Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | TERESA PARDAL | ||
Descritores: | VENDA À CONSIGNAÇÃO VENDA DE BENS DE CONSUMO MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/04/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Texto Parcial: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | - O contrato de venda à consignação, em que o consignante entrega bens ao consignatário para este vender, por conta do consignante, mas em nome próprio do consignatário, constitui um mandato sem representação previsto no artigo 1180º do CC, pelo que só o mandatário consignatário é responsável pelos defeitos da coisa perante o terceiro comprador. - Tratando de uma situação sujeita ao regime do DL 24/96 de 31/7 (Lei de defesa do consumidor) e do DL 67/2003 de 8/4 (Venda de bens de consumo), o consumidor tem direito a indemnização por danos não patrimoniais sofridos. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa. RELATÓRIO: N… intentou contra V…, Lda e contra H… acção com processo comum alegando, em síntese, que a ré é uma empresa que se dedica à compra e venda de veículos automóveis entre outros serviços de concessionário, em cujas instalações, no início de Março de 2012, o réu era vendedor por conta da ré, aí se dirigindo o autor nessa altura e aí sendo atendido pelo réu, que lhe vendeu, no dia 12 do mesmo mês, um carro usado pertencente a M…, pelo preço de 7 949,99 euros, que o autor pagou, com a retoma de um veículo automóvel no valor de 2 000,00 euros e com a transferência de quantias monetárias no valor total de 5 950,00 euros para uma conta indicada pelo réu pertencente à ré, que as fez suas. Mais alegou que no dia 23 de Agosto de 2013 o veículo avariou-se e ficou imobilizado, sem poder circular, tendo os dois réus recusado qualquer responsabilidade, mesmo depois de o autor ter enviado a cada um, em 11 de Outubro de 2013, uma carta a denunciar a falta de conformidade do veículo, nos termos do artigo 5º-A do DL 67/2003 de 8/4, que regula a venda de bens de consumo e as garantias respectivas, recusando-se a proceder à reparação, pelo que se verifica um incumprimento definitivo do direito de o autor reclamar indemnização pelos prejuízos sofridos. Concluiu pedindo a anulação do negócio de compra e venda do veículo e a condenação solidária dos réus a pagar-lhe as quantias de: (i) 7 949,99 euros correspondente ao preço despendido; (ii) 141,41 euros correspondente ao prémio de seguro anual que adquiriu; (iii) 17,47 euros correspondente ao imposto único de circulação de 2013; (iv) 1 500,00 euros por danos não patrimoniais; (v) sanção pecuniária compulsória de 50,00 euros por cada dia de atraso no pagamento dos referidos montantes. A ré contestou invocando a sua ilegitimidade, porque o veículo vendido não lhe pertencia, não conhece o autor, nem os termos do contrato, não interveio por qualquer forma na venda, a qual foi efectuada pelo réu, que emitiu a factura e nota de crédito; por impugnação alegou que no âmbito da sua actividade de comercialização de veículos automóveis, celebrou com o réu um contrato mediante o qual permitia que este utilizasse as suas instalações para venda de veículos novos e usados, pertencentes à contestante, ao réu ou a terceiros, pagando-lhe o réu uma comissão se o veículo vendido fosse seu e pagando-lhe a contestante uma comissão se o veículo fosse da contestante, mas sem que houvesse qualquer relação de trabalho entre ambos e exercendo o réu a sua actividade de vendedor sem qualquer dependência da contestante, que, no local, tinha funcionários seus a exercer as funções de vendedores. Alegou ainda que, não tendo nunca o réu actuado em sua representação, os valores pagos pelo autor e depositados na sua conta resultaram de uma cessão de créditos, porque o réu lhe devia a quantia de 103 168,86 euros, pelo que é alheio ao negócio em causa e não tem qualquer obrigação para com o autor. Concluiu pedindo improcedência da acção com a sua absolvição do pedido. O réu contestou alegando, em síntese, que celebrou com a ré um contrato que denominaram “contrato de compra e venda à consignação” no âmbito do qual e na qualidade de consignatário vendeu o veículo em causa, o qual se encontrava em bom estado, tendo sido o autor que negligenciou a sua conservação e tendo caducado a garantia pelo decurso do prazo. Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição da instância ou do pedido. Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade. Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou improcedente a acção relativamente à ré, absolvendo-a do pedido e declarou a resolução do contrato de compra e venda do veículo, condenando o réu a restituir ao autor o respectivo preço de 7 949,99 euros e a pagar-lhe a indemnização de 658,58 euros, sendo 158,88 a título de danos patrimoniais e 500,00 euros a título de danos não patrimoniais. Inconformado, o réu interpôs recurso e alegou, formulando conclusões onde levanta as seguintes questões: -o contrato celebrado é um contrato atípico em que a ré reservou para si o direito de propriedade dos bens; -não deve ser o recorrente a ser responsabilizado pelos defeitos que surgiram mais de um ano a pós a venda, pois é à ré que cabe dar garantia da viatura que lhe pertence; -os danos morais não são devidos ou estão exagerados; -foi violado o artigo 405º do CC, devendo o recorrente ser absolvido, ou então ser também responsabilizada a ré. A ré ofereceu contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso. As questões a decidir são: I)Contrato celebrado entre as partes e responsabilidade contratual das rés. II)Indemnização por danos não patrimoniais. FACTOS. A sentença recorrida considerou provados, os seguintes factos: Factos provados. 1.º-A 1.ª ré é uma empresa que se dedica à venda e compra de veículos automóveis, entre outros serviços de concessionário, exercendo a sua actividade de revenda de veículos usados sob a designação V… Usados, no Parque V…, Rua …, n.º 20, Ponta Delgada (cf. §§ 1.º e 2.º da PI). 2.º-Em Março de 2012, o 2.º réu vendia automóveis naquele mesmo local (cf. § 3º da PI). 3.º-No início de Março de 2012, o autor dirigiu-se às instalações referidas no § 1º para adquirir um automóvel usado (cf. § 6.º da PI). 4.º-Foi atendido pelo 2.º réu e com este último viu os veículos disponíveis e conversou sobre uma possível aquisição (cf. § 7.º da PI). 5.º-Nessa sequência, em 12 de Março de 2012, o autor acertou com o 2.º réu a compra, pelo preço de € 7.949,99, da viatura usada de marca Smart, modelo Roadster, com a matrícula …, que se encontrava registada a favor de M… (cf. § 8.º e 9.º da PI). 6.º-Como forma de pagamento o autor entregou a viatura de que era proprietário, para retoma pelo valor de € 2.000,00, tendo pago o remanescente do preço mediante quatro transferências bancárias nos seguintes valores e datas, todas para a conta com o NIB 003800000003254230120, pertencente à 1.ª ré que as recebeu e fez suas: - € 3.900,00, em 12/03/2012; - € 1.000,00, em 02/05/2012; - € 750,00, em 08/08/2012; e - € 300,00, em 21/09/2012 (cf. §§ 10.º a 12.º e 14.º da PI). 7.º-O NIB da conta para onde deviam ser feitas as transferências bancárias foi informado ao autor pelo 2.º réu (cf. § 13.º da PI). 9.º-Durante o mês de Agosto de 2013, o autor encontrava-se a conduzir a viatura quanto esta se avariou, perante o que a levou à oficina da Mercedes onde foi detectado que tinha um cilindro avariado que teria de ser substituído por um novo (§ cf. § 17.º e 18.º da PI). 10.º-Desde esse momento, o carro ficou impedido de circular (cf. § 19.º da PI). 11.º-Nos dias imediatamente seguintes, o autor dirigiu-se aos serviços da 1.ª ré para reclamar da avaria, tendo esta declinado qualquer responsabilidade e informado que a viatura não tinha sido vendida por si, mas pelo 2.º réu (cf. § 20.º e 21.º da PI). 12.º-A 11/10/2013, o autor enviou a cada um dos réus, por via postal com aviso de recepção, as cartas juntas a fls. 19/20 e 24/25, cujo teor aqui de se dá por integralmente reproduzido (cf. § 23.º da PI). 13.º-A 1.ª ré respondeu com a carta junta a fls. 29, cujo teor aqui de se dá por integralmente reproduzido (cf. § 25.º da PI). 14.º-Em consequência da imobilização forçada da viatura, o autor teve de recorrer a boleias de amigos e familiares para se deslocar para o seu local de trabalho, assim como deixou de efectuar outras deslocações pessoais e profissionais (para arbitrar alguns jogos de futebol, actividade a que também se dedicava para obter alguns rendimentos), o que lhe causou stress e transtorno emocional (cf. §§ 30º a 35.º da PI). 15.º-O autor pagou € 141,41, a título de prémio anual (01/08/2013 a 31/07/2014) do seguro de circulação da viatura em causa e pagou € 17,47 relativos a IUC de 2013 (cf. § 36.º da PI). 16.º-Na sequência da celebração do contrato de compra e venda, o 2.º réu entregou ao autor a nota de crédito e uma factura constantes de fls. 12 e 30, ambas relativas ao pagamento do preço da viatura e ambas emitidas no seu próprio nome. 17.º-Aquando da celebração do negócio de compra e venda em causa nos autos, o 2.º réu dedicava-se, profissionalmente, à venda veículos nas instalações da 1.ª ré mantendo com esta o “Contrato de Venda à Consignação” celebrado entre ambos e constante de fls. 70 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. Factos não provados. 1.º-Entre o autor e o 2.º réu foi acordada a garantia de bom funcionamento para o motor e caixa de velocidades da viatura pelo período de 1 ano. 2.º-A viatura avariou-se nos termos que se provaram por ter sido objecto de manutenção deficiente por parte do autor. Ao abrigo dos artigos 607º nº4 e 663º nº2 do CPC, consigna-se o conteúdo da cláusula 1º e de parte das 2ª e 3ª do documento de fls 70 e seguintes, dado como provado no ponto 17º dos factos provados, em que é primeira parte contratante a ré e é segunda parte contratante o réu: Cláusula primeira: 1-O presente contrato tem por objecto a entrega de mercadorias pela primeira contratante à segunda, para que esta as venda ou revenda a terceiro em nome próprio mas por conta da primeira contratante. 2-A primeira contratante procederá à entrega à segunda de mercadorias acompanhadas por uma “Factura de Bens a Consignação”, a qual será assinada por ambas as partes em sinal de concordância e conformidade. 3-A primeira contratante poderá pedir a devolução de qualquer mercadoria consignada, por sua livre iniciativa e em qualquer momento, sem que para tanto seja necessário apresentar qualquer justificação à segunda contratante, sendo neste caso anulado o documento referido no número anterior. 4-Caso a segunda contratante não efectue a devolução da mercadoria solicitada no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, fica obrigada ao pagamento imediato do valor constante da “Factura de Bens à Consignação” relativamente ao bem não devolvido, emitindo a primeira contratante a respectiva factura e podendo accionar a garantia bancaria, se esta se encontrar prestada. Cláusula segunda: 1-A segunda contratante obriga-se a comunicar à primeira, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, a venda de qualquer uma das mercadorias consignadas. 2-A segunda contratante fica obrigada a entregar o produto da venda à primeira no prazo máximo de 60 dias, a contar da emissão da respectiva factura. (…) Cláusula terceira: (…) 2-Após a entrega das mercadorias pela primeira contratante à segunda contratante, e até à efectiva devolução, o risco corre por conta desta, que ficará responsável por qualquer vício que possa surgir nas mesmas. (…) 5-A segunda contratante obriga-se a manter as mercadorias consignadas no Parque dos V…, necessitando do acordo escrito da primeira para a sua remoção para local diverso. (…) ENQUADRAMENTO JURÍDICO. I) Contrato celebrado pelas partes e responsabilidade contratual das rés. Como resulta dos factos provados, o réu vendeu ao autor um veículo automóvel que, cerca de um ano e cinco meses depois, apresentou uma avaria que o impedia de circular. Perante estes factos (e ainda os factos dos pontos 14 e 17) e face à definição de legal de consumidor prevista no artigo 2º do DL 24/96 de 31/7 (lei de defesa do consumidor), a sentença recorrida considerou que este contrato constitui uma compra e venda bens de consumo, sujeito ao regime legal do referido decreto lei e ao regime de venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003 de 8/4, bem como ao prazo de garantia de dois anos previsto no artigo 5º deste último diploma, razão pela qual, considerando-se que estavam cumpridos os requisitos e formalidades necessárias, foi declarada a resolução do contrato e condenado o réu a pagar ao autor o valor do preço do veículo, o valor das despesas com o pagamento do prémio do seguro e do imposto de circulação e ainda uma indemnização por danos não patrimoniais. O apelante não impugna a declaração de resolução do contrato e a obrigação de pagamento do preço do veículo e das restantes despesas que integram a indemnização por danos patrimoniais. A razão da discordância do apelante reside na imputação que lhe é feita desta responsabilidade contratual, por entender que é à ré que cabe tal imputação, ou pelo menos, que a responsabilidade deverá ser repartida por ambos. Vejamos então se lhe assiste razão. Provou-se que a venda do veículo foi negociada e consumada pelo réu, que foi o réu quem emitiu a respectiva factura, que a venda foi efectuada nas instalações da ré, tendo sido na conta desta que, por indicação do réu, foi depositada a parte do preço que excedeu a retoma de um veículo do comprador e ainda que foi celebrado entre a ré e o réu um contrato que denominaram “contrato de venda à consignação” que consta a fls 70 e seguintes. Ora, destes factos, nomeadamente do conteúdo das cláusulas do contrato de fls 70 e acima transcritas, tem de se concluir que não merece censura a qualificação jurídica que foi dada na sentença recorrida ao contrato celebrado entre os réus e à responsabilidade exclusiva do réu face ao autor. Com efeito, o contrato de venda à consignação (ou contrato estimatório) tem características de contrato de compra e venda sob a condição suspensiva da revenda, ou sob a condição resolutiva da devolução, dependendo da interpretação de cada contrato saber quando se verifica a transmissão da propriedade dos bens e o regime a aplicar (cfr Carlos Ferreira de Andrade, “Contratos” II, 2012, 125). É o caso da venda à consignação acordada entre a ré e o réu que, ao traduzir-se numa entrega de mercadoria pela primeira ao segundo, para este vender em nome próprio, mas por conta da ré, constitui um mandato sem representação previsto no artigo 1180º do CC, ou seja, um mandato em que o mandatário ou consignatário, apesar de agir por conta da mandante, não age em nome desta mas sim em nome próprio, pelo que os seus actos não se repercutem na esfera jurídica da mandante, como acontece quando há representação, nos termos do artigo 258º do CC. Não havendo representação e não se repercutindo os actos do consignatário mandatário na esfera da mandante consignante, apenas aquele responde directamente perante os terceiros com quem contratou em nome próprio, nomeadamente pelos defeitos da coisa vendida (cfr P. Lima e A. Varela, CC anotado, volume II, 4ª edição, página 825, ac RP 17/03/2011, P.8928/09, em www.dgsi.pt). Este contrato de venda à consignação celebrado entre a ré e o réu, poderá também, eventualmente, integrar um mandato comercial previsto nos artigos 231º e seguintes do Código Comercial, tendo em atenção a natureza comercial dos actos a praticar pelo mandatário, ora réu, e atendendo ainda a que o mandato comercial previsto no artigo 231º tanto pode ser com representação, ou, como é o caso dos autos, sem representação. O contrato junto a fls 70 não é muito claro quanto à remuneração do mandatário, não se tendo igualmente apurado quais foram as condições acordadas entre a ré e o réu para ser efectuado o depósito das quantias pagas pelo autor na conta da ré. Contudo isso não é relevante, pois o objecto da presente acção não é o de definir as relações entre a ré e o réu, o que terá de ser feito em sede própria, mas o de conhecer o pedido formulado pelo autor. E, como acima se expôs, pelo pedido formulado pelo autor, terceiro com quem o réu contratou, só este é responsável, na sua qualidade de mandatário sem representação e por força do artigo 1180 do CC. Improcedem, pois, as alegações do apelante nesta parte. II) Indemnização por danos não patrimoniais. Alega ainda o apelante que não é devida indemnização por danos não patrimoniais e que o montante fixado é excessivo. Como acima se referiu, a sentença recorrida aplicou o regime previsto nos decretos-lei 24/96 de 31/7 (lei de defesa do consumidor) e 67/2003 de 8/4 (venda de bens de consumo). Dispõe o artigo 12º nº1 do DL 24/96 que o consumidor tem direito a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais. Conjugando esta disposição legal com o artigo 496º nº3 do CC e atendendo aos factos que constam no ponto 14 dos factos provados, dos quais resulta que o autor teve real transtorno com a falta de um veículo automóvel para se deslocar, não se mostra excessiva a indemnização de 500,00 euros fixada a este título, que se deverá manter, improcedendo na totalidade as alegações do apelante. DECISÃO. Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida. Custas pelo apelante. Lisboa, 2016-02-04 Maria Teresa Pardal Carlos Marinho Regina Almeida | ||
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Decisão Texto Integral: |