Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ANA LUÍSA GERALDES | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA TERRITORIAL REVOGAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/15/2007 | ||
Votação: | MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | AGRAVO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I- Com a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, a competência territorial para as acções destinadas ao cumprimento de obrigações passou a pertencer imperativamente ao tribunal da COMARCA do réu sendo a incompetência relativa de conhecimento oficioso. II- Foi igualmente vedada a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, por força do disposto no nº1 do artigo 100º do C.P.C. III- Através da Lei n.º 14/2006 visou o legislador um triplo objectivo: o descongestionamento dos tribunais, a racionalização dos meios e custos envolvidos e a salvaguarda e tutela dos consumidores endividados, estabelecendo uma proximidade territorial em benefício claro da defesa dos direitos destes. IV- Defender a vigência do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, para as acções de resolução do contrato (seja de compra e venda, seja de mútuo) seria contrariar os citados objectivos fundamentais do legislador, impedindo os resultados projectados V- O artigo 212.º do Decreto-lei n.º 54/75 foi tacitamente revogado pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril (ALG) | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | (Competência territorial; Revogação tácita do art. 21º do Decreto-Lei nº 54/75) Relatora: Ana Luísa Geraldes ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I – 1. S. […] S.A. instaurou, em 19 de Março de 2007, acção declarativa com processo ordinário contra: A. […] M. […] ambos residentes em Gagos. Pedindo que seja declarada a resolução dos contratos de crédito concedido para aquisição de veículos automóveis e sobre os quais a A. detém reserva de propriedade, bem como a condenação dos Réus a restituir os veículos, reconhecendo-se à A. o direito ao cancelamento do registo averbado em nome dos Réus. 2. O Tribunal “a quo” (Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - 9ª Vara Cível) proferiu despacho liminar tendo considerado o Tribunal incompetente em razão do território, para conhecer da presente acção, com base no disposto nos arts. 74º e 110º, nº 1, do CPC e por força das alterações introduzidas pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, e determinou a remessa dos autos para o Tribunal de Celorico de Basto, por ser, no seu entender, o territorialmente competente. 3. Inconformada, a A. Agravou, tendo concluído, em síntese, que: a) A presente acção declarativa de condenação foi instaurada ao abrigo Dec. Lei n° 54/75, de 12-2, por se encontrar registada na Conserv. de Reg. Automóvel a favor da Recorrente a reserva de propriedade sobre as viaturas financiadas; b) Assim, o dispositivo legal a aplicar ao caso concreto, para aferição da competência judicial, será o art. 21º do citado Dec. Lei nº 54/75, uma vez que a regra de competência plasmada no art. 21° é especial face à regra geral do art. 74° do CPC, prevalecendo sobre esta. c) E dado que tal norma não foi revogada pela Lei nº 14/06 de 26/4, o Tribunal territorialmente competente para apreciar a presente acção é o da sede da proprietária, isto é, da Recorrente, enquanto proprietária reservatária.; d) Acresce que foi constituído um pacto de aforamento constante da cláusula 15ª das condições gerais do contrato, o qual estabelece como foro competente para resolução de todos os litígios emergentes dos contratos celebrados a comarca de Lisboa; e) Sendo certo que o pacto de aforamento é válido e eficaz, porquanto foi celebrado em momento anterior e vigora o princípio da irretroactividade da lei. 4. Não foram apresentadas contra-alegações. 5. Foi proferido despacho tabelar de sustentação. 6. Corridos os Vistos legais, Cumpre Apreciar e Decidir. II – Enquadramento Fáctico-Jurídico: 1. Em termos fácticos, e com importância para a decisão a proferir, apenas importa realçar o local da sede da Autora, a residência dos RR., o objecto e teor dos contratos celebrados entre as partes, incluindo a cláusula acordada quanto à competência do Tribunal em caso de existência de conflito judicial. Por sua vez a questão jurídica centra-se essencialmente em saber qual o Tribunal territorialmente competente para a instauração da presente acção destinada, em síntese, a obter a resolução, por falta de cumprimento, dos contratos de crédito ao consumo celebrados para aquisição de viaturas, tendo sido constituída a reserva de propriedade sobre os respectivos veículos automóveis. Pode, assim, dizer-se, que o diferendo se prende com as alterações introduzidas pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, aos arts. 74º, nº 1 e 110º, nº 1, alínea a), ambos do CPC, à regra da competência territorial da comarca do Réu, para as acções relativas à resolução do contrato por falta de cumprimento, e à questão de saber em que medida tais normativos assumem relevância no caso sub judice. Melhor: impõe-se averiguar se a aplicação dos normativos legais citados não é afastada pelo art. 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, que estabelece que as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do Tribunal da Comarca em cuja área se situa a residência ou sede do proprietário. O Tribunal “ a quo” entendeu que não. Diverso foi, porém, o entendimento da Agravante, que defendeu que, em síntese, para além de as partes terem convencionado o foro territorialmente competente – Lisboa – também existe reserva de propriedade sobre os veículos identificados nos autos, pelo que há lugar à aplicação da norma especial do art. 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, devendo, pois, a acção ser proposta no local da sede da A. Entendimento que não podemos subscrever. A este propósito, aliás, realça-se que são já diversas as decisões que negaram provimento às pretensões da Recorrente em casos similares, conforme flui, nomeadamente, do teor dos Acórdãos desta Relação, proferidos no âmbito dos seguintes Processos: Agravos nºs 4.386/07 e 4.901/07, de 05/06/2007, da 7ª Secção [1], nº 1935/07 – 8 Secção [2] e Agravo nº 6.668/07, da 6ª Secção, subscrito pela presente Relatora [3]. Por sua vez relativamente à ratio que presidiu à publicação da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, e seu âmbito de aplicação, também a aqui Relatora já se pronunciou em diversos processos, com destaque para o Proc. 9.884/06 – 6ª, em Acórdão proferido a 14 de Dezembro de 1996. Bastaria, pois, remeter para tais decisões para julgar improcedente o presente recurso. Pese embora tal facto, sempre se dirá, ainda que sucintamente, para não se reproduzirem argumentos já extensa e doutamente esgrimidos em tais arestos por outros, o seguinte: 2. A escolha da competência territorial em acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações ou a indemnização pelo não cumprimento ou, ainda, a resolução do contrato por falta de cumprimento, era permitida de acordo com o preceituado nos arts 74° nº 1 e 110° nº 1 al. a), ambos do CPC, na anterior redacção, podendo ocorrer quer no lugar em que a obrigação devia ser cumprida quer no Tribunal do domicílio do Réu. Acontece, porém, que estes preceitos foram alterados pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, passando o artigo 74° nº 1 do CPC a ter a seguinte redacção: “A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no Tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo Tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”. E o artigo 110° do CPC, que versa sobre o conhecimento oficioso da incompetência relativa, foi igualmente alterado pelo mesmo diploma, passando a incluir expressamente, na sua alínea a), as causas a que se refere a primeira parte do nº 1 e o nº 2 do artigo 74° do CPC. Passando desde então o conhecimento da incompetência relativa a ser do conhecimento oficioso, vedando, assim, a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, por força do disposto no nº 1 do artigo 100º do CPC. Em face desta alteração legislativa uma das questões que aqui se coloca é a de saber se a essa aplicação não obsta a circunstância de, antes da entrada em vigor da Lei nº 14/2006, as partes terem convencionado, como foro competente, em caso de litígio, a Comarca de Lisboa, o que era então permitido nos termos do art. 100º, nº 1, do CPC. O que nos remete para a problemática da aplicação das leis processuais no tempo. 3. No que concerne à relação material litigada se constituir na vigência de lei processual diferente da que vigorava no momento em que é posta em juízo a acção, fundada nessa relação, pode ler-se em A. Varela, M. Bezerra e S. Nora que "a solução de problemas desta natureza vem a cada passo formulada na nova lei, através de disposições transitórias especiais destinadas a definir o seu campo temporal de aplicação". [4] Segundo os mesmos Autores "ao lado das disposições especialmente insertas em determinados diplomas, há que considerar ainda as normas transitórias sectoriais ou parcelares, destinadas a definir, em termos relativamente genéricos, o domínio temporal das leis processuais reguladoras de certas matérias (prazos, forma dos actos, etc.)". [5] E acrescentam que o sentido da solução geral aplicável ao comum das leis processuais, sempre que não haja disposição transitória, especial ou sectorial em contrário, é o do princípio da aplicação imediata da lei processual. A este princípio, que não tem formulação expressa na lei, estão subjacentes, para a generalidade dos autores, o facto de o direito processual ser um ramo do direito público que se sobrepõe aos interesses particulares dos litigantes e a circunstância de se tratar de um ramo de direito adjectivo que apenas regula o modo corno as partes podem exercer os seus direitos que a lei substantiva consagra. Pelo que, de acordo com os citados autores, a solução passa por estender ao domínio do processo civil, com as necessárias adaptações, a doutrina estabelecida, em termos genéricos, no art. 12° do CC. Assim, a "...ideia, proclamada neste artigo, de que a lei dispõe para o futuro significará, na área do direito processual, que a nova lei se aplica às acções futuras e também a actos futuramente praticados nas acções pendentes", continuando a aferir-se a validade e regularidade dos actos processuais anteriormente praticados pela lei processual antiga vigente ao tempo. [6] 4. Ora, constata-se que, in casu, o legislador introduziu uma norma transitória especial no artigo 6° da Lei nº 14/2006, sob a epígrafe aplicação no tempo, na qual consagrou expressis et apertis verbis que "a presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor". A consagração legal deste princípio só pode significar que a lei nova prevalece e aplica-se aos processos entrados após o início da sua vigência, princípio aplicável seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante, porquanto naturalmente que não se levantariam dúvidas, quanto à sua aplicação, aos contratos que se viessem a celebrar posteriormente à sua entrada em vigor, já que para estes a lei é absolutamente clara. Prevalência sem quaisquer restrições ou ressalvas. Daí que tal norma de direito transitório afaste a convenção das partes quanto ao foro de eleição ainda que inserta em contrato celebrado anteriormente à data em que a Lei entrou em vigor, tendo, assim, plena aplicação o disposto no nº 1 do art. 74° e na alínea a), do nº 1, do art. 110°, ambos do CPC, na nova redacção que lhes foi introduzida pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, uma vez que a acção aqui em causa foi instaurada no Tribunal “a quo” após a sua entrada em vigor. Com efeito, a nova lei - Lei nº 14/06, de 26 de Abril – veio impor não só a irrenunciabilidade de tal direito como também o conhecimento oficioso de tal matéria pelo Tribunal. Destarte, haverá que concluir, nesta parte, que o pacto de competência celebrado deixou de ser reconhecido como válvula de afastamento da competência legal, porquanto no momento em que o Recorrente apresenta em juízo a sua petição, o pacto extravasa os limites da autonomia contratual [7], consagrada no art. 405º, nº 1, do CC, não lhe sendo reconhecida qualquer eficácia. 5. Sobre a questão concreta da aplicação da lei no tempo impõe-se ainda salientar que o “pacto de competência” constitui um “negócio de eficácia deferida”, tendo, pois, como pressuposto uma eventual verificação de um facto futuro, qual seja a necessidade de as partes recorrerem a Tribunal para a resolução de qualquer litígio que as oponha no âmbito do contrato celebrado entre as partes. Acontece, porém, que tal facto – a apresentação em juízo da acção – ocorre já à luz da Lei Nova que, por ser mais restritiva que a Lei Antiga, não reconhecendo qualquer eficácia a tal convenção – porque contrária a norma imperativa – impõe o recurso às normas de fixação de competência em razão do território que passaram a assumir natureza imperativa. A natureza imperativa de tais normas é, aliás, consentânea com o art. 22º da Lei nº 3/99, de 13/1 – Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – que estabelece que “a competência se fixa no momento em que a acção se propõe”. Atente-se, finalmente, que a conformidade constitucional da aplicação imediata aos contratos anteriormente celebrados tem sido consecutivamente afirmada pelo Tribunal Constitucional, sendo disso exemplos, os Acs. de 19-12-06, de 23-1-07, de 30-1-07 e de 6-2-07, publicados no DR. 6. Quanto à aplicação aos autos do art. 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, é defendida pela Agravante com o argumento de se tratar de norma especial e, nessa medida, afastar a aplicação do art. 74º, nº 1, do CPC, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril. Segundo a Agravante, a modificação de uma norma geral como a do art. 74º do CPC não interfere numa norma especial como a do art. 21º do Dec. Lei nº 54/75, pelo que deveria aplicar-se esta norma. Trata-se de um argumento que tem merecido algum eco e a que alguns colegas, aqui nesta Relação, se têm mostrado sensíveis. Não é por aí, porém, que enveredamos. Com efeito, temos para nós que sendo embora o art. 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, uma norma de competência especial relativamente ao art. 74º do CPC, tal não significa, por si só, que prevaleça sobre a lei geral. É que, em matéria de vigência e aplicação das leis impõe-se atentar no conteúdo do art. 7º, nº 3, do CC, no qual se estabelece que: “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”. Destarte, teórica e substantivamente, é admissível que um diploma de carácter geral revogue outro especial: ponto é que essa seja a intenção inequívoca do legislador. Saber quando é que se está perante uma intenção dessa natureza não é tarefa fácil, devendo, para esse efeito, atender-se ao texto da lei, sua conexão, evolução histórica, história da formação legislativa e, sobretudo, nortear-se o intérprete pelo fim da disposição questionada e o resultado de uma e outra interpretação. [8] Escalpelizando de forma exaustiva o sentido da norma veja-se, por todos, o citado Acórdão, proferido no âmbito do Proc. nº 4.901/07, de 05/06/2007.[9] Porém, dir-se-á também que: 7. Sendo embora verdade que a Lei nº 14/06 não efectuou a revogação expressa do preceituado no art. 21º do Dec. Lei nº 54/75, não se pode contudo deixar de atentar às razões que presidiram à modificação consagrada no art. 74º, e que, em nosso entender, se encontram também reunidas no tipo de acções e procedimentos cautelares abarcados por aquele preceito do DL nº 54/75. Efectivamente, foram razões de interesse público que estiveram na génese da aprovação da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, e que presidiram decisivamente à orientação acolhida pelo legislador [10], ligada à necessidade de proceder à racionalização dos meios judiciários existentes, impedindo a manutenção da situação até então vivida de concentração deste fenómeno, de “litigância de massas”, nas grandes capitais e respectivas Comarcas de Lisboa e Porto. O legislador, conhecedor dessa realidade, e que esta contribuiu também, com a sua grande quota-parte, para dificultar o exercício da acção dos Tribunais devido à excessiva pendência, e sabedor que, neste tipo de litígios de consumo, o proponente da acção é uma entidade que possui um staff e uma organização dotada dos competentes e necessários meios técnicos e humanos, e com meios de comunicação à disposição que lhes permite a prática da generalidade dos actos processuais à distância, não se coibiu de proceder às referidas alterações, cumprindo um triplo objectivo: - - o de descongestionamento dos Tribunais; - a racionalização dos meios e custos envolvidos; - e o de salvaguarda e tutela da defesa dos direitos dos consumidores endividados, estabelecendo uma proximidade territorial em benefício claro destes. Desta forma, para além do interesse público numa boa administração da justiça – mais eficiente e célere – conferiu-se também uma maior protecção aos direitos dos consumidores, em desfavor dos interesses, até então prevalecentes, do próprio credor. Tais objectivos não estão arredados de todo das situações que envolvem a aquisição de veículos automóveis através da celebração de contratos de crédito ao consumo, com a constituição de reserva de propriedade a favor do vendedor – cf. art. 6º, nº 3, al. f), do Dec. Lei nº 359/91, de 21 de Novembro. Até porque tem sido esta uma das práticas que decorre, nestes últimos anos, da celebração de tais contratos de consumo. Daí que não faria muito sentido deixar de fora tais contratos tendo por objecto veículos automóveis. Defender-se entendimento diverso, com a vigência do art. 21º do Dec. Lei nº 54/75 para tais acções de resolução do contrato (seja de compra e venda, seja de mútuo) seria estar a contrariar os objectivos visados pelo legislador e que subjazem à Lei nº 14/2006, impedindo os resultados projectados. E uma interpretação dessa natureza sempre seria de rejeitar à luz do preceituado no art. 9º, nº 3, do CC, por pôr em causa uma interpretação e aplicação uniforme do direito. Pode, pois, assumir-se que a modificação operada nos arts. 74º e 100º do CPC envolveu, ainda que de forma tácita, a modificação do regime prescrito pelo art. 21º do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro. Nestes termos, improcede o presente recurso. III – Em Conclusão: 1. Com a Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, a competência territorial para as acções destinadas ao cumprimento de obrigações passou a pertencer imperativamente ao Tribunal da Comarca do Réu, sendo a incompetência relativa do conhecimento oficioso. 2. Foi igualmente vedada a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, por força do disposto no nº 1 do artigo 100º do CPC. 3. Através da Lei nº 14/2006, visou o legislador um triplo objectivo: o descongestionamento dos Tribunais, a racionalização dos meios e custos envolvidos e a salvaguarda e tutela dos consumidores endividados, estabelecendo uma proximidade territorial em benefício claro da defesa dos direitos destes. 4. Defender a vigência do art. 21º do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, para as acções de resolução do contrato (seja de compra e venda, seja de mútuo) seria contrariar os citados objectivos fundamentais do legislador, impedindo os resultados projectados. 5. Destarte, deve entender-se que o art. 21º do Decreto-Lei nº 54/75 foi tacitamente revogado pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril. IV – Decisão: - Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao Agravo, mantendo–se, em consequência, a decisão recorrida. - Custas a cargo da Agravante. Lisboa, 15 de Novembro de 2007. Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora) António Manuel Valente Ilídio Sacarrão Martins ( com voto de vencido que se segue) Entendo que as conclusões das alegações da agravante merecem proceder. A presente acção declarativa de condenação foi instaurada ao abrigo do DL 54/75, de 12/02, por se encontrar registada na Conservatória de Registo Automóvel a favor da agravante a reserva de propriedade sobre as viaturas financiadas. A legislação a aplicar ao caso concreto, será a que vem estipulada no referido diploma, designadamente no seu art.º 21º que preceitua o seguinte: “O processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário”. Ora, esta norma faz parte do supra citado diploma que constitui uma lei especial, a qual não tendo sido expressamente revogada pela Lei nº 14/2006 de 26/04, mantém a regra de competência territorial mencionada naquele citado art.º 21º. A norma do artigo 21º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro é uma norma de competência especial relativamente ao artigo 74º do Código de Processo Civil e, como tal, nos termos gerais de direito, prevalece sobre a lei geral. O mencionado artigo 21º não foi revogado pela Lei nº 14/2006 e, por isso, permanece em vigor pois, conforme dispõe o nº 3 do artigo 7º do Código Civil “ a lei geral não revoga a lei especial, excepto se for outra a intenção inequívoca do legislador”. Com a publicação da Lei nº 14/2006 o legislador pretendia, inequivocamente, revogar o artigo 21º do DL 54/75? A resposta só pode ser negativa, pois a Lei 14/2006 não revoga expressamente aquele artigo 21º, porquanto em momento algum de tal diploma é feita a necessária referência ou remissão àquele artigo ou mesmo ao DL 54/75, de 12 de Fevereiro. Não tendo havido revogação expressa qual foi então a intenção do legislador da Lei nº 14/2006? A Lei 14/2006 veio impor a irrenunciabilidade do direito de arguir a incompetência territorial do tribunal, assim como o conhecimento oficioso de tal matéria pelo tribunal. O pacto de competência celebrado deixou de ser reconhecido como válvula de afastamento da competência legal, na medida em que no momento em que o autor instaura a acção, o pacto extravasa os limites da autonomia contratual, consagrada no artigo 405º nº 1 do Código Civil, não lhe sendo reconhecida qualquer eficácia, sendo o mesmo nulo, por impossibilidade legal. A celebração de convenções sobre a competência está genericamente sujeita às mesmas regras de formação (atinentes à declaração de vontade e aspectos conexos) e aos mesmos requisitos de validade de qualquer contrato substantivo. Por regra, os elementos constitutivos da convenção são regulados pelo direito material e a sua admissibilidade e efeitos são definidos pelo direito processual.[i]. As normas de fixação de competência têm carácter imperativo, sendo que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, conforme vem preceituado no artigo 22º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ). O pacto de aforamento “não é mais do que uma norma definidora da competência territorial fundada em disposição legal que a consente (artigo 100º do C.P.C.) cuja aplicabilidade não pode deixar de ser encarada nos mesmos termos em que é encarada a aplicabilidade das demais normas atinentes à competência territorial. O pacto de aforamento não é, como também se disse, mais do que uma regra de competência cuja validade deve ser aferida à luz das regras de competência em vigor no momento em que a acção é proposta”[ii]. A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, em um conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, pelo que, quando se pretenda, através duma lei geral, revogar leis especiais, designadamente quando se vise firmar um regime genérico e homogéneo, há que dizê-lo, recorrendo à revogação expressa ou, no mínimo, a uma menção revogatória clara, do género, são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais[iii]. Como refere Abílio Neto “ a lei que altera um regime geral não se presume que altere normas especiais que, para casos particulares, dispõem de modo diferente”[iv]. No que toca ao nº 3 do artigo 7º do Código Civil, “ o problema é, pura e simplesmente, de interpretação da lei posterior, resumindo-se em apreciar se esta quer ou não revogar a lei especial anterior”[v]. Na fixação da palavra “inequívoca”, deve o intérprete ser particularmente exigente[vi]. Deste modo, entendemos que nenhuma incompatibilidade se verifica entre a redacção do artigo 74º do C.P.Civil resultante da Lei 14/2006 e o artigo 21º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro. Daí se considerar o artigo 21º uma norma especial em relação ao artigo 74º do CPC. A referida norma especial insere-se num DL que apresenta uma visão protectora não tanto do consumidor, mas antes do titular da reserva de propriedade. Nada indicia que o legislador não mantivesse a intenção de excepcionar, relativamente à regra geral, as situações de contratos com reserva de propriedade. Assim, mantendo-se em vigor a reserva de propriedade sobre os veículos a favor da ora agravante, é inegável que não podemos deixar de entender que o proprietário não é outro senão a ora recorrente, até porque, como é sabido, neste tipo de contratos, a reserva de propriedade só deixa de existir quando se mostre integralmente cumprido o contrato que lhe deu origem. E, no caso concreto, o contrato de financiamento para aquisição a crédito não foi cumprido pelos requeridos. Logo, sendo a proprietária a agravante S.[…], SA e tendo esta a sua sede em Lisboa, é o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, o competente para a tramitação da presente acção. Neste sentido foi decidido pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 15.02.2007 (Agravo nº 1180-07), de que fui relator e publicado no site www.dgsi.pt e também pelo Acórdão da Relação de Lisboa nº 8753/06, da 1ª Secção de 26.10.2006, (Maria José Simões) não publicado. Terminando, para concluir: - A lei geral não derroga lei especial que já exista, a não ser que o faça expressamente. - O DL nº 54/75, de 12.02 é uma lei especial que, não tendo sido expressamente revogado pela Lei nº 14/2006, de 26.04, no que ao artigo 21º diz respeito, mantém a regra da competência territorial aí prefigurada. - Encontrando-se inscrita a favor da agravante, reserva de propriedade sobre a viatura automóvel financiada e situando-se a sede daquela em Lisboa, é o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (no caso, a 9ª Vara Cível) o competente territorialmente para a tramitação da mesma. Ilídio Sacarrão Martins _______________________________________________________ [1] Relatados por Abrantes Geraldes. [2] Relatado por Salazar Casanova . [3] E relatado por Olindo Geraldes. [4] In “Manual de Processo Civil”, 2ª Ed., Coimbra Editora, pág. 45. [5] Ob. cit., pág. 46. [6] Cf. ob. cit., pág. 49. [7] “A celebração de convenções sobre a competência está genericamente sujeita às mesmas regras de formação (atinentes à declaração de vontade e aspectos conexos) e aos mesmos requisitos de validade de qualquer contrato substantivo. Por regra, os elementos constitutivos da convenção são regulados pelo direito material e a sua admissibilidade e efeitos são definidos pelo direito processual” – cf. Teixeira de Sousa, in “Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, Lex, pág.100. [8] Neste sentido cf. Enneccerus, Kipp e Wolff, in “Tratado de Direito Civil”, pág. 226, citado por Abílio Neto, em Código Civil Anotado. [9] Relatado por Abrantes Geraldes. Cf. tb. o Ac. desta Relação, e Secção, de 22-3-07, Rel. por Salazar Casanova. [10] E independentemente de se cuidar aqui de saber se a opção escolhida pelo legislador foi a mais adequada. [i] Miguel Teixeira de Sousa, in “ Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, Lex, pág. 100. [ii] Ac. RL de 14.09.2006 ( Salazar Casanova), in www.dgsi.pt [iii] Menezes Cordeiro, Da aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias, em Cadernos de Ciência da Legislação, INA, nº 7, 1993, págs. 17 e ss, apud, Abílio Neto, Código Civil Anotado, 13ª edição actualizada, 2001, pág. 20. [iv] Código Civil Anotado, ediforum, edições Jurídicas, Ldª, 1996, pág. 18 [v] Vaz Serra, in RLJ, Ano 99º, pág. 334. [vi] Oliveira Ascenção, O Direito, pág. 259. |