Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
279/12.5TAALM.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
AGRAVANTE MODIFICATIVA
ARMA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- O recorrente que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto para ter sucesso tem que evidenciar que ela não está objectiva e logicamente fundamentada, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação, ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos, e que as provas impunham decisão diversa.
II- Nos crimes cometidos com arma de fogo opera ope legis a circunstância modificativa agravante prevista no nº 3 do art.º 86º da Lei nº 5/2006 de 23.02 (com as alterações da Lei 17/2009, de 6.05), em que as penas aplicáveis “são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr a agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”.

III- Mesmo que o agente deva ser punido pela prática do crime de detenção de arma proibida, isso não afasta o funcionamento da agravante do nº 3 do artº 86º citado. E é assim pela óbvia razão de que, como se esclarece no nº 4 do mesmo normativo, a agravante modificativa funciona mesmo que o agente esteja devidamente autorizado a ser portador da arma e esta se encontre “dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”.

IV- Esta agravação encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude do facto, e, por isso tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, “traduzindo reacção do legislador à proliferação de condutas criminosas praticadas com armas”.

Decisão Texto Parcial:Acordam, do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 279/12.5 TAALM, corre termos pelo 2.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Almada, JR.., devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento por tribunal colectivo, acusado pelo Ministério Público e pronunciado pelo Juiz de instrução por factos que consubstanciariam a prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado (artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio).

Realizado o julgamento, com data de 18.01.2013, foi proferido acórdão cujo dispositivo é o seguinte:

“…o Tribunal julga a acusação procedente porque provada e, em consequência:

- Condena o arguido JR… pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p., pelos artigos 131º, do Código Penal e 86º, nºs 3 e 4, da Lei nº5/2006, na pena de 15 (quinze) anos de prisão;

- Condena o mesmo arguido na pena de expulsão do território português e na proibição de entrada pelo período de 10 (dez) anos.

O arguido recolherá ao E.P. onde aguardará os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva porquanto se mantém os pressupostos legais, não tendo ainda decorrido o respectivo prazo máximo.

Vai o arguido condenado no pagamento das custas criminais”.

Inconformado, o arguido interpôs recurso da decisão condenatória para este Tribunal da Relação com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):

“(…)”

                                                             *

Na 1.ª instância, o digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta à motivação do recurso interposto pelo arguido, que sintetizou assim:

“(…)”

                                                           *

Admitido o recurso e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do artigo 416.º do Cód. Proc. Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que, além de fazer notar que não foi dado cumprimento ao disposto no n.º 5 do art.º 414.º do Cód. Proc. Penal e de suprir essa omissão (o arguido/recorrente está detido, em prisão preventiva, desde 10.02.2012 e, nesta fase, o limite máximo da prisão preventiva atinge-se em 10.02.2014), manifesta o entendimento de que o recorrente não acatou as especificações que o art.º 412.º do mesmo Compêndio normativo impõe em matéria de recursos e que, no doseamento da pena, o tribunal a quo foi benevolente.

Por isso, tal como o magistrado do Ministério Público na 1.ª instância, pronuncia-se pela improcedência do recurso.

                                                             *

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo o recorrente apresentado resposta em que reafirma o que alegou na motivação do recurso.

                                                             *

Colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

                                                                       *

II – Fundamentação

O recorrente tem de enunciar especificamente os fundamentos do recurso, ou seja, dizer por que discorda da decisão que impugna.

Essa enunciação deve culminar com a formulação de conclusões que, sendo (devendo ser) uma síntese das razões do(s) pedido(s), têm de se conter nos limites dos fundamentos invocados.

É geralmente aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[i] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.

Está, assim, evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente, mas que este não parece ter tido na devida conta.

O recorrente afirma que “pretende ver sindicada a reapreciação da prova gravada, insuficiência para a decisão da matéria dada como provada, contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, erro na apreciação da prova, errada qualificação jurídica e medida da pena” (conclusão 5.ª), mas, pelo menos, no que respeita à impugnação da decisão sobre matéria de facto, fica-se pela manifestação da pretensão, não concretizando as razões da sua discordância, e não é nada claro na exposição das razões do seu inconformismo relativamente à valoração jurídico-penal dos factos provados efectuada pelo tribunal a quo.

Com efeito, se no texto ou corpo da motivação do recurso, pelo menos, tenta dizer por que discorda da apreciação e valoração da prova feita na primeira instância, nas conclusões fica-se por afirmações vagas e genéricas como “o tribunal a quo foi longe de mais nas conclusões obtidas e a convicção final ficou muito longe da realidade” (conclusão 16.ª), “…0 tribunal errou ao considerar a prova, presumindo factos que não encontram sustento factual” (conclusão 17.ª) e que tal “implicava que se usasse o princípio in dubio pro reo” (conclusão 18.ª).

Quanto aos invocados vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto considerada provada e da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, o recorrente nem sequer ensaia qualquer tentativa para concretizar em que é que se revela a insuficiência e onde estão as contradições.

É bem sabido que a impugnação da decisão sobre matéria de facto pode fazer-se por duas vias: invocando os vícios da sentença enunciados no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal ou a existência de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1.ª instância[ii].

Nos n.ºs 2 e 3 do art.º 412.º do Cód Proc. Penal está previsto o erro de julgamento, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito. A sua verificação, sendo correctamente invocada na motivação do recurso, dá lugar à alteração da sentença.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova são vícios da sentença (previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal) que têm de resultar do respectivo texto, são de conhecimento oficioso (por isso que podem ser conhecidos por tribunal que só conheça de matéria de direito) e a sua verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º, n.º 1, ou, sendo requerida a renovação da prova e havendo razões para crer que ela permitirá evitar o reenvio, serão supridos no tribunal de recurso (art.º 430.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).

                                                             *

Importa frisar este ponto: vícios da sentença em matéria de facto e erro de julgamento são coisas distintas.

Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.

Tais vícios (ou, como também são designados, erros-vícios) não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.

Também não se confundem com nulidades da sentença, ao contrário do que parece ser entendimento do digno Magistrado do Ministério Público na 1.ª instância quando afirma que “não padece a douta decisão recorrida de quaisquer vícios que levem à sua nulidade, designadamente os de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão e de erro notório na apreciação da prova” (conclusão d)).

As nulidades da sentença estão previstas no art.º 379.º do Cód. Proc. Penal e têm de ser arguidas na motivação do recurso, podendo o tribunal recorrido supri-las. Da leitura atenta do texto da norma nele contida (que remete para os artigos 374.º e 414.º, n.º 4) resulta, muito claramente, que os vícios do n.º 2 do art.º 410.º (tal como o erro na apreciação da prova) não estão ali contemplados como nulidades da sentença.

Anulada uma sentença, o tribunal a quo tem de elaborar nova sentença (naturalmente sem os vícios que determinaram a sua anulação) e, salvo em casos excepcionais, nem sequer tem que reabrir a audiência.

A verificação de algum dos vícios decisórios dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento (que é coisa diversa da repetição do julgamento em consequência da anulação do anterior, pois esse novo julgamento tanto pode cingir-se a questões concretamente identificadas como abranger a totalidade do objecto do processo), nos termos do art.º 426.º, n.º 1, ou, sendo requerida a renovação da prova e havendo razões para crer que ela permitirá evitar o reenvio, serão supridos no tribunal de recurso (art.º 430.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).

                                                                       *

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando faltem factos que autorizem a ilação jurídica tirada, que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis.

Como se refere no acórdão do STJ de 19.03.2009 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Souto Moura), “é uma lacuna de factos, que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, e não se confunde, evidentemente, com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados”.

Mais incisivamente, diz-se no acórdão do STJ de 27.05.2010 (Relator: Cons. Raul Borges):

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto; ocorre quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. A insuficiência prevista na alínea a) determina a formação incorrecta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa”.

Ainda da abundante jurisprudência existente sobre este vício da sentença, colhemos mais duas importantes asserções:

O tribunal ad quem tem o poder-dever de fundar a boa decisão de direito numa boa decisão de facto, ou seja, numa decisão que não padeça de insuficiências, de contradições insanáveis da fundamentação ou de erros na apreciação da prova, vícios que podem impedir o tribunal de decidir da causa, hipótese que levará então ao reenvio total ou parcial do processo para novo julgamento” (Ac. STJ, de 21.02.2002; Relator: Cons. Pereira Madeira) e

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, é o que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, porque o Tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão” (Ac. STJ, de 03.07.2002; Relator: Cons. Armando Leandro)[iii].

Pode dizer-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.

A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável i) entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou ii) entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.

Dizendo de outro modo, haverá contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica(va) decisão oposta, ou não justificava a decisão. Ou seja, “a fundamentação pode apontar para uma dada decisão e a decisão recorrida nada ter a ver com a fundamentação apresentada” (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2.ª edição, 2000, pág. 339).

Quer no corpo da motivação, quer nas conclusões do recurso não encontramos qualquer concretização do invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

É certo que, como se referiu, os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do Cód. Proc. Penal são de conhecimento oficioso, mas, após análise atenta do acórdão recorrido, não descortinamos nenhuma razão para, sequer, se equacionar a hipótese da sua verificação.

Por isso que a única razão que vislumbramos para que o recorrente tenha invocado tal vício é a confusão, que frequentemente se faz, entre insuficiência ou falta de provas para dar como provados os factos que suportam uma condenação e insuficiência da matéria de facto para essa mesma condenação.

Também não se divisa a “contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão” de que fala o recorrente na conclusão 5.ª, sem a concretizar.

A única referência que o recorrente faz (e mesmo assim em termos vagos) a uma pretensa contradição é quando, depois de transcrever integralmente a fundamentação do acórdão recorrido na parte em que se faz o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, afirma:

«O arguido/recorrente não concorda “em parte” com o que se diz na fundamentação de direito, do mesmo modo não concorda com o enquadramento jurídico-penal, por estar em total contradição com os factos provados e não provados”.

Porém, como já se sublinhou, os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do Cód. Proc. Penal são vícios da decisão em matéria de facto.

Se os factos provados não sustentam o enquadramento jurídico feito no acórdão recorrido, estaremos perante um erro de direito e não perante o vício decisório invocado.  

Podemos, então, identificar como questões a decidir as seguintes:

§ se o tribunal errou na apreciação e valoração que fez da prova produzida e por isso se impõe a alteração da matéria de facto;

§ se é correcto o enquadramento jurídico-penal dos factos efectuado pelo tribunal recorrido;

§ se foi correctamente doseada a pena aplicada.


*

Antes de avançarmos para a apreciação do alegado erro de julgamento em matéria de facto, importa conhecer a factualidade provada.

Factos provados
1. O arguido encontra-se em Portugal desde 2008 e reside na zona do M…, onde é conhecido pela alcunha de “….”
2. O arguido conhecia HS…, conhecido pela alcunha de “…” e o irmão deste, NS…, ambos igualmente residentes no mesmo Bairro.
3. O arguido e o NS… andavam desavindos há já algum tempo, por motivos concretos não apurados mas que se relacionavam com o desagrado, de um deles ou de ambos, pela presença do outro, em determinadas zonas do M…, provocando-se mutuamente, designadamente com expressões e palavras ofensivas.
4. Em dia concreto não apurado mas situado entre 24 a 72 horas antes dos factos, o HS… e o arguido mantiveram entre si uma discussão seguida de confronto físico.
5. Na sequência de tal confronto, o arguido diligenciou pela obtenção duma arma de fogo, tendo em vista prevenir-se para a possibilidade de voltar a ter novos confrontos físicos com o NS… ou com o HS….
6. No dia 22 de Janeiro de 2012, na parte da manhã, a hora não apurada, o arguido encontrou-se com o HS… na zona do M… sendo que este tentou agredi-lo com uma catana ao mesmo tempo que exibia uma arma de fogo.
7. Após esses factos o arguido decidiu tirar a vida ao HS…. Nessa sequência entrou em contacto com LM…, sua companheira, a quem pediu que se encontrasse consigo numas escadas situadas num túnel junto ao café “…”. O seu objectivo era que aquela visse e o informasse sobre a presença do HS… no indicado estabelecimento.
8. Na tarde do dia 22 de Janeiro de 2012, perto das 17H30, o HS… e o seu irmão NS… dirigiram-se ao café “…”, sito na Rua …, no M…, local habitualmente frequentado por ambos e também pelo arguido.
9. Aí chegados, o NS… entrou no café e o HS… ficou à porta a conversar com Vítor Sanches, sendo ambos vistos por LM…, a qual passou nesse mesmo local.
10. Após, LM… dirigiu-se às mencionadas escadas, onde se encontrou com o arguido e o informou que o HS… se encontrava junto ao café “…).
11. Alguns minutos depois o arguido, vindo dessas mesmas escadas laterais ao café, e que estabelecem a ligação entre a Rua … e a Rua …, apareceu no local munido com uma caçadeira.
12. O HS…, ao ver o arguido, refugiou-se atrás de um pilar da estrutura da arcada do prédio existente no local, tendo o arguido apontado a arma na direcção onde ele se encontrava.
13. A certo momento o HS… saiu de trás do pilar e começou a correr em direcção ao interior do café “…”.
14. Nesse momento, o arguido que se encontrava a uma distância não superior a 2 metros do HS…, apontou a caçadeira na sua direcção, que se encontrava de costas para si, e efectuou um disparo que o atingiu na face posterior do ombro direito.
15. Após ser atingido, HS… continuou o seu percurso até ao café, onde entrou, sendo perseguido pelo arguido o qual, empunhando mais uma vez a caçadeira, efectuou um segundo disparo na sua direcção, atingindo-o na zona ilíaca direita.
16. De seguida, o arguido, na posse da caçadeira correu na direcção das escadas de onde tinha vindo, abandonando o local.
17. HS…, foi levado para o HGO onde, pelas 17H51, deu entrada no serviço de urgência, vindo a ser verificado o seu óbito pelas 17H52 desse mesmo dia.
18. Os disparos de caçadeira efectuados pelo arguido provocaram no HS… constantes do relatório de autópsia, designadamente

- ferida perfuro-contundente na face posterior do ombro direito, medindo 4 cm de diâmetro, com bordos irregulares e com múltiplos pequenos orifícios de 0,2 cm– 0,4 de diâmetro ao redor, numa área de 14 cm (orifício de entrada);

- ferida perfuro-contundente na face anterior do terço proximal do braço direito, com bordos irregulares, medindo 4 cm x 2 cm, com eixo maior vertical (orifício de saída);

- ferida perfuro-contundente na região lombar direita, com bordos irregulares e “queimados” medindo 4,5 cm de diâmetro (orifício de entrada).
19. Na sequência da realização da autópsia médico-legal ao cadáver verificou-se ainda, do exame efectuado ao hábito interno que:

- sob a ferida na face posterior do ombro direito existe um orifício traumático dos tecidos moles em túnel, com trajecto de trás para a frente e da esquerda para a direita, terminando em ferida na face anterior do terço proximal do braço direito. Foram ainda encontrados múltiplos pequenos grãos de chumbo, medindo cerca de 0,2 cm de diâmetro cada nos tecidos moles ao redor do referido orifício traumático e também nos fundos dos múltiplos pequenos orifícios na face posterior do ombro direito;

- sob a ferida na região lombar direita existe um orifício traumático dos tecidos moles e do osso ilíaco em túnel, com o trajecto de trás para a frente, de baixo para cima e da direita para a esquerda, terminando no mesentério, abaixo do cólon transversal, no quadrante inferior esquerdo do abdómen, onde se encontrava alojada uma bucha de plástico de projéctil de caçadeira e múltiplos pequenos grãos de chumbo, medindo cerca de 0,2 cm de diâmetro cada;

- Infiltração sanguínea do mesentério maciça;

- laceração do pólo inferior do rim direito com alojamento de múltiplos pequenos grãos de chumbo, medindo cerca de 0,2 cm de diâmetro cada;

- infiltração sanguínea retro-peritoneal direita maciça;

- laceração da artéria ilíaca direita;

- hemoperitoneu 500 ml;

- focos de contusão na base do lobo inferior do pulmão direito;

- pulmões anémicos;

- rins pálidos.
20. As lesões traumático-abdominais acima descritas, produzidas por projéctil de arma de fogo, por disparo feito “à queima-roupa”, sendo a direcção do projéctil de arma de fogo de trás para a frente, de baixo para cima e da direita para a esquerda, foram a causa adequada, directa e necessária da morte de HS….
21. Após os factos, o arguido fugiu nesse mesmo dia de táxi para Lisboa, vindo a ser detido no dia 30 de Janeiro de 2012 no Aeroporto da “Gran Canaria”, Canárias, tendo na sua posse um bilhete de avião com destino à Cidade da Praia, Cabo Verde.
22. O arguido é cidadão estrangeiro, de nacionalidade cabo-verdiana.
23. Vive em Portugal há cerca de 4 anos, é titular de autorização de residência temporária cujo prazo de validade expira em 9/7/2013.
24. À data dos factos não exercia qualquer actividade profissional remunerada com carácter de regularidade.
25. Tem uma filha menor que vive em Cabo Verde.
26. Conhecia as potencialidades letais da arma de fogo que utilizou para disparar contra o HS…, o que fez por duas vezes, nas circunstâncias descritas, visando partes do corpo que alojam órgãos vitais.
27. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com intenção de causar a morte do HS…, o que quis e conseguiu.
28. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.
29. No essencial, o arguido admitiu a prática dos factos. Não demonstrou arrependimento.
30. Nunca sofreu condenações.
31. O arguido, natural de Cabo-Verde, cresceu integrado no agregado composto pelos pais e 3 irmãos. O agregado dispunha de uma razoável condição económica.

O pai faleceu quando o arguido tinha 12 anos de idade e, pouco tempo depois, o mesmo iniciou o consumo de haxixe, substância que, de forma gradual, passou a consumir com maior regularidade ao longo do seu percurso de vida.

No seu País de origem frequentou o 12º ano de escolaridade que não chegou a completar.

Em 2008, aos 18 anos, emigrou para Portugal com o objectivo de concluir o 12º ano. Integrou o agregado do irmão RS… e iniciou actividade laboral, primeiro como servente, por conta de subempreiteiros que prestavam serviços na área da construção naval na empresa “…” onde trabalhou, de forma regular durante 2 anos. Posteriormente trabalhou 2 meses por conta de uma firma especializada na montagem de equipamentos de frio. A partir de 2011 passou a trabalhar, de forma irregular, como servente na área da construção civil. A partir dos 19 anos passou a ingerir bebidas alcoólicas com maior regularidade em contexto de convívio com conhecidos do meio de residência. Em 2009 retomou o seu relacionamento afectivo com a namorada que tinha em Cabo Verde e que veio também para Portugal. Passaram a residir juntos e têm uma filha, actualmente com 3 anos de idade que reside em Cabo-Verde. À data dos factos o arguido encontrava-se sem trabalho regular e não se apurou com quem vivia. Revela capacidades cognitivas aparentemente normais e facilidade de comunicação e relacionamento interpessoal, sendo avaliado pelos familiares como pessoas sociável e respeitador.

No EP mantém um comportamento adequado às regras vigentes.

O arguido evidencia um acentuado sofrimento emocional quando reflecte sobre as consequências que já resultaram para si da pendência do presente processo. Revela grande dificuldade em descentrar-se e pensar sobre as consequências que resultaram para a vítima e familiares desta.

Pretende manter-se em Portugal embora considere ser preferível afastar-se do meio onde ocorreram os factos.

Factos não provados

- que o arguido manteve uma discussão seguida de confronto físico com o Nelson Semedo no dia 20/1/12;

- que, no dia 20 de Janeiro de 2012, o arguido na sequência das desavenças mantidas com o HS… decidiu tirar-lhe a vida;

- que o encontro entre o arguido e o HS…, no qual este o tentou agredir com uma catana e lhe exibiu uma arma de fogo ocorreu no dia 21/1/2012;

- que desde a manhã do dia 21/1/12 correu no Bairro a noticia de que o arguido andava atrás do HS… e que tinha uma arma;

- que no dia 22/1/12, na parte da tarde, o arguido fez chegar ao conhecimento do HS… que pretendia fazer as pazes consigo e esclarecer os conflitos existentes entre ambos;

- que o HS… e o irmão NS… se dirigiram ao café “…”na tarde do dia 22/1/12 convictos de que os problemas com o arguido já se encontravam ultrapassados;

- que a caçadeira empunhada pelo arguido tinha os canos sobrepostos;

- que o arguido fugiu levando consigo 1.000,00 € em dinheiro;

- que a mãe do arguido e todos os seus irmãos vivem em Cabo-Verde;

- que o arguido gizou previamente o seu plano de fuga do território nacional, a concretizar após a prática dos factos por si previamente planeados, com destino ao seu País de origem, Cabo Verde.

                                                                       *

É nos 3 e 4 do art.º 412.º do Cód Proc. Penal que está previsto o erro de julgamento em matéria de facto e aí se estabelecem directrizes muito precisas e exigentes para o recorrente que pretenda impugnar a decisão nesse âmbito, com base na prova gravada.

Enquanto a impugnação em que se invocam os vícios do n.º 2 do artigo 410.º é de âmbito restrito, aqui a apreciação alarga-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento dos ónus de especificação impostos pelos citados n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.

Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):

§ os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[iv]);

§ as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida[v]).

Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.

É com base na citada norma que se tem defendido, una voce, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.

Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre este ponto, cfr. os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www. dgsi.pt).

O ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida impõe ao recorrente que indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal).

Sendo curial que transcreva essas passagens (pois só assim é possível relacionar o conteúdo específico do meio de prova que, alegadamente, impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado), a tanto não o obriga a lei.

Ora, se atentarmos, apenas, nas conclusões (que delimitam o objecto do recurso) transcritas supra temos de concluir que o recorrente não cumpriu os referidos ónus de especificação. Mas, se se tiver em consideração o texto (ou corpo) da motivação do recurso, então será de admitir que se mostra parcialmente satisfeita aquela exigência legal.

Com efeito, o recorrente cumpriu o ónus de indicar (pág. 17 do texto da motivação do recurso) os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido: não aceita que o tribunal tenha considerado provados os factos descritos sob os n.ºs 7, 9, 10, 14, 26, 27 e 29 do elenco factual da decisão em crise.

Vejamos como justificou o tribunal a quo a sua decisão.

Sobre o momento em que o arguido decidiu tirar a vida ao HS… e a colaboração que a sua companheira LM… lhe prestou para que ele concretizasse essa decisão (factos descritos sob os n.ºs 7, 9 e 10), disse:

“Depois do encontro descrito com o HS…, em que este ameaçou o arguido com uma catana e uma pistola, criou o Tribunal a convicção de que o arguido decidiu matar aquele.

Vejamos.

As testemunhas R… e E… que estiveram com o arguido durante umas horas após esses factos referem que o mesmo se encontrava muito exaltado e que o aconselharam a ir à policia, a sair do local e a ir para casa e ainda que lhe disseram para ele não se esquecer de que tinha uma filha para criar. Nenhum deles admite que, nesse momento, o arguido lhes referiu ser sua intenção matar o HS... porém é manifesto que aquilo que lhe disseram apenas tem sentido numa situação dessas. Mais, o E… esclareceu que o aconselhou a ir embora por ter receio de que viesse a acontecer aquilo que efectivamente aconteceu. Ora, tal apenas tem sentido se o arguido, nesse mesmo momento, e enquanto esteve com o seu irmão e o seu amigo, manifestou a intenção de matar o ofendido. E, salienta-se ainda, o arguido não saiu do local, não foi embora como o faria qualquer pessoa que pretendesse evitar mais conflitos ou que estivesse com medo, não foi à polícia, como seria normal. O arguido permaneceu no local e telefonou à LM… marcando um encontro com ela num local muito próximo do café habitualmente frequentado pela vítima e pelo seu irmão: este não é decididamente o comportamento de alguém que receia pela sua vida e que está assustado.

Mais, face a tudo o que fica dito, conjugado com o que veio a ocorrer posteriormente, criou o Tribunal a convicção de que o objectivo do arguido ao combinar um encontro com a LM…, naquele mesmo local, foi o de pretender que esta o informasse da chegada do HS… ao café “…”.

O depoimento da testemunha LM… é totalmente contraditório entre si e, na maioria das vezes, destituído de qualquer sentido. Ora refere que não tomou conhecimento do que ocorreu nessa manhã, ora afirma que o arguido lhe contou ao telefone, ora diz que apenas soube quando chegou junto dele. Não explica o motivo porque foi marcado um encontro num túnel próximo do café “…”, local onde a própria admite nunca se ter encontrado com o arguido. Mais, afirma não ter pedido qualquer explicação sobre o local do encontro e nem sequer ter pensado que o mesmo era estranho. Por outro lado, afirma que o arguido passou a correr por ela, sem lhe dizer nada, num outro momento afirma que ele lhe disse para esperar que já voltava, passando a correr sem que ela o questionasse. Começa por negar peremptoriamente ter passado pela zona do café e acaba por admitir ter aí estado e ter visto o HS… e o V… – isto no único momento espontâneo do seu depoimento em que, zangada, acusa este último de, juntamente com o ofendido, se encontrarem no local a provocar o arguido.

Em suma, o seu depoimento é todo ele vago e contraditório, sendo notório que pretende ocultar determinados factos – que, em qualquer situação de normalidade não podia desconhecer.

Porém, não temos dúvidas de que a LM… passou junto ao café “…” e que aí viu o ofendido - tal decorre do depoimento claro das testemunhas NS…, R… e V… e a própria acabou por o admitir nos moldes descritos. Mais, a testemunha V… afirma que a viu passar naquele local por duas vezes, sendo que a primeira delas ocorre num momento em que o HS… e o irmão ainda aí não se encontram. E, é pouco depois da testemunha sair do local pela segunda vez – e, como a mesma diz, ir para o dito túnel onde se encontra com o arguido - que o arguido surge, empunhando a arma, junto ao café.

De tudo isto, a única conclusão possível é aquela que se deixa dita: o arguido marcou o encontro com a LM… naquele local para que esta o pudesse informar do momento em que o HS… aí se encontrava a fim de, tal como decidira, lhe tirar a vida, podendo surgir no café de modo inesperado. Nenhuma outra explicação tem sentido: o arguido não iria marcar um encontro num local próximo de um sítio onde era previsível que o HS… e o NS… se encontrassem se estivesse, como nos disse, com medo deles. Mais, tendo em vista ir ter com estes últimos para resolver o seu diferendo, não existe qualquer outra razão lógica para aí marcar um encontro com a LM….

Quanto à execução do crime e a intenção de matar (factos descritos sob os n.ºs 14, 26 e 27), o tribunal discreteou assim:

“O aparecimento do arguido no local e toda a sua conduta é-nos descrito, de modo muito claro e totalmente esclarecedor pela testemunha V…, o qual aí se encontrava, na companhia do HS…. O arguido, no essencial, admite a prática dos factos, tal como descritos, embora negue a intenção de matar e, embora de forma vaga e algo desconexa, afirme a certo momento não saber como a arma se disparou num segundo momento.

Não tem o Tribunal quaisquer dúvidas sobre a intenção de matar do arguido. Com efeito, além do que já se deixou dito, salienta-se que não é de crer que o seu objectivo ao dirigir-se ao local fosse o de falar com o ofendido. Se assim fosse, não teria sentido disparar a arma num momento em que a vítima se encontra a correr e de costas para si. Mais, já no interior do café, quando é disparado o 2º tiro, o HS… já foi atingido e não constitui uma qualquer ameaça para o arguido. Ora, querendo o arguido falar, não se vislumbra qualquer razão para não o ter feito, ao invés de disparar. Acresce que as zonas visadas pelo arguido e em que o ofendido foi atingido se tratam de zonas do corpo que alojam órgãos vitais o que não podia ser desconhecido por ele já que se tratam de factos de conhecimento generalizado”.

Por último, sobre a postura do arguido face ao ocorrido e o seu não arrependimento (n.º 29), o tribunal ponderou:

“A ausência de arrependimento por parte do arguido resulta clara do seu próprio discurso: afirma-se profundamente arrependido, nas suas próprias palavras, por se encontrar na sua situação actual, ou seja, preso e com a perspectiva de vir a ser condenado numa longa pena de prisão. Apenas quando expressamente questionado sobre a vida que se perdeu refere que também o lamenta. Porém, não deixa de acrescentar que era ele ou o HS…, demonstrando dessa forma que não interiorizou ainda de forma consciente e verdadeira a censurabilidade da sua conduta e, sobretudo, que ainda não tomou consciência de que tinha muitas outras alternativas ao seu dispor e que nenhuma delas passava pela prática do crime de homicídio. Sem esta tomada de consciência, sem a assunção de uma total responsabilidade pelos seus actos, não se pode falar de arrependimento”.

A esta exaustiva análise crítica da prova produzida em audiência, em que é patente a preocupação do tribunal de explicar de forma cristalina, lógica e racional a motivação da sua decisão, o que é que contrapõe o arguido/recorrente?

Sobre o primeiro grupo de factos (n.ºs 7, 9 e 10) afirma que combinou encontrar-se com a companheira LM… no referido local (próximo do “café …”) para se reconciliarem porque estavam zangados e nunca aquela afirmou que informou o arguido que o HS… ali se encontrava.

Mais que inverosímil, com todo o respeito devido, esta versão raia o absurdo.

Então, o arguido vai para um encontro de reconciliação com a companheira empunhando uma caçadeira? A espingarda caçadeira era para quê? Para impor a reconciliação “à lei do chumbo”?

Não faz qualquer sentido!

Por outro lado, é óbvio que a LM… não ia admitir que, objectivamente, ajudou o companheiro a matar o HS…, informando-o da sua presença no local.

O tribunal considerou que ela não era merecedora de crédito e não podia ser outro o juízo que fez sobre a idoneidade desta testemunha.

Relativamente ao conjunto factual que descreve o modo de execução do crime e a intenção de matar (n.ºs 14, 26 e 27), o recorrente afirma que não se provou que tivesse apontado a arma na direcção do ofendido porque o que ele disse, corroborado pela testemunha LM…, foi que tinha a arma apontada para baixo e ninguém disse em julgamento que ele a apontou na direcção do HS…. Ou seja, no entendimento do recorrente, bastaria ele ter negado o facto, mesmo que com uma justificação absurda, para que se impusesse ao tribunal uma decisão diversa quanto a esse ponto.

Como explicar, então, que, apontando a arma “para baixo”, tenha atingido mortalmente, com dois disparos da espingarda caçadeira, o HS..., sendo um deles em zona (ombro direito) próxima da cabeça?

Para o recorrente, esse parece ser um pormenor irrelevante.

E como qualificar a afirmação de que também não se provou que ele conhecia a potencialidade letal da caçadeira porque era a primeira vez que tinha uma arma na sua posse, “desconhecendo totalmente o efeito que poderia produzir o disparo da mesma”?

O cidadão comum, mesmo aquele que nunca teve qualquer contacto com armas de fogo (que é a regra), sabe bem que um disparo efectuado com uma espingarda caçadeira, a escassa distância do visado, como foi o caso, é idóneo a provocar a morte de uma pessoa.

Afirmar o contrário, como faz o recorrente, é querer negar a evidência.

Mesmo que tivesse agido “sob grande pressão, medo e receio de ser maltratado”, como alega o recorrente, isso não impedia que tivesse actuado com o propósito de tirar a vida ao HS…, tanto mais sabendo-se que foi ele, recorrente, quem procurou a vítima e não o contrário.

Por último, o recorrente nem sequer esboçou uma tentativa de contrariar a fundamentação do acórdão recorrido e de justificar a impugnação do facto descrito sob o n.º 29.     

A reapreciação da prova só poderá determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação (o tribunal de recurso) concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam ou sugiram uma outra decisão.

Como muito bem se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 30.03.2010, disponível em www.dgsi.pt/jtrc (Relator: Des. Belmiro Andrade), o recorrente tem de identificar não só “o erro in judicando que aponta à decisão recorrida, mas ainda especificar o conteúdo concreto dos meios de prova capazes de, numa valoração em conformidade com os critérios legais, impor decisão diferente da recorrida”, ou seja, “perante uma sentença devidamente fundamentada, para que seja revogada, impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais, o mesmo é dizer, ou a legalidade dos meios de prova utilizados, ou o conteúdo das declarações ou de outros meios de prova valorados pela sentença, ou a inconsistência, á luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão”.

É manifesto que o recorrente não fez nada disso.

Para ter sucesso na impugnação da decisão sobre matéria de facto, o recorrente teria que evidenciar que ela não está objectiva e logicamente fundamentada.

Não podia limitar-se a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre aqueles factos, esquecendo o princípio da livre apreciação da prova.

Competia-lhe indicar razões materiais minimamente persuasivas de que a sentença não está devidamente fundamentada, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação, ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos, e que as provas impunham decisão diversa, mas, como cremos ter ficado bem patente, quedou-se pela mera negação dos factos.

O tribunal “a quo” não violou nenhuma das regras de aquisição e valoração probatória, elegeu como meios de prova credíveis aqueles que vêm indicados na sentença e nada há a censurar nas opções efectuadas, já que a fundamentação do acórdão recorrido enuncia os elementos que constituem o núcleo essencial da sua imposição e aceitabilidade face aos seus destinatários directos (os sujeitos processuais) e perante a comunidade, permitindo alcançar que ela não é fruto do arbítrio do julgador, de uma sua qualquer tendenciosa inclinação, mas sim de um processo sério assente em juízos de racionalidade, de lógica e de experiência sobre o material probatório de que o tribunal pôde dispor, cumprindo, pois, a sua missão.

Nada justifica, pois, qualquer alteração na matéria de facto que o tribunal recorrido deu como provada.

                                                               *

Na primeira instância, recorde-se, o tribunal afastou a verificação de qualquer das circunstâncias qualificativas que o Ministério Público descreveu na acusação e concluiu que o arguido cometeu um crime de homicídio simples.

Ainda assim, não obstante a convolação para o crime de homicídio na sua formulação matricial, o recorrente não se conforma com essa valoração jurídico-penal dos factos e sustenta que agiu em legítima defesa ou, quando menos, com excesso de legítima defesa.

Também aqui, o recorrente nem sequer esboçou uma tentativa de fundamentar a sua afirmação e é patente que os factos provados, nem de perto nem de longe, suportam a sua tese.

Como é bem sabido, pressuposto primeiro da legítima defesa é a existência de uma agressão actual, ou seja, um comportamento humano voluntário que ameaça um bem jurídico, já em curso ou iminente.

Ora, não vemos como é possível falar em legítima defesa quando o suposto agressor é mortalmente atingido com disparos de espingarda caçadeira pelo suposto defendente no momento em que vai a fugir deste (e está de costas para ele), que o persegue.

Sendo de primeira evidência que a tese do recorrente não tem o mínimo fundamento e é contrária à realidade dos factos, também não pode falar-se em excesso, que pressupõe uma situação de legítima defesa.

Segundo o recorrente, uma das normas que teria sido violada pelo tribunal a quo seria o artigo 133.º do Código Penal.

Embora não o assuma expressamente, com essa referência, o recorrente pretende que, a não vingar a tese da legítima defesa, a sua conduta consubstanciaria o crime de homicídio privilegiado do artigo 133.º do Código Penal, como parece decorrer da (confusa) conclusão 13.ª em que afirma estarem “falidos os pressupostos do artigo 131.º, do C. Penal, devendo, desde logo, ter sido feita a convolação ad minus art.°s p. e p. 32.º ou como excesso de legítima defesa p. e p pelo art.º 33.° e 133.º, do C. Penal, e nunca ao tipo legal do artigo 131.º do citado diploma”.

Isto porque, na sua versão, agiu “debaixo de medo, muito nervoso, com grande receio dos dois irmãos que o andavam a ameaçar”.

A simples leitura do texto da norma incriminadora do artigo 133.º do Código Penal é suficiente para se perceber que estar o agente muito nervoso e com medo não é, manifestamente, suficiente para se ter como verificado o privilegiamento que justifica a punição do homicídio com pena de prisão de um a cinco anos.

Mas, mais uma vez, a realidade é bem diversa do cenário construído pelo recorrente para sustentar a sua tese.

A verdade é que não havia razão para o nervosismo e o medo invocados, pois foi o arguido/recorrente quem procurou a sua vítima, dirigindo-se para um local próximo de um estabelecimento de café, que sabia ser frequentado pelo HS..., já com o propósito firmado de o matar, e, como se afirma no acórdão recorrido, “este não é decididamente o comportamento de alguém que receia pela sua vida e que está assustado”.

Improcedem, pois, também nesta parte, as conclusões do recurso.

                                                                       *

O recorrente insurge-se, por último, contra a medida da pena que lhe foi cominada, que considera “excessiva, desproporcionada e de severidade injustificada, tendo ultrapassado em muito a medida da culpa” e porque, na sua perspectiva, haveria circunstâncias - ausência de antecedentes criminais, bom comportamento anterior, humilde condição sócio-económica e boa inserção social – com forte peso atenuativo e conclui que, a ser punido por um crime de homicídio, a pena não deverá ultrapassar os 8 anos de prisão.

Das várias operações que o procedimento de determinação da pena envolve, a primeira a realizar é a determinação da moldura penal cabida ao crime.

Se ao legislador compete estatuir as molduras penais para cada crime, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um dos tipos pode assumir, e oferecer ao juiz uma directriz, tanto quanto possível precisa, sobre os critérios de que este deve socorrer-se na escolha e na determinação concreta da pena, ao juiz cabe a tarefa de, por um lado, determinar a moldura penal cabida aos factos provados e, por outro, dentro desta moldura penal, encontrar o quantum concreto de pena a cominar ao arguido.

Por regra, a medida legal da pena é a estatuída na norma incriminadora.

Para o crime de homicídio simples do artigo 131.º do Código Penal comina a lei a pena de 8 a 16 anos de prisão.

Mas não se pode ficar por aqui, já que o juiz deve verificar se ocorrem circunstâncias modificativas, que fazem com que se alterem, baixando (circunstâncias modificativas atenuantes) ou elevando (agravantes modificativas), os limites mínimo e/ou máximo da moldura da pena correspondente ao crime cometido.

Essas circunstâncias podem ser arrumadas em duas categorias: as que operam ope legis e aquelas que, para actuarem, carecem da intervenção judicial, dependem de um juízo de valor positivo por parte do julgador (operam ope judicis).

Entre as primeiras, está a circunstância de o crime ser cometido com arma.

Dispõe o artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (com as alterações da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio):

«As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

Esclarece o n.º 4 do mesmo preceito legal:

«Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente».

Mesmo que o agente deva ser punido pela prática do crime de detenção de arma proibida, isso não afasta o funcionamento da agravante do n.º 3 do art.º 86.º citado (cfr. acórdão do TRC, de 12.10.2011; www.dgsi.pt).

Assim é pela óbvia razão de que, como se esclarece no n.º 4, também citado, a agravante modificativa funciona mesmo que o agente esteja devidamente autorizado a deter e ser portador da arma e esta se encontre “dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”.

Como bem se observa no acórdão do STJ de 31.03.2011, a agravação de que aqui se trata encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude do facto, e por isso tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, “traduzindo reacção do legislador à proliferação de condutas criminosas praticadas com armas”, que vêm causando forte alarme social.

A agravação em causa só será afastada verificada que esteja uma das seguintes condições:

- se o uso ou porte de arma for elemento constitutivo do tipo legal de crime que é objecto da cognição do tribunal, ou

- se os mesmos uso ou porte de arma derem lugar a uma agravação mais elevada.

É mais que sabido que o homicídio é um crime de execução livre, a acção de matar outra pessoa não tem que ser executada com utilização de uma arma, sendo mesmo indiferente para a tipificação o meio empregue.

Restaria, então, a segunda hipótese, mas que, no caso concreto, também não se verifica, pois que o uso da espingarda caçadeira pelo arguido não levou ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132.º do Código Penal, pelo que não há motivo para afastar a agravação do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Temos, pois, como medida legal da pena do crime de homicídio cometido pelo arguido a moldura agravada de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses de prisão.

Passemos, então, à medida concreta da pena, que o recorrente, mais uma vez sem justificar a sua pretensão, quer que seja fixada abaixo daquele limite inferior.

Depois de referir (citando o artigo 71.º do Código Penal) os parâmetros que, dentro da moldura penal abstracta, devem orientar o juiz na fixação da medida (concreta) da pena a aplicar, o tribunal a quo ponderou nos seguintes termos:

“O arguido beneficia da circunstância de não possuir antecedentes criminais. Contudo, o mesmo é cidadão estrangeiro que apenas reside em Portugal há cerca de 5 anos (sendo que no decurso do último se encontra em situação de prisão preventiva). Acresce que a ausência de condenações não é mais do que aquilo que se exige a um qualquer cidadão, o qual tem como dever o cumprimento e respeito das leis vigentes. À data dos factos não se apurou se o arguido vivia sozinho ou com a companheira, tem um irmão em Portugal e grande parte da família em Cabo Verde, de onde é natural. Não desenvolvia qualquer actividade profissional regular.

Confessou os factos no essencial, porém sem qualquer valor para a descoberta da verdade – dada a restante prova produzida. Tem por isso escasso valor atenuante.

Não ficou demonstrado arrependimento, o que tem valor agravante quanto ao arguido já que revela um desrespeito pelo valor fundamental e à volta do qual é constituído todo o direito e ordenamento social: a vida humana, bem primordial e único.

Importa ainda referir que o arguido tomou a decisão de pôr termo à vida do HS… algumas horas antes de concretizar o seu plano, encontrando uma forma de abordá-lo de modo súbito, a fim de diminuir a sua capacidade de defesa e de reacção. A circunstância de usar uma arma de fogo diminuiu também a possibilidade de defesa da vítima.

Importa ter em conta, por último, as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir. De prevenção geral na medida em que, perante o constante aumento, no nosso País, da criminalidade violenta e da consequente e perfeitamente justificada insegurança da população face a esse fenómeno, tem de entender-se que é grande e absolutamente legítima a expectativa da comunidade numa vigorosa reafirmação da vigência das normas violadas pelo agente, através de uma punição severa. Acresce que tais exigências assumem maior relevo na zona concreta onde os factos ocorreram, na qual são frequentes situações como a dos autos, em que as divergências e desentendimentos são resolvidos mediante a prática de crimes contra a integridade física e a vida, na maioria das vezes com utilização de armas. De prevenção especial porque o arguido, não obstante ser delinquente primário, demonstrou, através do conjunto da actuação descrita nos «factos provados», ter uma personalidade impulsiva e pouco atenta a valores essenciais e elementares, quer de natureza jurídica, quer de natureza moral ou ética

Cumpre porém atender, como circunstâncias que, de algum modo depõem a favor do arguido, o facto de no mesmo dia dos factos ter sido ameaçado, com armas, pelo ofendido e bem assim a situação de conflito vivenciada entre os dois.

Tudo visto e ponderado, considera-se adequada a pena de 15 anos de prisão”.

A fundamentação do acórdão recorrido, também neste segmento, satisfaz as exigências legais, pelo que vamos limitar a apreciação a alguns aspectos que, na nossa perspectiva, devem ser salientados.

São a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade, que estruturam e densificam o Estado de Direito.

A vida é, inquestionavelmente, o bem jurídico primeiro, que sobreleva em relação aos demais, pois é a conditio sine qua non do gozo de todos os outros direitos.

A tutela constitucional da vida humana reflecte-se, a nível infra-constitucional, além do mais, na incriminação dos homicídios e tem geral aceitação a ideia de que, face a estes crimes, são especialmente intensas as exigências de prevenção geral (positiva ou de socialização, mas não só).

Visando as penas, antes de mais, a protecção de bens jurídicos e a reposição e o reforço da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas que o crime pôs em crise, as exigências de prevenção geral serão tanto mais prementes quanto maior for a gravidade da violação jurídica cometida.

Dito de outro modo, a função de prevenção geral, que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial, tem de ser eminentemente assegurada, sobrepondo-se, decisivamente, às restantes finalidades da punição[vi].

Como se assinala no acórdão do STJ de 07.04.2010 (disponível em www.dgsi.pt), “…a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito”.

Por isso se nos afigura que, na definição da chamada “moldura de prevenção”, o quantum máximo da pena – correspondente à medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar – tem de se afastar muito claramente do limite inferior da medida legal da pena que, como vimos, é de 10 anos e 8 meses de prisão (portanto, bem acima dos 8 anos que o recorrente pretende que lhe seja aplicada).

Como se referiu logo de início, o recorrente pretende que a decisão da primeira instância seja censurada e alterada porque, na fixação da pena, ultrapassou a medida da sua culpa. 

Um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa (n.º 2 do art.º 40.º do Cód. Penal).

Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.

Aproveitando o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (Ob. Cit, 245), porque a culpa jurídico-penal é “censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequências típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente [condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto]. 

Deste modo, não pode ser indiferente para apurar o grau de culpa e, logo, para a determinação da medida judicial da pena o tipo de violência usado contra as vítimas, o modo de execução dos factos e a gravidade das suas consequências.

Sobre a gravidade das consequências da conduta do arguido é despicienda qualquer consideração.

Quanto ao grau de ilicitude da sua conduta, impõe-se ainda uma referência ao ilícito subjectivo.

Se para a gravidade da culpa (e, por consequência, para a medida da pena) têm de ser valorados todos os elementos já apontados (que, em boa parte, têm natureza ambivalente), a intensidade do dolo (naturalmente, nos crimes dolosos) é, quiçá, o factor mais importante para a sua aferição.

O dolo directo, por norma, é a forma mais intensa de dolo, pois nele predomina o elemento volitivo, ou seja, a vontade de praticar o facto.

A existência de um plano de acção ou pré-representação do processo causal torna objectivamente mais insidiosa e firme a acção criminosa.

Numa situação dessas, a maior censurabilidade reside no facto de o agente, meditando o seu crime antes de o executar, e não agindo sob a emoção ou o impulso do momento, revelar uma vontade criminosa particularmente intensa.

Ora, a factualidade provada, apesar de não ter sido considerada suficiente para qualificar o homicídio, revela, claramente, que o arguido planeou a sua acção, meditou o crime antes de o executar, reflectiu sobre o meio a empregar, solicitou a colaboração da companheira, aguardou o momento mais propício para actuar, sabendo que iria apanhar a sua vítima desprevenida, vulnerável. Efectuou um primeiro disparo que atingiu o HS... na face posterior do ombro direito, mas, vendo que este prosseguiu a sua fuga para se refugiar no estabelecimento de café existente no local, perseguiu-o e, estando muito próximo do seu alvo, efectuou segundo disparo (“à queima-roupa”) com a caçadeira que empunhava, atingindo-o na zona ilíaca direita (assim lhe provocando múltiplas lesões, como a laceração do pólo inferior do rim direito e da artéria ilíaca direita, que foram causa da sua morte). Nem a circunstância de ser um local público, onde havia várias pessoas que podiam ser, também, atingidas pelos disparos que efectuou com a caçadeira, o fez recuar no seu propósito, tal era a firmeza e irrevogabilidade da sua resolução criminosa.

Por isso não pode deixar de concluir-se que agiu com dolo muito intenso e essa maior intensidade de energia criminosa tem óbvio reflexo na culpa, catapultando-a para um patamar muito elevado.

As circunstâncias que, segundo o recorrente, não foram, e deviam ter sido, ponderadas como atenuadoras da sua culpa, ou não se verificam - como a sua alegada inserção social (não se apurou com quem vivia e não tinha ocupação profissional regular) e ser respeitado e respeitador no meio em que residia (apenas se provou que os seus familiares o têm como uma pessoa sociável e respeitadora), ou foram devidamente ponderadas pelo tribunal no acórdão condenatório.

A confissão, desde que integral e sem reservas (e seja, ainda, espontânea e desinteressada, e não por mera táctica processual, como frequentemente acontece quando o arguido decide confessar os factos depois que da prova produzida em audiência já resultou demonstrada a prática do crime) constitui “um sinal poderoso no sentido da inexistência de necessidades preventivas” (Paulo Pinto de Albuquerque, Ob.Cit., 271).

As declarações prestadas (já na recta final da audiência) pelo arguido, apesar de parcialmente confessórias, estiveram longe de ser decisivas para o esclarecimento da verdade e por isso não lhe pode ser conferido grande valor atenuativo.

A personalidade do agente (não a personalidade in totum, mas aquela que se manifestou no facto) é outro factor importante para aferição da gravidade da culpa e que, também, releva ao nível da prevenção.

Ora, o quadro que se nos depara do arguido é o de um indivíduo que aparenta ter fraco auto-controlo dos impulsos mais agressivos, que não hesitou em pôr termo à vida de uma pessoa.

Uma pessoa com este perfil e que assim se comporta não pode ser considerada uma pessoa bem formada, pois não respeita valores fundamentais da vida em comunidade.

Conclusão que é reforçada pela sua atitude posterior aos factos: o arguido/recorrente não só não revelou arrependimento por ter tirado a vida a uma pessoa como não evidencia capacidade de auto-censura (o sofrimento emocional por que passa deve-se às consequências que para si advêm do seu acto criminoso, revelando “grande dificuldade em descentrar-se e pensar sobre as consequências que resultaram para a vítima e familiares desta”), além de ter tentado furtar-se à responsabilidade pelo crime cometido, procurando refugiar-se no seu país de origem (Cabo Verde), pois veio a ser detido quando já se encontrava nas ilhas Canárias, prestes a embarcar com destino à cidade da Praia.

O arguido revelou características desvaliosas da sua personalidade, o que desvaloriza circunstâncias, também atinentes à sua personalidade, como ser delinquente primário.

Podendo conceder-se que, no caso, as exigências de prevenção especial de socialização não são especialmente significativas, também não pode esquecer-se que, quando é violado o bem jurídico vida, sobreleva, decisivamente, a necessidade e a medida da sua tutela, ou seja, são determinantes as exigências de prevenção geral.

Em suma, a pena de 15 anos de prisão revela-se adequada às necessidades de prevenção, proporcional à gravidade do ilícito e, ao contrário do que afirma o recorrente, não ultrapassa o (muito elevado) grau da culpa.

III – Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar integralmente o acórdão recorrido.

Por ter decaído, pagará o recorrente as custas do processo, fixando-se em três UC´s a taxa de justiça (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do disposto na alínea j) do artigo 4.º do mesmo Regulamento). 

(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).   

                                                               Lisboa, 23.04.2013

                                                               Neto de Moura

                                                               Alda Tomé Casimiro


[i] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[ii] Como se pode ler no acórdão do STJ de 27.05.2010 (www.dgsi.pt/jstj), “a partir da reforma de 1998 passou assim a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, nº 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
[iii] No mesmo sentido, cfr. o Ac. STJ, de 18.03.2004; Relator: Cons. Simas Santos).
[iv] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[v] Idem
[vi] Não falta até quem defenda que, face às particulares exigências de prevenção geral que os crimes de homicídio (tentado ou consumado) convocam, a determinação da pena se deva orientar, sobretudo, por considerações de prevenção geral negativa ou de intimidação.

Decisão Texto Integral: