Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
811/10.9TVLSB.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÕES SOCIAIS
REGIME APLICÁVEL
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – A insuficiência de bens da herança constituía, face ao Decreto Lei 322/90, de 18 de Outubro, facto constitutivo do direito da autora – requisito adicional da incapacidade da herança do “de cujus” para prover à sua subsistência (artigo 3/2 do Decreto Regulamentar de 1/94 de 18/1).
2 – Pela Lei 23/2010 de 30/8 passou a ser reconhecido ao membro sobrevivo da união de facto e independentemente da necessidade de alimentos, o direito à protecção social por morte do beneficiário, nomeadamente à pensão/prestação de sobrevivência.
3 – A lei nova aplica-se às situações jurídicas de membro sobrevivo da união de facto, ainda que o óbito tenha tido lugar antes da sua vigência, ex vi art. 12/2 2ª parte do CC.
4 – Decorre do preceituado no art. 664 CPC que o juiz é soberano na aplicação do direito aos factos alegados pelas partes, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa

Maria demandou o Instituto da Segurança Social, IP pedindo que lhe fosse reconhecido o estatuto de união de facto há mais de 2 anos, a qualidade de titular de direito às prestações por morte do seu beneficiário, Jorge, condenando-se o réu a pagar à autora a quantia de, pelo menos, € 302,93 mensais, vezes 14 meses em cada ano, a título de pensão de sobrevivência continuada, bem como a quantia de, pelo menos, € 2.556,00, a título de subsídio por morte.

Alegou, no essencial, que viveu com Jorge, em condições análogas às dos cônjuges, até à data da sua morte, que ocorreu em 23/4/2008.

Jorge era casado com Assunção.

Desse casamento nasceu, em 13/3/81, Oriana.

Jorge havia instaurado acção de divórcio litigioso, com fundamento em separação de facto por mais de 3 anos consecutivos, tendo cessado toda e qualquer forma de vida e comunhão conjugal entre eles.

No decurso da acção de divórcio, faleceu Jorge, tendo sido habilitada sua filha para a continuação da acção de divórcio, para efeitos patrimoniais, peticionando a decretação do divórcio com culpa exclusiva da ré, retroagindo-se os seus efeitos ao mês de Dezembro de 1988, data em que cessou a coabitação entre eles.

A acção de divórcio encontra-se a aguardar despacho saneador e o cumprimento do art. 512 CPC.

Declarado o divórcio, por sentença transitada, preenchida está a condição prevista no art. 8 DL 322/90 de 18/10 e arts. 2 e 3 Decreto Regulamentar 1/94 de 18/1 (arts. 2020/1 e 2133/3 CC) – a autora vivia há mais de 2 anos em condições análogas às dos cônjuges.

Jorge era beneficiário da Segurança Social – (…) -, desde o mês de Janeiro de 1983.

Os seus dois filhos, o seu ex-marido, sua mãe e sua irmã, não têm possibilidades económicas que lhes permitam prestar-lhe alimentos.

A autora aufere € 1.176,12 mensalmente (pensão de reforma), despendendo cerca de € 637,75 com as suas necessidades básicas – água, luz, telemóvel, telefone, TV cabo e internet, condomínio, dois empréstimos hipotecários ao BBVA para financiamento da aquisição e obras na casa de morada de família, onde reside - a que acrescem € 160,00/mensais para pagamento da mulher-a-dias, que necessita por razões de saúde, restando-lhe cerca de € 380,00 para as despesas de alimentação, vestuário, calçado, despesas médicas e transportes.

Requereu à Segurança Social o pagamento das prestações por morte, requerimento que lhe foi indeferido, uma vez que o beneficiário, à data da morte, era casado.

O Instituto de Segurança Social, I.P., sucessor legal do Centro Nacional de Pensões, excepcionou o facto do casamento do pensionista, à data do óbito, não se encontrar dissolvido, facto impeditivo do direito da autora, impugnando o alegado pela autora com excepção dos factos constantes das certidões juntas (óbito, valor da pensão, filha, estado civil), concluindo pela procedência da excepção e, caso assim se não for entendido, o pedido de reconhecimento da qualidade de titular das prestações por morte deve ser julgado de acordo com a prova produzida.                  

Replicou a autora solicitando a suspensão da instância até decisão, transitada, da acção de divórcio.

Foi a instância suspensa.

Decretado o divórcio, por decisão já transitada, entre o falecido Jorge e Assunção a acção prosseguiu, tendo sido elencados os factos assentes e elaborada a base instrutória – fls. 150 e sgs.

Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente o pedido da autora, reconhecendo-lhe a qualidade de titular do direito às prestações por morte de Jorge, mas apenas a partir de 1/1/2011, condenando-se a ré a reconhecer essa qualidade.

Inconformada a autora apelou formulando as conclusões que se transcrevem:
1ª. A sentença recorrida, ao julgar a acção apenas parcialmente procedente por parcialmente provada, e ao reconhecer que a autora/apelante é titular do direito à atribuição de prestações por morte de Jorge, apenas a partir de 1/1/2011, fez incorrectas interpretação e aplicação da lei aos factos, assim como errada aplicação da lei processual e enferma de nulidade.
2ª. Não é facto constitutivo do direito da autora a alegação de que na herança aberta por óbito do seu companheiro, Jorge, não existiam quaisquer bens, ou de que os existentes eram insuficientes para lhe ser atribuída uma pensão de alimentos.
3ª. De toda a maneira, e sem prescindir, sempre estaria o tribunal a quo impedido de proferir, em sede de sentença, decisão a considerar tal requisito como necessário para a procedência da acção.
4ª. Tal decisão materializa uma decisão surpresa, que é proibida e, como tal, nula, porquanto susceptível de influir no exame e decisão da causa.
5ª. As prestações por morte de Jorge são devidas à autora desde o dia 1/5/2008, ou seja, do primeiro mês seguinte ao decesso.
6ª. Caso assim se não entenda, subsidiariamente, deverão as mesmas ser atribuídas à autora, pelo menos, desde 4/9/2010, correspondente à data da entrada em vigor da Lei 23/2010 de 30/8.
7ª. Foram, desse modo, violadas pela sentença recorrida, entre outras, as disposições legais substantivas constantes dos arts. 5 e 2020/1 CC; arts. 1 e 2/2 da Lei 74/98 de 11/12; arts. 3 e) e 6 da Lei 7/2001 de 11/5, quer na sua redacção inicial, quer na que lhe foi dada pelo art. 1 da Lei 23/2010 de 30/8, assim como o art. 6 desta última lei; e adjectivas constantes dos arts. 373, 201/1, 508/1 e2, 659, 6609, 668/1 d), 2º parte e 4 CPC.
8ª. Assim, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser a acção julgada totalmente procedente.
 

Não houve contra-alegações.                  

A Sra. Juiz pronunciou-se no sentido da inexistência da nulidade arguida.

Factos dados como provados na 1ª instância:

1 – Jorge faleceu, em 23/4/2008, na pendência da acção de divórcio litigioso.

2 – Na referida acção, a prosseguir com a filha do falecido, habilitada para tal, foi decretado o divórcio do falecido, por sentença transitada em julgado no dia 4/5/2012, nos termos da qual foi fixada a cessação da coabitação, em 24/12/88, retroagindo os efeitos do divórcio a essa data.

3 – Oriana foi registada como filha do falecido Jorge e Assunção.  
4 – Jorge era beneficiário da ré com o nº (…), desde o mês de Janeiro de 1983, data do primeiro desconto de remuneração, tendo-lhe sido atribuída pensão de invalidez, no valor de € 504,89, com início em 3/3/2008.
5 – A autora nasceu em 25/12/54 e aufere uma pensão de reforma, no valor mensal ilíquido, de € 1.176,20.
6 – A autora viveu maritalmente com Jorge, desde 1995 e até à data do seu falecimento, vivendo um com o outro em comunhão plena de mesa, leito e habitação.
7 – Adoptaram como residência comum um apartamento da autora, sito na Rua (…), Vila Nova de Gaia.
8 – Era intenção do casal contraírem, entre si, casamento, após o companheiro da autora se encontrar divorciado.
9 – Ambos saíam e eram vistos na companhia um do outro, quer durante a semana, quer aos fins-de-semana, davam passeios e faziam férias juntos, tinham pessoas e casais amigos dos dois com quem conviviam.
10 – Era com o produto do trabalho de cada um deles que suportavam as rendas, as prestações dos empréstimos ao banco, e todas as demais despesas relativas ao seu sustento e manutenção da casa de morada de família.
11 – Tal relação era do conhecimento das famílias quer da autora, quer do beneficiário do réu, bem como dos amigos comuns, colegas de trabalho e demais pessoas com quem contactavam.
12 – A autora tem despesas correntes mensais, para satisfação das suas necessidades básicas, com consumos de água (€ 32,17), luz (€ 124,45), telemóvel (€ 15,00), telefone, TV Cabo e Internet (€ 46,00), condomínio (€ 62,00) e prestação mensal de dois empréstimos hipotecários ao BBVA para financiamento da aquisição e de obras da casa de morada de família, onde reside (€ 93,19 + € 164,44), no total mensal de, pelo menos, € 637,75.
13 – A autora tem necessidade, por razões de saúde, de recorrer ao auxílio de uma mulher-a-dias durante duas manhãs por semana, a quem paga € 160,00.
14 – Gasta integralmente os restantes cerca de € 388,00 da sua pensão de reforma nas despesas básicas e correntes com alimentação, vestuário, calçado, transportes, despesas médicas e medicamentosas.
15 – Durante cada ano, a autora vê-se confrontada com os pagamentos dos prémios de seguros obrigatórios da habitação (de vida e multi-riscos), bem como o IMI da mencionada habitação.
16 – A autora não tem parentes que a possam ajudar financeiramente, porquanto o seu ex-marido, há mais de 15 anos, contraiu, de novo, casamento e tem um filho, sendo os seus rendimentos integralmente gastos com a sua nova família.
17 – A autora tem dois filhos já maiores: Joana e Hugo, que não dispõem de meios económicos para lhe prestar quaisquer alimentos, mas, pelo contrário, carecem até de ser ajudados, pontualmente, pela autora.
18 – A sua mãe, Conceição (uma vez que seu pai - Carlos – já faleceu), tinha 76 anos de idade à data da propositura da acção, era reformada e auferia a pensão mensal de € 400,00, que era integralmente gasta com as suas despesas próprias, tendo falecido, em 17/5/2011.
19 – A sua irmã, Carla é solteira e aufere, como empregada comercial, a retribuição de € 650,00/mensais, que são integralmente gastos com a sua subsistência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.    

Atentas as conclusões da agravante que delimitam, como é regra, o objecto de recurso – arts. 684/3 e 685-B CPC – as questões que cabe decidir consistem em saber se:

a) Constitui requisito de procedência da acção a alegação e prova de que a herança do falecido companheiro da autora não dispunha de bens ou de bens suficientes.

b) Nulidade da sentença - decisão surpresa – art. 668/1 d) CPC

c) Desde quando são devidas as prestações por morte.

Vejamos, então:

a) Constitui requisito de procedência da acção a alegação e prova de que a herança do falecido companheiro da autora não dispunha de bens ou de bens suficientes?

Defende a apelante que a insuficiência de bens da herança não é facto constitutivo do seu direito, não sendo necessária a sua alegação e prova.

O DL 322/90, de 18/10, que instituiu e regulou a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral da segurança social estipula no seu art. 8 que: “O direito às prestações aí previstas e o respectivo regime jurídico são extensivas às pessoas que se encontrem na situação prevista no art. 2020 CC”.

O processo de prova das situações a que se refere o nº 1, bem como a definição das condições de atribuição das prestações, constam do decreto regulamentar – art. 8/2.

O decreto regulamentar 1/94 de 18/1, estipula no seu art. 2 (âmbito pessoal) que tem direito às prestações por morte, no âmbito dos regimes de segurança social, previstos no DL 322/90 de 18/10, a pessoa que, no momento da morte do beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele, há mais de 2 anos, em condições análogas às dos cônjuges.

E o art. 3/1 do decreto, no que concerne às condições de atribuição, estatui que esta fica dependente de sentença judicial que reconheça às pessoas referidas no art. 2 o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do art. 2020 CC.      

Estipula o art. 2020 CC que. “Aquele que no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de 2 anos em condições análogas às dos cônjuges tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009CC”.

Daqui resulta que, para que a acção proceda o autor tem que alegar e provar “vida em condições análogas às dos cônjuges, com pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, há mais de 2 anos à data da morte, necessidade de alimentos e que os alimentos não possam ser obtidos dos familiares mencionados no art. 2009 CC”.

Este regime manteve-se com a Lei 135/99 de 28/8 – o requerente só beneficia da pensão social se reunir as condições previstas no art. 2020 CC e, em caso de inexistência ou de insuficiência de bens da herança, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição – art. 6 nºs 1 e 2.            

Também aqui incumbe ao autor o ónus da prova (art. 342/1 CC), o autor tem que alegar e provar que carece de alimentos, que a herança do falecido não tem possibilidades de lhe prestar alimentos e que os familiares obrigados não têm possibilidade de os prestar. 

A Lei 7/2001, de 11 de Maio - o diploma que adopta medidas de protecção das uniões de facto – revogou a Lei 135/28/8.

Considera-se “união de facto”, a vivência de duas pessoas, independentemente de sexo, que vivam há mais de dois anos” – art. 1/1 Lei 7/2001.

“As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a protecção, na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei” – art. 3 e).

Estipula ainda o art. 6/1, sob a epígrafe “regime de acesso às prestações por morte” que “beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do art. 3, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes no art. 2020 CC, decorrendo a acção perante os tribunais civis”.

Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição – art. 6/2 Lei 7/2001 (art. 6 nºs 1 e 2 Lei 135/99).
Esta lei reafirmou os mesmos princípios da Lei 135/99, o reconhecimento do direito à protecção das pessoas que vivem em união de facto, nas condições previstas neste normativo, Lei 7/2001, na eventualidade de morte do beneficiário, também está dependente, de sentença judicial que reconheça o direito a alimentos da herança do falecido, nos termos do art. 2020 CC.
Da leitura e conjugação de todos os diplomas legais, bem como dos arts. citados supra, constata-se que todos remeteram e remetem para o art. 2020 CC, pelo que a conclusão a extrair é a de que os requisitos exigíveis para o reconhecimento do direito de titular de prestações de segurança social são os fixados nesse artigo, i. é, os pressupostos do reconhecimento da titularidade do direito à pensão de sobrevivência por parte do companheiro sobrevivo, no caso da união de facto, constituem factos constitutivos do respectivo direito e, tal como, em geral, para o direito a alimentos nos termos do art. 2020 CC, cabendo-lhe o ónus da prova desses mesmos factos - tem que provar a união de facto com o titular da pensão de reforma por tempo superior a 2 anos, que o pensionista não era casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, a carência de alimentos, e impossibilidade de os obter das pessoas referidas no art. 2009 CC” – cfr. proc. 899/2005, 3ª secção, decisão sumária, Conselheiro Gil Galvão e Ac. STJ de 22/6/2005, relator Conselheiro Ferreira de Almeida e de 31/5/2005, relator Ferreira Girão, in www.dgsi.pt.
No caso das acções a propor contra a instituição de segurança social, o membro sobrevivo da união de facto tem que alegar e provar o requisito adicional da incapacidade da herança do “de cujus” para prover à prestação alimentar do requerente - cfr. art. 6/2 Lei 7/2001 de 11/5 (cfr. art. 3/2 decreto regulamentar 1/94 de 18/1).
No caso em apreço, a autora nada alegou quanto ao facto de a herança poder ou não prover à sua carência de alimentos, tendo intentado a acção contra a instituição de segurança social competente (Centro Nacional de Pensões/Instituto de Solidariedade e Segurança Social), para a atribuição das pensões por morte.
Logrou provar que, à data da morte do pensionista/beneficiário, vivia com ele há mais de 2 anos, em situação análoga à dos cônjuges; que à data da morte não obstante o pensionista/beneficiário ser casado, demonstrou ter sido decretado o seu divórcio, cujos efeitos se retroagiram a 24/12/1988; que necessita de alimentos e que nenhum dos seus familiares, filhos, ex-marido e irmã, pode prover ao seu sustento.
Não alegou e, por conseguinte, não logrou provar, o requisito adicional, ou seja, a impossibilidade de a herança prestar alimentos. 

Face ao explanado, não tendo alegado e, consequentemente, não tendo provado, de tal tendo o ónus (art. 342/1/CC), que a herança não tem bens, não podendo obter alimentos através da mesma, a acção improcederia, ou seja, não lhe poderia ser reconhecido o direito a receber da Segurança Social as prestações por morte do companheiro (23/4/2008), não fora o facto da publicação da Lei 23/2010 de 30/8.

A Lei 23/2010, alterou substancialmente o regime jurídico das uniões de facto consagradas na Lei 7/2001 de 11/5, DL 322/90 de 18/10, art. 2020 CC e DL 142/73 de 31/3, revogando, tacitamente, vários dispositivos do Decreto Regulamentar 1/94 de 18/1 – cfr. arts. 3 e 6 da Lei 7/2001, art. 2-A Lei 23/2010 e art. 8 DL 322/90 de 18/10.

Destarte, à luz da nova Lei, a titularidade do direito às prestações por morte passou a depender tão só da duração dessa união, ao invés do exigido no regime anterior, como supra se referiu, em que era necessário a alegação e prova dos elementos constitutivos do seu direito, ou seja, a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter dos familiares (art. 2009 CC) e, no que respeita à necessidade de prévia acção judicial – reconhecimento de que se encontrava em condições de beneficiar dessas prestações -, a lei basta-se pela suficiência da produção de qualquer meio de prova perante a entidade responsável pelo pagamento das prestações, só havendo lugar à acção judicial, em caso de dúvidas sobre a existência da união de facto.

Esta lei aplica-se aos processos pendentes, não obstante a controvérsia jurisprudencial, colmatada com a prolação do Acórdão Uniformizador, Proc. 772/10.4TVPRT.P1.S1, de 15/3/2012, publicado in DR nº 10, Iª série, de 15/1/2013, e in www.dgsi.pt., que fixou a seguinte jurisprudência:

“A alteração que a Lei 23/2010, de 30/8, introduziu na Lei 7/2001, de 11/5, sobre o regime das prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime” (o que acontece in casu) – cfr. Acs. STJ de 22/1/2013, de 17/4/2012, relator, António Piçarra, e de 7/6/2011, relator Salazar Casanova, in www.dgsi.pt.

b) Nulidade da sentença – decisão surpresa – arts. 3/2 e 668/1 d) CPC.

Defende a apelante Maria que a sentença é nula, porquanto configura uma decisão surpresa.

A decisão sobre a questão da atribuição das prestações sociais por parte da ré/apelada, Instituto de Segurança Social, IP, alicerçou-se em fundamento totalmente diverso e não ponderado pela autora, nem nos autos, sem que esta tenha sido convidada a pronunciar-se sobre esta questão – insuficiência de bens da herança.

A sentença reconheceu o direito às prestações por morte com fundamento na Lei 23/10 de 30/8, sendo que a sua inexistência e não publicação, redundaria na improcedência da acção, porquanto considerou que a alegação de inexistência de bens da herança é facto constitutivo do direito da autora, facto este não alegado.

O art. 3/3 CPC surgiu com a reforma do CPC introduzida pelo DL 329-A/95 de 12/12 constando do preâmbulo que: “Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem…”

Dispunha o art. que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de, agindo com a diligência devida, sobre elas se pronunciarem”.

Com o DL 180/96 de 25/9, substituiu-se a expressão “agindo com a diligência devida”, pela de “salvo manifesta desnecessidade”, passando a ter a seguinte redacção: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

A substituição da expressão “agindo com a diligência devida” pela de “manifesta desnecessidade”, não significa, face aos princípios gerais que enformam o nosso código, que tivesse aliviado as partes de usarem a diligência devida para alcançarem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão que virá a ser tomada – cfr. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, I - 33 e Abílio Neto – anot. ao art. 3; Lebre de Freitas, CPC Anot., I-9.

Daqui decorre que o Tribunal não deve apenas assegurar que seja cumprido o princípio do contraditório, no sentido do atempado e recíproco conhecimento dos actos processuais e das questões suscitadas como deve o Tribunal, ele próprio, observá-lo.

Estabeleceu-se um dever do Tribunal em cada momento do decurso do processo decidir questões de facto ou de direito, ainda que cognoscíveis ex officio, após ter facultado a respectiva pronúncia às partes, salvo em caso de manifesta desnecessidade.

A reforma de 96 reforçou o princípio da audição complementar das partes nas questões que o juiz oficiosamente entenda decidir, no entanto, subjacente às mesmas existe um núcleo essencial – a audição e complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos momentos normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando surjam questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, na decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela.

Na nossa lei existem muitos preceitos que apontam para a ideia de que após a discussão – factual e jurídica – se sucede a apreciação e decisão pelo tribunal, deixando a convicção de que, quanto a esta, o tribunal decide – aproveitando ou não o teor dessa discussão – sem que se abra nova disputa, ainda que situada em campo diferente.

Vejam-se os arts. 664 – “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito…” - 658 – “concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, é o processo concluso ao juiz, que proferirá a sentença dentro de 30 dias” - 659/2 – “seguem-se os fundamentos da sentença devendo o juiz …interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”  - e 690/2 e 3 “enquanto impõe ao recorrente que indique as normas jurídicas violadas e o sentido como devem ser interpretadas e aplicadas, sem que se preveja que constitua deficiência a omissão do que vier a ser relevante na decisão”.

De ressalvar, que o princípio segundo o qual o juiz não está sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação do direito – art. 664 CPC (“jura novit curia” cfr. A. Reis, CPC anot.vol. V-92) – deve ser compatibilizado com as proibições absolutas das decisões surpresa – art. 3/3 CPC – devendo, antes da prolação da sentença, ser facultado às partes o exercício do contraditório, sempre que a qualificação jurídica a adoptar ou a subsunção a um determinado instituto não correspondam à previsão das partes, expressa ao longo do processo – cfr. Lopes do Rego – ob. cit. e Abílio Neto – anotação ao art. 664 CPC, CPC Anot., 20ª ed. – 901.

In casu, estaremos perante uma decisão surpresa, proibida pelo art. 3/3 CPC?

O cerne da questão dos presentes autos consiste em saber se a autora tem direito à atribuição ou não das prestações por morte do seu companheiro, Jorge.

O pedido (a) formulado pela autora foi o reconhecimento do estatuto de união de facto, bem como o direito às prestações pecuniárias da Segurança Social em consequência do decesso do seu beneficiário e a condenação do réu a pagar-lhe essas prestações.

A sentença reconheceu que a autora é titular do direito à atribuição das prestações por morte do beneficiário, seu companheiro, a partir de 1/1/2011, ou seja, a partir do início de vigência da Lei 23/10/ de 30/8, que alterou a Lei 7/2001, a partir da Lei do Orçamento de Estado, posterior à sua entrada em vigor (art. 11 Lei 23/20), considerando que a autora não demonstrou que o direito a alimentos não fosse concretizável por insuficiência de bens da herança do falecido.

A apreciação desta questão prende-se com o facto de saber se a insuficiência dos bens da herança é ou não facto constitutivo do direito da autora, ou seja, se constitui requisito de procedência da acção a alegação e prova de que a herança do falecido companheiro da autora não dispunha de bens ou de bens suficientes.

Conforme supra referido, aquando da apreciação da questão apreciada na alínea anterior, a insuficiência de bens da herança, constitui facto constitutivo do direito da autora – requisito adicional da incapacidade da herança do “de cujus” para prover à sua subsistência (art. 3/2 do Decreto Regulamentar de 1/94 de 18/1) – cabendo à autora o ónus de alegação e prova dos mesmos, ex vi art. 342/1 CC.

Assim sendo, cabia à autora, a fim de atingir o seu desiderato – atribuição das prestações por morte do beneficiário, seu companheiro – alegar e provar os factos constitutivos do seu direito, usando a devida diligência, para alcançar a decisão almejada, nomeadamente articular e, consequentemente, demonstrar os factos necessários para que o direito lhe possa ser atribuído, na esteira do princípio do dispositivo, e não já ao tribunal – art. 264/1 CPC.

In casu, o tribunal não fez mais do que aplicar o direito aos factos alegados pela autora, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes, em consonância com o plasmado no art. 664 CPC - o juiz é soberano na aplicação do direito aos factos. 

Por conseguinte, atento o exarado supra, inexiste decisão surpresa.

c) Desde quando são devidas as prestações por morte?

Defende a autora/apelante que as prestações por morte são devidas desde 4/9/2010, data da entrada em vigor da Lei 23/10 de 30/8 (art. 6), à semelhança do estabelecido na Lei 7/2001 de 11/5 (art. 11), que ocorreu 5 dias após a sua publicação no Diário da República - arts. 1 e 2/2 Lei 74/98 de 11/12 e art. 5 CC.

A sentença decidiu que as prestações por morte são devidas a partir de 1/1/2011, ex vi do art. 11 da cit. Lei 23/2010 de 30/8, a partir da Lei do Orçamento de Estado, posterior à sua entrada em vigor.

Conforme referido na apreciação da questão constante na alínea anterior, a Lei 23/2010, de 30/8, passou a reconhecer ao membro sobrevivo da união de facto e independentemente da necessidade de alimentos, o direito à protecção social por morte do beneficiário, designadamente a pensão de sobrevivência, aplicando-se ainda aos processos em que o óbito do beneficiário tenha ocorrido em momento anterior à sua vigência.

Daqui se conclui que as alterações introduzidas na Lei 7/2001 de 11/5, pela Lei 23/2010 de 30/8, são aplicáveis in casu, ex vi art. 12/2, 2ª parte do CC, tendo a autora direito à atribuição das prestações sociais peticionadas, independentemente da necessidade de alimentos, em consonância com o art. 6/1 daquela Lei - cfr. Ac. STJ, relator Salazar Casanova, cit. supra.

Sendo omisso na lei qualquer prazo de “vacatio legis”, a Lei 23/2010, de 30/8 entrou em vigor no 5º dia posterior à sua publicação, ou seja, em 4/9/2010.

Estabelece, o seu art. 11 que “os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento de Estado posterior à sua entrada em vigor”.

Na verdade, a aplicação da Lei às situações de dissolução, por morte, de união de facto (direito a haver as prestações sociais), repercute-se em termos económicos, no Orçamento de Estado, na medida em que gera um acréscimo de despesa, despesa esta não prevista no Orçamento anterior – cfr. Ac. STJ de 6/9/2011, relator Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt.

Assim sendo, o reconhecimento à autora do direito a haver as prestações sociais abrange apenas as prestações que se vencerem a partir da entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2011, ou seja, 1/1/2011, tal como decidido pela 1ª instância.

Concluindo:

1 – À luz da LV a insuficiência de bens da herança, constitui facto constitutivo do direito da autora – requisito adicional da incapacidade da herança do “de cujus” para prover à sua subsistência (art. 3/2 do Decreto Regulamentar de 1/94 de 18/1).

2 – À luz da LN (Lei 23/2010 de 30/8) passou a ser reconhecido ao membro sobrevivo da união de facto e independentemente da necessidade de alimentos, o direito à protecção social por morte do beneficiário, nomeadamente à pensão/prestação de sobrevivência.

3 – A LN aplica-se às situações jurídicas de membro sobrevivo da união de facto, ainda que o óbito tenha tido lugar antes da sua vigência, ex vi art. 12/2 2ª parte do CC.

4 – Decorre do preceituado no art. 664 CPC que o juiz é soberano na aplicação do direito aos factos alegados pelas partes, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a decisão.

Custas pela apelante.

Lisboa, 6 de Junho de 2013

(Carla Mendes)

(Octávia Viegas)

(Rui da Ponte Gomes)