Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3084/13.8YLPRT.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: SENHORIO
COMUNICAÇÃO
USUFRUTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
LEGITIMIDADE
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DENÚNCIA
OBRAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O art. 11º, nº 1 da L. 6/2012 de 27.02, na redacção dada pela L. 31/2012, de 14.8, tem subjacente a regra da unanimidade em relação às comunicações por iniciativa dos senhorios, visando evitar que um senhorio possa actuar com desconhecimento dos restantes, ou seja, pretende-se garantir que nenhum senhorio vê o seu direito, enquanto senhorio, posto em causa por uma iniciativa isolada dos outros senhorios.
2. O senhorio referido no mencionado preceito será quem tem a qualidade de “senhorio”, ou seja, aquele que proporciona a outrem o gozo do imóvel (art. 1022º), precisamente porque é titular desse “gozo”.
3. Estando constituído usufruto sobre determinado imóvel, senhorio será o respectivo usufrutuário, uma vez que o usufruto lhes concede o direito a gozar temporária e plenamente aquele, mas sem alterar a sua forma ou substância (art. 1439º do CC).
4. A par do direito de usufruto mantém-se o direito de propriedade de raiz, implicando a situação de usufruto um concurso de direitos reais, em que o proprietário mantém sobre a coisa uma “legitimidade comprimida”

5. Apenas o usufrutuário tem legitimidade para efectuar a denúncia do contrato de arrendamento que tem por fundamento a realização de obras de remodelação e restauro profundos, com demolição de parte do prédio, que obriguem à desocupação do locado.
6. A realização das obras em causa, que ao usufrutuário está vedado fazer, apenas se poderá colocar no plano das relações entre usufrutuário e proprietário de raiz, sendo certo que a não realização das mesmas o fará incorrer em responsabilidade perante o arrendatário.

(Sumário da Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de ...:

RELATÓRIO.

 D, e marido, M, J, MI, B, A e G intentaram o presente procedimento especial de despejo, contra a G, Lda., com vista ao despejo da fracção autónoma designada pela letra “B”, a que corresponde a loja com a entrada pelo nº … da Av. …, em L.., destinada a comércio, que faz parte integrante do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, descrito na C.R.P. de L.. sob o nº …, da freguesia de …, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. ….

 Fundamentaram a sua pretensão na denúncia pelos senhorios do contrato de arrendamento para a realização de obras de demolição e/ou de remodelação profundas no prédio, as quais obrigam à desocupação do espaço locado à ora Ré, mediante proposta de pagamento de indemnização correspondente ao valor de um ano de rendas (= € 11 148,00), com efeitos no dia 30 de Setembro de 2013 [1].

Notificada do requerimento de despejo, a R. deduziu oposição, por excepção, invocando a ineficácia da comunicação por falta de subscrição dos senhorios, e por falta de indicação expressa do fundamento da denúncia, e falta de liquidação de IS, por impugnação, e deduziu reconvenção, para o caso de ser julgado procedente o despejo.

Termina pedindo que sejam julgadas procedentes as excepção dilatórias invocadas e a R. absolvida da instância, caso assim não se entenda, deve julgar-se improcedente o procedimento de despejo, absolvendo-se a R. do pedido, e procedente a reconvenção, condenando-se os AA. a pagarem-lhe uma indemnização no montante dos danos causados que vier a apurar-se em liquidação posterior e, no mínimo, na quantia de € 1.1000.000,00, acrescida dos juros legais.

Os autos foram remetidos à distribuição, vindo, oportunamente, a ser proferido despacho que, saneando o processo, julgou procedente a excepção peremptória da ineficácia da comunicação por falta de subscrição dos senhorios e, em consequência, absolveu do pedido a Ré.

Inconformados com a decisão, dela apelaram os requerentes, formulado, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1-Na sentença recorrida foi invocada a aplicação do artigo 11 n° 1, da Lei n° 6/2006, de 27 de Fevereiro (com a redacção dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de Agosto), o qual menciona que "havendo pluralidade de senhorios, as comunicações devem, sob pena de ineficácia, ser subscritas por todos, ou por quem a todos represente, devendo o arrendatário dirigir as suas comunicações ao representante, ou a quem em comunicação anterior tenha sido designado para as receber".

2- A ratio de tal disposição legal, que consagra a regra da unanimidade em relação às comunicações por iniciativa dos senhorios é claramente perceptível, ou seja, garantir que nenhum dos senhorios vê o seu direito – enquanto senhorio – posto em causa por uma iniciativa isolada dos outros senhorios, pois todos eles estão investidos na mesma qualidade e os seus poderes só podem ser exercidos conjuntamente.

3- Ou seja, se o imóvel for detido por vários comproprietários, sendo estes os senhorios, por não haver concorrência de qualquer outro direito, todos aqueles comproprietários terão necessariamente de subscrever a comunicação de denúncia prevista no artigo 1101º alínea b) do Código Civil, ao abrigo do artigo 11º número 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (com a redacção dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de Agosto).

4- Da mesma forma e no que respeita ao usufruto, se o gozo do imóvel estiver na titularidade de diversos usufrutuários, são estes os senhorios, e todos aqueles usufrutuários terão necessariamente de subscrever a comunicação de denúncia prevista no artigo 1101º alínea b) do Código Civil, ao abrigo do artigo 11º número 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (com a redacção dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de Agosto).

5- Tal ratio é reforçada pelo facto de o legislador se referir no número 6 daquele artigo 11 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro à “titularidade” da posição de senhorio.

6- Como é entendimento unânime na Jurisprudência e Doutrina, quando coexistem em pessoas diversas as qualidades de usufrutuário e de proprietário de um determinado imóvel, quem assume a qualidade de senhorio é aquele, pois é ele que detém o direito de gozo pleno sobre o bem imóvel.

7- A constituição do usufruto constitui na esfera do proprietário uma perda, temporária, do direito de gozo sobre o imóvel, pelo que quando coexistem em pessoas diversas a qualidade de usufrutuário e de proprietário de um determinado imóvel, este não é senhorio.

8- Veio no entanto o Tribunal a quo acolher a tese da Ré de que, no caso sub judice, deveria ser “densificado” o conceito de senhorio a que alude o artigo 1101.°, alínea b), do Código Civil pois os poderes do usufrutuário estão sujeitos a um limite, que é o respeito da forma e da substância da coisa ou do direito.

9- Os Recorrentes não contestam, como é óbvio, a limitação dos poderes do usufrutuário, que decorre claramente da lei, mas não é disso que se trata no caso em apreço.

10- O argumento da densificação do conceito de senhorio para os efeitos da aplicação do artigo 1101º alínea b) do Código Civil, quando coexistam em pessoas diversas as qualidade de usufrutuário e de proprietário de um determinado imóvel, não tem qualquer fundamento.

11- Em lado algum a lei impõe que em tal situação e para efeito da aplicação do artigo 1101º alínea b) do Código Civil, a comunicação de denúncia tenha de ser assinada pelo senhorio – usufrutuário – mas também por outra entidade – o proprietário, que à luz da lei não é senhorio.

12- Na situação sub judice trata-se de saber se a comunicação de denúncia assinada por quem a lei qualifica como senhorios (os usufrutuários) é ineficaz por não ter sido assinada “também” por quem a lei não qualifica como senhorio.

13- Nos termos conjugados dos artigos 1101º alínea b) do Código Civil e 11º número 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (com a redacção dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de Agosto) tal comunicação deve ser subscrita pelos senhorios, não constando da lei qualquer excepção àquela regra clara.

14- A comunicação de denúncia não confere ao usufrutuário o direito de alterar a forma ou substância do imóvel. Caso o usufrutuário o pretenda fazer, tem o mesmo de conformar-se com a limitação legal dos seus poderes, em função dos poderes que permanecem investidos no proprietário, o que tem de resolver com este no plano das suas relações recíprocas.

15- No caso sub judice os usufrutuários não dispuseram da coisa ao enviar à Ré a carta de denúncia do contrato de arrendamento, tendo-se limitado a dispor do seu direito, que na verdade é limitado nos termos da lei.

16- A resolução da questão da limitação dos poderes do usufrutuário, que ocorre necessariamente num plano distinto – o das relações entre proprietário e usufrutuário -, não pode desvirtuar a aplicação correcta da lei e não pode em caso algum servir de pretexto para “densificar” o conceito de senhorio, sem qualquer correspondência legal, para efeito de ajuizar quem em determinado momento deve subscrever a carta de denúncia com o fundamento previsto no artigo 1101 alínea b) do Código Civil.

17- Admitir-se que nos casos em que coexistam o direito de propriedade e o direito de usufruto, a comunicação da denúncia do contrato de arrendamento com fundamento na realização das obras previstas na alínea b) do artigo 1101º do Código Civil tenha de ser assinada pelo proprietário e pelo usufrutuário, corresponderá à criação de um novo requisito formal que a lei não prevê.

18- Requisito formal que não tem um mínimo de correspondência com a letra da lei e que a admitir-se atentaria contra a certeza e segurança jurídicas do sistema, sendo certo que o legislador cuidou de tratar as diversas posições em que o senhorio se pode encontrar quando denuncia o contrato de arrendamento, como é o caso do artigo 1102º do Código Civil.

19- Ao subscrever a carta de denúncia do contrato de arrendamento, os usufrutuários não estão a dispor da coisa em si mesma – o imóvel mas sim a dispor apenas do seu direito limitado, o direito de gozar plenamente a coisa.

20- Direito que lhes confere a qualidade de senhorios e a titularidade dessa posição jurídica, aqueles que dão de arrendamento e que, em contrapartida, recebem a renda correspondente.

21- Uma coisa é o usufrutuário não poder alterar a forma e substância da coisa sem o consentimento do proprietário, outra distinta é pretender-se que, por essa razão, a comunicação de denúncia do contrato de arrendamento – repete-se, no uso do poder limitado do usufrutuário – deve ser assinada por este e pelo proprietário, quando a lei estabelece que as comunicações têm de ser subscritas pelo senhorio, qualidade que o proprietário não tem.

22- A questão dos poderes do usufrutuário e, diga-se, também do proprietário quando coexistam os dois direitos reais relativamente ao mesmo imóvel, para o efeito do desenvolvimento da operação urbanística como aquela que foi comunicada à Ré, é algo que se coloca num momento anterior ao da comunicação da denúncia, quando os órgãos competentes para aprovar o procedimento urbanístico em causa aferem da legitimidade para o licenciamento ou autorização que têm de ser requeridos por quem tem legitimidade para o efeito.

23- Na carta de 15 de Março de 2013 os usufrutuários vieram tão-somente comunicar a denúncia do contrato de arrendamento para a concretização da operação urbanística em causa, não conferindo a mesma a estes o direito de alterar a forma ou substância do imóvel.

24- A referência na sentença recorrida ao facto de ser, alegadamente, sintomático que o requerimento de despejo junto do Balcão Nacional do Arrendamento tenha sido subscrito pelos usufrutuários e também pelos proprietários não colhe e não tem qualquer fundamento, pois o que está em causa é saber quem podia e devia subscrever a carta de denúncia do contrato de arrendamento e não quem podia ou devia subscrever tal requerimento.

25- A circunstância de os titulares da nua propriedade figurarem no requerimento de despejo não lhes confere a qualidade de senhorios e titulares do direito de dar em arrendamento, e de pôr termo a tal contrato designadamente através de denúncia, qualidade e poderes que só a lei pode conferir, nos termos das disposições aplicáveis.

26- A identificação dos autores D e M como proprietários na carta dos ora signatários de 8 de Julho de 2013 constitui obviamente mero lapso, como aliás a decisão recorrida alude.

27- No caso sub judice o que está em causa é a faculdade de denúncia do contrato de arrendamento na pendência de um usufruto e não a questão da caducidade do referido contrato, pelo que carece de qualquer fundamento legal a afirmação na sentença recorrida de que a circunstância da constituição do usufruto ser posterior à celebração do contrato de arrendamento significa e reforça, alegadamente, a “orientação” de que os proprietários de raiz jamais poderão ser vistos como terceiros para efeitos da denúncia contratual.

28- A referência na sentença recorrida a “terceiros” para efeitos de denúncia contratual a que alude o artigo 1101º alínea b) do Código Civil parece indiciar a existência de senhorios – no caso os usufrutuários - de categoria distinta: aqueles que o são verdadeiramente e aqueles que só o são se acompanhados de “terceiros”.

29- Tal constituiria sempre uma violação do princípio da tipicidade dos direitos reais, previsto no 1306º do Código Civil, que sempre proibiria quaisquer juízos de densificação que constituam restrição aos traços essenciais do direito real de usufruto.

30- Tal princípio significa não apenas que aos particulares só é permitido constituir as figuras de direitos reais que a lei expressamente prevê, mas ainda que lhes está vedado modificar ou modelar o respectivo conteúdo.

31- Como bem ensina o Professor Carvalho Fernandes in Lições de Direitos Reais, 4ª edição, Quid Juris, páginas 388 e 389 “Como foi oportunamente referido, quando nos ocupámos deste problema em linhas gerais, para que o princípio da tipicidade não perca sentido, as excepções à rigidez do conteúdo dos direitos reais têm como limite inultrapassável a salvaguarda do que em cada tipo seja essencial. (…)”. E ainda, “Daqui resulta que o conjunto das normas estabelecem os direitos e obrigações do usufrutuário não pode ser visto, na sua totalidade, como supletivo. Algumas das normas legais que definem o conteúdo do direito de usufruto têm carácter imperativo. Estas ideias projectam-se de modo significativo no conteúdo do usufruto, pelo que respeita à característica da plenitude do gozo (…)”.

32- No caso em apreço, admitir-se que o usufrutuário só pode assinar a carta de denúncia se acompanhado dos titulares da nua propriedade, significa obviamente uma restrição à faculdade de dispor plenamente do seu direito de gozo, traço essencial do direito real de usufruto.

33- No caso em apreço está demonstrado como a Ré adquiriu a posição de arrendatária e como os usufrutuários adquiriram tal qualidade, sendo a autora D anteriormente adquirente da propriedade do imóvel em causa e actualmente titular do usufruto do mesmo em conjunto com o marido M.

34- Os poderes dos usufrutuários D e M não estão ou são, no que concerne à faculdade que a lei lhes confere de denunciar o contrato de arrendamento, limitados pela circunstância da constituição do usufruto a seu favor ser posterior (2011) à celebração do contrato de arrendamento (1987).

35- A comunicação de denúncia do arrendamento subscrita pelos senhorios, os usufrutuários D e M, não padece de qualquer ineficácia, tendo sido cumprido o requisito atinente ao comprovativo da comunicação a que alude o artigo 15.°, n.° 2, al. d), da Lei n.° 6/2006, de 27 de Fevereiro (com a redacção dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de Agosto).

36- A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1101º alínea b), 1103º, 1306º, todos do Código Civil, artigos 11º, números 1 e 6 e 15.°, n.° 2, al. d), ambos da Lei n.° 6/2006, de 27 de Fevereiro (com a redacção dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de Agosto).

37- Por todo o exposto, deve o presente Recurso ser julgado procedente, sendo revogada a decisão recorrida que absolveu do pedido a Apelada G, Lda., prosseguindo os Autos os seus termos normais com as legais consequências, assim se fazendo Justiça.

A R. contra-alegou, propugnando pela manutenção da decisão recorrida.

            QUESTÕES A DECIDIR.

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC) a única questão a decidir é se os usufrutuários da fracção podiam subscrever a carta de denúncia do contrato de arrendamento objecto dos autos desacompanhados dos respectivos proprietários de raiz.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

           

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

  O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação:

1. A titularidade do usufruto, simultâneo e sucessivo, incidente sobre a fracção autónoma designada pela letra “B”, a que corresponde a loja com a entrada pelo nº … da Avenida …, em ... (fracção destinada a comércio), que integra o prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …, da freguesia de …, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 2…, mostra-se inscrita a favor dos Autores D e M (casados entre si no regime da comunhão geral), junto da Conservatória do Registo Predial de ..., desde 11 de Maio de 2011 (reserva de usufruto em doação) – cfr. documento de fls. 344 a 358;

2. (…) Imóvel que a Autora D adquirira por partilha hereditária, aquisição registada desde 18 de Maio de 2004 – cfr. documento de fls. 344 a 358;

3. A titularidade da propriedade da raiz incidente sobre a identificada fracção autónoma mostra-se actualmente inscrita a favor dos Autores J, MI, B, A e G, junto da Conservatória do Registo Predial de ... – cfr. documento de fls. 344 a 358;

4. A sociedade Ré tomou a utilização, como inquilina, da identificada fracção autónoma em 12 de Agosto de 19…, através de escritura pública de trespasse, hipoteca e arrendamento, lavrada no 5º Cartório Notarial de ..., cuja cópia consta de fls. 12 a 20;

5. Mediante carta endereçada à Ré, sob registo e com aviso de recepção, que esta recebeu (cuja cópia, com documentos anexos, constam de fls. 21 a 64), com a data de 15 de Março de 2013, os Autores usufrutuários (D e o seu marido) comunicaram a sua intenção de pôr termo ao referido contrato de arrendamento com fundamento em denúncia para a realização de obras de demolição e/ou de remodelação profundas no prédio, com uma proposta de pagamento de indemnização correspondente ao valor de um ano de rendas (= € 11 148,00) e os efeitos no dia 30 de Setembro de 2013, invocando os termos previstos no artigo 1101.º, al. b), do Código Civil, e nos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, e 8.º, n.º 2, al. a), do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto (com a redacção dada pela Lei n.º 30/2012, de 14 de Agosto);

6. Tal carta foi assinada pelo Autor J, filho daqueles e na qualidade de procurador dos seus pais, munido de duas procurações que juntou com essa missiva de 15 de Março de 2013 (cfr. documento de fls. 21 a 64);

7. O presente procedimento especial de despejo foi instaurado junto do Balcão Nacional do Arrendamento, conjuntamente, pelos aludidos usufrutuários e proprietários da raiz contra a sociedade Ré.
            FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Entendeu o tribunal recorrido que tendo em conta as características do direito de usufruto consignadas, sobretudo, nos arts. 1439º e 1446º do CC, “não tinham os demandantes usufrutuários legitimidade substantiva para, desacompanhados dos proprietários de raiz, denunciar o contrato de arrendamento com fundamento no art. 1101º, al. b) do CC, visto que está em causa, em qualquer dos casos, uma alteração significativa (e evidente) da forma e substância do prédio, também com a modificação do seu destino económico”, e, nessa medida, a “carta de 15 de Março de 2013 – que serve de base ao presente procedimento especial de despejo – deveria ter sido subscrita e remetida, não apenas pelos usufrutuários, mas também pelos actuais proprietários da raiz do imóvel locado (ou por quem a todos representasse), os quais, em conjunto e para este efeito, densificam o conceito de “senhorio(s)” a que alude o artigo 1101º, al. b), do Código Civil, bem como o artigo 11º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (com a redacção dada pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto)”.

Para concluir que por via do disposto no artigo 11º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27.2, a comunicação escrita realizada em 15 de Março de 2013 é ineficaz, por ausência de intervenção ou representação de todos os senhorios, daqui advindo a omissão do requisito atinente ao comprovativo da comunicação a que alude o artigo 15º, nº 2, al. d), da Lei nº 6/2006, de 27.2 (com a redacção dada pela Lei nº 31/2012, de 14.8) – um dos pressupostos indispensáveis e taxativos em que deve assentar o procedimento especial de despejo, na situação de denúncia desencadeada pelo senhorio.
Insurgem-se os apelantes contra tal entendimento sustentando, em síntese, que:
- a regra da unanimidade em relação às comunicações dos senhorios consagrada no art. 11º, nº 1 da L. 6/2006 de 27.2, tem uma ratio claramente perceptível, que é a de garantir que nenhum dos senhorios vê o seu direito posto em causa por iniciativa dos outros senhorios;
- no caso, apenas se podem considerar senhorios os usufrutuários, não encontrando na letra da lei sustentação a “densificação” de tal conceito feita pelo tribunal recorrido;
- exigir que, no caso, a comunicação da denúncia tenha de ser assinada pelo proprietário e pelo usufrutuário, corresponde a criar um novo requisito formal que a lei não prevê;
- uma eventual alteração da coisa, da sua forma e substância, caso fosse pretendida pelo usufrutuário seria algo que se colocaria sempre e unicamente no plano das relações entre usufrutuários e proprietários;
- o princípio da tipicidade dos direitos reais proíbe  quaisquer juízos  de “densificação” que constituam restrição dos traços essenciais do direito real de usufruto.
Apreciando.
O presente procedimento especial de despejo foi intentado ao abrigo do disposto no art. 15º, nº 1 da L. 6/2006 de 27.02, na redacção dada pela L. 31/2012, de 14.8, em cujo nº 2 se estatui que apenas pode servir de base ao despejo o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista, no que ora importa, no nº 1 do art. 1103º do CC (nº 2, al. d)).
Deduzida oposição, cumpria ao juiz aquilatar da validade da referida comunicação de denúncia.
Os contratos de duração indeterminada podem ser denunciados nos termos previstos na lei (art. 1099º do CC), sendo que o senhorio o pode fazer, apenas, nos casos taxativamente previstos no art. 1101º do CC, com as alterações introduzidas pela L. 31/2012 de 14.08, que prevê a denúncia por motivo justificado – por necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1º grau (al. a)), ou para demolição ou realização de obras de remodelação e restauro profundos que obriguem à desocupação do locado (al. b)) -, ou sem motivo justificativo, caso em que a denúncia tem de ser feita com antecedência não inferior a 2 anos sobre a data em que pretenda a cessação (al. c)).
A denúncia do contrato pelo senhorio para demolição ou realização de obras de remodelação e restauro profundos é feita mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a 6 meses sobre a data pretendida para a desocupação, e da qual conste, de forma expressa e sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia, devendo, ainda, ser acompanhada, também sob pena de ineficácia, de comprovativo de que foi iniciado, junto da entidade competente, procedimento de controlo prévio da operação urbanística a efectuar no locado, bem como de termo de responsabilidade do técnico autor do projecto legalmente habilitado que declare que a operação urbanística obriga à desocupação do locado, quando se trate de operação urbanística sujeita a controlo prévio, ou de descritivo da operação urbanística a efectuar no locado, indicando que a operação urbanística está isenta de controlo prévio e as razões pelas quais a mesma obriga à desocupação do locado, quando se trate de operação urbanística isenta de controlo prévio (arts. 1103º, nºs 1 e 2 do CC, com as alterações introduzidas pela L. 31/2012 de 14.08, e 8º, nºs 1 e 2 do DL. 157/2006 de 8.08, com a redacção dada pela L. 30/2012 de 14.08).
E obriga o senhorio, mediante acordo e em alternativa, a pagar ao arrendatário uma indemnização [2], ou a garantir-lhe o realojamento [3], nos termos do nº 6 do art. 1103º do CC, com a redacção dada pela L. 31/12 de 14.08, e arts. 6º, nº 1 e 7º, nº 1 do DL. 157/2006 de 8.08, com a redacção dada pela L. 30/2012 de 14.08.
A comunicação referida tem de ser feita em observância ao disposto no art. 11º da L. 6/2012 de 27.02, na redacção dada pela L. 31/2012, de 14.8, por força do disposto no art. 47º do DL. 157/2006 de 8.08.
E foi, precisamente este, o dispositivo legal que o tribunal recorrido considerou violado, por ausência de intervenção ou representação de todos os senhorios, uma vez que entendeu que o vocábulo “senhorio” tinha de ser interpretado num sentido “densificado”, incluindo os actuais proprietários da raiz do imóvel.
Dispõe o mencionado art. 11º, nº 1 que “havendo pluralidade de senhorios, as comunicações devem, sob pena de ineficácia, ser subscritas por todos, ou por quem a todos represente, devendo o arrendatário dirigir as suas comunicações ao representante, ou a quem em comunicação anterior tenha sido designado para as receber”.
Concordamos com o tribunal recorrido quando refere que este artigo tem subjacente a regra da unanimidade em relação às comunicações por iniciativa dos senhorios, visando evitar que um senhorio possa actuar com desconhecimento dos restantes, ou seja, pretende-se garantir que nenhum senhorio vê o seu direito, enquanto senhorio, posto em causa por uma iniciativa isolada dos outros senhorios.
E que senhorios são estes ?
Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, pág. 45, referem que, no preceito, estão “abrangidos os casos de arrendamento de bem comum pelo cônjuge administrador, com o consentimento do outro cônjuge (cfr. art. 1682ºA do CC)”.
Estarão, também, abrangidos os casos em que o imóvel seja detido por vários comproprietários/senhorios, e, também, por vários usufrutuários.
Inquestionável é, pois, que tenham a qualidade de “senhorio”, ou seja, aquele que proporciona a outrem o gozo do imóvel (art. 1022º), precisamente porque é titular desse “gozo”.
E poderá interpretar-se este termo num sentido “densificado”, como o fez o tribunal recorrido, nele englobando quem não tem, efectivamente, a titularidade da referida posição de senhorio [4], atentas as limitações dos poderes deste ?
Afigura-se-nos difícil aceitar tal entendimento, porquanto, como referem os apelantes, o mesmo não tem um mínimo de correspondência na letra da lei e atentaria contra a certeza e segurança jurídicas do sistema.
Na interpretação da lei, tem o aplicador de ter sempre presente os princípios gerais enunciados no art. 9º do CC, que tem por epígrafe, precisamente, a “interpretação da lei”, nomeadamente e desde logo que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (nº 1), não podendo, “porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
Mas uma outra questão se nos afigura que deve ser previamente colocada, a saber, se têm, efectivamente, os usufrutuários o seu direito de denúncia limitado, como entendeu o tribunal recorrido.
In casu, os titulares da posição de senhorio são os usufrutuários D. e marido, M. , uma vez que se mostra constituído usufruto sobre a fracção em causa a favor dos mesmos desde 11 de Maio de 2011, sendo que o referido usufruto lhes concede o direito a gozar temporária e plenamente aquela, mas sem alterar a sua forma ou substância (art. 1439º do CC).
Na definição dos direitos do usufrutuário, dispõe o art. 1446º do CC que aquele pode usar, fruir e administrar a coisa, como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico.
Sendo a característica essencial do usufruto a atribuição de uma universalidade de gozo sobre a coisa, refere Oliveira Ascenção in Direitos Reais, págs. 453 e 454, que “tão ampla liberdade de actuação do usufrutuário tem a sua contrapartida na existência de vinculações”, que se traduzem em dever o usufrutuário respeitar a forma ou a substância da coisa, respeitar o seu destino económico, e administrá-la como faria um bom pai de família.
Não lhe é, assim, permitido alterar a forma ou a substância da coisa, ao contrário do que acontece com o proprietário, que o poderá fazer, desde que, no caso, ao fazê-lo não esvazie de conteúdo o direito de usufruto existente.
A par do direito de usufruto mantém-se o direito de propriedade de raiz, implicando a situação de usufruto um concurso de direitos reais, em que o proprietário mantém sobre a coisa uma “legitimidade comprimida” [5].

Como se escreveu no Ac. do STJ de 17.01.2013, P. 4583/1999.L1.S1, Rel. Cons. Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt, “… numa situação em que o direito real de usufruto convive com o direito real de propriedade, não pode deixar de ser feita a delimitação entre os poderes de administração que competem a cada classe de titulares, reservando para o usufrutuário apenas os poderes inerentes ao direito de usufruto, nos termos que constam do art. 1446º do CC, evitando a confusão com os poderes de administração exclusivos do titular da nua propriedade (cfr. ainda os arts. 1471º a 1473º)”.

Como resulta da comunicação de denúncia efectuada à apelada as obras a realizar têm como finalidade a construção de um novo edifício que pressupõe a demolição do existente com contenção da fachada, e que determina que o prédio em geral, e o espaço arrendado à apelada passem a ter uma estrutura diferente da actual, com distinta distribuição do espaço, sem correspondência ou equivalência com a presente, sendo que quanto ao referido espaço arrendado o resultado final traduzir-se-á na perca da sua autonomia funcional, com profundas alterações ao nível da sua área, dimensão e estrutura, não mantendo quaisquer características equivalentes às que existem actualmente.

As obras em causa traduzem-se numa alteração evidente e significativa da forma e substância do prédio, também com modificação do seu destino económico, o que está vedado aos usufrutuários fazerem.

Por outro lado, as referidas obras, prevendo a demolição como uma etapa necessária à pretendida reconstrução, no contexto do usufruto em causa nestes autos inserem-se no regime das “obras e melhoramentos” regulados pelo artigo 1471º do Código Civil, o qual prevê que “o usufrutuário é obrigado a consentir ao proprietário quaisquer obras ou melhoramentos de que seja susceptível a coisa usufruída, …, contanto que dos actos do proprietário não resulte diminuição do valor do usufruto”.
Do que se deixa dito resulta que não podem os usufrutuários efectuar as obras profundas que são o fundamento da denúncia do contrato, mas estão obrigados a consenti-las se os proprietários de raiz as quiserem fazer.
Tal significará que não podem denunciar o contrato com tal fundamento ?
Afigura-se-nos que não, porquanto uma coisa é o poder de denunciar o contrato de arrendamento, outra, o poder de alterar a substância da coisa usufruída.
Uma coisa são as suas relações com o arrendatário, outra, as suas relações com o proprietário de raiz, e perante o qual poderá responder nos termos do art. 1482º do CC.
A lei, sem quaisquer limitações, atribui ao senhorio o poder de denunciar o contrato de arrendamento para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos.
Se o senhorio não vier a concretizar tais obras, iniciando-as no prazo de 6 meses contados da desocupação do locado, fica obrigado “ao pagamento de uma indemnização correspondente a 10 anos de renda” – art. 1103º, nº 9 do CC, com a redacção dada pela L. 31/12 de 14.08.
Esta a sanção para uma denúncia “inconsequente”; estes os termos em que se passam as coisas nas relações entre senhorio e arrendatário.
A par destas relações existem as relações entre usufrutuário e proprietário de raiz e é neste plano que se hão-de, antes ou depois, equacionar os respectivos poderes para efectuar as obras em questão, atenta a inerente limitação dos usufrutuários para as efectuar.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, tal não significa, porém, que o usufrutuário careça de legitimidade substantiva para efectuar a denúncia em causa.
E muito menos pode significar que, por força de tais limitações de poderes se possa entender que a mesma leva a considerar o proprietário de raiz como “senhorio” para efeitos de denúncia do contrato.
O usufrutuário tem o gozo pleno da coisa, só ele a pode onerar (art. 1444º do CC) e só ele pode denunciar o contrato de arrendamento nos termos previstos na lei, no uso dos poderes de administração inerentes ao seu direito.
A realização das obras em causa, apenas se poderá colocar no plano das relações entre usufrutuário e proprietário de raiz, sendo certo que a não realização das mesmas o fará incorrer em responsabilidade perante o arrendatário.
Esta interpretação é a que tem na letra da lei correspondência verbal e tem em conta a unidade do sistema jurídico, que, actua, em planos distintos, de forma harmonizada.
Assim sendo, não careciam os usufrutuários de legitimidade substantiva para denunciar o contrato com o fundamento referido, nem se pode considerar que a lei imponha que o fizessem acompanhados dos proprietários de raiz.
Concluindo, procede a apelação, devendo a sentença recorrida ser revogada, prosseguindo seus termos os autos para apreciação das restantes questões colocadas.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, e devendo a acção prosseguir os seus termos.
Custas pela Recorrida.
                                                      *
Lisboa, 2014.07.01

 Cristina Coelho

Roque Nogueira

 Pimentel Marcos


[1] Nos termos previstos nos arts. 1101º, al. b), do CC, 6º, nº 1, 7º, nº 1, e 8º, nº 2, al. a), do DL nº 157/2006, de 8 de Agosto, com a redacção dada pela Lei nº 30/2012, de 14 de Agosto.
[2] Correspondente a um ano de renda.
[3] Em condições análogas às que este detinha, quer quanto ao local quer quanto ao valor da renda e encargos.
[4] Por não ter o gozo da mesma.
[5] Na expressão de Januário Gomes, in Constituição da Relação de Arrendamento Urbano”, pág. 276.