enquadramento, e encarando as concretas questões suscitadas neste apenso, há que ter especialmente ainda em conta o disposto no art. 154 do C.S.C. quanto à liquidação do passivo social: “1. Os liquidatários devem pagar todas as dívidas da sociedade para as quais seja suficiente o activo social. 2. No caso de se verificarem as circunstâncias previstas no artigo 841.º do Código Civil, devem os liquidatários proceder à consignação em depósito do objecto da prestação; esta consignação não pode ser revogada pela sociedade, salvo provando que a dívida se extinguiu por outro facto. 3. Relativamente às dívidas litigiosas, os liquidatários devem acautelar os eventuais direitos do credor por meio de caução, prestada nos termos do Código de Processo Civil.” (sublinhado nosso).
A caução, por seu turno, designa, no seu sentido corrente, a entrega feita por uma das partes à outra de certa quantidade de coisas móveis para garantia da cobertura do dano proveniente do não cumprimento de determinada obrigação, e no seu sentido legal, é sinónimo de segurança ou de garantia especial da obrigação, servindo para abranger em geral todos os casos em que a lei ou a estipulação das partes exige a prestação de qualquer garantia especial ao credor, sem determinação da sua espécie, conforme é regulado nos arts. 623 e ss. do C.C.([9]).
A finalidade da prestação de caução é, assim, a de facultar ao credor um meio através do qual se poderá fazer pagar.
Resulta, por conseguinte, do citado nº 3 do art. 154 do C.S.C. que constitui obrigação dos liquidatários nas sociedades dissolvidas garantir, através da prestação de caução, os créditos litigiosos.
Da mera leitura do preceito resulta, a nosso ver, infirmada a argumentação da apelante no sentido de que tal prestação de caução dependerá de um juízo prévio acerca da probabilidade da existência dos créditos a caucionar e que o credor fica sempre suficientemente assegurado por via da responsabilidade pessoal dos liquidatários (art. 158 do C.S.C.) ou através da sucessão nos activos e passivos da sociedade (art. 148 do C.S.C.).
Na verdade, o preceito estabelece, simplesmente, a obrigação de caucionar o crédito litigioso, nos termos do Código de Processo Civil, não prevendo que tal ocorra apenas em especiais circunstâncias e sem prejuízo da responsabilidade atribuída aos liquidatários ou do eventual acordo quanto à transmissão do activo e do passivo.
Donde, é forçoso retirar que constitui, em qualquer caso, obrigação dos liquidatários da sociedade dissolvida prestar caução quanto aos créditos litigiosos.
Do mesmo modo, afigura-se-nos que, nos termos da lei, tal obrigação não dependerá de uma apreciação preliminar sobre a provável existência do crédito. Estando em causa um direito de crédito que foi objecto de contestação em juízo (cfr. art. 579, nº 3, do C.C.), de acordo com o nº 3 do art. 154 do C.S.C. esse crédito deve ser garantido por meio de caução. Não se encontra estabelecido que seja necessário ponderar, ainda que com carácter provisório e/ou cautelar, sobre a definição do direito em discussão nem se vislumbra que ao tribunal caiba tal apreciação para concluir pela oportunidade da prestação de caução.
Também nenhum sentido faria suspender o incidente e aguardar pela sentença final da acção principal para determinar, em função do decidido, a prestação (ou não) da caução, como sugere a apelante. O que justifica a prestação da caução é a dissolução da sociedade e a existência de um crédito litigioso, controvertido, e não já judicialmente reconhecido. Assim sendo, é no momento em que as referidas condições se verificam que surge a obrigação de prestar caução e não quando o crédito deixou de ser litigioso. Se e quando o crédito for finalmente reconhecido haverá que proceder ao respectivo pagamento e não prestar garantia de que virá a ser pago.
Por conseguinte, entendemos que, tal como se concluiu em 1ª instância, estando em discussão a existência de um crédito do A. sobre a sociedade Ré/recorrida e encontrando-se inscrita desde 3.6.2013 a dissolução desta, tal justifica, por si só, a obrigatoriedade de prestar caução, nos termos do nº 3 do art. 154 do C.S.C..
Reconhecida a obrigação de prestar caução, vejamos então qual o valor da caução a prestar.
Já vimos que a caução tem por fim assegurar ao credor um meio através do qual se poderá fazer pagar no futuro e que para avaliar da oportunidade da sua prestação nos termos previstos no nº 3 do art. 154 do C.S.C. é irrelevante averiguar sobre os fundamentos da acção proposta mas tão só de que nesta se discute a existência de um crédito contra sociedade dissolvida e em liquidação.
À primeira vista, e pelo que acima deixamos dito, tudo aponta no sentido de que a regra será a de que o valor da caução corresponda ao pedido formulado pelo credor na acção.
No entanto, no caso em apreço, para efeito da determinação do valor da caução, se não cabe fazer nenhum juízo antecipatório sobre o sucesso da pretensão formulada no processo principal, não poderá deixar de ter-se em conta a causa de pedir e o pedido formulado no confronto com os efeitos decorrentes da perspectivada extinção da sociedade demandada.
Detalhando.
O A. pediu na acção a declaração de que tem direito a receber da sociedade Ré, enquanto ex-administrador desta, uma pensão complementar de reforma que ascende ao montante mensal de € 3.358,25, reclamando a condenação da Ré a pagar-lhe as mensalidades vencidas e não pagas relativas a Maio e Junho de 2010 que somam € 6.716,50, com juros acrescidos até integral pagamento, e ainda condenada a pagar mensalmente ao A. o referido montante de € 3.358,25 actualizado de acordo com o que vier a ser deliberado em assembleia geral.
A pretensão referida assenta, em última análise, no disposto no art. 402 do C.S.C. que, sob a epígrafe “Reforma dos administradores”, prevê que: “1. O contrato de sociedade pode estabelecer um regime de reforma por velhice ou invalidez dos administradores, a cargo da sociedade.
2. É permitido à sociedade atribuir aos administradores complementos de pensões de reforma, contanto que não seja excedida a remuneração em cada momento percebida por um administrador efectivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas.
3. O direito dos administradores a pensões de reforma ou complementares cessa no momento em que a sociedade se extinguir, podendo, no entanto, esta realizar à sua custa contratos de seguro contra este risco, no interesse dos beneficiários.
4. O regulamento de execução do disposto nos números anteriores deve ser aprovado pela assembleia geral.” (sublinhado nosso).
O A. e requerente do incidente pediu que o valor da caução seja fixado em € 797.268,65 por tal corresponder à pensão solicitada remida num valor de capital único, calculado desde a data em que a pensão se tornou devida (Maio de 2010) e pelo tempo de vida previsível do A. (80 anos), logo até 31.12.2029, ainda, para efeito da determinação do montante da caução, com juros acrescidos sobre as prestações já vencidas.
Ora, a prestação da caução é requerida precisamente ao abrigo do nº 3 do art. 154 do C.S.C., visto a sociedade Ré ter sido, entretanto, dissolvida e estar em curso a liquidação do respectivo passivo social, sabendo-se que com o registo do encerramento dessa liquidação a sociedade se deverá considerar extinta.
Ou seja, é a circunstância da anunciada extinção da sociedade que justifica a própria prestação da caução.
Mas se assim é, tem de admitir-se concomitantemente que ao ocorrer a extinção da sociedade cessará também, por força do indicado nº 3 do art. 402 do C.S.C., o direito dos administradores a quaisquer pensões de reforma ou complementares.
É, por isso, na interligação das disposições citadas que deve encontrar-se o valor da caução a prestar, ainda que, como vimos, na perspectiva unilateral do pedido formulado pelo A. na acção e sem adiantar juízos sobre a viabilidade dessa pretensão.
Baseando-se a determinação do montante da caução no pedido do A./credor e este no valor de sucessivas prestações mensais pagáveis num certo horizonte temporal, não deverá esse horizonte ir para além da previsível extinção da sociedade que sempre porá fim ao reclamado direito do A. a qualquer pensão de reforma, ainda que tal direito lhe venha a ser judicialmente reconhecido, tal como foi assinalado pela apelante.
Como vimos, a liquidação deve estar encerrada e a partilha aprovada no prazo de dois anos a contar da dissolução, prazo que só pode ser prorrogado por deliberação dos sócios e por período não superior a um ano. Por conseguinte, tendo a dissolução ocorrido em Junho de 2013, é previsível que a extinção ocorra num prazo máximo de três anos a partir de então.
Assim, fazendo um cálculo antecipado da quantia que o A. poderá vir a receber em caso de proceder a acção por si proposta e na inexorável perspectiva de extinção da sociedade que, em si mesma, justifica o presente incidente, julgamos que a caução a prestar deverá ser fixada em € 256.000,00 (tendo por referência o valor da prestação mensal reclamada, € 3.358,25, a indicada data do início da obrigação, Maio de 2010, o prazo pelo qual será devida ocorrendo a extinção da sociedade Ré, e os juros entretanto já vencidos).
Procede em parte a apelação nos moldes referidos.
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IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão recorrida na parte em que fixou o montante da caução a prestar pela requerida MG, SGPS, S.A., através dos 2º e 3º requeridos, em € 797.268,65, e fixando esse valor em € 256.000,00.
Custas por apelante e apelado, na proporção do vencimento.
Notifique.
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Lisboa, 24.6.2014
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Roque Nogueira
[1] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, pág. 176.
[2] Cfr. Ac. RL de 10.5.1995, in CJ, 1995, t. 3, pág. 179, por referência ao art. 668 do C.P.C. de 1961.
[3] “Código de Processo Civil anotado”, 1984, vol. V, pág. 139.
[4] “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., págs. 687/688.
[5] Ob. cit., vol. V, pág. 143.
[6] Proc. 04B1409, in www.dgsi.pt.
[7] “Curso de Direito das Sociedades”, 5ª ed., pág. 568.
[8] Paulo Olavo Cunha, “Direito das Sociedades Comerciais”, 4ª ed., pág. 874.
[9] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7ª ed., págs. 471/ 472.