Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8639/2003-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: NACIONALIDADE
JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL
REGISTO CIVIL
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/22/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DO CONSERVADOR
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O DL nº 308-A/75 estabeleceu um especial regime de favor, com vista a conservar ou facilitar a aquisição da nacionalidade portuguesa a quem a tinha perdido ou podia vir a perder, dispensando o recurso ao regime fixado na Base XII e seguintes da Lei nº 2098 (Lei da Nacionalidade).
O escopo do DL 308-A/75 foi o de regular e redefinir a nacionalidade portuguesa, com relevo na vertente da perda da nacionalidade, das populações dos territórios ultramarinos que ascendiam à independência, cujas implicações naquele plano não devia o Estado ignorar.
Não são de discriminar as situações de perfilhação de maiores, para efeitos do nº 2 do art. 1º do DL nº 308º-A/75, na medida em que este diploma apenas fala em “descendentes”, sem estabelecer qualquer distinção quanto ao momento em que a filiação foi reconhecida.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
O Ministério Público intentou acção de justificação judicial, para declaração da nulidade e cancelamento dos registos de atribuição da nacionalidade e nascimento, contra  Bernardino. C.
Alega, em resumo que se encontra lavrado na Conservatória dos Registos Centrais, sob o nº 729-A, do ano de 1995, o assento de nascimento referente ao Bernardino, nascido em 1.10.1956, em Trindade, S. Tomé e Príncipe, filho de Firmino , natural de Santana, S. Tomé e de Amália, natural de S. Tomé, neto paterno de João e de Maria e neto paterno de Bernardo e de Rosa. À margem do referido assento foi lavrado averbamento no sentido de que o avô paterno do registado é natural de Cabanelas, Vila Verde.
A circunstância de ser neto de nascido em Portugal permitia ao interessado a conservação da nacionalidade portuguesa, nos termos do nº. 2 do art. 1°, do DL nº. 308-A/75 de 24 de Junho.
Também seu pai, Firmino, com assento de nascimento nº 509-A de 1984, da Conservatória dos Registos Centrais, havia-a conservado ao abrigo da citada disposição legal, por ser filho de nascido em Portugal Continental.
A transcrição do nascimento do referido Bernardino teve, como base, uma certidão de narrativa completa do seu assento de nascimento, lavrado no livro nº. 4. Solicitada certidão de cópia integral do aludido registo constatou-se que o referido Bernardino fora perfilhado, em 3 de Outubro de 1985, por Firmino, ou seja, na maioridade do registado (então com 29 anos de idade), só então se estabelecendo tal paternidade e consequentemente a necessária correlação de ascendência para a conservação da nacionalidade portuguesa.
De acordo com o parecer da Procuradoria-Geral da República nº 152/76, de 27 de Janeiro de 1977, publicado no BMJ 214º-23, “se perfilhacão for posterior (à data da independência) não estamos já no âmbito do Decreto-Lei nº. 308-A/75 mas no da Lei nº 2098, cuja Base IX, nº 3, determina ter aquela só efeitos em relação à nacionalidade do reconhecido quando estabelecida durante a sua menoridade".
À luz desta doutrina, nunca o interessado poderia, à data da independência de S. Tomé (12 de Julho de 1975), dizer que era neto de nascido em Portugal Continental, facto que só veio a poder validamente invocar desde 03 de Outubro de 1985, ou seja, quando era já maior, mas, então, já sem relevo para efeitos de conservação da nacionalidade portuguesa.
E não obstante a Lei nº. 2098 ter sido revogada pela Lei nº. 37/81, de 3 de Outubro, não existem razões para que agora se equacione diferentemente o problema, uma vez que a norma do seu art. 14°. tem idêntico conteúdo e alcance.
Assim, o referido Bernardino, tem registo lavrado como português quando, na verdade, não conservou essa nacionalidade, que perdeu nos termos do art. 4°. do DL nº. 308-A/75, de 24 de Junho.
Deve, por isso, ser declarada a nulidade por falsidade dos registos de conservação de nacionalidade e nascimento sob o nº. 729-A de 1995 da C. Reg. Centrais e ordenando-se o respectivo cancelamento.

  Citado o R. veio este, nos termos do art. 235º do CRC, deduzir oposição, alegando que, por ser neto de nascido em Portugal Continental, decidiu instruir junto da Conservatória dos Registos Centrais o seu processo de conservação da nacionalidade portuguesa, tendo entregue todos os documentos que, então, lhe foram solicitados pela Conservatória dos Registos Centrais, entre os quais, a sua Certidão de Narrativa Completa de Registo de Nascimento, a qual foi emitida pelo Departamento do Registo Civil de S. Tomé aos 20 de Dezembro de 1994 e desconhecendo que o facto de ter sido perfilhado já na sua maioridade poderia suscitar dúvidas quanto à pretendida conservação. Com base em tais documentos esse registo veio a ser feito em 24 de Agosto de 1995.
Desde então o Requerido possui a nacionalidade portuguesa e, por esse facto, toda a sua vida e a da sua família se encontra organizada e centralizada nesse pressuposto.
Assim, todos os seus filhos são portugueses.
O requerido adquiriu a casa de morada de família com recurso a empréstimo bancário com crédito bonificado, que ainda se encontra a pagar.
O cancelamento do registo em causa determinaria forçosamente consequências profundamente nefastas para si e para toda a sua família.
 Por outro lado, o presente registo foi efectuado com base num documento autêntico, emitido pelas competentes autoridades segundo os preceitos legais.
A Conservatória dos Registos Centrais não estava impedida de  verificar se a certidão apresentada incorporava o averbamento em causa, pelo que, então, deveria ter solicitado ao Requerido cópia integral do seu Registo de Nascimento, o que não fez, não podendo agora um particular ser penalizado por um erro inteiramente imputável a um órgão administrativo.
O Requerido apresentou a certidão nos moldes em que lhe foi solicitado -certidão de narrativa completa do seu registo de nascimento – e que foi emitida, pela entidade competente, mencionando os elementos do texto do assento conjugados com as modificações introduzidas pelos averbamentos (conforme preceitua também o nº 1 do artigo 213º do CRCivi), facto que é da competência da Conservatória dos Registos Centrais.
Entendimento diverso, violaria de forma grave o Princípio da Boa Fé por parte da administração pública e com assento constitucional no nº 2 do art. 266º da CRPortuguesa, uma vez que a sua actuação se consubstanciaria num "venire contra factum proprium", na medida em que vem agora suscitar uma questão que deveria ter abordado aquando da instrução do processo, contra os direitos já adquiridos pelo cidadão.
Este entendimento violaria ainda o Princípio da Proporcionalidade, consagrado constitucionalmente e ainda no art. 5º do Código de Procedimento Administrativo, na medida em que para reparar um erro no procedimento administrativo pretende vir sacrificar um direito pessoal adquirido há longos anos pelo particular.
Tal interpretação do art. 88º do CRCivil esvaziaria de conteúdo o art. 20º da CRPortuguesa, uma vez que o princípio da certeza e da segurança jurídica, sempre seriam violados em caso de erro da administração pública.

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. O processo não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes dispõem de personalidade e de capacidade judiciárias e são legítimas.
Não se vislumbram excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Corridos os Vistos legais,

     Cumpre apreciar e decidir. 
 A questão fulcral a decidir prende-se com a conservação da nacionalidade portuguesa, cujas regras constam do DL nº 308º-A/75, por parte dos descendentes a que se reporta o nº 2 do art. 1º, em casos de perfilhação de filhos maiores, ocorrida após a independência dos territórios ultramarinos.

II - FACTOS PROVADOS

1. Bernardino, nasceu em 1.10.1956 em Trindade, s. Tomé, s. Tomé e Príncipe, filho de Firmino, natural de Santana, S. Tomé, e de Amália, natural de S. Tomé, neto paterno de João e de Maria e neto materno de Bernardo e de Rosa (doc. Fls. 13).
2. À margem do referido assento foi lavrado averbamento no sentido de que o avô paterno do registado é natural de Cabanelas, Vila Verde.
3. O Requerido instruiu processo junto Conservatória dos Registos Centrais, com vista à conservação da nacionalidade portuguesa, nos termos do nº 2 do art. 1º do DL nº 308-A/75 de 24.6.
4. O pai do Requerido, Firmino, com assento de nascimento nº 509-A de 1984, havia conservado a nacionalidade portuguesa por ser filho de nascido em Portugal Continental (doc. Fls.14).
5. A transcrição do nascimento do referido Bernardino teve, como base, uma certidão de narrativa completa do seu assento de nascimento, lavrado no livro no. 4 - Postos de assentos de nascimento, relativo ao ano de 1956, a folhas 125, e com o nº. 1448 (doc. Fls. 15).
6. O referido averbamento foi efectuado em 24 de Agosto de 1995 (doc. Fls. 13).
7. Foi solicitada certidão de cópia integral do aludido registo, tendo-se constatado que referido Bernardino fora perfilhado por Firmino, constando, que o respectivo averbamento foi lavrado em Outubro de 1985, com base no assento de perfilhação de 3 de Outubro de 1985 (docs. Fls. 22 a 26).
8. O Requerido é casado com Carlota (cfr. Doc. Fls 13).
9. O casal tem 4 filhas, nascidas respectivamente em 8.11.1983, 17.12.1985, 16.10.1987 e 13.11.1997, detentoras de Bilhete de Identidade de Cidadão Nacional, emitidos pela República Portuguesa (docs. Fls. 61 a 64).
10. Em 25 de Março de 1998 foi celebrada escritura pública de compra e venda com hipoteca, figurando como comprador o aqui Requerido, dela constando que o empréstimo e a hipoteca se regulam pelo DL 328-B/86 de 30/9 (Regime Bonificado) relativa a fracção autónoma, tendo o Requerido declarado, no acto de aquisição, que a referida fracção se destina à sua habitação permanente (doc. fls. 65 e segs).
11. É nesta morada que o Requerido foi citado (doc. Fls. 55).

III – O DIREITO

Entende o MºPº que o aqui Requerido, tem registo lavrado como português quando na verdade não conservou essa nacionalidade, tendo-a perdido nos termos do art. 4°. do DL nº. 308-A/75, de 24 de Junho, pelo que deve ser declarada a nulidade por falsidade dos registos de conservação de nacionalidade e nascimento sob o nº. 729-A de 1995 da C. Reg. Centrais, ordenando-se o respectivo cancelamento.
Vejamos.
Bernardino, filho de Firmino, natural de Santana, S. Tomé, e de Amália, natural de S. Tomé é neto paterno de João, cidadão nascido em Portugal Continental, natural de Cabanelas, Vila Verde e de Maria e neto materno de Bernardo e de Rosa.
O Requerido, pretendendo conservar a nacionalidade ao abrigo do art. 1º nº 2 do DL 308-A/75, entregou na Conservatória dos Registos Centrais processo de conservação da nacionalidade portuguesa, os documentos que, então, lhe foram solicitados por esses serviços, entre os quais, a sua certidão de narrativa completa de registo de nascimento, sendo certo que, com base em tais documentos, esse registo veio a ser feito em 24 de Agosto de 1995.
Desde então o Requerido possui a nacionalidade portuguesa.
Posteriormente, a Conservatória pediu cópia integral do registo de nascimento, tendo, então, constatado que o referido Bernardino fora perfilhado, em 3 de Outubro de 1985, por Firmino, ou seja, na maioridade do registado.

1. O DL nº 308-A/75
A finalidade do regime (especial) fixado pelo Decreto-Lei nº 308-A/75 (entretanto revogado) era, como se diz no preâmbulo, "conceder ou possibilitar a manutenção da nacionalidade portuguesa" em casos em que "uma especial relação de conexão com Portugal" ou "inequívoca manifestação de vontade nesse sentido" tal justificasse.
O Decreto-Lei nº 308-A/75 veio, assim, estabelecer um especial regime de favor, conservando ou facilitando a aquisição da nacionalidade portuguesa a quem a tinha perdido ou podia vir a perder, dispensando o recurso ao regime fixado na Base XII e seguintes da Lei nº 2098 (Lei da Nacionalidade).
Nesse sentido pode dizer-se que  o legislador "conservou" - ex lege - a nacionalidade portuguesa a alguns desses indivíduos (artigos 1º e 2º), facilitou a "conservação" ou a "concessão" da nacionalidade a outros (artigo 5º) e determinou que os demais - "não abrangidos pelas disposições anteriores" (artigos 1º a 3º) - perdiam a nacionalidade portuguesa (artigo 4º)[1].
Ou seja, as normas sobre a conservação da nacionalidade portuguesa estabelecidas no (revogado) Decreto-Lei nº 308-A/75 tinham carácter excepcional, na medida em que faziam excepção à regra segundo a qual os antigos nacionais do Estado colonizador, residentes no território que adquiriu a independência, ficam subordinados ao novo poder político, isto é, a um vínculo de nova nacionalidade.
Entretanto, a Lei nº 37/81 (Lei da Nacionalidade), de 3 de Outubro, e o seu Regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 322/82, de 12 de Agosto, substituíram a Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959, e o respectivo Regulamento, aprovado pelo Decreto nº 43090, de 27 de Julho de 1960.
Mantendo a letra dos diplomas revogados, foram introduzidos (ou reforçados) alguns princípios, como sejam o da relevância da vontade na escolha da nacionalidade, o da igualdade dos cônjuges e o da protecção da unidade da nacionalidade familiar, sendo certo que não foram introduzidos princípios ou normas incompatíveis com o regime do Decreto-Lei nº 308-A/75, e mantendo-se, no essencial, os mecanismos previstos nos diplomas revogados.
Interessa, por isso, analisar e interpretar os preceitos do DL nº 308-A/75, pertinentes ao caso.
Artigo 1º- 1. Conservam a nacionalidade os seguintes portugueses domiciliados em território ultramarino tornado independente:
a) Os nascidos em Portugal continental e nas ilhas adjacentes;
b) Até à independência do respectivo território, os nascidos em território ultramarino ainda sob administração portuguesa;
c) Os nacionalizados;
d) Os nascidos no estrangeiro de pai ou mãe nascidos em Portugal ou nas ilhas adjacentes ou de naturalizados, assim como, até à independência do respectivo território, aqueles cujo pai ou mãe tenham nascido em território ultramarino ainda sob administração portuguesa;
e) Os nascidos no antigo Estado da Índia que declarem querer conservar a nacionalidade portuguesa;
f) A mulher casada com, ou viúva ou divorciada de português dos referidos nas alíneas anteriores e os filhos menores deste.
2. Os restantes descendentes até ao terceiro grau dos portugueses referidos nas alíneas a), c), d), primeira parte, e e) do número anterior conservam também a nacionalidade portuguesa, salvo se, no prazo de dois anos, a contar da data da independência, declararem por si, sendo maiores ou emancipados, ou pelos seus legais representantes, sendo incapazes, que não querem ser portugueses.
Artigo 4º - Perdem a nacionalidade portuguesa os indivíduos nascidos ou domiciliados em território ultramarino tornado independente que não sejam abrangidos pelas disposições anteriores.

Ou seja, o artigo 4º, em lugar de estipular directamente quem perde a nacionalidade portuguesa, optou antes por uma indicação indirecta, ao estabelecer que o efeito da perda da nacionalidade se produz relativamente a todos os indivíduos não abrangidos pelos artigos 1º e 2º, preceitos que por isso assumem a função instrumental de integração da previsão do artigo 4º.
         A questão em apreço passa pela interpretação do que sejam descendentes (até ao terceiro grau) dos portugueses referidos no nº 1 do art. 1º, para efeitos de conservação da nacionalidade portuguesa e a que reporta o nº 2 do art. 1º do citado DL nº 308-A/75.
No entender do Parecer do Conselho Consultivo da PGR, nº 152/76, de 27 de Janeiro de 1977, citado pelo MºPº, não se mostra viável a conservação da nacionalidade ao abrigo do citado nº 2 do art. 1º do DL nº 308-A/75, se o descendente de português tiver sido perfilhado, após a independência, e tendo já atingido a maioridade, isto porque a Base IX, nº 3 da Lei nº 2098, determina que a filiação só tem efeitos em relação à nacionalidade do reconhecido quando estabelecida durante a sua menoridade (no mesmo sentido, aliás, o art. 14º da Lei nº 37/81 de 3/10).
Não podendo deixar de considerar-se como pertinente esta doutrina, a verdade é que, salvo melhor entendimento, não se teve aqui em conta o escopo do DL 308-A/75: através dele pretendeu-se, como vimos, regular e redefinir a nacionalidade portuguesa, com relevo na vertente da perda da nacionalidade, das populações dos territórios ultramarinos que ascendiam à independência, cujas implicações naquele plano não devia o Estado ignorar.
  Trata-se, como também se referiu, de diploma que contém normas sobre a conservação da nacionalidade portuguesa de carácter excepcional na medida em que faziam excepção à regra estabelecida na Lei da Nacionalidade.
            O seu carácter especial, manifesta-se, além do mais, na sua transitoriedade, na medida em que, com o decurso do tempo, deixou o mesmo de ter aplicação prática, vindo a ser revogado. Efectivamente, a missão deste diploma legal foi definir os reflexos das independências dos territórios africanos na condição de portugueses que as suas populações possuiam [2].
Como resulta quer da letra, quer do espírito deste diploma de carácter especial e excepcional, veio permitir-se a manutenção da nacionalidade portuguesa nos casos em que existisse uma especial relação de conexão com Portuga" ou inequívoca manifestação de vontade nesse sentido.
Por isso, aos indivíduos que estivessem, designadamente, nas condições a que alude o art. 1º do DL 308-A/75, foi permitido que conservassem a nacionalidade portuguesa, dispensando, assim, o recurso ao regime moroso e complicado fixado na Base XII e seguintes da Lei nº 2098 (Lei da Nacionalidade), então em vigor e afastando, neste aspecto o regime da lei geral (Lei da Nacionalidade).
Ora, não se vê como o facto de a perfilhação ter ocorrido já após a maioridade (que depende da vontade de terceiro e a que o perfilhado é alheio) pode impedir, quem está nas condições a que alude o citado preceito legal, de usar o mesmo mecanismo que outro perfilhado enquanto menor podia utilizar, sendo certo que o referido diploma especial não distingue as situações.
Aliás, o art. 1797º, nº 2 do CC atribui eficácia retroactiva ao reconhecimento da filiação, o que significa que o legislador aceitou o carácter simplesmente declarativo – e não contitutivo – do estabelecimento da filiação, tudo se passando como se a filiação existisse desde o nascimento, ou seja, feito após a independência, tudo se passa como se antes desta o vínculo da filiação já existisse.
Conclui-se, pois, não ser de discriminar, as situações de perfilhação de maiores, para efeitos do nº 2 do art. 1º do DL nº 308º-A/75, na medida em que este diploma apenas fala em “descendentes”, sem estabelecer qualquer distinção quanto ao momento em que a filiação foi reconhecida e não esquecendo que o art. 1797º, nº 2 do CC atribui eficácia retroactiva à filiação, fazendo, portanto recuar no tempo a filiação jurídica ao tempo em que começa a filiação biológica.

2. Do abuso de direito
Argumenta, ainda, o Requerido que, a administração pública há vários anos que o reconhece como cidadão português, estando toda a sua vida e a da sua família organizada e centralizada nesse pressuposto.
Além disso, o presente registo foi efectuado com base nos documentos que lhe foram solicitados, sendo tais documentos verdadeiros e emitidos pelas entidades competentes, não podendo, agora, o Requerido ser penalizado por um erro, que a existir, é inteiramente imputável a um órgão administrativo.
Entendimento diverso, violaria de forma grave o Princípio da Boa Fé por parte da administração pública e com assento constitucional no nº 2 do art. 266º da CRP, uma vez que a sua actuação se consubstanciaria num "venire contra factum proprium" e violaria ainda o Princípio da Proporcionalidade, consagrado constitucionalmente, ao pretender reparar-se um (eventual) erro no procedimento administrativo, sacrificando os direitos do cidadão, adquiridos ao longo dos anos.

Apreciando.
Não restam dúvidas de que o Requerido foi tratado pelos serviços públicos da Administração Portuguesa, como cidadão português, possuindo cartão de contribuinte, bilhete de identidade, etc., com direito a poder beneficiar de crédito bonificado na aquisição da casa morada de família, sendo certo que também as suas filhas são cidadãs portuguesas, titulares do bilhete de identidade (isto, naturalmente porque foram consideradas filhas de cidadão português).
Ou seja, o Estado Português considerou-o cidadão português, atribuindo-lhe direitos e sujeitando-o aos deveres dos cidadãos portugueses. Por seu lado, o Requerido sempre de boa fé se julgou detentor daquele estatuto de nacionalidade que, de acordo com o DL nº 308º-A/75 lhe foi atribuído, através dos serviços da administração pública, desde o nascimento.
Efectivamente, do princípio do Estado de direito democrático constante do art. 2º da CRP, conjugado com o direito à cidadania reconhecido no artº. 26º, nº 1 da CRP, resulta a proibição , para além dos limites do razoável, da violação de direitos (e legítimas expectativas) adquiridos, não podendo ser olvidados os princípios e garantias dos direitos do homem e que têm assento na Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhecida no art. 16º, nº 2 da CRP [3].
Por isso, constituindo a nacionalidade portuguesa um direito fundamental, o ser-se privado dela não pode justificar-se com a simples preocupação de reparação de um erro praticado pela administração pública, sendo certo que ao Requerido não pode ser assacada qualquer responsabilidade, uma vez que entregou os documentos que lhe foram solicitados, designadamente, uma certidão de narrativa completa de nascimento, emitido pela autoridade competente, documento que atesta factos verdadeiros, nomeadamente no que respeita à sua filiação.
Ademais, a  administração pública está, por força do disposto no art. 266º da CRP obrigada a agir, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, no respeito pelos direitos e interesses protegidos dos cidadãos.
Radicado em Portugal, foi atribuído ao Requerido o título de identidade de cidadão nacional, ficando sujeito à condição de nacional português, com todos os direitos e deveres daí decorrentes e com reflexos na vida do seu agregado familiar.
Segundo o art. 334° do C. Civil, "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
Castanheira Neves, entende que o abuso de direito é um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados [4].
De acordo com Coutinho de Abreu, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, constituindo um comportamento abusivo cujas consequências são as mesmas de qualquer actuação sem direito [5].
De facto, ao longo dos anos foram sendo tomadas, repetidamente, condutas que se tornaram habituais e com reflexos na vida de terceiros, susceptíveis de fazer emergir verdadeiros elementos normativos ou regras intersubjectivamente vinculantes, podendo dizer-se que determinaram um estado de vinculação normativa no âmbito da relação de reciprocidade entre o Estado Português e o seu nacional, cuja violação, pela prática de factos contrários, “retirando” ao Requerido a Nacionalidade Portuguesa (com reflexos nos direitos de cidadania dos seus descendentes), cairia, por certo, no quadro do abuso de direito e da proibição do “venire contra factum proprium[6].

Face a tudo quanto exposto fica, conclui-se que o Requerido deve ser considerado “descendente” para efeitos do disposto no nº 2 do art. 1º do DL 308º-A/75, por ser neto de cidadão português, sendo-lhe permitida a conservação da nacionalidade portuguesa.

Nestes termos e nos mais de direito acorda-se em julgar improcedente por não provada a acção de justificação judicial, para declaração da nulidade e cancelamento dos registos de atribuição da nacionalidade e nascimento, contra  Bernardino, absolvendo o requerido do pedido.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2004.
Fátima Galante
Urbano Dias
Manuel Gonçalves
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[1] Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 25.09.91, in www.dgsi.pt
[2] Neste sentido vide  Rui Manuel Moura de Barros, Nacionalidade e descolonização (Algumas reflexões a propósito do decreto-lei nº 308-A/75 de 24 de Junho), in Revista de Direito e Economia, Ano II, nº 1 , 1976, pag. 140 e segs.
[3] Sobre esta temática, Jorge Miranda, A Constituição de 1976, Lisboa, 1978.n
[4] Castanheira Neves in Questão-de-facto-questão-de-direito, pág. 526, nota 46.
[5] Jorge M. Coutinho Abreu, Do abuso de direito, 1983, pags. 76/77.
[6] Batista Machado, Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”, in RLJ, ano 117º, nº 3729, pags. 361 e segs,