Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1102/12.6TVLSB.L1-8
Relator: ANA LUISA GERALDES
Descritores: SEGURO-CAUÇÃO
SUB-ROGAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
DIREITOS ADUANEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -  O contrato de seguro caução, sendo uma das modalidades do contrato de seguro, dá o direito à seguradora, que pague as quantias devidas pelo desalfandegamento, de ficar sub-rogada em todos os direitos relativos a tal pagamento, sem que se possa pretender fazer vingar outros institutos jurídicos que atentem contra os direitos que o art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, lhe confere expressamente neste domínio.

-  Dado que a sub-rogação e o direito de regresso constituem, no sistema legal português, realidades distintas, deve ser feita uma interpretação restritiva ao nº 2 do art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, assente em dois vectores:

  - um, o do despachante oficial que paga, e como tal, mercê do regime da solidariedade passiva, tem direito de regresso;

  - o outro, reportado à entidade garante, o Banco ou a seguradora, que liquide, mercê do termo-caução, e que, neste caso, fica sub-rogado/a em todos os direitos das Alfândegas relativamente às quantias que foram pagas.

-  O direito de regresso contra o importador de mercadorias desalfandegadas com utilização/accionamento ao abrigo do contrato seguro-caução depende desse importador não ter efectuado o necessário pagamento dos direitos aduaneiros em dívida à respectiva Alfândega – cf. art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto.

                (sumário elaborado pela relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – 1. C...

Instaurou acção declarativa de condenação com processo ordinário contra:

L...

Pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 61.957,58, acrescida de juros vencidos relativos aos últimos cinco anos, que liquida no montante de € 28.303,19, e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal para as empresas comerciais.

Alegou para o efeito, e em síntese, que exerce a actividade seguradora e que no exercício dessa actividade celebrou com o Despachante oficial M... um contrato de seguro de caução global para desalfandegamento de diversas mercadorias.

Acontece que nem o referido Despachante nem os importadores pagaram à Alfândega os direitos e demais imposições aduaneiras devidos pelas mercadorias desalfandegadas, e por isso a Alfândega de Lisboa notificou a Autora para proceder aos pagamentos dessas quantias, o que a Autora fez.

Assim, pretende a Autora que Ré lhe pague a quantia que despendeu com a importação efectuada, já que a Ré nada quer pagar.


2. Contestou a Ré:
a) Por excepção – invocando a prescrição dos créditos da A.
b) Por impugnação – referindo que entregou ao Despachante M,,, um cheque, bem como à Direcção-Geral do Tesouro, para pagamento das quantias em dívida, cheque que foi apresentado a pagamento e pago, por isso nada deve.
Conclui argumentando que a Autora age com manifesto abuso de direito e litiga de má-fé, omitindo factos que sabe serem essenciais para a justa decisão da causa.

3. Na réplica a Autora alegou que a Ré falta conscientemente à verdade.

4. Foi proferido saneador que julgou improcedente a excepção da prescrição.

5. Realizada a audiência de julgamento foi exarada sentença na qual o Tribunal “a quo” julgou parcialmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 61.957,58, acrescida de juros vencidos e vincendos desde 23/05/2007, às taxas e nos termos que constam da sentença, a fls. 391, absolvendo a Ré do mais peticionado.

6. Inconformada a Ré Apelou, com o conteúdo e desenvolvimento que as suas longas conclusões espelham, a fls. 402 e segts, onde se mostram formuladas as questões que se elencam, em síntese, nos seguintes termos:

A – A incompetência material dos Tribunais Comuns, alegando que o presente litígio integra matéria da exclusiva competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais e não dos Tribunais Comuns, porquanto a Recorrente entende que o que está claramente em causa é um litígio emergente de relações jurídicas tributárias, de natureza tributária, relativa a uma pretensa dívida de imposto aduaneiro ou alfandegário, pretendendo a C... o reconhecimento judicial do pretenso crédito tributário que teria adquirido por sub-rogação, e do qual veio a exigir de novo à Recorrente o pagamento daqueles direitos aduaneiros.

B – A impugnação da matéria de facto – defende a Ré/Recorrente que nunca poderia dar-se por provado o que consta dos nºs 2 a 4, e 6 dos factos provados, relativos ao contrato de seguro, que teria sido celebrado entre a C... e o Despachante oficial M..., pois não se provou a celebração de tal contrato de seguro, cujo ónus incumbia à A.

C – A inexistência do crédito reclamado pela Autora C... – defende a Ré que tal crédito não existe porque o credor tributário originário – Alfândega de Lisboa – não tinha fundamento ou legitimidade para reclamar o pagamento que já lhe tinha sido feito através de cheque emitido pela própria Ré à sua ordem, em 13/7/2001 (cf. docs. fls. 51 e 174 dos autos) e a C... nunca poderia ter adquirido por sub-rogação qualquer crédito sobre a Ré de que o credor originário – Alfândega de Lisboa – não era titular, pois apenas podia ter obtido sub-rogação sobre as dívidas daqueles terceiros, que foram beneficiados à custa do património da Ré/Recorrente. Também ao contrário do que foi decidido na sentença, a Alfândega de Lisboa nunca poderia exigir à Recorrente o novo pagamento dos direitos alfandegários, pois foi creditada na sua conta o valor do cheque emitido a favor da Direcção-Geral do Tesouro, pelo que, nem o referido Despachante, nem a Seguradora/Autora C... têm legitimidade para pedir um segundo pagamento à Ré.

D – A Inexistência e inoponibilidade do contrato de seguro – a Recorrente defende, relativamente à matéria de facto que impugnou neste recurso, que não se provou a veracidade ou a celebração do contrato de seguro-caução, contrato no qual a Ré/Recorrente nem sequer foi parte ou interveniente, pelo que, não lhe é oponível o pretenso direito de regresso por créditos tributários de que a Autora C... se arroga na presente acção.

E – Do abuso de pretensos direitos da C... – alegação que a Ré funda, entre outros factos, no da Autora C... bem saber que a Ré já efectuou o pagamento legalmente devido à Alfândega de Lisboa, através do citado cheque (cf. fls. 174 dos autos), pelo que só pode litigar de má-fé.

Termina a Ré concluindo em sede recursória que seja declarada:

- A incompetência material dos Tribunais Comuns em razão da matéria, ou, se assim não se entender,

- Revogada a sentença com as legais consequências.

7. Foram apresentadas contra-alegações nos termos que os autos documentam.

8. Corridos os Vistos legais,

Cumpre Apreciar e Decidir.

II – O Direito:

- Está em causa, em sede recursória, saber:

Primo: Uma questão que consideramos prévia, pelas consequências que determina: a incompetência dos Tribunais Comuns;

Secundo: A Impugnação da matéria de facto;

Tertio: As restantes questões jurídicas onde se inclui, nomeadamente, a questão de saber se existe crédito e se a Ré pode ser condenada a pagar a quantia peticionada pela Autora C...

Decidindo:

1. A (in)competência dos Tribunais Comuns:

1.1. Tem razão a Recorrente quando refere, sobre esta matéria, que o despacho saneador proferido pela 1ª instância – no qual se decidiu que “o Tribunal é competente, em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia” – não apreciou concretamente a questão da incompetência material e absoluta do Tribunal e, por isso, não preclude a sua arguição e apreciação.

Com efeito, é uniforme a doutrina e a jurisprudência no sentido de que em tal circunstância considera-se esse despacho como sendo um “despacho tabelar”, que nada apreciou ou decidiu em concreto e, como tal, encerra em si mesmo uma mera declaração genérica de competência não constituindo, por isso, caso julgado formal.

O mesmo é dizer que se entende que tal questão não se mostra, só por si, encerrada, pelo que continua a ser possível a apreciação, de novo, desse pressuposto genericamente aferido de modo a decidir-se se o Tribunal é ou não materialmente (in)competente.

Contudo, não podemos deixar aqui de sublinhar que, nada tendo sido alterado em matéria inicial quanto à alegação de factos, no que concerne à sua essência e pedido formulado, com indicação da respectiva causa de pedir, a Ré na sua contestação nada arguiu relativamente à competência do Tribunal, só o fazendo, agora, em sede recursória.                                                           

Embora a lei não vede expressamente essa possibilidade, a verdade é que a Ré nada referiu anteriormente nos articulados sobre o que agora apelida de incompetência material.                     

E a nosso ver fê-lo então com acerto porquanto, ao invés do que agora pretende ver declarado, essa incompetência não existe.

1.2. Efectivamente, no caso sub judice, a Autora não fundou o seu pedido na existência de uma dívida tributária, nem na sub-rogação de nenhum crédito fiscal que eventualmente a Recorrida pudesse deter, não estando em causa nenhum crédito fiscal.  

O pedido mostra-se consubstanciado num contrato de seguro-caução “global para desalfandegamento” que a Autora/Recorrida invocou ter celebrado com o Despachante oficial M... e que tal contrato garantia à Alfândega de Lisboa o pagamento de determinada quantia até ao limite do seguro.

De acordo com a versão apresentada, o referido Despachante oficial procedeu ao desalfandegamento de certas mercadorias e não as pagou à Alfândega, tendo a Autora acabado por liquidar tais quantias. Daí que a Autora pretenda, através dos presentes autos e ao abrigo do contrato de seguro celebrado, recuperar o dinheiro que pagou, já que o citado Despachante oficial não dispõe de capacidade económico-financeira para lhe pagar, nem possui quaisquer bens.

Ora, o regime especial da Caução Global para Desalfandegamento mostra-se regulado por diversos diplomas legais, entre os quais os Decretos-Lei nºs 289/88, de 24 de Agosto e 294/92, de 30 de Dezembro, e o Despacho Normativo nº 78/88, de 23 de Setembro.

E de acordo com a Lei Geral Tributária em vigor – Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro – as relações jurídico-tributárias estão reguladas por tal diploma mas sem prejuízo do disposto no direito comunitário e outras normas de direito interno ou internacional que lhe sejam aplicáveis.

Por sua vez o Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, que se reporta expressamente ao sistema de caução global para desalfandegamento, refere expressamente que:

Art. 2º

1 - No âmbito da utilização do sistema de caução global para desalfandegamento o despachante age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis.

2. O despachante oficial e a entidade garante gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, acompanhados de todos os seus privilégios, nomeadamente do direito de retenção sobre as mercadorias e documentos objecto das declarações apresentadas. [1]

Quer isto dizer que a Autora/Recorrida goza, por força desta norma, do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições – a aqui Ré/Recorrente – ficando sub-rogada nos termos preceituados na citada norma.

Ponto é que se provem, quando alegar esse direito, os respectivos pressupostos em que assenta.

1.3. Conforme se alega nos autos, e bem, não existe aqui qualquer substituição tributária para a Recorrida, enquanto seguradora, pela dívida aduaneira da Ré/Recorrente, o importador, que era o devedor originário e sujeito passivo da relação alegadamente tributária, na medida em que o que existiu foi uma garantia autónoma – seguro caução – que veio a ser honrada pela Recorrida com o pagamento da correspondente indemnização por ocorrência do risco garantido: que se reconduziu ao incumprimento, ou seja, à falta de pagamento do Despachante oficial e/ou do importador, dos direitos e demais imposições aduaneiras inerentes à mercadoria importada.

Igualmente não pode ser acolhido o argumento de que este regime especial se consubstancia num mero “pagamento por terceiro” da prestação tributária, tal como consagrado no art. 41º da Lei Geral Tributária, porquanto não existiu qualquer substituição tributária da Recorrida (Seguradora) pela dívida da Recorrente (Importador), e qualquer eventual dívida alegadamente tributária se terá extinguido através do seu pagamento.

Com efeito, com o pagamento do crédito solicitado nos presentes autos, a Recorrida de forma alguma ficou investida na posição jurídica da Administração Fiscal, não adquirindo nem os direitos nem os mecanismos próprios de que esta está investida em defesa do interesse público inerente á salvaguarda do Estado de Direito.

O direito da Recorrida é um direito de regresso que lhe é conferido por Lei – sub-rogação legal – em todos os direitos da Alfândega, salvo os inseparáveis da pessoa do transmitente, relativamente às quantias pagas e que adquiriu por via obrigacional na medida da prestação de um contrato de seguro caução na modalidade de “contrato de seguro de caução global para desalfandegamento”, e pagamento da respectiva indemnização.

E sendo um direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta. [2]

Daqui se conclui que nos presentes autos não está em causa um crédito fiscal da Recorrida/Autora sobre a Recorrente/Ré, pelo que a eventual divida da Recorrente perante a Recorrida, nos termos alegados por esta, não possui natureza tributária, tal como inexistiu sub-rogação de um crédito fiscal para a esfera jurídica da Autora/Recorrida.

E inexistindo os referidos pressupostos legais, que não se invoque a competência dos Tribunais Fiscais, porquanto o âmbito de jurisdição de tais Tribunais está plasmado nos arts. 1º e 4º do ETAF, e não abarca situações como a que se mostra em análise, atento o que se referiu e o conteúdo do pedido e da causa de pedir aqui formulado.

Por conseguinte, os Tribunais Comuns são os materialmente competentes para dirimir o pleito em análise.

E, consequentemente, improcede a apelação nesta parte.

III – Enquadramento Fáctico-Jurídico:

1. A Impugnação da matéria de facto: O contrato de seguro
1.1. Entende a Ré/Recorrente que nunca poderia dar-se como provado o que consta dos nºs 2 a 4/6 dos factos provados, relativos ao contrato de seguro que teria sido celebrado entre a C... e o Despachante oficial M..., porque não se provou, estando igualmente em causa a genuinidade dos documentos particulares de fls. 10 a 18 dos autos.

 De acordo com a sua versão, trata-se de matéria que não se mostra provada nem por documento, nem por prova testemunhal.

Argumentação que, desde já se adianta, não pode ser acolhida.

Vejamos porquê.

1.2. Os factos provados que a Ré/Recorrente põe em causa são os que foram incluídos, como tal, nos pontos 2 a 4 e 6.

Todos esses factos dizem respeito à matéria relativa à celebração do contrato seguro-caução titulado pelos docs. juntos aos autos a fls. 10 a 18, bem como ao seu conteúdo, nomeadamente ao teor das cláusulas inseridas em tal contrato.

São eles:

Pontos de facto 2) a 4) – e 6)

“2. A Autora firmou com M... um acordo de seguro caução titulado pela Apólice nº 9219/04/29, nos termos que constam dos instrumentos que constituem:

- fls. 10-11, denominado “Seguro Caução – Proposta“;

- fls. 12-15, denominado “Caução Aduaneira C... – Condições Ge-rais”;

- fls. 16-18, denominado “Caução Aduaneira – Apólice n.º 009219/04/29 – Apólice global para desalfandegamento – Condições Particulares“, e cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido (resp. 1º da BI)”.

“3. Tendo nomeadamente acordado (instrumento de fls. 12-15, denominado “Caução Aduaneira C... - Condições Gerais”) que:

“A C.., tomando por base as declarações prestadas na proposta apresentada pelo interessado em contratar o presente seguro, doravante designado como Tomador do seguro, garante à Alfândega identificada nas Condições Particulares, que passará a designar-se por segurado, o pagamento da indemnização que for devida por incumprimento das obrigações perante esta, contraídas pelo Tomador do seguro.

      Artigo 1º – Objecto

1. Pela presente apólice de seguro caução, a C... garante ao segurado o pagamento dos direitos aduaneiros ou outros equiparados por lei, dos juros de mora e dos encargos devidos pelo tomador e relativos à operação identificada nas Condições Particulares.

(…)

      Artigo 5º – Sinistros

Considera-se sinistro o não pagamento pelo tomador do seguro da totalidade ou parte dos montantes previstos no art. 1º. Depois de notificado aquele pelo segurado.

(…)” (resp. 2º da BI)”.

“4. E tendo ainda acordado (instrumento de fls. 16-18, denominado “Caução Aduaneira – Apólice n.º 009219/04/29 “) o seguinte:

“ Seguradora: C...

Segurado: Alfândega de Lisboa;

Tomador de seguro: M...

                I. Obrigação segura (art. 1º das Condições Gerais)

1. Pagamento, até ao montante garantido, dos direitos e demais imposições e eventuais juros de mora, nos termos do sistema global para desalfandegamento, instituído pelo Decreto-lei n.º 289/88, de 24 de Agosto e Despacho Normativo n.º 78/88, com a actualização constante do Decreto-Lei n.º 294/92, de 30 de Dezembro, pelos quais sejam solidariamente responsáveis o Tomador do seguro e as pessoas por conta de quem são pagos os direitos e demais imposições.

(…)

                      IV. Vigência (art. 2º das Condições Gerais)

1. De 01 de Abril de 1995 a 31 de Março de 1996

2. A presente garantia á válida por um ano, sendo sucessiva e automaticamente renovável por iguais períodos de tempo, salvo denúncia prévia da entidade garante com a antecedência mínima de 45 dias.

(…)

VII “ Termo de caução” (art. 11º do Decreto-Lei n.º 289/88)

C... (…) declara que pelo presente documento presta a favor da Alfândega de Lisboa um seguro caução até ao montante de Esc. 30.000.000$00, para garantia do pagamento dos direitos e demais imposições e eventuais juros de mora pelo qual, no âmbito do sistema de Caução Global para Desalfandegamento, instituído pelo Decreto-Lei n.º 289/88, de 24 de Agosto, seja responsável o despachante M...” (resp. 3º da BI).

“6. E (o referido acordo/contrato) foi sucessivamente prorrogado após 31.03.96 (resp. 5º da BI)”.

Está assim em causa saber se:
1º - A Autora “C...” celebrou um acordo/contrato de seguro caução titulado pela Apólice nº 9219/04/29 com o Despachante oficial M...;
2º - Se tal acordo/contrato foi sucessivamente prorrogado após 31.03.96.

Sobre tal matéria reportam-se os documentos que constam do processo, a fls. 10 a 18, certificados a fls. 100-106, e foram ouvidas diversas testemunhas.

Entende a Ré que a matéria integrada em tais quesitos não se mostra provada.

Entendimento que não pode ser sufragado.

2. Com efeito, estando em causa a celebração de um contrato de seguro, mesmo que as testemunhas tivessem deposto em Tribunal no sentido de que desconheciam por completo a existência desse contrato – o que não aconteceu com o caso em análise – nem por isso bastava para afastar a prova assente em tais documentos.

Tratando-se de documentos particulares, subscritos pelo tomador do seguro e pelo representante da Autora Seguradora, cujas assinaturas não foram postas em causa, não se mostrando arguida qualquer falsidade de documento, não podemos deixar de relevar que se está perante um documento celebrado e subscrito pelas partes que intervieram nesse contrato, e que sendo visível a assinatura da pessoa singular – Despachante oficial M... – bem como dos representantes da Autora Seguradora, não pode deixar de se considerar ter sido feita e assinada pelo próprio punho de quem os subscreve, porquanto não se mostra posta em causa ou sequer arguida quer a falsidade do documento, quer da letra ou da assinatura de quem o outorgou.

Sendo certo que foi através desse documento/contrato, subscrito pelas partes envolvidas na sua celebração, que ambas intervenientes na assinatura e subscrição do documento em causa estabeleceram livre, clara e voluntariamente o conteúdo das suas próprias cláusulas.

E tanto o fizeram de livre vontade que procederam à redacção e fixação de diversas condições particulares, que negociaram e acordaram entre si, para além das cláusulas gerais integradas no contrato de seguro-caução celebrado, conforme resulta não só da respectiva apólice para o desalfandegamento, documentada a fls. 16 a 18, como das respectivas cláusulas e condições particulares inseridas em documentos autónomos e subscritas pelas mesmas partes nele intervenientes.

Tão pouco foi suscitado nos autos qualquer vício relativo à formação da vontade de quem outorgou tal contrato ou da forma como essa mesma vontade foi projectada e clausulada aquando das declarações negociais produzidas.

Destarte, não é admissível que se ponha em causa a veracidade dos factos inseridos nas referidas cláusulas, sem que da produção de prova tivesse resultado versão diversa, que claramente infirmasse o que ali se consignou e acordou no contrato celebrado.

Salvo, naturalmente, se tivesse sido arguida a falsidade do documento, caso em que, em tal circunstância, incumbirá a quem a suscitar ou arguir a prova dessa falsidade – cf. art. 375º, nº 2, do CC.

Hipótese não aplicável ao caso sub judice, porquanto, como se disse, não foi suscitado qualquer incidente de falsidade ou qualquer questão de natureza similar.

Ora, não tendo sido arguida a falsidade do documento, nem se tendo provado qualquer vício que afecte a vontade de quem o subscreveu e outorgou, tem de se considerar tal documento munido de força probatória suficiente para se dar como provado, não só que o contrato de seguro foi celebrado, mas também o seu conteúdo e o clausulado inserido nas condições particulares do contrato de seguro aqui em causa.

2.1. Acresce que, tendo as testemunhas, quando confrontadas com o documento, confirmado a existência do mesmo nas instalações da Autora/Recorrida – “esse foi sim, sim” – o contrato de seguro celebrado e que está em discussão nos autos – tanto basta para que, conjuntamente com os referidos documentos juntos, a prova se mostre assegurada relativamente à celebração desse contrato – cf. depoimentos das testemunhas M... e N... (ambas testemunhas arroladas pela Autora/Seguradora).

Este último chegou mesmo a confirmar a existência do contrato de seguro, celebrado com o Despachante oficial M..., e explicitou que se tratava de um contrato de seguro-caução para desalfandegamento.

Tais testemunhas necessariamente tinham conhecimento desses factos, até pelas funções que desempenhavam naquela data, expressa na sua razão de ciência: a primeira – M..., foi chefe de serviços na Direcção de Sinistros da Autora até 2006, data em que se reformou, por conseguinte numa data em que o referido contrato tinha sido não só celebrado, mas também já renovado por iguais períodos. E a outra testemunha – N... – foi igualmente funcionário dessa Secção/Direcção de Sinistros até 2010, data em que também se reformou.

Ora, quem melhor do que eles estaria munido de informação para confirmar a existência desse contrato de seguro?

O próprio Tribunal “a quo” reconheceu tal facto, a fls. 283, na motivação da decisão que proferiu sobre a matéria de facto, fazendo igual apreciação crítica e extraindo as consequências pela produção de tais depoimentos, quando exarou o seguinte:

“É certo que nenhuma das referidas testemunhas teve intervenção directa na subscrição dos instrumentos em referência (ou seja, intervenção no contrato de seguro-caução aqui em causa e respectivas condições particulares). Mas os mesmos conheciam a existência dos mesmos, nunca tendo sido, por qualquer forma ou fosse por quem fosse, nomeadamente pelo tomador do seguro ou pela Alfândega de Lisboa, colocados em causa. Por outro lado não foi produzida qualquer prova que suscitasse qualquer dúvida razoável quanto à subscrição dos referidos instrumentos pelas partes outorgantes”.

Considerações que subscrevemos na íntegra, pelo seu acerto, no quadro em análise.

2.2. Acresce que a posição da Ré/Recorrente agora assumida em sede de recurso sobre a inexistência desse contrato de seguro apresenta-se um pouco contraditória com a posição que adoptou em sede de defesa, na sua contestação.

Com efeito, analisados os articulados, constata-se que, na contestação a Ré defendeu-se com base em dois vectores essenciais:
1. Por excepção – com a excepção de prescrição “dos pretensos créditos da Autora” – cf. arts. 9º a 16º da contestação;
2. Por impugnação – argumentando que pagou à Alfândega de Lisboa tudo o que se relacionava com o veículo em causa – arts. 17º e segts.

E a referência que faz ao contrato de seguro aparece feita no sentido óbvio e verdadeiro: ao alegar que “não interveio” nele. O que é rigorosamente verdade, sublinhando-se que nunca tal facto sequer foi posto em causa, pois o contrato de seguro – quer nos termos alegados pela Autora, ao longo de todos os articulados, quer nos termos que resultaram provados nos autos – foi celebrado e subscrito pelo Despachante oficial, que nele apôs a sua assinatura, e que não é parte neste processo, e pela Autora Seguradora C... Nunca se disse que a Ré teve intervenção ou celebrou tal contrato. Nem tal factualidade foi alguma vez infirmada ou rebatida, ou sequer alegada pela Autora, ou pelo Tribunal.

Mas a Ré ainda mais se contradiz, porquanto é igualmente na sua contestação que afirma – e chega a pedir ao Tribunal – que os autos sejam conhecidos e decididos logo no saneador por já possuírem todos os elementos indispensáveis para esse efeito!

Reconhecendo, dessa forma, que a questão a decidir se coloca em sede jurídica e não no campo fáctico.

Refere expressamente: “a acção devia ser decidida no saneador, pois a matéria de facto relevante resulta de prova documental devidamente identificada no presente articulado, não se revelando necessárias diligências instrutórias adicionais ou complementares (com sublinhado a negrito feito pela própria Ré…) – cf. fls. 39, art. 8º da sua contestação.

2.3. Relembramos também que o contrato de seguro é um contrato formal, constitutivamente sujeito à forma escrita – cf. art. 426º do Código Comercial, em vigor à data dos factos.

E no caso sub judice mostra-se efectivamente reduzido a escrito.

Tratando-se de um contrato reduzido a escrito com o clausulado que se descreveu, e aplicando-se potencialmente a um vasto universo de situações, é de presumir que as respectivas cláusulas foram redigidas com grande rigor, de molde a que o respectivo texto reflicta com o máximo de fidelidade as condições em que as partes assumem e definem os seus direitos e as suas obrigações.

Não pode, assim, deixar de se considerar como válidas tais cláusulas, porquanto estabelecidas e acordadas no âmbito do princípio da autonomia privada dos contraentes, vigente em direito civil, e que atribui às partes intervenientes nos contratos, dentro dos limites da lei, a faculdade de fixarem ampla e livremente o seu conteúdo, vinculando-se voluntariamente nos seus precisos termos, por força do disposto nos arts. 405º e nº 1 do 406º, ambos do CC.

Inserindo o contrato de seguro as referidas cláusulas, que foram reproduzidas nos pontos de facto 2) a 4) e 6), aqui objecto de análise, através das quais quem o subscreveu assumiu as obrigações daí decorrentes, nada mais nos resta do que interpretar o contrato, com todas as suas condições particulares, nos termos livremente negociados pela Autora Seguradora “C...” e o Despachante oficial que o negociou, contratou e o subscreveu.

E porque também nada mais se provou quanto à vontade real desses intervenientes, nem a prova testemunhal produzida infirmou ou contrariou a existência desse contrato de seguro-caução, há que interpretar a declaração negocial produzida nos termos dos artigos 236.º e seguintes do CC.

Com a certeza que resulta desse normativo, conjugado com o art. 238.º n.º 1 do CC, que não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2.4. Por outro lado, e contrariamente ao que a Recorrente pretende, a Autora “C...” não refere em parte alguma dos seus articulados que a Ré subscreveu tal contrato, nem tão pouco configurou a Ré, em sede do presente litígio, como parte contratual do mesmo.

Pelo que, toda a argumentação expendida sobre esta matéria no recurso não tem razão de ser.

 O que, de facto, se provou – foi que o citado contrato foi celebrado com o Despachante oficial M..., nos precisos termos alegados pela Autora Seguradora.

Resultando com clareza dos depoimentos citados, conforme se aludiu supra, que os documentos de fls. 10 a 18 existiam nas instalações da Recorrida/Autora e reportam-se ao contrato de seguro-caução de desalfandegamento aqui em causa, e que foi celebrado com o Despachante oficial M...

E através desse contrato, e de acordo com as suas cláusulas, a Autora Seguradora “C...” assumiu a garantia de, perante a Alfândega, efectuar “o pagamento da indemnização que for devida por incumprimento das obrigações” perante a Alfândega, que tenham sido contraídas pelo tomador do seguro – o Despachante oficial identificado.

Vinculando-se ao teor desse contrato e das respectivas condições particulares da apólice para o desalfandegamento, nos termos dos documentos de fls. 16 a 18, certificados a fls. 100-106.

Assim sendo, e uma vez provada a celebração do contrato de seguro, bem andou o Tribunal “a quo” ao incluir na matéria de facto provada tal circunstancialismo fáctico nos termos em que os autos documentam.

2.5. Destarte, improcede a presente apelação também nesta parte, quanto à decisão proferida pelo Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto.

 3. Face ao exposto, consideram-se provados, nos precisos termos em que o Tribunal “a quo” decidiu, os factos que se seguem.

4. FACTOS PROVADOS:

1. A Autora exerce a actividade seguradora (al. A) da MA).

2. A Autora firmou com M... um acordo de seguro caução titulado pela Apólice nº 9219/04/29, nos termos que constam dos instrumentos que constituem:

- fls. 10-11, denominado “Seguro Caução – Proposta“;

- fls. 12-15, denominado “Caução Aduaneira C... – Condições Gerais”;

- fls. 16-18, denominado “Caução Aduaneira – Apólice n.º 009219/04/29 – Apólice global para desalfandegamento – Condições Particulares” – cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido (resp. 1º da BI).

3. Tendo nomeadamente acordado (instrumento de fls. 12-15, denominado “ Caução Aduaneira C... - Condições Gerais”):

“A C..., tomando por base as declarações prestadas na proposta apresentada pelo interessado em contratar o presente seguro, doravante designado como Tomador do seguro, garante à Alfândega identificada nas Condições Particulares, que passará a designar-se por segurado, o pagamento da indemnização que for devida por incumprimento das obrigações perante esta, contraídas pelo Tomador do seguro.

Artigo 1º – Objecto

1. Pela presente apólice de seguro caução, a C... garante ao segurado o pagamento dos direitos aduaneiros ou outros equiparados por lei, dos juros de mora e dos encargos devidos pelo tomador e relativos à operação identificada nas Condições Particulares.

(…)

Artigo 5º – Sinistros

Considera-se sinistro o não pagamento pelo tomador do seguro da totalidade ou parte dos montantes previstos no art. 1º. Depois de notificado aquele pelo segurado.

(…)”

“(resp. 2º da BI)”.

4. E tendo ainda acordado (instrumento de fls. 16-18, denominado “ Caução Aduaneira – Apólice n.º 009219/04/29 “):

“Seguradora: C...

Segurado: Alfândega de Lisboa;

Tomador de seguro: M...

            I. Obrigação segura (art. 1º das Condições Gerais)

1. Pagamento, até ao montante garantido, dos direitos e demais imposições e eventuais juros de mora, nos termos do sistema global para desalfandegamento, instituído pelo Decreto-Lei n.º 289/88, de 24 de Agosto e Despacho Normativo n.º 78/88, com a actualização constante do Decreto-Lei n.º 294/92, de 30 de Dezembro, pelos quais sejam solidariamente responsáveis o Tomador do seguro e as pessoas por conta de quem são pagos os direitos e demais imposições.

(…)

IV. Vigência (art. 2º das Condições Gerais)

1. De 01 de Abril de 1995 a 31 de Março de 1996;

2. A presente garantia á válida por um ano, sendo sucessiva e automaticamente renovável por iguais períodos de tempo, salvo denúncia prévia da entidade garante com a antecedência mínima de 45 dias.

(…)

VII “ Termo de caução” (art. 11º do Decreto-Lei n.º 289/88)

C.... (…) declara que pelo presente documento presta a favor da Alfândega de Lisboa um seguro caução até ao montante de Esc. 30.000.000$00, para garantia do pagamento dos direitos e demais imposições e eventuais juros de mora pelo qual, no âmbito do sistema de Caução Global para Desalfandegamento, instituído pelo Decreto-Lei n.º 289/88, de 24 de Agosto, seja responsável o despachante M... – (resp. 3º da BI)”.

5. O referido acordo foi entregue e registado na Direcção-Regional de Contencioso e Controlo Aduaneiro de Lisboa, tendo recebido o número de garantia 2577/98 e número 793/95 de Autorização – (resp. 4º da BI).

6. E foi sucessivamente prorrogado após 31.03.96 – (resp. 5º da BI).

7. Nos meses de Julho e Agosto de 2001, “M...”, procedeu, por conta de vários importadores clientes seus, de entre eles a aqui Ré, ao desembaraço alfandegário de diversas mercadorias em regime de globalização de pagamentos – (resp. 6º da BI).

8. Sendo devidos pelo desembaraço alfandegário das mercadorias importadas pela Ré direitos e demais imposições aduaneiras no montante de Esc. 12.421.380$00, apurados pelo “registo de liquidação“ n.º 2001/0461132, de 2001/07/19, cuja data limite de pagamento era 2001/08/15, impresso de liquidação que constitui fls. 25 – (resp. 7º da BI).

9. Nem o referido “M...”, nem os importadores clientes seus, de entre eles a aqui Ré, pagaram à Alfândega de Lisboa os direitos e demais imposições aduaneiras devidos pelas mercadorias desalfandegadas – (resp. 8º da BI).

10. Consequentemente, a “Alfândega de Lisboa”, remeteu à Autora o ofício junto por cópia a fls. 20-21, com nº 06001 de 19/10/2001, notificando-a para proceder ao pagamento daqueles direitos e imposições, num total de Esc. 25.144.697$00, sendo Esc. 20.670.757$00 relativos ao desalfandegamento de mercadorias durante o mês de Julho de 2001 e Esc. 4.473.940$00, relativos ao desalfandegamento de mercadorias durante o mês de Agosto de 2001 – (resp. 9º da BI).

11. Em cumprimento da referida notificação, a 31/10/2001 a Autora pagou à Alfândega de Lisboa – Direcção-Regional de Contencioso e Controlo Aduaneiro de Lisboa, a quantia notificada de Esc. 25.144.697$00 – (resp. 10º da BI).

12. E a Alfândega de Lisboa entregou à A. os “Impressos de Liquidação”, correntemente designados por “ILs” – (resp. 11º da BI).

13. Em 2001 a Ré encarregou o despachante oficial M... da importação do veículo Mercedes Benz, modelo S 55 AMG, com o quadro n.º WDB2201731A223194 – (resp. 12º da BI).

14. Pela importação do referido veículo eram devidos direitos aduaneiros e demais imposições legalmente previstas e exigidas pela Alfândega de Lisboa, no montante de Esc. 12.421.380$00, os quais foram liquidados pelo “registo de liquidação“ n.º 0461132, de 2001/07/19 – (resp. 13º e 16º da BI).

15. A 10.07.2001, entregou ao despachante oficial M... o cheque visado n.º 3627887692, emitido na mesma data sobre o BIC e à ordem da Direcção-Geral do Tesouro no montante de Esc. 12.421.380$00, para pagamento dos direitos referidos no artigo anterior – (resp. 14º da BI).

16. O cheque visado n.º 3627887692, referido na resposta ao art. 14º, foi apresentado e pago pelo BIC à Alfândega de Lisboa, mas não serviu para pagamento dos direitos referidos na resposta ao art. 13º, mas para pagamento das liquidações apuradas no mês de Junho de 2001, imputadas à garantia de Caução Global para Desalfandegamento, cujo prazo de pagamento era 15.07.2001 – (resp. 15º da BI).

17. A 20.07.2001 a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo emitiu e entregou á Ré o documento junto por cópia a fls. 52, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido – (al. D) da MA).

18. A Autora endereçou à Ré a carta junta por cópia a fls. 28, datada de 13.11.01. com o seguinte teor:

“Assunto: M... – Despachante Oficial – Apólice global para Desalfandegamento n.º 9219/04/29:

Dirigimo-nos a V. Exas. na qualidade de importadores e clientes do despachante oficial acima identificado, porquanto fomos notificados pela Alfândega de Lisboa para procedermos ao pagamento do montante relativo à globalização dos direitos e demais imposições aduaneiras devidas pelos despachos processados pelo referido despachante, em Julho e Agosto, pp., os quais este não liquidou nos prazos legais.

Deste modo, viu-se esta Companhia obrigada, em substituição do despachante, a proceder àquele pagamento junto da Alfândega, o que concretizou em 31.10.2001, ficando assim legal e contratualmente subrogada pelo correspondente valor, conforme o disposto no art. 2º do DL 289/88, de 24 de Agosto.

Ora, dos direitos liquidados, Esc.12.421.380$00 respeitam a uma importação efectuada por V. Exas. a que corresponde o registo de liquidação n.º 2001/0461132, de 19.07.2001.

Donde, ao abrigo do citado art. 2º do DL 289/88, de 24 de Agosto, V. Exas. são solidariamente responsáveis, juntamente com o despachante, pelo pagamento atrás referido, pelo que deverão, no prazo máximo de cinco dias, proceder à regularização daqueles Esc. 12.421.380$00, sem o que nos veremos forçados a intentar, de imediato e sem mais avisos, a competente acção judicial”.

(…)”

“ (al. B) da MA)”.

19. A Ré remeteu à Autora a carta junta por cópia a fls. 29, datada de 27.11.2001. com o seguinte teor:

“Temos presente a v/carta de 2001.11.13. na qual V. Exas. pretendem que seja paga a quantia de Esc. 12.421.380$00 respeitante ao registo de liquidação n.º 2001/0461132, de 2001.07.19.

Sucede que em 2001.07.10, a (Ré) L... já havia pago a quantia em causa, mediante cheque visado à ordem da Direcção-Geral do Tesouro, de que anexamos fotocópia.

Deste modo a L... nada mais tem a pagar.

(…)”

“(al. C) da MA)”.


5. As restantes questões jurídicas:

5.1. nalterada a matéria de facto provada, não se vislumbram fundamentos jurídicos para se proceder à alteração do sentido da decisão proferida pela 1ª instância e que condenou a Ré, aqui Recorrente.

Com efeito, provado ficou que a A. celebrou o contrato de seguro que se discutiu nos autos, como igualmente se provou que a A. pagou a quantia na qual a Ré foi condenada e, por isso, tem direito a ser reembolsada.

Valem, aqui, nesta matéria, as doutas considerações tecidas na sentença recorrida, que acompanhamos e subscrevemos na íntegra, razão pela qual nos abstemos de as enunciar de novo.

Diremos, contudo, o seguinte:

5.2. A Inexistência do crédito reclamado e a inoponibilidade do contrato de seguro alegados pela Ré/Recorrente, como suporte jurídico do seu recurso de apelação, e com vista à procedência deste, não pode ser aceite.

Desde logo porque a matéria de facto provada não o permite, pois ao contrário do que a Ré pretende ver declarado provou-se que tal contrato foi celebrado.

E uma vez celebrado o referido contrato de seguro-caução de desalfandegamento, e tendo a Autora liquidado as quantias provadas nos autos, sem que tivesse sido reembolsado das mesmas, tem direito a exigir o seu reembolso ao abrigo do acordo que celebrou.

Salienta-se que se provou que a Autora é detentora dos documentos referentes ao pagamento que fez para liquidação dos direitos devidos pela importação do veículo citado pela Recorrente, tendo-os liquidado à Alfândega de Lisboa.

E não colhe a alegação da Recorrente de que, o que a Recorrida pagou, foram direitos de terceiros, pois o que se provou foi que a Autora não recebeu a quantia relativa ao cheque cujo pagamento efectuou e que entregou ao Despachante oficial. Tem assim que receber deste o que pagou, ou de quem tem a obrigação legal de realizar esse pagamento, ao abrigo do contrato de seguro que celebrou.

Louvamo-nos, a este propósito, na jurisprudência que releva sobre tal matéria, nomeadamente nos acórdãos do STJ que citaremos e que, analisando criticamente o diploma legal com aplicação ao caso sub judice e discorrendo sobre a temática do seguro caução, concluíram nesse sentido.  

5.3. Com efeito, da análise do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, verifica-se que tal diploma visou tornar menos moroso o processo de desalfandegamento de mercadorias, eliminando parte da burocracia que até então era exigida para os importadores, com os consequentes benefícios que daí derivam para estes.

E para além desse objectivo, plasmado ao longo das suas normas, pretendeu ainda o legislador disciplinar o sistema de cobrança dos direitos e demais imposições devidos à Alfândega pelas declarações aí apresentadas pelo Despachante oficial.

Conforme decorre do próprio preâmbulo deste diploma legal, pretendeu-se, com a regulamentação desta matéria, combater a demora no desalfandegamento das mercadorias importadas, obviando os prejuízos daí resultantes para os agentes económicos, e “rever o actual processo de desalfandegamento, com vista a tornar mais célere a importação e a exportação”.

Os objectivos do legislador foram claros e mostram-se consignados no diploma em análise:
- por um lado, pretendeu simplificar o sistema de prestação de garantia e de pagamento dos direitos e demais imposições e, desse modo, reduzir substancialmente os prazos de entrega das mercadorias;
- e por outro – como primordial função e razão de ser deste diploma – o de criação da caução global para o desalfandegamento, através do seguro –caução.
Caução essa que, de acordo com o preceituado no seu art. 1º, se destina a garantir os direitos e demais imposições devidos pela totalidade das declarações apresentadas pelo Despachante oficial às alfândegas.
Explicitando-se na própria norma, no nº 2 do citado art. 1º que, os direitos e demais imposições compreendem os direitos aduaneiros e outras imposições de efeito equivalente, bem como quaisquer outros impostos ou taxas cuja cobrança esteja a cargo das alfândegas.

Por sua vez o art. 2º estabelece que, no âmbito da utilização do sistema de caução global para desalfandegamento o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis.
Estatuindo-se o direito de regresso nos seguintes termos: o despachante oficial ou a entidade garante gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, acompanhados de todos os seus privilégios, nomeadamente do direito de retenção sobre as mercadorias e documentos objecto das declarações apresentadas – cf. seu art. 2º, nº 2.

5.4. No caso concreto, conforme defende, e bem, a Autora, face às disposições legais citadas, e ao acervo fáctico provado, a entidade garante – a Seguradora Autora “C...” – goza de direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais importações, ficando ainda sub-rogada em todos os direitos da Alfândega relativamente às quantias pagas.
Trata-se, aqui, de uma sub-rogação legal, derivada do diploma legal em análise, e não de uma qualquer outra dívida aduaneira ou tributária ou de qualquer outra natureza similar.
O que aconteceu foi que a garantia autónoma existente – seguro-caução – operou tendo a Autora assegurado o pagamento da correspondente indemnização por ocorrência do risco garantido: o incumprimento, derivado da falta de pagamento por parte do Despachante oficial/e ou do importador dos direitos e demais imposições aduaneiras inerentes à mercadoria importada.
Não se trata aqui de um pagamento feito por um qualquer “terceiro” de uma “prestação tributária”, porquanto a Autora/Recorrida “C...” não se encontra investida na relação ou posição jurídica da Administração Fiscal, entidade esta, sim, com a obrigação de actuar em defesa dos direitos e interesses públicos. Ao passo que a Autora/“C...” tem a sua relação jurídica firmada ao abrigo de um contrato de seguro-caução global para desalfandegamento, celebrado nos termos e com o conteúdo que os autos documentam e o seu direito advém da força da lei, e foi-lhe conferido pelo Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, nos precisos termos que derivam dos seus arts. 1º e 2º.
Preceitos que, conforme se assinalou supra, reportam-se ao direito de regresso e à sub-rogação legal relativamente a todos os direitos da Alfândega no que concerne às quantias que foram pagas por força do celebrado contrato seguro-caução e pagamento da respectiva indemnização.

Não pode, assim, ser acolhida a interpretação que pretende defender a existência in casu de um crédito fiscal da Recorrida “C...” sobre a Recorrente, que não existe.

E, nessa medida, não faz sentido apelidar a dívida existente de dívida com natureza tributária.

Defender o contrário seria atentar, quer contra a ratio do diploma legal que temos vindo a citar, quer contra as próprias estipulações legais inseridas nesse diploma e que se mostram redigidas de forma clara e explícita.

5.5. Não sendo despiciendo acrescentar que, conforme é sabido, o direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta.[3]

Ao passo que a sub-rogação envolve a transmissão de todas as garantias e outros acessórios do crédito [4], … porquanto se alguém satisfaz a dívida de outrem, é justo que se lhe concedam todas as garantias e acessórios que asseguravam o crédito.

Ora, o contrato de seguro caução, sendo uma das modalidades do contrato de seguro, dá o direito à Seguradora, que pague as quantias devidas pelo desalfandegamento, de ficar sub-rogada em todos os direitos relativos a tal pagamento, sem que se possa pretender fazer vingar outros institutos jurídicos que atentem contra os direitos que o art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, lhe confere expressamente neste domínio. 

5.6. Com efeito, sobre o alcance daquela norma – que no seu nº 2 faz referência expressa ao direito de regresso e à sub-rogação – pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, explicitando o entendimento que deve presidir à interpretação dos normativos legais citados, fazendo-o em termos que não suscitam dúvidas e que se sintetizam nos seguintes termos:

Dado que a sub-rogação e o direito de regresso constituem no sistema legal português, realidades distintas, deve ser feita uma interpretação restritiva ao nº 2 do art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, assente em dois vectores:

- um, o do Despachante oficial que paga, e como tal, mercê do regime da solidariedade passiva, tem direito de regresso;

- o outro, reportado à entidade garante, o Banco ou a Seguradora, que pague, mercê do termo-caução, e que, neste caso, fica sub-rogado/a em todos os direitos das Alfândegas relativamente às quantias que foram pagas.

Quer isto dizer que:

a) Se o Despachante oficial pagar à Alfândega os direitos e demais imposições, gozará, mercê do regime de solidariedade passiva, de direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e imposições.

Assim, o titular do direito de regresso – o Despachante oficial – demandará o seu condevedor solidário – o importador – para pagar por inteiro, podendo, então invocar os meios de defesa pessoal que tenha contra o titular, como seja o de lhe já ter pago.

b) Se a entidade garante – Banco ou Seguradora – pagar à Alfândega os direitos e demais imposições, mercê dos termos da caução-garantia autónoma ficará sub-rogada em todos os direitos das Alfândegas relativamente às quantias pagas.

Destarte, o sub-rogado – entidade garante, Seguradora (ou Banco) – demandará o devedor – o Importador – para pagar as quantias pagas às Alfândegas, podendo, então, o devedor defender-se com os meios de defesa que tinha contra a Alfândega (como seja o de já lhe ter pago). [5]

Este é o regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, e que decorre do seu art. 2º.

5.7. Do que antecede resulta que, o importador, como dono ou consignatário das mercadorias importadas, está directamente obrigado a pagar os direitos e demais imposições devidos à Alfândega.

Podendo defender os seus direitos no caso do Despachante não pagar os direitos devidos, situação a que a Alfândega é totalmente alheia.

E, com o pagamento, o segurador fica investido nos direitos do credor, por sub-rogação legal, contra aqueles devedores.

Igual entendimento pode ser extraído do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/01/1998.[6]

Constitui jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça – há muito consolidada – que, em tais circunstâncias, a Seguradora que, por seguro-caução, garantiu à Alfândega o pagamento dos direitos aduaneiros devidos pelas mercadorias desalfandegadas pela tomadora do seguro, fica sub-rogada pelos direitos desta sobre o dono das mercadorias – cf. por todos o Acórdão do STJ, datado de 17/02/1998, in www.dgsi.pt.

Acórdão onde se mostram citados vários outros, do mesmo Supremo Tribunal, que sufragam igual entendimento. [7]

No mesmo sentido cf. também o Acórdão do STJ., datado de 15/07/1999. [8]

5.8. Ora, sendo o contrato de seguro-caução uma modalidade do contrato de seguro, o qual cobre o risco de incumprimento ou atraso no cumprimento das obrigações que, por convenção ou por lei, sejam susceptíveis de caução, daí resulta que, no caso de desalfandegamento, a seguradora que pague os direitos e demais imposições relativos às quantias referentes ao desalfandegamento fica sub-rogada em todos os direitos relativos a tal pagamento, sendo acompanhados de todos os seus privilégios.

Por conseguinte, provado nos autos que:

- A Autora “C...” celebrou o contrato de seguro-caução de desalfandegamento com o conteúdo de fls. 10 a 18, sendo tomador do seguro M..., Despachante oficial, e através desse contrato assumiu a garantia de efectuar “o pagamento da indemnização que for devida pelo incumprimento das obrigações perante a Alfândega que tenham sido contraídas pelo tomador do seguro”, nos termos do referido contrato e das condições gerais e particulares da respectiva apólice, para o desalfandegamento, “instituído pelo Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto”, conforme contrato, cujo documento se encontra a fls. 18, e factos provados inseridos nos pontos 2) a 4);

- O tomador do seguro – o Despachante oficial – procedeu, por conta dos vários importadores clientes seus, de entre os quais a Ré/Recorrente, ao desembaraço alfandegário de diversas mercadorias sem que tivesse procedido ao pagamento à Alfândega de Lisboa dos direitos e demais imposições aduaneiras devidas pelas mercadorias desalfandegadas – cf. factos provados e inseridos nos pontos 7) a 9);

- Foi a Autora “C...” que procedeu ao pagamento daqueles direitos e imposições no valor total de Esc.: 25.144.697$00, conforme recibo nº 1285/2001, sem que tivesse sido reembolsada de tal quantia pelo citado Despachante oficial – cf. factos provados e inseridos no ponto 11);

- De entre os direitos e imposições pagos pela Autora encontra-se um referente a uma importação efectuada pela Ré/Recorrente, no valor de Esc.: 12.421.380$00 / 61.957,58 €, que não foi pago à Autora até ao momento – cf. factos provados e inseridos nos pontos 7) e segts.

E atendendo ao preceituado no art. 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, em que se estabelece que o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as Alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis,

E ficando a Autora, enquanto entidade garante, com o direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, nos termos que constam do nº 2 do art. 2º do diploma legal citado,

Não sendo oponível à Autora qualquer excepção que decorra da relação estabelecida entre a Ré e o despachante oficial tomador do seguro,

A conclusão a extrair é a de que a Ré deve pagar tal quantia à Autora. E não o tendo feito, deve ser condenada a fazê-lo nos termos peticionados.

5.9. Assim sendo, bem andou o Tribunal “a quo” quando decidiu condenar a Ré nos termos que constam dos autos e que, em sede de recurso, a Ré pretendeu inverter, mas sem êxito.

Falece, assim, a apelação relativamente a todas estas questões.


6. Quanto ao abuso de direito:

6.1. Foi invocada nos autos pela Ré/Recorrente a existência de abuso de direito por parte da Autora C... e, nos autos, suscitou-se a questão de uma provável/eventual litigância de má-fé mas agora da própria Ré.

A alegação de abuso de direito, a Ré fundamenta-a, entre outros factos, no da Autora C... bem saber que a Ré já efectuou o pagamento legalmente devido à Alfândega de Lisboa, através do cheque citado nos autos (cf. fls. 174).

Alegação que reiterou ao longo dos articulados e que versa sobre factos relativamente aos quais não conseguiu fazer a prova. Tendo, isso sim, sido feita a prova do contrário. Ou seja: resultou provado que a Ré não pagou à Alfândega os valores peticionados nesta acção e que tal cheque se destinou ao pagamento de outras importâncias devidas àquela entidade (à Alfândega).

6.2. Ora, a noção de abuso de direito foi consagrada no CC de 66, no art. 334º, segundo a concepção objectiva: para que haja lugar a abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou o fim e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.[9]

O abuso do direito pressupõe excesso ou desrespeito dos limites axiológico-materiais, não existindo tal abuso quando não se verificar esse excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social – cf. art. 334º do CC. [10]

Mas sendo legítimo o direito, nos termos que se definiu, e tendo sido exercido dentro dos respectivos limites previstos legalmente, não faz sentido falar em abuso de direito, por inexistência dos respectivos pressupostos legais, já que o exercício abusivo de um direito, conforme salienta igualmente Coutinho de Abreu, constitui “uma forma de antijuricidade ou ilicitude”. [11]

E não há abuso de direito quando o titular de um direito o exerce nos limites do seu fim social e económico, sem os exceder manifestamente, como é o caso sub judice.

Para tanto basta o que se expôs sobre as razões – válidas e tuteladas jurídica e jurisprudencialmente – e que subjazem ao entendimento defendido pela Autora e aqui sufragado.

7. Quanto à litigância de má-fé por parte da Ré que foi suscitada nos autos pela Autora, e aflorada por este Tribunal, em face do recurso deduzido, aquando da prolação do despacho de fls. 549, do 3º Vol., impõe-se agora a sua apreciação e decisão.

7.1. É sabido, que a responsabilidade por litigância de má-fé e a condenação enquanto tal pressupõe e exige que se mostrem reunidos diversos pressupostos legais, nomeadamente a aferição, em concreto, se essa má-fé existe ou não.

A noção de má fé é-nos dada pelo art. 456º do CPC, hoje com assento no art. 542º do Novo CPC, onde se estabelece que se considera como litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver assumido um dos comportamentos elencados numa das diversas alíneas do seu nº 2, onde se pode ler que:

“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

A este propósito, e com plena actualidade em face da redacção da actual norma do Novo CPC, salienta Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, II vol., pág. 263, que, para se verificar a existência de litigância de má fé, “é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada...; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito; e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir”.

Por sua vez é pacífico, na jurisprudência, o entendimento que defende que a litigância de má fé abrange quer os casos de dedução de pedido ou de oposição cuja falta de fundamento se conhece, quer a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais e, ainda, o uso reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objectivo ilegal e de entorpecer a acção da justiça ou impedir a verdade material.  [12]

7.2. A nível doutrinal encontramos, porém, estabelecidas algumas distinções entre o que deve ser entendido como a má fé instrumental e a má fé denominada de material.

A este propósito referem José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, págs. 196 e 197, o seguinte:

É “corrente distinguir má fé material (ou substancial) e má fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, actua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objectivo que se afasta da função processual.

A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo.

Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem actuar com má fé instrumental…”

Para além do elemento objectivo da litigância de má fé é ainda necessário que fique preenchido o respectivo elemento subjectivo, o dolo ou a negligência grave.

7.3. Ora, no caso dos autos, pode dizer-se que todo o circunstancialismo fáctico que rodeia a actuação da Recorrente, e que subjaz à dedução da oposição formulada, aparenta alguns contornos de duvidosa insistência e até temeridade.

Porém, o contexto em que o mesmo ocorreu não se mostra perfeitamente delineado, em termos de se poder concluir no sentido da existência de um comportamento doloso ou de negligência grave por parte da Recorrente em termos que permitam consubstanciar a litigância de má fé prevista e punida pela actual norma do CPC, com o alcance que lhe é reconhecido pela doutrina e jurisprudência nos termos supra citados.

E por não se mostrar com a clareza que entendemos ser necessária para uma condenação da Recorrente enquanto tal, por manifesta má fé, decide-se, in casu, não a condenar.

8. Em face do que antecede e do decidido, prejudicadas se mostram todas as restantes questões, e falece in totum a presente apelação e, por consequência, improcede o recurso confirmando-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.

IV – Em Conclusão:
1.Não existem razões que determinem a alteração da decisão proferida pelo Tribunal “a quo” quanto à matéria de facto, por conseguinte mantém-se tal decisão.
2. O contrato de seguro caução, sendo uma das modalidades do contrato de seguro, dá o direito à Seguradora, que pague as quantias devidas pelo desalfandegamento, de ficar sub-rogada em todos os direitos relativos a tal pagamento, sem que se possa pretender fazer vingar outros institutos jurídicos que atentem contra os direitos que o art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, lhe confere expressamente neste domínio.

3. Dado que a sub-rogação e o direito de regresso constituem, no sistema legal português, realidades distintas, deve ser feita uma interpretação restritiva ao nº 2 do art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, assente em dois vectores:

- um, o do Despachante oficial que paga, e como tal, mercê do regime da solidariedade passiva, tem direito de regresso;

- o outro, reportado à entidade garante, o Banco ou a Seguradora, que liquide, mercê do termo-caução, e que, neste caso, fica sub-rogado/a em todos os direitos das Alfândegas relativamente às quantias que foram pagas.
4. O direito de regresso contra o importador de mercadorias desalfandegadas com utilização/accionamento ao abrigo do contrato seguro-caução depende desse importador não ter efectuado o necessário pagamento dos direitos aduaneiros em dívida à respectiva Alfândega – cf. art. 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto.

V – Decisão:

- Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, pelo que vai a Ré condenada nos seus precisos termos, a pagar à Autora “C...” as quantias aí referidas, bem como os respectivos juros nos termos que foram decididos pelo Tribunal “a quo”.

- Face ao decidido relativamente ao alegado abuso de direito, e à litigância de má-fé, improcedem estes pedidos.

- Custas da apelação a cargo da Ré/Recorrente.

                                        Lisboa, 20 de Novembro de 2014.
                                        Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)

                                        António Manuel Valente
                                        Ilídio Sacarrão Martins

[1]              Sublinhados nossos.
[2]              Cf. Professor Antunes Varela – in “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 6ª Ed., pág.344, citado nos autos.
[3]   Neste sentido cf. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 2ª Ed., pág. 644, igualmente citado nos autos.
[4]              Ibidem, Antunes Varela, págs. 643 e segts.
[5] Neste sentido cf. Acórdão do STJ, datado de 23 de Novembro de 2000, que pode ser consultado in www.dgsi.pt.
[6]Neste sentido cf. Acórdão do STJ, datado de 27/01/1998, in CJSTJ, T. I, págs. 37 e segts.

[7]Desses acórdãos resulta igualmente como pacífica a jurisprudência que defende que são os Tribunais Comuns os competentes para apreciar e decidir esta matéria, porquanto não se mostra sequer posta em causa a competência material dos Tribunais Comuns.
[8]              Cf. o Acórdão citado in www.dgsi.pt. Veja-se também o Acórdão do STJ., datado de 06/05/1998, igualmente em www.dgsi.pt

[9]Sobre o conceito do abuso de direito, cf. Menezes Cordeiro, in “da Boa Fé no Direito Civil”, II vol., 1985, págs.  661 e segts.
[10]             Vide tb. Vaz Serra, in RLJ, 111º, pág. 202.
[11]             Cf. “Do Abuso de Direito”, págs. 76 e segts.
[12]Cf., por todos, o Ac. n.º 200/94, do Tribunal Constitucional, de 1/3/1994, in D.R., de 30/5/1994, o Ac. do STJ, de 10/7/1991, in BMJ 409º/586, e o Ac. da Rel. de Coimbra de 22/7/1997, in CJ., T. III, pág. 5, todos com plena actualidade.