Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4583/07.6TBALM.L2-2
Relator: TIBÉRIO SILVA
Descritores: REGIME PROCESSUAL EXPERIMENTAL
MEIOS DE PROVA
ENFITEUSE
USUCAPIÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: 1. Impondo-se no Regime Processual Civil Experimental (RPCE), aprovado pelo DL nº 108/2006, de 08-6, a apresentação do rol de testemunhas e requerimento de outras provas com os articulados, e tendo sido o réu, para tanto, advertido no momento do citação, é extemporâneo o oferecimento do rol na sequência da notificação do despacho saneador, com fixação de matéria assente e organização de base instrutória.
2. A prática de actos, designadamente no que concerne à tramitação electrónica, que possam afastar-se do figurino definido pelo RPCE, pode, quando muito, configurar nulidades, que devem – para quem queira daí retirar consequências – ser atempadamente suscitadas, mas não conduz à conclusão de que outra foi a forma de processo seguida.
3. A complexidade do processo não afasta o uso do regime processual experimental, pois incumbe ao juiz adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir.
4. O elenco dos factos incluídos na matéria assente não faz caso julgado negativo, devendo o juiz considerar, na sentença, sem estar condicionado por aquele elenco, os factos provados por meio que assuma força probatória plena.
5. A enfiteuse, que era regulada nos artigos 1491º a 1523º do Código Civil, era um instituto caracterizado por a propriedade aparecer desmembrada em dois domínios: o domínio directo (cujo titular se designava senhorio) e o domínio útil (cujo titular se designava foreiro ou enfiteuta), sendo, por natureza, perpétua, distinguindo-se, por isso, do arrendamento (a curto ou a longo prazo).
6. Com a proibição do «regime de aforamento» estatuída na Constituição da República Portuguesa, a extinção da enfiteuse sobre os prédios rústicos, anteriormente operada pelo DL 195-A/76, de 16 de Março, passou a dispor de uma explícita credencial constitucional, o que é relevante para o Direito Civil, atendendo, sobretudo, ao princípio da taxatividade ou do “numerus clausus” dos direitos reais (art. 1306º, nº1, do Código Civil), sendo, a partir da entrada em vigor daquele Decreto-Lei, nulos os actos tendentes à sua constituição no futuro.
7. Só tem legitimidade para pedir o reconhecimento da constituição de enfiteuse por usucapião quem alegar a titularidade do domínio útil, impondo-se que o interessado alegue que, em 16 de Março de 1976, (data da extinção da enfiteuse sobre prédios rústicos), era possuidor nos termos correspondentes ao domínio útil.
8. A usucapião pressupõe a posse em nome próprio. Sendo o interessado (que quer ser reconhecido como enfiteuta) arrendatário, não se demonstrando a posse em termos de domínio útil, nem que tenha havido inversão do título de posse, entende-se que não se poderá concluir pela aquisição do direito de propriedade por usucapião.
9. Será de rejeitar a aplicação do Dec-lei nº 195-A/76, de 16-03, com as alterações introduzidas, maxime pela Lei nº 108/97, de 16-09, por inconstitucionalidade material, decorrente da violação do art. 62º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios da igualdade (art. 13º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I
“A”, com os sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa contra o Município “B”/Câmara Municipal “B”, alegando, em resumo e além do mais que aqui se dá por reproduzido, que:
O Autor é rendeiro/enfiteuta/cultivador directo das "“C”", sitas na freguesia da ..., concelho “B”, há mais de setenta anos.
O Município “B”/ Câmara Municipal “B” comprou, por escrituras de 16.11.71 e 17.3.72, a chamada "Quinta ...", vulgo "“C”".
O Autor, por si e seus antecessores, é enfiteuta/arrendatário das referidas "terras" por contrato verbal, celebrado há mais de 200 anos.
O Autor tem direito a cultivar as referidas terras e à passagem pelo caminho, ali existente há mais de duzentos anos, pois paga a respectiva renda; a ser indemnizado por benfeitorias; e igualmente lhe assiste o direito de retenção, até ser efectivamente indemnizado (DL 547/74, de 22 de Outubro) e a ser declarada judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se depois os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando o A. na situação de pleno proprietário, isto é, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.
Aos olhos de todos, o A. e antepossuidores permaneceram em detenção e fruição plena do acesso às “C”, dos terrenos que cultiva e das benfeitorias por si e seus antepassados efectuados, posse essa ininterrupta, pacífica, de boa fé, titulada, sem qualquer turbação, pelo que se não tivessem adquirido esses direitos por qualquer título, sempre o A. os teria adquirido por acessão e usucapião, que expressamente invoca.
A C.M. “B”/senhoria não pode diminuir, sem o acordo do A./rendeiro/enfiteuta/cultivador directo, a extensão da coisa locada ou acesso às “C”, pois tal resulta em prejuízo manifesto da dimensão, da utilização e aproveitamento da sua exploração agrícola.
Termina, pedindo que:
- Se declare ser o A. o legítimo proprietário das parcelas e edificações dos autos;
- Se condene o Réu/Município “B” a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício e que, em consequência:
- se declare ser o A. legítimo enfiteuta/rendeiro/utilizador/possuidor dos seus invocados direitos; e
- se condene o Réu /Município “B”/CM “B” a reconhecer ao A. os referidos direitos e, por via desse reconhecimento, declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando o A. na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.

O R. contestou, impugnando a factualidade vertida na petição inicial nos termos constantes dos arts. 4º e 5º do seu articulado.
Acrescentou, além do mais que aqui se dá por reproduzido, que:
Não poderá aceitar-se a alegação de que o Autor é “rendeiro / cultivador directo / enfiteuta” das ““C””, pois verdadeiramente não se sabe quais são essas terras, uma vez que o próprio Autor não as identifica.
Também não é verdadeiro que o Autor seja por si e seus antecessores arrendatário das referidas terras por contrato verbal celebrado há mais de 200 anos.

O Autor, à semelhança de muitas outras pessoas, aproveitando-se da contestação ao direito de propriedade que atravessou o País depois do 25 de Abril de 1974 e as mudanças ocorridas na administração local, ocupou uma parcela das ““C””, passou a intitular-se rendeiro e sublocou a sua exploração.
É, no entanto, verdade, que quando a Câmara Municipal “B” adquiriu aquelas terras, nas mesmas existiam pequenas explorações agrícolas, sucedendo que, logo que aconteceu aquela aquisição, os que exploravam essas terras – sem se saber a que título – reclamaram a qualidade de rendeiros.
A Câmara Municipal sempre se recusou a receber rendas pela exploração das ““C””, pelo que, se o Autor pagou alguma quantia a título de renda, tê-lo-á feito de livre e espontânea vontade, provavelmente através de depósitos na Caixa Geral de Depósitos.
Há mais de 30 anos que o A. não explora quaisquer terras no local denominado ““C””, pois, à semelhança de todos os outros rendeiros que em 74 ficaram no local, entregou a terceiros, mediante o recebimento de rendas, a exploração dos terrenos.
Actualmente, quem ainda cultiva aquelas terras são indivíduos que nada têm a ver com o autor ou com as demais pessoas a que se faz referência na petição inicial.
No que aos anteriores proprietários diz respeito, não se trata de um facto pessoal, do qual a entidade demandada devesse ter conhecimento, o que equivale à sua impugnação.
Nunca a Câmara Municipal “B” autorizou e muito menos incentivou a construção no local de edificações. Pelo contrário, sempre se opôs à implantação e ao aumento das construções.
Todos os que nesse, como noutros locais, construíram clandestinamente, sabiam, porque foram por várias vezes advertidos pela Autarquia, que aquelas construções teriam que ser demolidas, por serem ilegais e porque os terrenos pertenciam à Câmara. De todo o modo, as construções que actualmente existem no local, têm um valor de mercado de € 0 (zero euros), pois são clandestinas, sendo insusceptíveis de legalização.
No local, não existiu, nem existe, caminho algum. Existiu, sim, em tempos, um atravessadouro servindo as ““C””. No entanto, há já alguns anos, o atravessadouro foi abolido, tendo a Câmara Municipal “B” procedido à construção, em sua substituição, de uma azinhaga (caminho público) que passou a servir as ““C””.
O Autor não permaneceu, por isso, na detenção e fruição do acesso à passagem, visto esta constituir um atravessadouro público, logo insusceptível de apropriação individual devido a este carácter.

Concluiu pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador, no qual se considerou ser o R. parte ilegítima, absolvendo-o da instância (fls. 232-236 – 1º vol.).
Tendo o A. interposto recurso dessa decisão, foi proferido, por este Tribunal da Relação, Acórdão, datado de 25-06-2009, inserto a fls. 431-444 (3º vol.), que a revogou, considerando o R. parte legítima.
Foi proferido novo despacho saneador, com fixação de matéria assente e organização de base instrutória (fls. 49-495 – 3º vol.).

A fls. 535, a Ré ofereceu rol de testemunhas, face ao que veio o A. apresentar requerimento, defendendo que aquele rol não devia ser admitido, visto estar-se perante processo experimental, no qual a prova deve ser indicada nos articulados.

Foi proferido despacho, a fls. 550 (3º vol.), que não admitiu o rol de testemunhas apresentado, a fls. 536, pelo R., por intempestivo, nos termos do art. 8º, nº5, do DL nº 108/2006, de 8 de Junho.
Inconformada com este despacho, dele agravou o R..
Ao mesmo tempo, apresentou a reclamação que consta de fls. 558 e segs., considerando que a acção nunca foi tramitada sob o regime processual experimental, que, ademais, seria inadequado ao caso vertente, dada a complexidade da causa, pugnando pela revogação do despacho e defendendo que a aplicação do art. 8º, nº 5, do mencionado DL, a acções que deveriam seguir a marcha modelar da forma ordinária, terá de ser julgada inconstitucional, por violar os princípios da igualdades das partes, do contraditório e da tutela jurisdicional efectiva, nos termos do art. 20º da CRP.
Sobre essa reclamação recaiu despacho (a fls. 569-572 – 3º vol.), indeferindo-a.

O R. formulou, em relação ao agravo interposto, as seguintes conclusões:
(…)
Não houve contra-alegações.
O Exmº Juiz proferiu despacho de sustentação.
              
Prosseguindo os autos, teve lugar a audiência de julgamento e foi proferida sentença na qual se julgou a acção procedente declarando-se o direito de propriedade do Autor sobre a parcela que integra duas parcelas designadas talhões 17 e 19 e está inserida no lote 2, grupo B, confronta a Norte com talhões 8 e 9, sul com talhão 20, a nascente com caminhos de acesso e a poente com malha urbana, condenando-se o réu a reconhecer esse direito.

Inconformada com esta decisão, dela apelou o R., concluindo as suas alegações pela seguinte forma:
(…)
C. A douta sentença recorrida enferma também de nulidade por oposição entre a decisão e os seus fundamentos (artigo 668º, nº 1 alínea c) do CPC) e não relevou factos de extrema relevância, que constam dos autos, e que importariam decisão diferente da proferida;

O Apelado veio aos autos dizer que optava por não apresentar contra-alegações, face à manifesta aplicação do art. 713º, nº5, do CPC, na redacção vigente até 31-12-2007.

*
Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, importará, in casu:
- No que se refere ao agravo, apreciar se o despacho que não admitiu, por intempestivo, o rol de testemunhas apresentado pelo R. não pode subsistir, por, diversamente do entendimento do Tribunal a quo, o processo não ter sido tramitado ao abrigo do regime processual experimental – designadamente no que se refere à prática dos actos por via electrónica –, regime que, aliás, seria inadequado tendo em vista a complexidade do processo;
- No que concerne à apelação, saber se a sentença é nula, conforme o invocado; decidir sobre a impugnação da matéria de facto e, em sede de direito, avaliar do cabimento, face aos factos provados, da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade por parte do A., à luz da legislação extintiva da enfiteuse e, designadamente, sob o ponto de vista da constitucionalidade das normas aplicadas.

II

Na sentença recorrida, deu-se por provada a seguinte factualidade:

«A) Estão já assentes por documento e por acordo os seguintes factos:
1. Por escrituras públicas de compra e venda em 16/11/1971 e 17/03/1972, o Réu adquiriu a particulares a chamada “Quinta ...”, vulgo ““C””, com a área de 67.587,75 m2 e 270.350,00 m2, respectivamente descritas na Conservatória do Registo Predial de ... sob os nº 757, 761, 765, 767, 783, 15467, 15468, 790, 15473 e 15472, freguesia da ..., concelho de ... – Alínea A) da matéria de facto assente;
2. À data existiam explorações agrícolas nos terrenos referidos em 1. – Alínea B) da matéria de facto assente;
3. Em 17 de Julho de 1972, o Réu dirigiu aos cultivadores das referidas terras cartas registadas com A/R para entregarem a mesmas em 30 de Setembro seguinte – Alínea C) da matéria de facto assente;
4. Os cultivadores não entregaram as terras por considerarem que as podiam reter até serem pagos dos melhoramentos que nelas fizeram – Alínea D) da matéria de facto assente;
B) Da audiência de julgamento resultaram Provados os seguintes Factos:
5. O Autor há mais de setenta anos e os seus antecessores há mais de cem anos, têm vindo a explorar e cultivar directamente uma parcela do prédio referido em 1. supra, com a área total de 51.795 m2 e com área de construção de 918,64 m2 –artigo 1º da Base Instrutória;
6. E, após “D” se intitular o proprietário das “C”, mediante o pagamento da contrapartida anual de valor não concretamente não apurado, mas pelo menos, após a aquisição da parcela pelo Réu, no valor de 12,50 euros – artigo 2º da Base Instrutória;
7. Aos olhos de todos, pacificamente, sem oposição de ninguém e com autorização após o 25 de Abril de 1974, do então presidente da Câmara Municipal “B” – artigo 3º da Base Instrutória;
8. A referida parcela integra duas parcelas designadas talhões 17 e 19 e está inserida no lote 2, grupo B, confronta a Norte com talhões 8 e 9, sul com talhão 20, a nascente com caminhos de acesso e a poente com malha urbana, como consta dos docs. de fls. 397-400 e 400-410 que aqui se dão por reproduzidos – artigo 4º da Base Instrutória.
9. Pelo acesso às “C” passam bicicletas, motorizadas, camionetas carregadas de adubos e detritos orgânicos, quaisquer materiais para obras ou trabalhos e o produto agrícola para ser vendido nos mercados da ..., ... e Lisboa – artigo 5º da Base Instrutória;
10. Foi o Autor que, há mais de 70 anos, fez uma horta irrigada na referida parcela, onde produz tomate, cenoura, nabo, couve-flor, couve portuguesa, couve lombarda, alface, pimento, feijão verde, batata, cebola e milho de regadio – artigo 6º da Base Instrutória;
11. E desde essa altura, os referidos produtos são vendidos diariamente, durante todo o ano, nos mercados dos concelhos “B” e Lisboa – artigo 7º da Base Instrutória;
12. O caminho bicentenário que dá acesso à referida parcela tem uma corrente metálica suspensa entre dois pilares com um dístico proibindo a entrada a estranhos e foi feito pelos antecessores do Autor – artigo 8º da Base Instrutória;
13. Está exclusivamente afecto à actividade do Autor e é utilizado por si – artigo 9º da Base Instrutória;
14. Tem acesso à via pública – artigo 10º da Base Instrutória;
15. Durante os últimos 70 anos “E” e o Autor, erigiram edificações para habitação e apoio à sua actividade agrícola na parcela referida em 5., com autorização do Réu – artigo 11º da Base Instrutória.
16. O Autor e os seus antecedentes (pais e avós) viveram e habitavam na referida parcela referida em 5. supra – artigo 12º da Base Instrutória.
17. A parcela tem actualmente o valor de 68.015,00 euros valendo há cerca de quarenta anos, não sendo cultivada – 1.329 euros – artigo 13º da Base Instrutória
18. As edificações instaladas na parcela valem actualmente 251.029,00 euros, valendo há cerca de quarenta anos 4.903,00 euros – artigo 14º da Base Instrutória.
19. O autor habita no local e cultiva a parcela referida em 5.– artigo 15º da Base Instrutória.
20. A Ré sempre se recusou a receber rendas pela exploração das “C” – artigo 17º da Base Instrutória.
*
C) Da audiência de julgamento resultaram por Não Provados os seguintes
Factos:
1. O Autor após o 25 de Abril de 1974, ocupou as parcelas das ““C”” identificada em 5., intitulou-se “rendeiro” e entregou a terceiros a exploração da parcela – artigo 16º da Base Instrutória.
2. Quando o réu comprou as terras e nos anos que se seguiram no local apenas existiam pequenas barracas de apoio à actividade agrícola, nomeadamente para a guarda de alfaias e produtos agrícolas – artigo 18º da Base Instrutória.
3. Nos anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, aquelas pequenas barracas foram ampliadas e deram lugar a construções maiores abarracadas – artigo 19º da Base Instrutória.
4. Naquele local existiu, em tempos, um atravessadouro que foi substituído por uma azinhaga (caminho público) que passou a servir as ““C”” – artigo 20º da Base Instrutória».

III
III.1. Do agravo

A Ré/Agravante insurge-se contra o facto de não ter sido atendido o seu requerimento probatório, com fundamento na circunstância de se estar perante processo a que se aplica o regime experimental aprovado pelo Decreto-lei n° 108/2006, de 8 de Junho, quando afinal – diz – nunca o presente processo foi tramitado de acordo com as regras definidas em tal diploma legal.
Refere que:
- dispondo o art. 3° desse normativo que "Os actos processuais, incluindo os actos das partes que devam ser praticados por escrito, são praticados electronicamente nos termos a definir por portaria do Ministério da Justiça", certo é que nenhum dos actos praticados pelo Autor o foi electronicamente e, na sua maior parte, as peças encontram-se manuscritas, o que não obstou a que fossem admitidas.
- também as notificações efectuadas pela secretaria foram, na sua grande maioria, remetidas por correio, apenas tendo um ou dois despachos sido notificados por via electrónica, através do citius.
Sublinha, por outro lado, que este regime processual experimental tem em vista acções de pouca complexidade, em que, por norma, não há sequer a necessidade de seleccionar a matéria de facto, remetendo-se a produção de prova para os articulados das partes. Não obstante o disposto no artigo 1° do Decreto-lei n° 108/2006 abarcar a generalidade das acções declarativas cíveis, cabe ao Juiz o poder-dever de adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e, no caso, a manifesta complexidade da matéria em discussão impunha uma tramitação como qualquer acção declarativa civil, mostrando-se o regime processual experimental desadequado.
Entende que deveria ter sido declarada a nulidade da maioria dos actos praticados no âmbito do presente processo e, em consequência, não atender o Tribunal à maior parte dos articulados e documentos juntos aos autos, nomeadamente os apresentados pelo Autor.

Permitimo-nos recuperar aqui o que, em sede de decisão da reclamação apresentada pelo Recorrente sobre essa matéria, foi explanado pelo Exmº Juiz. 
Vinca-se, no despacho inserto a fls. 569-572, que o processo sempre tramitou como processo especial previsto no D.L. n° 108/2006 de 08/06, tendo a petição inicial referido logo tal facto, bem como a nota de citação remetida ao Réu (fls. 105), na qual expressamente se referiu que os requerimentos probatórios deveriam ser apresentados na contestação, logo, constituía obrigação do mesmo a indicação atempada dos seus meios probatórios.
Na realidade, na petição inicial, o A. referiu, a abrir, que a acção era intentada nos termos do ao DL nº 108/2006, de 8 de Junho.
De acordo com o disposto no art. 1º deste normativo, o regime processual experimental é aplicável a acções declarativas cíveis a que não corresponda processo especial e a acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos. 
   Estando-se perante acção declarativa cível a que não corresponde processo especial e tendo sido intentada num Tribunal (o Tribunal Judicial de ...) em que foi implementado o regime processual experimental, estavam, à partida, reunidas as condições para que o processo fosse tramitado ao abrigo do DL 108/2006.
Conforme se exarou no Ac. da Rel. de Lisboa de 05-12-2013 (Rel. Ondina Alves), publicado em www.dgsi.pt, «[o] critério fundamental da forma de processo comum consagrada no Regime Processual Civil Experimental (RPCE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 34/2008, de 26.02, 187/2008, de 23.09 e 178/2009, de 7.08 e que se manteve em vigor até ser revogado pelo nº 4, alínea b) da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (NCPC), reside apenas na natureza da acção, i.e., importa que estejam em causa acções declarativas cíveis, as quais passarão a seguir uma tramitação própria, única e definida naquele diploma legal».
Na nota de citação, constante de fls. 96, inseriu-se a seguinte advertência:
«Com a contestação, deverá o citando, apresentar o rol de testemunhas e requerer outras provas, de acordo com o nº5 do artº 8 do DL 108/2006».
No nº 5 do art. 8º, vem previsto o seguinte:
«Com os articulados, devem as partes requerer a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo, apresentar o rol de testemunhas e requerer outras provas, indicando de forma discriminada os factos sobre os quais recaem a inquirição de cada uma das testemunhas e a restante produção de prova, podendo a parte a quem é oposto o último articulado admissível alterar, nos 10 dias subsequentes à respectiva notificação, o requerimento probatório anteriormente apresentado».

O A. requereu, na petição inicial, a gravação da audiência e apresentou o rol de testemunhas. O R. nada requereu, em termos probatórios, no final da sua contestação, sendo certo que, conforme decorre do preceito citado, era o momento adequado para o fazer.
É preciso ter em consideração que o art. 512º-A do CPC se enquadrava num Código em que havia a possibilidade de se apresentar o rol de testemunhas e requerer outras provas nos articulados. O momento preclusivo para essa apresentação era o da audiência preliminar (art. 508º-A, nº2, al. a), ou, não se realizando esta, o subsequente à notificação prevista no art. 512º, nº1, do CPC. Ora, no Regime Processual Experimental passou, diferentemente do CPC, a impor-se que o requerimento probatório fosse feito nos articulados, como aliás se explica no texto introdutório do DL 108/2006, de 08-06:
«Com ganhos evidentes para a celeridade do processo, impõe-se a apresentação do requerimento probatório com os articulados, garantindo à parte a quem for oposto o último articulado admissível um prazo suplementar de 10 dias para alterar o seu requerimento probatório, sem prejuízo da faculdade, que permanece intocada, de adicionar ou alterar o rol de testemunhas até 20 dias antes do início da audiência final».

A possibilidade de alteração do rol  de testemunhas não equivale à de apresentação de rol que não tenha sido atempadamente oferecido, pois tal levaria a inutilização da regra de que ele deve ser apresentado com os articulados.
O dever de apresentação do requerimento probatório com os articulados foi adoptado pelo actual Código de Processo Civil (arts. 552º, nº2 e 572º, al. d)), explicando-se, no Novo Código de Processo Civil, de Abílio Neto, Lisboa, Ediforum, Junho/2013, pág. 201, em anotação ao art. 552º (que versa sobre os requisitos da petição inicial, aplicando-se, naturalmente, a mesma lógica quanto à contestação), que, «[a]o invés do que sucedia no domínio da legislação pretérita, em que era facultativo, para o autor no final da petição, apresentar o rol de testemunhas e requerer outras provas (art. 467º-2 do CPC/1961), a lei actual considerou o articulado inicial, imperativamente, como o momento próprio para a apresentação do requerimento probatório, de tal modo que, se o réu contestar, é permitido ao autor alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, mas não suprir a sua eventual falta inicial».
Como se vê, o Regime Processual Experimental precedeu, nesta matéria, o novo Código de Processo Civil.
Tendo o DL 186/2006 estabelecido regime diverso do CPC/1961, a aplicação subsidiária de tal Código, neste particular, colidiria com o regime inovatório que o legislador quis então consagrar com o RPE.
Havendo o presente processo assumido, ab initio, a forma estabelecida no Regime Processual Civil Experimental, não será a prática de um ou outro acto que se desvie do seu figurino que levará à conclusão de que outra foi a forma adoptada. A ocorrência, em qualquer processo, de actos que a lei não admita ou omissões de trâmites que a lei prescreva e de que possa resultar a nulidade (art. 201º do CPC, na versão aqui aplicável) não altera a forma do processo, apenas dando lugar à anulação do que tiver que ser anulado. Ora, não se vê que o R. tenha feito a oportuna arguição, em concreto, de nulidades decorrentes do modo como foram praticados os actos no processo, maxime, quanto à tramitação electrónica. Daí que não colha vir, agora, dizer que deveria ter sido declarada a nulidade da maioria dos actos praticados no âmbito do presente processo e em consequência não atender o Tribunal à maior parte dos articulados e documentos juntos aos autos, nomeadamente os apresentados pelo Autor.
No que concerne à alegação de que o regime processual experimental não suporta um caso com esta complexidade, importa referir que, nos termos do art. 2º, al. a), do DL 186/2006, incumbe ao juiz dirigir o processo, devendo adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, como, salvo melhor opinião, ocorreu in casu.
Não consideramos que tenha sido ofendido o princípio da igualdade das partes, não resultando dos autos que os direitos processuais do R. tenham sido afectados, quer no exercício do contraditório, quer no toca à prática dos actos que entendeu, por sua iniciativa, levar a cabo. No que tange à não apresentação do rol de testemunhas com a contestação, tratou-se de omissão que apenas ao R. é imputável, tendo sido, como foi, notificado com a sobredita advertência. Permitir que apresentasse o rol fora do tempo próprio é que representaria um tratamento desigual relativamente à contraparte.

Entende-se, pelo exposto, que não assiste razão ao Agravante, havendo que negar provimento ao agravo.

III.2. Da apelação

III.2.1.
Entende o Apelante que a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 668º, al. e) [do nº1], pois, ao fazer prevalecer o pedido de declaração judicial de aquisição da enfiteuse por usucapião com base na utilização (cultivo) do prédio, altera o objecto do pedido, transformando-o em pedido diverso.
Vejamos:
Como supra se deixou dito, o A. pediu que:
- Se declare ser o A. o legítimo proprietário das parcelas e edificações dos autos;
- Se condene o Réu/Município “B” a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício e que, em consequência:
- se declare ser o A. legítimo enfiteuta/rendeiro/utilizador/possuidor dos seus invocados direitos; e
- se condene o Réu /Município “B”/CM “B” a reconhecer ao A. os referidos direitos e, por via desse reconhecimento, declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando o A. na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.
Na sentença, decidiu-se declarar o direito de propriedade do A. o direito de propriedade da Autor sobre a parcela que integra duas parcelas designadas talhões 17 e 19 e está inserida no lote 2, grupo B, confronta a Norte com talhões 8 e 9, sul com talhão 20, a nascente com caminhos de acesso e a poente com malha urbana, condenando-se o réu a reconhecer esse direito.
O R., nas suas alegações, sintetiza a pretensão do A., considerando que este requer ao Tribunal que:
«(i) O A. é legítimo rendeiro / enfiteuta e cultivador das terras há mais de 40 anos (art. 18º da Petição Inicial);
(ii) Em consequência da aplicação do já citado regime de abolição da enfiteuse – consagrado pelo Decreto-lei n.º 195-A/76, de 16 de Março (com as alterações que lhe foram introduzidas, em especial e por último, pela Lei n.º 108/97, de 16 de Setembro) – declare o autor titular do direito de propriedade sobre esses terrenos;
(iii) E, finalmente, que o Réu (Município “B”) reconheça este direito».
Noutro ponto, refere o R. que «de acordo com o que as partes livremente dispuseram, a única decisão a ser tomada pelo Tribunal é a que lhe é requerida no pedido, ou seja, a de determinar se o A. pode, ou não, ser declarado proprietário do referido terreno, por lhe ser aplicável o regime de abolição da enfiteuse sobre prédios rústicos – consagrado no Decreto-lei n.º 195-A/76, de 16 de Março (com as alterações que lhe foram introduzidas, em especial e por último, pela Lei n.º 108/97, de 16 de Setembro) – que a transmudaram, ou não, da posição de enfiteuta para a de proprietária».
Conclui a sua argumentação, quanto a esta matéria, pela seguinte forma:
«Por último e quanto à solicitação do autor para ser reconhecido como “enfiteuta/rendeiro / utilizador / possuidor”, temos de convir que as contradições e imprecisões em que, salvo o devido respeito, o autor incorre, impede que se considere tal solicitação como pedido.
Cabendo, muito sumariamente, acrescentar apenas o seguinte:
Como vimos e pelo que vimos, é manifesto que a autora não poderá ser tida simultaneamente, como enfiteuta e arrendatária/rendeira do terreno objeto do litígio.
Atendendo, desde logo e além do mais, a que, se enfiteuta, seria titular de um direito real de gozo (ou utilização) de natureza imperativamente perpétua; se arrendatário/rendeiro, os direitos por si alegadamente exercidos seriam sempre de carácter obrigacional e necessariamente temporário.
E, como é sabido e já se frisou, subjacente ao nosso sistema de domínio existe, há muito, o principio segundo o qual nemine res sua servit, com tudo o que ele pressupõe e implica.
Em consequência, a douta sentença recorrida fazendo prevalecer o pedido de declaração judicial de aquisição de enfiteuse por usucapião, com base na utilização (cultivo) do prédio altera o objeto do pedido, transformando-o em pedido diverso, infringindo a regra segundo a qual “re eat judex ultra vel extra petita partium”, e que o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, sanciona com a nulidade».

A fundamentação de Direito da douta sentença é do seguinte teor:
«Peticiona o Autor que seja declarado judicialmente o direito de propriedade sobre a parcela de terreno que ocupa e pertence ao réu, com base na aquisição da enfiteuse por usucapião e subsequente extinção legal deste direito e sua convolação em propriedade plena.
Vejamos da procedência da sua pretensão:
O Decreto-Lei nº 195-A/76 de 16 de Março, aboliu a enfiteuse sobre prédios rústicos, transferindo a propriedade plena para o titular do enfiteuta. A Lei nº 22/87 de 24 de Junho aditou ao artigo 1º do diploma anteriormente referido os seguintes pressupostos especiais para a constituição da enfiteuse por usucapião, que teria de ser reconhecida notarial ou judicialmente:
- titularidade do domínio útil da terra;
- decurso, à data de 16 de Março de 1976, dos prazos legais de usucapião;
- pagamento de prestação anual ao senhorio;
- realização de benfeitorias na convicção de se exercer direito próprio como enfiteuta;
valorização das benfeitorias em pelo menos metade do valor da terra inculta, sem atender a eventual aptidão para fins não agrícolas.
Mais tarde, com a Lei nº 108/98, de 16 de Setembro, aquele diploma original voltou a ser alterado nos requisitos para a constituição da enfiteuse por usucapião, mantendo-se a necessidade de reconhecimento notarial ou judicial, nos seguintes termos:
Os diplomas legais ora referidos criaram uma forma especial de aquisição por usucapião, com requisitos menos exigentes do que os previstos em geral para essa forma de aquisição do direito, designadamente dispensando a prova da existência de uma relação enfitêutica, da inversão do título, nos casos em que a posse se iniciou numa relação de arrendamento, e até do animus de actuação na convicção de exercício de direito próprio como enfiteuta, que era exigido no nº 5 al. d) do preceito, na redacção introduzida pela Lei nº 22/87, mas que entretanto foi eliminada. No mesmo sentido, admitindo a aquisição por enfiteuse num caso em que o título da posse é precisamente o arrendamento, pode consultar-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Novembro de 2010 1.
Ou seja, independentemente da existência ou validade título inicial constitutivo ou transmissivo da posse (cfr. artigo 2º da Lei nº 108/97), e até de se estar ou não na presença de uma relação jurídica com natureza enfitêutica, para se operar a aquisição por usucapião da enfiteuse basta a prova do cultivo da terra mediante o pagamento de uma prestação anual, desde 15 de Março de 1946 até 16 de Março de 1976, e da realização de benfeitorias de valor superior a pelo menos metade do valor da parcela ou do prédio.
Ora vistos os requisitos legais para a aquisição da enfiteuse por usucapião e percorridos os factos que resultaram provados temos que in casu o Autor logrou provar a verificação de todos os requisitos, com efeito logrou provar:
- já que provou explorar a parcela identificada nos autos e mediante o pagamento de uma renda há mais de quarenta anos e reportados à data de 1976;
- mais provou que tal parcela lhe adveio dos seus antecessores que exploravam tal parcela havia mais de cem anos e também mediante o pagamento da renda; e por último, provou;
- a realização de benfeitorias no prédio, cujo valor excede a metade do valor da parcela.
*
Posto isto é de concluir ser de reconhecer a aquisição da enfiteuse por usucapião, nos termos referidos, e bem assim declarar o Autor proprietário da parcela em questão, por concentração na sua titularidade dos domínios directo e útil, atento o disposto no artigo 1º do mencionado Decreto-Lei nº 195-A/76».

Tendo em atenção esta fundamentação, será de, salvo o devido respeito, concluir que a sentença se move dentro do objecto, delimitado pelo pedido e causa de pedir, face ao que emana da petição inicial. Na verdade, o A., conforme se patenteia pela conclusão da sua petição, pretende que lhe seja declarada judicialmente a enfiteuse, por usucapião, tomando, em seguida, em consideração a extinção, por força da Lei, dessa enfiteuse e colocando-o na situação de proprietário pleno. Para tanto, alegou uma panóplia de factos que teve por pertinentes para chegar a esse resultado. Ora, a sentença assentou nessa factualidade, operando-se a subsunção julgada adequada face à matéria provada. O que sucede é que o R. discorda da solução encontrada. Mas, esse é um problema do mérito da sentença, não do desvirtuamento do objecto do processo.
Pelo exposto, entende-se que a sentença não enferma de nulidade, nos termos dos arts. 661º, nº1 e 668º, nº1, al. e) do CPC.

Entende o R. que a sentença recorrida enferma também de nulidade por oposição entre a decisão e os seus fundamentos (artigo 668º, nº 1, alínea c), do CPC) e não relevou factos, de extrema relevância, que constam dos autos, e que importariam decisão diferente da proferida.
O Apelante alega, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, que:
«O que resulta da matéria considerada provada é apenas que o autor seria, quanto muito, um mero detentor, pois alega que cultivava o terreno com base num arrendamento.
Posto isto, temos forçosamente de concluir que não tendo sido considerada provada a obrigação da Autora de pagamento de uma prestação anual ao senhorio, nem que a sucessão alegada foi acompanhada da correspondente transmissão da posse, se verifica existir uma real oposição entre a decisão e os seus fundamentos, ao julgar procedentes os pedidos formulados.
Na verdade afirmamos - com o devido respeito – que a conclusão que “o Autor há mais de 40 anos e os seus antecessores há mais de 100 anos, através de acordo verbal celebrado com os anteriores proprietários, tem vindo a explorar e cultivar diretamente o talhão 33 (…), pelo pagamento da contrapartida de 7€”, para além de escamotear que a exploração era feita com base em arrendamento, não se pode extrair sem mais da prova produzida pelas razões atrás apontadas.
Bem pelo contrário, não foi provado, que o autor explorasse o prédio há mais de 40 anos, como se verá em seguida, nem que tivesse a obrigação de pagar a contrapartida de 12,50€, nem que o mesmo seja o sucessor do rendeiro, que em 1972 explorava o prédio com base no contrato de arrendamento.
Aliás, do documento nº 13, junto aos autos consta da alínea m`) que o autor “A” era em 1972 rendeiro das parcelas 17 e 29. Sendo rendeiro da parcela 19, um tal de “F”.
Também existe uma nítida discrepância no que se refere à área das parcelas. Na presente ação dá-se como provado que o autor há mais de setenta anos e os seus antecessores há mais de 200 anos, tem vindo a explorar e a cultivar uma parcela de terreno do prédio referido em 1. Supra, com a área total de 51.795 m2 e com uma área de construção de 918,64 m2.
Estas não são as áreas que constam do documento nº 13, como também não são as áreas referidas no relatório pericial datado de 30 de dezembro de 2011.
Aliás, no que diz respeito à área de construção, o referido relatório refere-se a 374 m2.
Assim sendo tem de se concluir que a douta decisão se encontra em contradição real com os seus fundamentos, do que resulta a sua nulidade nos termos da aliena c), do n.º 1, do artigo 668º do Código de Processo Civil».

Salvo o devido respeito, também aqui o Apelante se centra em questões que se prendem com o mérito, ou seja, com a bondade do julgamento efectuado, face à prova produzida. Ora, a contradição entre os fundamentos e a decisão verifica-se – conforme ensina J. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1952, pág. 141 – «[q]uando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão. Como pode considerar-se justificada uma decisão que colida com os fundamentos em que ostensivamente se apoia?».
No caso em apreço, não há, salvo melhor opinião, contradição (lógica) entre os fundamentos e a decisão. Pode discordar-se da solução (e é isso que acontece com o Apelante), mas tal não leva à conclusão de que a decisão não está em harmonia com os fundamentos em que se apoia.
Entende-se, também aqui, que a sentença não enferma de nulidade.
Quanto a dar relevância, ou não, a certos factos resultantes da prova constante dos autos é matéria que se prende com o apuramento da factualidade pertinente para a causa e com a consequente subsunção dos factos aos Direito, não sendo um problema de nulidade da sentença.
 
III.2.2.

O Apelante impugnou a matéria de facto.
Procedemos à audição dos depoimentos testemunhais.
Sendo, como disse, o objecto do processo definido, para além do que for de conhecimento oficioso, pelas conclusões do recorrente, recordemos o que o R. destacou, nas conclusões, quanto à matéria que entende dever ser alterada:
«I. A decisão proferida sobre a matéria de facto enferma de erro de julgamento, porque os meios probatórios impunham decisão diversa. Encontram-se incorretamente julgados os seguintes factos:
· Alínea C) da matéria assente omite que as terras eram arrendadas como consta das alíneas c) e d)g) do documento nº 13 e das alíneas c) do nº 36 da Petição Inicial;
· Os factos constantes do ponto 1 da base instrutória contradizem os factos constantes do documento nº 13;
· Os factos que constam do ponto 3 da base instrutória por ser público o litígio existente entre os rendeiros e o Município;
· A exploração pelo pagamento pelo A. de contrapartida;
· O valor das benfeitorias não se encontra minimamente fundamentado;
J. Não se provou que o autor explorasse as parcelas 17 e 19 do prédio há mais de 70 anos, nem que tivesse a obrigação de pagar a contrapartida de 12,50 €;
K. A resposta ao ponto 1 da base instrutória assenta num juízo conclusivo – “ a autora e seus antecessores”- que não permite identificar os antecessores que cultivam o prédio, e o facto de que adveio a posse, nem a data em que o autor entrou na posse;
L. A resposta ao ponto 1 da base instrutória encontra-se em contradição com elementos probatórios constantes do processo;
M. Não se provou que o autor ou os seus antecessores explorassem as parcelas 17 e 19 em 1972/1973;
N. O autor não juntou aos autos qualquer elemento que permitisse provar a sua qualidade de sucessor.
O. As testemunhas ouvidas tinham todas, interesse na decisão favorável aos AA., como seja o caso das testemunhas “G”, “H”, “I” e “J” pois são autores em ações contra o Município com causa de pedir e pedidos análogos. E a testemunha “L” que há longos anos colabora com a associação dos “rendeiros” destinada a lograr obter a propriedade dos prédios com o que igualmente são beneficiados.
P. O Município não pode fazer prova porque o Tribunal “ a quo”, não fez uso dos poderes que a lei lhe confere para a descoberta da verdade;
Q. A convicção do Meritíssimo juiz a quo assenta especialmente na prova testemunhal, o que por si só já constitui um risco, no caso acrescido, por se ter de decidir sobre a propriedade, áreas, antecessores e sucessores, para que a lei, aliás, exige meios de prova próprios.
R. O proprietário dos terrenos é o Município “B” e disso fez prova plena. A prova em contrario terá de ser uma prova positiva e clara, que não contrarie as regras da experiência e da vida».

Vejamos:
Na al. C) da matéria assente, fez-se constar o seguinte:
«Em 17 de Julho de 1972, o Réu dirigiu aos cultivadores das referidas terras cartas registadas com A/R para entregarem a mesmas em 30 de Setembro seguinte».
Esta matéria resulta do alegado na al. ff) do art. 36º da p.i., sendo que o completo teor dessa alínea era:
«A CM “B” dirigiu aos rendeiros/enfiteutas carta registadas com aviso de recepção, em 17 de Julho de 1972, para estes entregarem as terras arrendadas, em 30 de Setembro seguinte».
Apesar de a R. não ter reclamado da elaboração da matéria assente, importa considerar que, conforme referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 383, «[q]uanto ao elenco dos factos assentes, é [...] indiscutível que não faz caso julgado negativo, isto é, que não fica assente que os factos  nela não insertos não se encontram já provados à data da sua elaboração: o art. 659-3 manda o juiz considerar na sentença os factos provados por meio com força probatória plena, não remetendo para o elenco previamente elaborado».
A decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, designadamente, «se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa (…)» (art. 712º, nº1, al. a) do CPC).
Está em causa o conteúdo de uma comunicação feita pela Câmara Municipal “B”. Ora, o R. não a impugnou na sua contestação (vide arts. 4 e 5).
Conclui-se, assim, que a assiste razão ao R., motivo por que a redacção do ponto 3 dos factos provados passará a ser a seguinte:
 - Em 17 de Julho de 1972, o Réu dirigiu, aos cultivadores, cartas registadas com A/R para estes entregarem as terras arrendadas em 30 de Setembro seguinte.
 
No ponto 1 da base instrutória, perguntava-se:
«O Autor há mais de 70 anos e os seus antecessores há mais de 200 anos, através de acordo verbal celebrado com os anteriores proprietários, têm vindo a explorar e cultivar directamente uma parcela do prédio referido em 1. supra, com a área total de 51.795 m2 e com área de construção de 918,64 m2, como consta dos docs. de fls. 90-92 e 251-256?
Foi dado como provado que:
«O Autor há mais de setenta anos e os seus antecessores há mais de cem anos, têm vindo a explorar e cultivar directamente uma parcela do prédio referido em 1. supra, com a área total de 51.795 m2 e com área de construção de 918,64 m2».
Entende o A. que os factos constantes do ponto 1 da base instrutória contradizem os factos constantes do documento nº 13.
Considera, por outro lado, que as testemunhas ouvidas tinham todas interesse na decisão favorável aos AA., como seja o caso das testemunhas “G”, “H”, “I” e “J”, que são autores em acções contra o Município com causa de pedir e pedidos análogos, e a testemunha “L” há anos que colabora com a associação de rendeiros.
Defende ainda que a resposta assenta num juízo conclusivo – “o Autor e os seus antecessores”, que não permite identificar os antecessores que cultivavam o prédio, e o facto de que adveio a posse (transmissão por morte, negócio jurídico ou aquisição originária) nem a data em que a A. entrou na posse do terreno.
Continua, dizendo que, para além de se ter considerado provado que o antecessor da autora teria sido “E”, que aí teria erigido as edificações existentes e plantado árvores, não se especifica o facto que deu causa à sucessão nem a sua data.
Refere, ainda, que, no artigo 29º da petição inicial, o Autor afirma que o anterior arrendatário era “E”, mas do documento nº 13 não consta que o referido “E” tenha sido arrendatário daquela ou de qualquer outra parcela de terreno e dos documentos juntos pelo autor consta ser o mesmo filho de “A” e “M” e o A. não juntou qualquer documento que provasse a sua qualidade de sucessor.
Analisemos:
Dizer que as testemunhas são interessadas numa decisão favorável ao A., porque umas têm acções paralelas, com causa de pedir e pedidos análogos, e outra colabora com a associação de rendeiros, não nos parece argumento bastante para abalar, liminarmente, os depoimentos.
Tais testemunhas não estavam impedidas de depor, sendo o seu depoimento inteiramente válido. A circunstância de algumas terem acções similares não deve ser ignorada – tanto que, relativamente a essas, consta da acta da audiência a respectiva menção –, mas, por outro lado, o facto de residirem nas “C” (1º, 2ª, 4ª e 5ª testemunhas), ou seja, próximas do local onde vive o A. e tendo atravessado, ao longo dos anos, idênticos problemas, dá-lhes um conhecimento da situação que outras testemunhas não teriam.
Isso mesmo emana da fundamentação constante da sentença, cuja concisão está de acordo com o disposto no art. 15º, nº2, do DL 108/2006, de 08-06 (que apenas exige uma “fundamentação sumária do julgado”):
«O Tribunal firmou a sua convicção no depoimento das testemunhas “G”, “H”, “N”, “J” e “I”, todos elas com parcelas no local, conhecedores da parcela ocupada pelo Autor, mais revelando conhecimento do modo como tal parcela passou a ser explorada pelo autor e bem assim o que nela se cultiva, mais revelando conhecimento como era explorada pelos seus pais e avós, todos referindo que sempre pagaram rendas, inicialmente ao sr. “D” e após a aquisição pela Câmara passaram a depositar após a recusa desta em as receber».

Na verdade, as testemunhas “G”, “H” e “N” referiram-se à exploração (especificando em que consistia), desenvolvida, para além do A. (com 87 anos, à data da realização do julgamento, e que, de acordo com os depoimentos, sempre se manteve naquele local), pelos seus pais e avós, da parcela referida no ponto 1 da base instrutória, e as testemunhas “J” e “I” referiram-se apenas ao A. e aos pais, por já não se lembrarem dos avós.
A forma de abalar eficazmente o depoimento de uma testemunha passa por, incidindo sobre o que concretamente disse, destacar, ainda que com recurso a outros elementos probatórios, as insuficiências ou contradições desse depoimento. Ora, não nos parece que, pelo menos no que ao ponto 1 da base instrutória respeita, o R. tenha feito esse exercício.
A referência à prática de actos por alguém e seus antecessores relativamente a um dado prédio, sem que na matéria de facto sejam identificados os antecessores, é comum neste tipo de acções. Aliás, uma formulação desse teor consta, por exemplo, do doc. nº13,  junto pelo A. e a que o R. se refere algumas vezes, para assinalar que a resposta em crise contraria o conteúdo de tal documento.
Esse doc. nº13 é uma cópia de um despacho saneador, com especificação e questionário, atinente a um processo que vem identificado, manualmente, como sendo o nº 5301 (despejo), do 1º Juízo, 1ª Secção, do Tribunal Judicial de ....
No fim do despacho saneador proferido nos presentes autos, foi determinado que se notificasse o A. para provar documentalmente o facto alegado no art. 36º hh) da petição inicial, que é do seguinte teor:
«Em 29 de Julho de 1970, a CM “B” foi judicialmente notificada, na pessoa do seu Exmo. Presidente, de que os rendeiros/enfiteutas não aceitaram o despedimento».
Em resposta a esse despacho, constante de fls. 498 e segs., foi pelo A. dito que a prova do aludido facto já constava do Doc. nº13 junto com a petição inicial e acrescentando que «o artigo nº1 da PI convoca o Proc.  5.301/73 – 1ª Secção -1º juízo do TJ ..., que a Fls. 140 a 144 contém o documento que comprova exactamente esse facto: “em 29 de Julho de 1.970, a autora foi judicialmente notificada na pessoa do seu Exmo Presidente de que os réus não aceitaram o despedimento , conforme doc. de fls. 140 a 144” – alínea t’ da ESPECIFICAÇÃO, Fls. 168 do mencionado processo (…)».
O A. requereu que se mandasse apensar aos presentes autos esse processo com o nº 5301/73, ou então que, oficiosamente, se mandasse passar certidão de fls. 140 a 144 do mesmo, ou ainda, caso assim não se entendesse, se prorrogasse o prazo para o A. juntar a certidão.
A fls. 550, foi proferido despacho, no qual, além do mais, se considerou que assistia razão ao A. no alegado, como se constatava a fls. 76 alínea t), pelo que se dispensou a comprovação documental de tal facto.
O R. pronunciou-se sobre esta matéria a fls. 566-567, nos seguintes termos:
«1. Da alínea T) (fls. 76), consta que "Em 29 de Julho de 1970, a autora foi judicialmente notificada na pessoa da seu Exm.° Presidente, de que os Réus não aceitaram o despedimento, conforme doc. de fls. 140 e 144."
2. Acontece que, não obstante tratar-se de um facto provado, desconhece-se o resultado da aludida acção judicial.
3. Na verdade não se sabe em que sentido a mesma foi decidida ou, aliás, se na mesma foi proferida decisão e se a mesma transitou em julgado.
4.  Pelo que, se entende que o facto em questão deve ser provado documentalmente».
A fls. 572, recaiu, sobre esta matéria, despacho (não impugnado) do seguinte teor:
«Requerimento que antecede: Já me pronunciei a fls. 550 (1ª parte) e nada mais tenho a acrescentar».

Da especificação, contida no aludido doc. nº 13, consta, designadamente, o seguinte:
«Os réus, por si ou por antecessores celebraram contratos de arrendamento verbais, com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renováveis, com um anterior proprietário, “D”, das áreas que se indicam nas alíneas e) a p’), com as rendas também nelas referidas, há mais de 30 anos».

Como decorre do que supra se deixou dito, não se pode absolutizar o conteúdo de uma especificação/matéria assente, ademais quando respeita a processo diferente e desacompanhada de outros elementos, importando, sim, acima de tudo, saber o que se provou a final e o que foi decidido, com trânsito em julgado, como, aliás, pondera o R. na sua tomada de posição a fls. 566-567, que, salvo o devido respeito, não se mostra inteiramente coincidente com a, agora, assumida em sede de impugnação da matéria de facto, em que se aponta ao Tribunal não ter tomado em consideração factos decorrentes de tal documento.
Na contestação, o R. havia referido não dispor de informação sobre o desfecho da acção, crendo que terá sido julgada deserta na sequência dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974.
A prova testemunhal é aquela que predomina quando estão em causa actos, praticados ao longo dos anos, susceptíveis de demonstrarem a acessão ou sucessão na posse.
Diga-se que, no que concerne aos antecessores do A., há, na petição, um manifesto lapso, ao identificar-se, no art. 29º, o pai do A. como “E”, alegando-se que, sendo o anterior arrendatário, fez na courela arrendada as obras ainda lá existentes e plantou árvores. Ora, o próprio A. juntou aos autos, com a petição (a fls. 25 e 26) uma cópia do seu bilhete de identidade, do qual consta o nome dos seus pais (a quem as referidas testemunhas se reportaram) – “A” e “M”.
Os actos em apreço são, na petição, atribuídos – repete-se – ao pai do A., não sendo de concluir que este se estivesse a referir a outra pessoa.
O lapso em apreço foi repetido no quesito 11º e na respectiva resposta, razão por que, nesta (ponto 15 da matéria provada), onde consta ““E””, deve ler-se ““A””.
No que se refere à área mencionada na resposta ao art. 1º da base instrutória, há que ter em conta os docs. de fls. 90 a 92 e o depoimento da testemunha “L”, que fez a medição/avaliação das parcelas (relatórios de fls. 250 e segs. e de fls. 394 e segs.).
Assim, face à prova produzida pelo A. e não suficientemente contrariada pelo R. (o facto, sublinhado na al. P. das conclusões, de o R. não ter podido fazer prova, a si próprio é, salvo o devido respeito, imputável, conforme resulta do decidido quanto ao agravo), entende-se ser de manter a resposta ao ponto 1 da base instrutória.

O Apelante impugnou também a resposta ao ponto 2 da base instrutória.
Perguntava-se, nesse ponto, o seguinte:
«Pelo pagamento da contrapartida anual de €12,50?»
Deu-se como provado:
«E, após “D” se intitular o proprietário das “C”, mediante o pagamento da contrapartida anual de valor não concretamente não apurado, mas pelo menos, após a aquisição da parcela pelo Réu, no valor de 12,50 euros».
Refere o Apelante que nem do depoimento das testemunhas inquiridas nem dos documentos juntos aos autos consta qualquer documento que permita concluir que o autor pague anualmente qualquer quantia a título de contrapartida pela exploração daquela parcela de terreno.
Na verdade, provou-se que o R. sempre se recusou a receber rendas pela exploração das “C”. Não está, pois, provado que, depois da aquisição das ““C”” pelo R., o A. tlhe tenha pago rendas directamente. No que concerne a depósitos, muito embora as testemunhas “H”, “J” e “I” tenham feito menção a reuniões, no final de Setembro de cada ano, em que os rendeiros decidiram depositar o quantitativo de €12,50, não puderam garantir que, efectivamente, o A. fez depósitos nesse montante, ou noutro, e não foram juntos ao processo documentos que os comprovem.
Assim, salvo o devido respeito, não seria de dar como provado que o A. vem, após a aquisição da parcela pelo R., pagando uma contrapartida anual de €12,50.
Pelo exposto, o ponto 2 da base instrutória (nº 6 da matéria de facto) passará a ter a seguinte redacção:
«E, após “D” se intitular o proprietário das “C”, mediante o pagamento a este de contrapartida anual de valor não concretamente apurado».

O Apelante, como decorre das suas conclusões, impugnou também o decidido quanto ao ponto 3 da base instrutória.
Aí se perguntava o seguinte:
«Aos olhos de todos, pacificamente, sem oposição de ninguém e com autorização do Réu?».
A resposta foi:
«Aos olhos de todos, pacificamente, sem oposição de ninguém e com autorização após o 25 de Abril de 1974, do então presidente da Câmara Municipal “B”».
Refere o Apelante que é público o litígio entre os rendeiros e o Município e que, relativamente à autorização do Presidente da Câmara, a prova teria de ser feita por documento.
No que tange à oposição do Município/R., resulta da matéria provada que o Ré dirigiu, em Julho de 1972, cartas aos rendeiros para que entregassem as terras e recusou-se a receber as rendas (ponto 3). Provou-se ainda que os cultivadores não entregaram as terras por considerarem que as podiam reter até serem pagos dos melhoramentos que nelas fizeram (ponto 4).
Desde logo, a primeira testemunha referiu que a Câmara, após o negócio dos terrenos com “D”, se apresentou como dona e mandou uma carta de “despedimento” aos rendeiros. No mesmo sentido, depôs a testemunha “H”, explicando que, em 1972, foi, pela Câmara Municipal “B”, enviada uma carta a cada agricultor para que fossem entregues as terras, o que eles não aceitaram. Isso foi, ainda, confirmado pelos depoimentos das testemunhas “J” e “I”.
Sendo assim, consideramos que a ausência de oposição está provada apenas até ocorrência referida no ponto 3 da matéria provada.
No que se refere à autorização, após o 25 de Abril de 1974, do então Presidente da Câmara Municipal “B”, não há, na verdade, documento que a comprove. Por outro lado, o que ressalta, fundamentalmente, quanto a este aspecto, dos depoimentos das testemunhas “H” e “J” (sendo que a testemunha “I” também aludiu ao caso, mas por ouvir dizer) é que o Sr. Presidente “O” referiu, no que concerne, sobretudo, à construção das suas casas, se votassem nele, estariam à vontade. Ora, daqui se infere que tal se passou num período de campanha eleitoral, sendo que a data a que se faz menção é: “após o 25 de Abril de 1974”.
Consultando o portal da Câmara Municipal “B”, em www.m-”B”.pt, na informação sobre os presidentes anteriores, verifica-se que «“O” foi o primeiro Presidente eleito para a Autarquia “B”, acumulando mandatos desde 1977 até 1988.
Palavras ditas num contexto de uma candidatura a uma câmara municipal não se podem confundir com uma “autorização” para a prática de determinados actos, como os que envolvem, designadamente, construções, enquanto presidente dessa câmara e de modo a vinculá-la.
Entende-se, pelo exposto, que não está provada a “autorização” referida no ponto 3 da base instrutória (nº 7 da matéria de facto).
Assim, este ponto passará a ter a seguinte redacção:
«Aos olhos de todos, pacificamente, e, até à ocorrência referida no ponto 3 da matéria de facto, sem oposição de ninguém».

Nas suas conclusões, diz ainda o Apelante que o valor das benfeitorias não se encontra minimamente fundamentado.
Na sentença recorrida, foi exarado que «no que respeita ao valor da parcela e suas edificações a convicção do Tribunal firmou-se no relatório pericial de fls. 1011 a 1042».
A Exmª Perita, nomeada para o efeito, na sequência de requerimento do A., apresentou circunstanciado relatório, a fls. 1011-1042, o qual suscitou um pedido de esclarecimentos por parte do R. a fls. 1046-1047, tendo a Exmª Perita prestado os esclarecimentos a fls. 1060-1062.
Nada mais foi requerido pelo R. na sequência de tais esclarecimentos.
Não pode, pois, dizer, salvo devido respeito, que o valor das benfeitorias não está minimamente fundamentado, não se impondo qualquer alteração nesse domínio.

Por tudo o que se deixou exposto, introduzem-se as seguintes alterações na matéria de facto:
a) - O ponto 3 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:
- Em 17 de Julho de 1972, o Réu dirigiu, aos cultivadores, cartas registadas com A/R para estes entregarem as terras arrendadas em 30 de Setembro seguinte;

b) - O ponto 6 da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:
E, após “D” se intitular o proprietário das “C”, mediante o pagamento a este de contrapartida anual de valor não concretamente apurado;

c) - O ponto 7 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:
Aos olhos de todos, pacificamente, e, até à ocorrência referida no ponto 3 da matéria de facto, sem oposição de ninguém;

- No ponto 15 dos factos provados, onde se lê ““E””, deve ler-se: ““A””.
IV

O A., como se retira do último ponto da conclusão da petição inicial, pretende que se condene o Réu /Município “B”/CM “B” a reconhecer-lhe os direitos antes enunciados e, por via desse reconhecimento, declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando o A. na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.

O art. 1491º do Código Civil, a enfiteuse vinha definida pela seguinte forma:

«1. Tem o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil. 
2. O prédio sujeito ao regime enfitêutico pode ser rústico ou urbano e tem o nome de prazo. 
3. Ao titular do domínio directo dá-se o nome de senhorio; ao titular do domínio útil, o de foreiro ou enfiteuta.».
A enfiteuse era de sua natureza perpétua, sem prejuízo do direito de remição, sendo tidos como arrendamento os contratos que fossem celebrados com o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, mas estipulados por tempo limitado (art. 1492º do C. Civ.) e podia ser constituída por contrato, testamento ou usucapião (art. 1497º).  
No que concerne à perpetuidade da enfiteuse, Pires de Lima e A. Varela, exararam no Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1972, pág. 488, o seguinte (com destaque nosso):
«O novo Código não se afastou da orientação fixada na legislação anterior, apesar de se ter reconhecido a impossibilidade de atribuir hoje à enfiteuse a mesma finalidade económica e social que o instituto teve no pas­sado. Entendeu-se, porém, que a perpetuidade, constituindo um índice seguro do desmembramento da propriedade e do carácter real do direito enfitêutico, deve ser aproveitada no comércio jurídico como um sinal característico do emprazamento. Assim se facilitará a distinção entre o aforamento, de um lado, e o arrendamento (a curto ou a longo prazo), o mútuo com garan­tia predial ou o usufruto, do outro, dando a cada uma dessas figuras uma finalidade própria, capaz de justificar a sua existência autónoma. Note-se, a propósito, que o facto de o enfiteuta poder remir o foro não significa o mesmo que consentir na enfiteuse temporária, quer porque o enfiteuta tem de pagar o preço da remição, quer porque o senhorio não pode, por si, pôr termo à enfiteuse.
Afastada a enfiteuse temporária, prejudicados ficam, por maioria de razão, os chamados prazos de vidas (cfr. arts. 1697.0 e segs. do Cód. de 1867), os quais, como reminiscência que são do sistema vincular, devem considerar-se banidos com este».

O prazo era indivisível (art. 1493º), bem como o domínio directo (art. 1495º, nº1).
O senhorio directo tinha direito, além do mais, a receber anualmente o foro (art. 1499º, a), e o enfiteuta a usar e fruir o prédio como coisa sua (al. a) do art. 1501º, sempre do C. Civil).
No Ac. da Rel. de Coimbra, de 23-11-2011 (Rel. Virgílio Mateus), publicado em www.dgsi.pt, fez-se uma feliz síntese sobre este instituto, que aqui, com a devida vénia, se reproduz:
«A enfiteuse, também designada aprazamento ou aforamento, era um direito real menor, que era regulado nos artigos 1491 a 1523º do C C. Nesse instituto a propriedade aparece desmembrada em dois domínios: o domínio directo (cujo titular se designava senhorio) e o domínio útil (cujo titular se designava foreiro ou enfiteuta) – art. 1491º. O prédio seu objecto designa-se prazo. O direito podia constituir-se por usucapião ou contrato; neste caso, a contrapartida paga pelo enfiteuta ao senhorio designava-se na lei como “prestação anual” ou foro. Qualquer dos dois domínios se podia adquirir por usucapião, mas a usucapião do domínio directo pelo enfiteuta dependia da inversão do título da posse – cf. art. 1290º -- visto ele ser possuidor em nome próprio, mas apenas do domínio útil; do domínio directo é possuidor em nome alheio (neste sentido, CC Anotado, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. III, 1972, p. 526). Usucapindo o enfiteuta o domínio directo, ocorreria confusão dos dois domínios na mesma pessoa, com a consequente extinção da enfiteuse e surgimento do direito de propriedade na titularidade do enfiteuta.
A enfiteuse tinha uma característica essencial: por natureza era perpétua – artigo 1492º nº 1. De modo que, sendo direito real, de natureza patrimonial e perpétua, era transmissível via hereditatis».

A enfiteuse foi abolida pelo DL 195-A/76, de 16 de Março, em cujo preâmbulo se fez constar o seguinte:
«Através da forma jurídica da enfiteuse têm continuado a impender sobre muitas dezenas de milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal. Com efeito, encontram-se ainda hoje extremamente generalizados os foros, podendo referir-se que só o Estado, segundo estimativas feitas pela Direcção-Geral da Fazenda Pública, é titular de domínios directos que atingem cerca de 400 000, ultrapassando o seu valor 1 milhão de contos.
Uma política agrária orientada para o apoio e a libertação dos pequenos agricultores não pode deixar de integrar a liquidação radical de tais relações subsistentes no campo.
Previu-se, no entanto, a particularidade de situação dos pequenos senhorios, tendo-se adoptado uma solução que permitirá ao Estado identificar rapidamente tais situações».

No art. 1º deste diploma, estabeleceu-se:
«1. É abolida a enfiteuse a que se acham sujeitos os prédios rústicos, transferindo-se o domínio directo deles para o titular do domínio útil.
 2. Nos contratos de subenfiteuse de pretérito a propriedade plena radica-se no subenfiteuta. 
3. Serão oficiosamente efectuadas as correspondentes operações de registo». 

E no art. 2º:
“1. O Estado, através do Ministério da Agricultura, indemnizará o titular do domínio directo quando este for uma pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional. 
2. A indemnização consistirá no pagamento anual, enquanto forem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia.”

A Lei nº 22/87, de 24-06, aditou, no seu art. 1º, novos números ao art. 1º do DL nº 195-A/76, com a seguinte redacção:
«4 — No caso de não haver registo anterior nem contrato escrito, o registo de enfiteuse poderá fazer-se com base em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial. 
5 — Considera-se que a enfiteuse se constitui por usucapião se quem alegar a titularidade do domínio útil provar por qualquer modo:
 a) Que em 16 de Março de 1976 tinham decorrido os prazos de usucapião previstos na lei civil; 
b) Que pagava uma prestação anual ao senhorio;
c) Que as benfeitorias realizadas pelo interessado, contitular ou seus antecessores na posse do prédio ou parcela foram feitas na convicção de exercer direito próprio como enfiteuta;
 d) Que as benfeitorias, à data da interposição da acção, têm um valor de, pelo menos, metade do valor da terra no estado de inculta, sem atender à sua virtual aptidão para a urbanização ou outros fins não agrícolas.».

Através da Lei nº 108/97, de 16-09, foi alterado o nº5 do dito art. 1º, passando a ter a seguinte redacção:
“5 — Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:
 a) Desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;
 b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, mesmo que depois de 16 de Março de 1976,do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.»

Foi, ao mesmo tempo, aditado ao mesmo art. 1º um novo número, do seguinte teor:
“6. Pode pedir o reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião quem tenha sucedido ao cultivador inicial por morte ou por negócio entre vivos, mesmo que sem título, desde que as sucessões hajam sido acompanhadas das correspondentes transmissões da posse.”

O art. 1º do DL 195-A/76 passou, assim, após todas estas alterações, a ter a seguinte redacção:
1 – É abolida a enfiteuse a que se acham sujeitos os prédios rústicos, transferindo-se o domínio directo deles para o titular do domínio útil.
 2 –  Nos contratos de subenfiteuse de pretérito a propriedade plena radica-se no subenfiteuta. 
3 – Serão oficiosamente efectuadas as correspondentes operações de registo. 
4 — No caso de não haver registo anterior nem contrato escrito, o registo de enfiteuse poderá fazer-se com base em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial. 
5 — Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:
 a) Desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;
 b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.
6. Pode pedir o reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião quem tenha sucedido ao cultivador inicial por morte ou por negócio entre vivos, mesmo que sem título, desde que as sucessões hajam sido acompanhadas das correspondentes transmissões da posse.

No art. 101º (Formas de exploração da terra alheia), estabeleceu-se  o seguinte:
«1. Os regimes de arrendamento e de outras formas de exploração de terra alheia serão regulados por lei de modo a garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador.
 2. Serão extintos os regimes de aforamento e colonia e criadas condições aos cultivadores para a efectiva abolição do regime da parceria agrícola».

No actual nº2 do art. 96º (correspondente àquele art. 101º) da CRP, prescreve-se:
«São proibidos os regimes de aforamento e colonia e serão criadas condições aos cultivadores para a efectiva abolição do regime de parceria agrícola».

O Apelante defende que o proprietário dos terrenos é o Município “B” e que disso fez prova plena, não tendo a douta sentença atendido ao funcionamento da presunção juris tantum da titularidade desse direito, resultante do registo definitivo, ou seja, a presunção prevista no art. 7º do Cod. Reg. Predial (o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define).
Refere que a douta sentença recorrida ignorou que os arrendamentos foram extintos em 30 de Setembro de 1972, tendo os rendeiros apenas reclamado benfeitorias.
No caso vertente – acrescenta o Apelante – recairia sobre o Autor o encargo de demonstrar, pela positiva, que tinha a titularidade do direito de propriedade sobre as parcelas de terreno em questão ou que, atentas as circunstâncias do caso dos autos, tinha a titularidade do domínio útil, antes da abolição da enfiteuse sobre prédios rústicos, em 1976.
Diz ainda que o Autor alegou que a qualidade a que se arroga teria, na sua génese, um contrato de arrendamento rural, com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renovável, celebrado verbalmente com um anterior proprietário; o autor e os seus alegados antecessores sempre se arrogaram arrendatários das parcelas de terreno, nunca invocando que eram enfiteutas ou titulares de qualquer outro direito real de gozo.
A constituição da enfiteuse – continua – apenas poderia considerar-se admissível a partir de uma situação possessória correspondente ao exercício de tal direito, com determinadas características e por certo lapso de tempo. A invocação pelo autor de uma hipotética constituição da enfiteuse por usucapião apenas poderia relevar, antes e independentemente da verificação de qualquer outro pressuposto ou requisito, se aqueles tivessem assumido, no plano factual em que a posse se localiza, as vestes de enfiteutas, por um determinado período.
Conclui que o Autor não é e nunca foi enfiteuta, porque tal posição, seja por via contratual seja através da usucapião, só poderia emergir de um vínculo ou de uma situação possessória, com a nota essencial da perpetuidade caracterizadora da enfiteuse.
Vejamos:
Na petição inicial, o A., embora aqui e ali, tenha lançado mão, em simultâneo, de vários conceitos (rendeiro/enfiteuta/cultivador directo/possuidor), alegou, além do mais, que os rendeiros/enfiteutas, por si ou por seus antecessores celebraram, relativamente às ditas ““C”” contratos de arrendamento verbais, com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renováveis, com um anterior proprietário, “D”, das áreas que indica e com as rendas também referidas, há mais de 70 anos.
O A. juntou aos autos recibos de renda passados por “D”, naturalmente para atestar, mesmo não lhe dizendo respeito, ou aos seus antecessores, a relação de arrendamento que, desde longa data, existia relativamente às ““C””, envolvendo, como é patenteado pela relação apresentada na petição, um substancial número de pessoas.
Referiu, a dado passo, que sucedeu a seus pais, com quem vivia em comunhão de mesa e habitação, pelo que lhe foi transmitida a posição de arrendatário.
Mais referiu que a Câmara Municipal, em 16 de Novembro de 1971 e 17 de Março de 1972, comprou a Quinta ... (vulgo ““C””) e, como não lhe convinha, a partir do ano de 1972, a renovação dos contratos, dirigiu aos rendeiros/enfiteutas cartas registadas com a.r., em 17 de Julho de 1972, para estes entregarem as terras arrendadas em 30 de Setembro seguinte.
Alegou ainda que os rendeiros/enfiteutas não entregaram as terras e invocaram o direito de retenção até serem pagos das benfeitorias e que a C. M. “B” foi judicialmente notificada de que os rendeiros/enfiteutas não aceitaram o “despedimento”.
Não se vê que da petição resultem alegados factos demonstrativos de uma relação enfitêutica, marcada pela divisão em domínio directo e domínio útil e com a perpetuidade própria da enfiteuse. A alegação de que se tratava de um contrato com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renovável, contraria, desde logo, aquela característica.
Configura-se, salvo melhor opinião – e, como, aliás, é admitido pelo A. –, considerando a data em que o R. adquiriu, por compra, as ““C””, um contrato de arrendamento rural a cultivador directo (arts. 1079º a 1082º do C. Civil de 1966).
Os arrendatários possuem em nome de outrem (art. 1253º, al. c) do C. Civil) –(Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, 1987, págs. 10-11) e não se alegaram factos que consubstanciem a inversão do título de posse (art. 1263, al. d) e 1265º do C. Civil).
Alega o R. que o arrendamento se extinguiu, mas, salvo o devido respeito por opinião diversa, no que concerne ao caso específico do A., os autos não fornecem elementos suficientes para se chegar a essa conclusão, sendo certo que o R. não suscitou formalmente a questão na contestação, na qual, aliás, alegou ter aquele ocupado uma parcela das “C”, intitulando-se rendeiro e sublocando a sua exploração.
Considerou-se, na douta sentença, que os diplomas legais aí citados (DL nº 195-A/76, de 16-03, Lei nº 22/87, de 24-06 e Lei nº 108/97, de 16-09) criaram uma forma especial de aquisição por usucapião, com requisitos menos exigentes que os previstos em geral para essa forma de aquisição do direito, designadamente dispensando a prova da existência de uma relação enfitêutica, da inversão do título, nos casos em que a posse se iniciou numa relação de arrendamento, e até do animus de actuação na convicção de exercício de direito próprio como enfiteuta, que era exigido no nº 5 al. d) do preceito, na redacção introduzida pela Lei nº 22/87, mas que entretanto foi eliminada.
Adoptou-se, assim, a posição defendida pelo Sr. Prof. Menezes Cordeiro, constante do douto Parecer de fls. 114 e segs..
Menezes Cordeiro concluiu o seguinte:
«1ª A enfiteuse apresenta, nos dois últimos milénios, uma feição multifacetada; como traço distintivo, ela contrapõe-se seja à compra e venda (uma vez que pressupõe um domínio desmembrado) seja à locação (uma vez que tem natureza real, tendencialmente perpétua).
2ª A evolução nacional traduziu-se em incrementar os direitos e a estabilidade do enfiteuta, firmando, desde 1867, a sua perpetuidade.
3ª Na determinação da natureza enfitêutica de determinada situação, há que privilegiar os indícios materiais, em detrimento das meras qualificações vocabulares que os interessados lhes tenham atribuído.
4ª Em 1976, um diploma legal extinguiu a enfiteuse de prédios rústicos, radicando a propriedade plena no enfiteuta; trata-se de uma linha expressamente confirmada pela Constituição.
5ª A mens legislatoris era, naturalmente, a de beneficiar o verdadeiro enfiteuta, fosse qual fosse a designação que se lhe atribuísse.
6ª No tocante a enfiteuses de pretérito: elas podem ser provadas por qualquer meio, não dependendo nem de forma, nem de registo.
7ª A enfiteuse pode-se constituir em moldes unilaterais e, designadamente, por usucapião.
8ª As Leis n° 22/87, de 24 de Junho e n° 108/97, de 16 de Setembro, vieram alterar o diploma de extinção da enfiteuse no sentido de permitirem uma modalidade específica de usucapião.
9ª Na versão em vigor, tal usucapião opera perante o cultivo remunerado de terra alheia, desde 15 de Março de 1946, contanto que tenham sido feitas determinadas benfeitorias.
10a Tal situação é, assim e dentro da margem do legislador, considerada enfitêutica, podendo transmitir-se em vida e por morte, de modo informal».

Conforme se retira da leitura do douto Parecer, defende-se que a lei 22/82, de 24-06, veio estabelecer uma presunção de usucapião com base em quatro indícios, constituindo esses indícios uma concretização ex lege da figura. Acrescenta-se que «verificados os requisitos em causa, o enfiteuta não teria de provar a inversão do título, mormente quando tivesse iniciado uma posse em termos de arrendamento. Nestes casos, aliás, bem poderia acontecer que as partes tivessem chamado "arrendamento" a uma verdadeira enfiteuse» (pág. 71 do Parecer).
Relativamente à alteração introduzida pela Lei nº 108/97, de 16-09, refere-se que esta ainda veio facilitar mais os “indícios” da usucapião, permitindo equiparar os arrendamentos de longa duração à enfiteuse, desde que tenha havido benfeitorias consideráveis, devidamente quantificadas, e dispensando-se qualquer inversão do título e, ainda, o próprio animus emphytheutae (pág. 72).
Quanto ao art. nº6 do art. 1º, aditado pela mesma Lei, refere-se que «explicita a acessão ou a concessão da posse boa para usucapião facilitada. Fá-lo, de resto, nos termos gerais, explicitando que as transmissões para o efeito adequadas operam, mesmo quando formalmente inválidas» (pág. 73).

No Parecer da autoria do Sr. Prof. Gomes Canotilho e do Sr. Dr. Abílio Vassalo Abreu, inserto a fls. 597 e segs. dos autos, discorda-se da posição do Sr. Prof. Menezes Cordeiro.
Considera-se, neste douto parecer, que a Constituição da República Portuguesa, ao proibir o «regime de aforamento», «tomou este conceito na sua tradicional acepção civilística, consagrada, entre nós, nos artigos 1491º e segs. da versão primitiva do Código Civil em vigor», significando isto que «o legislador constitucional teve em mira o desmembramento ou o fraccionamento do direito de propriedade em dois domínios paralelos que versam sobre o mesmo bem – o “domínio directo” e o ”domínio útil” –, perfeitamente autónomos e separados entre si, cada um deles com o seu próprio conteúdo, inconfundível como o do outro», o que «é incompatível, sob a jure Constitutionis, com a pretensão de «equiparar os arrendamentos de muito longa duração à enfiteuse» (pág. 185 do Parecer), «[s]endo seguro que, independentemente do resto, não existe, sob o prisma jure civili, qualquer fusão-confusão possível entre a enfiteuse e o arrendamento, por mais prorrogações (voluntárias ou automáticas) que deste tenha havido e, em consequência, por mais que este se tenha prolongado no tempo» (pág. 186).
Refere-se também que com a proibição do «regime de aforamento» estatuída na Constituição, a extinção da enfiteuse sobre os prédios rústicos, anteriormente operada pelo DL 195-A/76, de 16 de Março, passou a dispor de uma explícita credencial constitucional, o que é relevante para o Direito Civil, atendendo, sobretudo, ao princípio da taxatividade ou do “numerus clausus” dos direitos reais (art. 1306º, nº1, do Código Civil), sendo, a partir da entrada em vigor daquele Decreto-Lei, nulos os actos tendentes à sua constituição no futuro (pág. 186).
Sublinha-se, igualmente, que «a verificação da usucapião depende, em primeira linha e sem prejuízo de outros pressupostos ou requisitos, da existência de posse de uma coisa nos termos correspondentes ao direito de propriedade (uti dominus) ou de outro direito real de gozo não excluído expressamente da mesma ex vi legis (cfr. os artigos 1251º, 1287º e 1293º do Código Civil) – (pág. 187), não podendo existir posse nos termos correspondentes a um direito real de gozo não previsto na lei, como passou a suceder com a enfiteuse depois de ter sido abolida (pág. 188).
Comentando as alterações introduzidas pela Lei nº 22/87, de 24 de Junho, refere-se, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, que o legislador teve a pretensão de resolver os problemas com que os interessados continuavam a defrontar-se em relação à prova da sua qualidade de enfiteutas e ao consequente reconhecimento de jure da mesma, bem como no tocante às operações de registo predial referentes à extinção da enfiteuse sobre prédios rústicos, nos casos de aforamentos sem título nem registo (pág. 201).
Chama-se a atenção para o facto de só ter legitimidade para pedir o reconhecimento da constituição de enfiteuse por usucapião quem alegar a titularidade do domínio útil, impondo-se que o interessado alegue que, em 16 de Março de 1976, (data da extinção da enfiteuse sobre prédios rústicos), era possuidor nos termos correspondentes ao domínio útil (pág. 206).
Considera-se, ainda, entre outras detalhadas reflexões, que, quando fala de antecessores (do interessado) na posse do prédio ou parcela, inferindo-se que se trata da posse do domínio útil, a lei se refere, ainda que implicitamente, ao mecanismo de acessão na posse (art. 1256º do C. Civil), sendo necessário que as benfeitorias realizadas pelo interessado ou antecessores sejam feitas na convicção de exercer direito próprio como enfiteuta. – (págs. 213-214).
Comentando-se as alterações introduzidas pela Lei nº 108/97, de 16-09, insiste-se em que «só é, histórica e dogmaticamente possível, e inteligível, falar de usucapião quando há posse, e posse em nome próprio, porquanto é mais do que sabido que aquela constitui, ab origine e natura sua, um efeito (defectível) desta» (pág. 220), pois «a usucapião postula a posse como o fruto a árvore» [destaque nosso] - (pág. 221).
Continua-se, dizendo o seguinte:
«Nesta ordem de ideias, e salvaguardando o devido respeito, não pode aceitar-se, nomeadamente, que, sendo o «interessado em afirmar-se enfiteuta» um mero detentor – ainda que com uma detenção qualificada (in terminis juris) enquanto arrendatário –, se dispense em relação a ele «qualquer inversão do título e, ainda, o próprio animus emphyteutae», a fim de poder beneficiar, ex lege, de um regime especial de constituição da enfiteuse por «usucapião» (pág. 221).
Vinca-se que não há nada, quer na letra quer no espírito da lei, que permita inferir uma equiparação dos arrendamentos de muito longa duração à enfiteuse, ou, por qualquer forma, a legitime ou caucione (pág. 224).
Assinala-se (o que, por mais do que uma vez, é feito ao longo do Parecer) que o nº4 do aludido art. 1º, aditado pela Lei nº 22/87, se mantém em vigor, conservando-se, por isso, o quadro conceptual de fundo que ele pressupõe e implica, inter alia, em matéria de enfiteuse, posse, usucapião e respectivos pressupostos» (pág. 231), quadro conceptual que persiste apesar de terem sido eliminados alguns termos com a alteração levada a cabo pela Lei nº 108/97, pois trata-se do «reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião» (pág. 235), sendo certo que – sublinhamos nós – que a epígrafe da Lei é reveladora: Sobre a extinção da enfiteuse ou aforamento.
Com todo o respeito por opinião diferente, concordamos com os precedentes considerandos constantes do douto Parecer a que nos vimos referindo.
No caso que nos ocupa e como resulta do que supra se deixou dito, não se provou mais do que uma relação jurídica de arrendamento, não estando demonstrada a posse em termos de domínio útil (recordando-se que no nº1 do art. 1º do DL 195-A/76 se decreta a abolição da enfiteuse a que se acham sujeitos os prédios rústicos, transferindo-se o domínio directo deles para o titular do domínio útil), nem que tenha havido inversão do título de posse.
Entende-se, assim, em concordância com as conclusões AA) a FF) do Apelante, não resultar, desde logo pelo que se acaba de referir e sem necessidade de outras apreciações, demonstrada a pretendida aquisição, por usucapião, por parte do A., da parcela em causa, razão por que a douta sentença terá de ser revogada.

Ainda que assim não se entenda, sempre se configurará uma situação de inconstitucionalidade material, como é defendido pelo Apelante e conforme se exarou no Ac. do STJ de 09-4-2013 (Rel. Fonseca Ramos), publicado em www.dgsi.pt, cujo sumário é do seguinte teor:
«I. A enfiteuse de prédios rústicos manteve-se no Código Civil de 1967 até que foi abolida, após a Revolução de 25 de Abril de 1974, - Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16 de Março - por se considerar que fazia impender sobre os pequenos agricultores “encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais de modo de produção feudal”.
II. O traço mais inovador dessa medida [coeva de um tempo histórico de mudança social e política com extraordinárias alterações na estrutura fundiária, sobretudo na zona territorial do latifúndio, a que foi aplicada a Reforma Agrária], consistiu no facto do titular do domínio útil, o titular do gozo do prédio, passar a ser proprietário pleno do domínio directo.
III. O direito de propriedade sendo absoluto, art. 1305º do Código Civil, em termos civilísticos, conhece limitações ditadas, ou por razões de direito privado, ou fundamentos de direito público.
III. Reconhecendo a Lei Fundamental o direito à propriedade privada, procedimentos ablativos do direito de propriedade só são constitucionalmente admitidos mediante o pagamento de uma “justa indemnização”, de modo a que os princípio da igualdade, da proporcionalidade e da confiança não sejam afrontados pela extinção forçada de tal direito.
IV) O DL. 195-A/76, de 16 de Março, ao abolir a enfiteuse a que estavam sujeitos os prédios rústicos e ao conferir ao titular do domínio directo o domínio útil, atribuindo ao titular deste uma indemnização desrazoável e discriminatória, uma vez que apenas foi legalmente prevista para os casos em que o titular do domínio directo fosse pessoa singular com rendimento inferior ao salário mínimo nacional – art. 2º, nº1 – e estabelecendo que essa indemnização consistiria no pagamento anual enquanto fossem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia, violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade, do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança, e violou, ainda, o direito de propriedade privada, já que o acto ablativo do direito de propriedade não foi acompanhado de indemnização que possa ser considerada justa, mesmo em função do tempo histórico em que ocorreu.
V) Tendo a pretensão dos AA. assentado também na aquisição do direito de propriedade por usucapião como modo de aquisição do domínio útil que se arrogaram, para depois, por via dele, se tornaram titulares do domínio útil, mesmo que não fosse de considerar a inconstitucionalidade material do diploma abolitivo da enfiteuse, este Tribunal, ao abrigo do art. 204º da Constituição da República, por considerar materialmente inconstitucional a norma do art. 1º da Lei nº108/97, de 15.9., que alterou a redacção do nº5 do DL. 175-A/96, de 16 de Março, ao admitir a constituição da enfiteuse por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim retroactivamente um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização – art. 62º, nº2, da Constituição da República – violou os princípios da igualdade (art. 13º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança.
VI) O facto de a Constituição de 1976 ter consagrado a extinção da enfiteuse é irrelevante, não sanando a inconstitucionalidade cometida».

Já no Ac. do STJ, de 15-10-1998 (Rel. Noronha Nascimento), cujo sumário se mostra publicado em www.dgsi.pt, se entendera que «[o] artigo 2, DL 195-A/76, de 16 de Março, poderá enfermar de inconstitucionalidade material, por contrário aos artigos 13 e 62, da Constituição Política de 1976, na medida em que extingue, por lei, uma modalidade de propriedade sem que preveja, para todas as hipóteses, o respectivo direito de indemnização, e na medida em que impõe a alguns cidadãos com sacrifício que, em concreto, pode ser desmesurado relativamente aos demais, a quem nenhum sacrifício é exigido».
 
O sobredito Ac. do STJ de 09-04-2013 baseou-se, em grande parte, nas posições, dadas à estampa (aí vindo indicadas as respectivas fontes), defendidas quer no Parecer de Gomes Canotilho e Vassalo Abreu, quer no Parecer do constitucionalista Prof. Jorge Bacelar Gouveia (constante de fls. 910 e segs. dos autos).
Relativamente à questão da inconstitucionalidade, escreveu-se, no douto Parecer de Gomes Canotilho/Vassalo Abreu, (não incluindo as notas de rodapé), a págs. 9-13, o seguinte:
«A ratio legis do preceito constitucional tinha clara inspiração "emancipatória": eliminar uma das mais características formas dominiais precapitalistas, que o Código Civil de 1966 ainda manteve (arts. 1491.° a 1523.º), embora já não fosse permitida a constituição de novos aforamentos. Ao elevar à dignidade constitucional formal a extinção da enfiteuse, não desconhecia o legislador constituinte o regime jurídico-legal preconstitucional estabelecido pela Lei n° 195-A/76. Daqui resulta que (i) o foreiro ou enfiteuta – titular do domínio útil – ficou investido, ope legis, de forma automática, na titularidade do direito de propriedade plena sobre o  prédio rústico; (ii) esta propriedade plena tem como titulo de aquisição (lato sensu) o Decreto-Lei n° 195-A/76, de 16 de Março; (iii) serão nulos, a partir desta data, quaisquer actos tendentes à constituição para o futuro de enfiteuse sobre os prédios rústicos (Código Civil, arts. 1306º/1 e 294.°).
Parece claro, pois, que a Constituição prosseguiu teleologicamente dois objectivos: (i) eliminar definitivamente as situações de enfiteuse existentes com a consolidação do direito de propriedade plena dos prédios enfitêuticos nas mãos do titular do domínio útil (enfiteuta); (ii) impedir, no futuro, a reconstituição de novos esquemas enfitêuticos. Este registo é importante porque a extinção definitiva só beneficiava, por um lado, aqueles que, com base no Decreto-Lei n° 195-A/76, provassem que eram titulares de domínio útil. Como se irá demonstrar, a teleologia da lei foi a de possibilitar a consolidação do direito de propriedade plena a favor de quem, à data de entrada em vigor da lei (16 de Março de 1976), fosse verdadeiro enfiteuta, e não a favor de qualquer outro que pretendesse transmutar outros eventuais títulos (ex: arrendamento a longo prazo) em situações de enfiteuse […]. Só relativamente aos verdadeiros enfiteutas se compreende, de resto, que a Constituição não tivesse previsto qualquer tipo de indemnização do titular do domínio directo. Ou seja: a "dimensão emancipatória", eventualmente justificativa da dispensa de pagamento de qualquer indemnização por parte do titular do domínio útil, implicava um recorte juridicamente rigoroso cio núcleo subjectivo de destinatários. Isto porque, "no caso de extinção dos aforamentos dos prédios rústicos, não se previa qualquer tipo de indemnização do foreiro ao senhorio, tendo havido portanto um verdadeiro confisco do direito deste". Ora, como a seguir se procurará demonstrar, a Lei 108/97, de 16 de Setembro, parece querer legitimar novas formas de confisco, rotundamente inconstitucionais. Os expedientes para a ocultação da natureza confiscatória são os seguintes: (i) dissolução dogmática e categorial da enfiteuse, (ii) através da eliminação dos seus elementos constitutivos enquanto tipo autónomo de direito real de gozo, nos termos da lei civil. O legislador preconstitucional (o legislador do Decreto-Lei n" 195-A/76) e, seguidamente, a Constituição da República pretenderam a "liquidação radical" dos encargos e obrigações relacionados com a enfiteuse que impendiam sobre o enfiteuta (titular do domínio útil), dando por assente "quem podia, ou não, ser considerado como tal, à luz do regime da enfiteuse estatuído nos artigos 1491.° e seguintes da versão primitiva do Código Civil de 1966. Mesmo no contexto da "Reforma Agrária" recebida pela Constituição, não se vislumbra qualquer abertura para a extensão do âmbito normativo da enfiteuse sobre prédios rústicos a quem não reunia, na data da entrada em vigor do Decreto- Lei n° 195-A/76, a qualidade de enfiteuta.
No plano da dogmática jurídico-civilística, este recorte da enfiteuse está em perfeita consonância com o princípio da taxatividade ou do "numerus clausus" dos direitos reais (Código Civil, art. 1306.º, n° 1). A doutrina jusconstitucionalista não apresenta discrepância quanto a este ponto: está em causa a figura da enfiteuse enquanto desmembramento ou fraccionamento do direito de propriedade em dois tipos de domínio sobre o mesmo bem - o "domínio directo" e o "domínio útil" - autónomos e separados entre si, dotados de conteúdo próprio.
[…]
  « Não cabem, pois, no âmbito normativo nem da lei preconstitucional, (Decreto-Lei n° 195-X/76de 16 de Março), nem nas normas constitucionais supervenientes (CRP, art. 101.º, na versão originária), outras figuras ou categorias jurídicas de exploração da terra. Este é um ponto crucial dos desenvolvimentos subsequentes».

Vejamos, ainda, outras passagens elucidativas:
«A Lei n° 108/97 –  a seguir-se a interpretação que dela faz o Professor Meneses Cordeiro – é inconstitucional porque, em primeiro lugar, em vez de proibir, dissolve os elementos constitutivos da enfiteuse com recurso a notas distintivas espúrias (ex.: usucapião com base em benfeitorias, dispensa da posse em nome próprio). A extinção da chamada "propriedade imperfeita" (na terminologia do "Código de Seabra"), típica da enfiteuse, tinha como referentes normativos os titulares de "domínio directo" e do "domínio útil" com a estabilização jurídica e categorial da enfiteuse que será demonstrada nos subsequentes desenvolvimentos jurídico-civilísticos. A lei em análise – a  perfilhar-se a aludida interpretação – alarga o "âmbito normativo" e o "domínio normativo" dos preceitos constitucionais transmutando em elementos constitutivos do direito enfitêutico dimensões que não cabiam (nem cabem) no esquema jurídico-normativo destes mesmos preceitos.
Dir-se-ia que também as situações reconfiguradas como enfitêuticas carecem de ser interpretadas no sentido da Constituição (interpretação no sentido da Constituição), por se tratar de exploração da terra onde se detectam os dois escopos básicos da "reforma agrária": garantir a estabilidade das relações jurídicas e defender os legítimos interesses dos cultivadores. Desde há muito, porém, que o "caminho emancipatório" é o do contrato de arrendamento, e não o da extensão (e revivescência) do instituto da enfiteuse. Esta solução começou, como é sabido, com o próprio Código Civil de 1966 e com a Constituição de 1976.
A Lei nº 108/97 — a adoptar-se, repete-se, a interpretação que o Professor Meneses Cordeiro sustenta — faz revivescer um instrumento jurídico que está constitucionalmente proibido. E fá-lo com três maldades congénitas: (i) com o alargamento do âmbito normativo e da "realidade" normativa da enfiteuse; (ii) com a transmutação de outros institutos jurídicos em enfiteuse (ex: arrendamentos de longa duração); (iii) com a constituição unilateral de regimes enfitêuticos a favor do titular de domínio útil e com completo desprezo dos interesses do titular do domínio directo». (Págs. 17-18).
[…]
«Estaria em manifesta contradição com as actuais regras e princípios constitucionais ficcionar um novo direito real de enfiteuse a fim de legitimar a expropriação do titular da propriedade plena (o Município “B”). Muito menos se afigura constitucionalmente conforme consagrar novas formas de confisco através do alargamento legal do âmbito normativo da enfiteuse.
Depois da Revisão Constitucional de 1989, que procedeu a uma reconstrução profunda da Constituição económica, qualquer interpretação das normas constitucionais deverá ter em conta que a "dimensão emancipatória inicial" se confronta hoje com os novos parâmetros de juridicidade constitucional. Qualquer interpretação legitimadora da transferência de propriedade ou, se se preferir, de medidas ingerentes no direito de propriedade com efeitos translativos de domínio, sem previsão das regras indemnizatórias, será, a nosso ver, uma interpretação em desconformidade com a Constituição. Note-se que, mesmo perante o texto do Decreto-Lei  n° 195-A/76, não deixou de colocar-se a questão de responsabilidade do Estado por exercício da função legislativa pela extinção, sem indemnização, do domínio directo no âmbito da relação jurídica enfitêutica. [Faz-se alusão, neste ponto, ao citado Ac. do STJ de 15-10-1998, cujo sumário reproduzimos]. […] Se a inconstitucionalidade era já esgrimida perante o Decreto-Lei n° 195-A/76, de 16 de Março, o desvalor constitucional será ainda mais inequívoco perante a sucessiva "desconstrução" e alargamento ope legis do "domínio normativo" da enfiteuse». (Págs. 21-22).
[…]
«O que se nos afigura constitucionalmente questionável é a criação ex lege de uma chamada "modalidade específica de usucapião" contraposta ao "regime normal" de usucapião do Código Civil (arts. 1287.° segs.) e caracterizada basicamente pela não exigência de posse – ou seja, de corpus e animus, sabendo-se que há uma relação biunívoca ou de interdependência entre estes dois elementos que a posse coenvolve no sistema possessório subjectivo que vigora entre nós, não existindo, pois, corpus sem animus, nem animus sem corpus. Isto vem corroborar o que já atrás afirmámos sobre a inconstitucionalidade da lei. De forma inconstitucional, dilata-se o "âmbito normativo" e a "realidade normativa" da enfiteuse que esteve subjacente à sua positivação constitucional para efeitos de extinção e proibição. De forma indissociável, a extensão destes âmbitos traduz-se na dilatação de "confiscos" ou em "expropriações sem indemnização". Mesmo que se entenda não existir aqui uma "expropriação" ou “nacionalização” mas apenas uma forma de desapropriação, subsiste sempre o problema da sua legitimidade constitucional.». (Págs. 23-24).

No que tange ao douto Parecer de Jorge Bacelar Gouveia, destaquemos os seguintes passos (com exclusão das notas de rodapé):
«V. Naturalmente que particular realce deve ser dado ao direito de não ser privado dos seus bens, ponto que, contudo, do ponto de vista constitucional, não é consagrado em termos absolutos, porquanto no n° 2 do art. 62° da CRP se admite a hipótese de desapropriação forçada da propriedade. Tal desapropriação obedece a certas regras, devendo respeitar a sua utilidade pública, basear-se na lei e dar lugar ao pagamento de justa indemnização.
O efeito extintivo da propriedade deve necessariamente fundar-se num relevante motivo de interesse público, não numa fantasia do órgão competente aparentada com o interesse público ou com o interesse particular de alguém.
À privação do bem extraído do património do titular deve corresponder o pagamento de uma indemnização, de molde a contrabalançar o prejuízo infligido, indemnização que deve ser justa.
Todo o procedimento extintivo da propriedade –  seja por requisição (para bens móveis e de duração temporária), seja por expropriação (para bens imóveis e definitiva), seja ainda por outro instituto –  tem de apoiar-se em acto legislativo prévio que o discipline.
VI. Numa palavra: o efeito extintivo da propriedade só pode dar-se se verificados os seguintes três princípios :
- o princípio da utilidade pública;
- o princípio da indemnização: e
- o princípio da legalidade» (Págs. 40-41).
[…]
«I. A explicitação do objecto e do conteúdo da proteção da propriedade privada que a CRP contém, não obstante a perspetiva social que acolhe, serve também para fundamentar a inconstitucionalidade material da legislação que extinguiu a enfiteuse sem que concomitantemente tivesse conferido ao senhorio qualquer indemnização pelo desaparecimento do domínio direto de que era titular.
[…]
Quer isto dizer que não se pode questionar a eliminação de um tipo de direito real, como foi a enfiteuse. Mas já é inadmissível que essa eliminação tivesse sido operada à custa do direito de propriedade do titular do domínio direto.
II. Isso fica por demais evidente, no caso da enfiteuse rural, pelo facto de a abolição da enfiteuse fazer do enfiteuta o novo proprietário pleno sem que ao antigo titular do domínio direto seja atribuída qualquer significativa compensação pecuniária pelo efeito de extinção do seu limitado direito de propriedade.
Tal apenas sucede marginalmente quando o titular do domínio direto é uma pessoa singular e apenas tem um rendimento equivalente ao salário mínimo...
Ora, estão aqui reunidos os pressupostos de uma violação de um direito real de propriedade, onerado pelo direito de enfiteuse, constitucionalmente intolerável à luz da garantia do direito de propriedade:
- por um lado, o efeito ablativo do direito, ou seja, a extinção do clireito de propriedade, que consistia na titularidade do domínio direto;
- por outro lado, a ausência de qualquer contrapartida por parte de quem ficou avantajado com esse desaparecimento, o antigo enfiteuta e novo proprietário pleno, nem sequer se descortinando um interesse público relevante.
III. Uma vez que o efeito da violação do direito de propriedade privada deriva do próprio ato legislativo, promanado pelo Estado Português, é-lhe directamente assacável a inconstitucionalidade material, na medida em que a desapropriação do direito de propriedade não vem acompanhada de qualquer indemnização e essa consequência é perpetrada pelo acto legislativo em causa.
Trata-se de uma exigência da defesa constitucional da propriedade privada, pois que todo e qualquer ato ablativo da propriedade – seja pública, seja privada – tem de ser acompanhado não apenas pelos fundamentos justificativos como por uma contemporânea e justa indemnização.
Nem uma coisa nem outra aqui encontramos:
- não há fundamentos de interesse público, uma vez que a existência de aforamentos não constituíam qualquer impedimento ao livre desenvolvimento da atividade económica, eles existindo noutros países desenvolvidos;
- não há indemnização porque a mesma não é simultaneamente prevista, com uma significativa dimensão, no efeito extintivo da propriedade que ocorre na conversão do antigo enfiteuta na nova posição de proprietário pleno» (Págs. 41-44)».

Rematou-se este douto Parecer considerando estar-se perante inconstitucionalidade material da legislação ordinária que aboliu a enfiteuse relativa a prédios rústicos, apenas conferindo indemnizações simbólicas a um grupo restritíssimo de proprietários.
Concluiu-se que essa legislação:
«a) É materialmente inconstitucional por violar a garantia constitucional da propriedade privada, ao determinar um efeito extintivo do domínio direto do senhorio desacompanhado de lima justa indemnização, nem sequer se percebendo os interesses gerais que pudessem justificar tal drástica opção;
b) É materialmente inconstitucional mesmo considerando que, a posteriori, e nova Constituição Portuguesa solidificou a opção legislativa ordinária de abolir a enfiteuse porque tanto o período constitucional provisório como o período constitucional definitivo correspondem a ordens jurídico-constitucionais em que vigoram direitos fundamentais, deles não se excluindo o próprio direito de propriedade, à semelhança do que sucedeu noutros casos paralelos:
c) É  materialmente inconstitucional por violar o princípio do Estado de Direito, na vertente do princípio da protecção da confiança, por essa legislação ter sido aplicada retroativamente na determinação do efeito extintivo do domínio direto através da manipulação ex post facto dos requisitos da aquisição do direito de enfiteuse por via da usucapião, pondo em crise a regra constitucional segundo a qual as restrições dos direitos, liberdades e garantias - no caso, o direito de propriedade como um direito, liberdade e garantia análogo não podem aplicar-se retroativamente:
d) É materialmente inconstitucional por violar o princípio do Estado de Direito, na vertente do princípio da igualdade, porque não se vislumbra a razão de ser de a enfiteuse rural não merecer uma justa indemnização, ao mesmo tempo que na abolição da enfiteuse urbana se admitiu essa possibilidade».

Concordando com estes doutos pareceres, é de concluir, tal como se fez no citado Ac. do STJ de 09-04-2013, que estamos perante inconstitucionalidade material, decorrente da violação do art. 62º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios da igualdade (art. 13º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança, razão por que sempre será de rejeitar a aplicação do Dec-Lei nº 195-A/76 com as alterações introduzidas, maxime pela Lei nº 108/97, de 16-09.
Sendo, assim, a douta sentença, também por aqui, não poderá subsistir, uma vez que concluiu pela aquisição da usucapião, com base nas alterações introduzidas por esta Lei 108/97, considerando, como se viu, que «independentemente da existência ou validade título inicial constitutivo ou transmissivo da posse (cfr. artigo 2º da Lei nº 108/97), e até de se estar ou não na presença de uma relação jurídica com natureza enfitêutica, para se operar a aquisição por usucapião da enfiteuse basta a prova do cultivo da terra mediante o pagamento de uma prestação anual, desde 15 de Março de 1946 até 16 de Março de 1976, e da realização de benfeitorias de valor superior a pelo menos metade do valor da parcela ou do prédio».

*
Tudo visto, impõe-se negar provimento ao agravo e, ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes, julgar procedente a apelação, com a consequente absolvição do pedido.

V

Pelo que se deixou exposto, delibera-se:
- Negar provimento ao agravo interposto pelo Réu;
- Julgar procedente a apelação interposta também pelo Réu, revogando, em consequência, a sentença recorrida, com absolvição do pedido.

Custas do agravo pelo Agravante e da apelação pelo Apelado.

*
Lisboa, 16-01-2014

Tibério Silva
Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Decisão Texto Integral: