Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ROSA RIBEIRO COELHO | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO QUITAÇÃO DECLARAÇÃO NEGOCIAL INTERPRETAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/18/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I–A quitação é uma declaração de recebimento da prestação, devidamente identificada, não significando necessariamente que o crédito fique extinto, embora tal esteja, por via de regra, subjacente ao documento de quitação. II–Muitas vezes a declaração de quitação extravasa do simples recebimento da prestação, abrangendo também a declaração de que nada mais é devido, seja a título do crédito que pela prestação é satisfeito, seja a qualquer outro título. III–A declaração emitida nos termos referidos em II assegura que nada mais é devido ao credor, salva a hipótese de ter sido proferida com falta ou vícios da vontade ou de, ulteriormente, ocorrerem ou virem a ser conhecidos outros danos passíveis de indemnização. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa. I-Relatório: I - ... & ..., Lda., intentou a presente ação declarativa, contra ... ...m SPA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 97.582,24, acrescidos dos juros de mora já vencidos no valor de € 5.176,00 e dos vincendos até efetivo pagamento, à razão de € 21,39 diários. Alega, em síntese, que, no seguimento de um sinistro ocorrido no local de risco mencionado na apólice nº 10002643 – ... Comércio – contratada com a ré, esta entendeu, erradamente, que se registava uma situação de “infra seguro”, pelo que pagou à autora apenas € 97.620,21 por prejuízos diretos e € 29.286,00 por prejuízos indiretos, em vez dos montantes de € 171.906,50 e € 51.571,95, respetivamente, que deviam ter sido considerados. Houve contestação e réplica. Realizada a audiência de julgamento e foi proferida sentença que condenou a ré a pagar à autora € 97.582,24, acrescida dos juros de mora calculados desde a citação até integral pagamento à taxa legal para operações civis. Dela apelou a ré, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões: 1–Salvo o devido respeito, e com toda a consideração, entende a Apelante que foi formulado um errado juízo quanto aos factos dados como provados e como não provados na sentença em crise; 2–Nas motivações já supra explanadas, Apelante demonstrou, assim o entende, que, de facto, o sinistro destes autos já foi liquidado; 3–A quitação integral do mesmo deu-se com a emissão do respectivo recibo que foi enviado para a Apelada e por esta assinado sem reservas e remetido para pagamento (que ocorreu), pela Apelante; 4–Sucede que, esse mesmo recibo foi emitido, assinado sem reserva ou ressalva e liquidado, com o valor de € 97.620,21; 5–Não se podendo retirar da cortesia comercial de revisão da situação do sinistro, a consideração de que o recibo perdeu validade enquanto documento final de quitação; 6–Assim, ao desconsiderar tal recibo, e considerar mesmo que a posição da Apelante roçava a má-fé processual, o Tribunal a quo andou mal e procedeu a uma errada valoração da prova, contra toda a jurisprudência sobre a matéria, decidindo de forma errada, ao não considerar provada a excepção de abuso de direito, assim violando de forma frontal o art. 334º do CC; 7–Deverá pois ser alterada a decisão recorrida e considerar-se a Apelada já totalmente indemnizada pelo furto dos autos, nada mais lhe sendo devido, tal como resulta da assinatura e entrega sem qualquer reserva de um recibo final de quitação; 8–Tal factualidade é suficiente para que tenha que se julgar improcedente a pretensão indemnizatória da Apelada, o que se requer; 9–Efectivamente, a Apelante, considerou, o valor das existências no único local de risco, que lhe havia sido comunicado, o 97-F; 10–Nesse mesmo local de risco o valor das existências era de € 881.816,88, tal como comunicado pela Própria Apelada (Vide Doc. 1 junto com a contestação); 11–Sendo que a apólice dos autos, a única accionada, apenas tem um capital seguro de € 498.797,90; 12–Ora, do explanado, concluímos que o valor de risco era muito superior ao valor seguro; 13–Assim sendo, a Apelante, aplicou a regra da proporcionalidade prevista no art. 433º do Código Comercial; 14–Por conseguinte, alcançado o quantitativo a liquidar, a Apelante emitiu o competente recibo de quitação do sinistro; 15–Que remeteu à Apelada; 16–Posteriormente, a Apelada assinou o mesmo, sem qualquer reserva ou ressalva e remeteu-o para a Apelante que o liquidou; 17–No recibo de quitação não constava nenhuma rasura; 18–Nem tão pouco foi aposta qualquer menção no recibo, além da referida assinatura; 19–Nada constava do recibo que comprovasse que Apelada não concordaria com o valor aposto no recibo de quitação; 20–Pelo que, Apelante procedeu à competente liquidação da indemnização do sinistro e consequente liquidação dos prejuízos indirectos; 21–Apelante apenas liquidou o sinistro porque o recibo foi assinado e nada constava do recibo, além da referida assinatura; 22–Caso contrário, nunca teria liquidado o sinistro; 23–Desta forma, Apelada ao assinar o recibo demonstra que está de acordo com os termos da liquidação da indemnização; 24–Por sua vez, Apelada, posteriormente, vem alegar que não obstante assinatura pediu a reavaliação do sinistro e no seu Depoimento a testemunha Rute B..., refere que apenas assinou o recibo porque tinham falta de liquidez; 25–Ora, com tal fundamentação estamos perante um abuso de direito; 26–Porquanto, a referida testemunha refere conscientemente que assinou o recibo para receber a liquidação da Apelante; 27–Andou igualmente mal o Tribunal a quo ao dar como provados os factos 17º, 18º, 20º, 21º, atentos os depoimentos supra individualizados nas Alegações, e que impunham que tais factos fossem dados como não provados; 28–Quanto à errada resposta à matéria dada como provada dir-se-á que a Sentença em crise, desconsidera por completo depoimentos, claros, isentos e profícuos como o da testemunha José C... que depõe sobre as existências da Apelada, confirmando que desconhecia as existências de outros locais de risco além do 97-F, e que Apelada não lhe havia comunicado outro local de risco; 29–Acresce que a própria informação resultou da IES da Apelada, onde apenas consta o 97-F; 30–Ademais, como consta do balanço e do levantamento feito pela Apelante, as existências no 97-F eram de cerca de € 881.000,00 (881.816,88) – valor confirmado em documento emitido pela própria Apelada; 31–Contrariamente, ao que afirmaram as testemunhas Rute B... e Joana F..., ambas funcionárias da Apelada, as existências da ... e ... eram no valor de € 881.816,88 no local de risco seguro pela apólice dos autos, única accionada; 32–Acresce que a Apelada, ainda vem, alegar que ao referido local de risco se aplicariam, várias apólices pelo que não obstante o valor das mercadorias ser superior ao valor seguro como se aplicam as apólices de todas as sociedades comerciais Bem Parecida, ... e ... e Sousa e ..., existindo três apólices a questão da proporcionalidade nunca se coloca, raciocínio que, igualmente, improcede e não se demonstrou; 33–Sucede que, para que tal fundamentação fosse plausível, ou seja, para se accionarem todas as apólices existentes, como se de uma só se tratasse, teriam que ser tidos em conta os balanços das demais sociedade do alegado grupo B..; 34–Mais ainda, deveria ter sido participado o sinistro pelas demais Sociedades, e não apenas pela Apelada; 35–Tal não sucedeu e apenas a apólice dos autos foi accionada, pelo montante da mesma; 36–Assim sendo, e comprovado que ficou que o valor das existências era de € 881.816,88, em face da prova produzida, e que se pretende reapreciada, o valor em risco era superior ao valor seguro e por conseguinte a Apelante aplicou a regra da proporcionalidade, nos termos do art. 433º do Código Comercial, norma que a Sentença em crise, ao desconsiderar, violou, bem como violou os termos da apólice contratada e que se impunha respeitar na regularização do sinistro dos autos; 37–As respostas dadas, e que se pretende que sejam alteradas por reapreciação da prova gravada e documental, foram-no com total desconsideração dos depoimentos acima referidos; 38–Tendo a fundamentação da sentença em crise violado os critérios do art. 607º, nº 4 do Código de Processo Civil. 39–Pois que, a correcta valoração da prova produzida impõe que se dêem como não provados os factos 17º, 18º, 20º e 21º dados como provados, e consequentemente dado como provado o facto dado como não provado. 40–Juízo que impõe a revogação da Sentença em crise, e a sua substituição por decisão que absolva a Apelante do pedido contra si formulado. 41–Pelo que, salvo o devido respeito por entendimento diverso, nada mais haverá a indemnizar. 42–Isto porque, condenando-se a Apelante em qualquer pagamento, para além do que já liquidou à Apelada, estaria a colocar-se esta última numa situação de enriquecimento sem causa, com violação directa do art. 473º do Código Civil. Nas contra-alegações apresentadas, a apelada pugnou pela improcedência do recurso e, em apelação subordinada, pediu a condenação da apelante seguradora a pagar-lhe os juros de mora à taxa prevista no § 3º do art. 102º do Código Comercial. Formulou uma única conclusão, com o seguinte teor: -Os juros de mora que a Ré foi condenada a pagar à A. à luz da douta sentença recorrida deverão ser calculados à taxa dos juros comerciais previstos no § 3º do artigo 102º do Código Comercial, a liquidar em execução de sentença. No âmbito deste recurso não houve contra–alegações. Colhidos os vistos, cumpre decidir. II –Vêm descritos como provados os seguintes factos: 1º-A autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica predominantemente ao comércio a retalho de artigos de vestuário. 2º-A ré. é uma companhia de seguros, com delegação em Lisboa. 3º-Em Novembro de 2011, a Autora e as suas agrupadas “Sousa & ...,Lda.” e “..., Lda.”, titulavam perante a R., que as subscreveu e aceitou, as seguintes apólices de seguro multi-riscos denominadas “... Comércio”: Apólice nº 10002643, de que é tomadora a aqui A., “... & ..., Lda.”, dotada de um capital seguro de € 498.797,90. Apólice nº 10002607, de que é tomadora a agrupada “Sousa & ..., Lda., dotada de um capital seguro de € 536.706,54. Apólice nº 10003632, de que é também tomadora a agrupada “Sousa & ..., Lda., dotada de um capital seguro de € 493.792,85. Apólice nº 10004068, de que é tomadora a agrupada “..., Lda.”, dotada de um capital seguro de € 249.656,31. 4º-Em 17-10-2011 a autora, representada pela Secose, comunicou à ré, na pessoa da sua funcionária Sílvia G..., que os «Stocks» das apólices Multirriscos descritas em 3º, vão poder estar nos seguintes locais: Locais de Risco: Av.ª, 95-C, 1495-040 Algés; Av.ª, 97-F, 1495-040 Algés; Av.ª Combatentes da Grande ..., , 1495-036 Algés; Rua, 13, 1º-dto arrecadação), 1700-185, Lisboa; Av.ª , 18/18ª, 1400-128 Lisboa. 5º-Por força da apólice descrita em 3º. a, a ré assumiu perante a autora a obrigação de cobrir os prejuízos, até ao limite do capital seguro de € 498.797,90, que possam advir às mercadorias afetas às existências da “... e ..., lda”, que se encontrem no designado «local de risco» sito na Av.ª , n.º 97-F, Algés, por virtude, nomeadamente, de furto ou roubo, tentado ou consumado, do qual resulte destruição, perda ou deterioração da mercadoria. 6º-Durante a madrugada do dia 28 de Novembro de 2011,o estabelecimento comercial sito na Av.ª Combatentes da Grande ..., n.º 97-F, Algés foi assaltado por um grupo de seis indivíduos cuja identificação não foi possível, até ao momento, estabelecer. 7º-A autora tomou de imediato a iniciativa de participar o sinistro à ré e à autoridade policial competente. 8º-Suscitando a atenção da Ré para a necessidade da nomeação urgente de perito para deslocação ao local, atento o provável valor elevado da mercadoria sinistrada. 9º-No dia 30 de Novembro de 2011, a R. informou a A. de que havia iniciado as “diligências necessárias a uma célere avaliação dos danos que nos foram reclamados e consequente liquidação do sinistro” 10º-No dia 13 de Fevereiro de 2012, (por intermédio da sua corretora de seguros, SECOSE – Corretores de Seguros, S.A., a A.. comunicou à ré “o enorme lapso de tempo já dado para a regularização do sinistro ocorrido em Novembro passado sem que haja qualquer resposta útil da vossa parte”; e informando-a de que, atento aquele atraso, a indemnização a pagar ao segurado teria de “contemplar a margem total segura para prejuízos indirectos”, os quais se liquidam em montante igual a 30% do valor do sinistro, sem necessidade de justificação e/ou de comprovação. 11º-No dia 2 de Março de 2012, a A., representada pela Secose, solicitou da ré o pagamento do sinistro até ao dia 10 desse mês, “na falta do que será de imediato intentada... acção judicial”. 12º-Em Abril de 2012, a ré procedeu à liquidação do sinistro referido em 6º à autora, pela forma seguinte: Danos em bens do senhorio- € 660,00; Equipamento/mobiliário-€350,00; Mercadorias furtadas-€ 96.709,97. Total € 97.719,97. 13º-Aos valores referidos em 12º acresceu o pagamento de 30% daquela liquidação, de 29.286,06 euros, a título de prejuízos indiretos. 14º-A autora aceitou como boas as liquidações da ré relativamente aos danos causados à loja (€660,00) e ao equipamento/mobiliário (€ 350,00). 15º-Relativamente ao valor atribuído pela R. às mercadorias furtadas, a A. solicitou-lhe a sua reavaliação, pelo que em 26-04-2012, já após realizados os pagamentos referidos em 12º, a ré comunicou à A. que «o processo de reavaliação encontra-se a decorrer, pelo que entraremos em contacto assim que o mesmo esteja concluído.» 16º-Ao que a autora lhe respondeu, por intermédio da Secose, pela mesma via email e na mesma data que «Ficamos então a aguardar. Até lá reiteramos o nosso entendimento, já oportunamente transmitido (e de acordo até com a interpretação do vosso email sob resposta) de que os valores até agora recebidos pelo cliente são considerados adiantamentos, não se considerando o mesmo satisfeito com as indemnizações parcialmente emitidas.» 17º-Em 28-11-2011, no local de risco identificado no contrato de seguro referido em 3º, a-, no nº 97-F da Avenida dos Combatentes, Algés, encontravam-se armazenadas mercadorias da autora, assim como mercadorias pertencentes às suas agrupadas “Sousa & ...” e “...”. 18º-O valor das mercadorias pertencentes à autora e existentes no nº 97-F da Avenida dos Combatentes, na referida data, antes do furto, orçava em 491.356,80 euros. 19º-Sendo que a A. possuía outras existências/mercadorias armazenadas e/ou expostas noutros locais, identificados em 4º como locais de risco. 20º-Como consequência do assalto referido em 6º, foram subtraídas da loja sita no nº 97-F da Avenida dos Combatentes, em Algés, mercadorias pertença da A. no valor de 171.906,50 euros. 21º-A mercadoria pertencente à A., total e definitivamente danificada pela inundação de 1602-2011, que se encontrava acondicionada na Av.ª , n.º 95º-A, Algés, no valor de 122.329,88 euros, foi retirada do local, e abatida das existências da A. 22º-Por sentença de 27-3-2015, proferida no âmbito do proc. n.º 1041/12.0TBOER desta Instância Central Cível, J5, intentado pela agrupada da A. “Sousa e ..., Lda” contra a aqui ré, foi esta condenada, pelo sinistro referente à inundação ocorrida em Fevereiro de 2011, a indemnizar a A. pelo valor de 723.598,59 euros, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento. A estes factos há que aditar, nos termos e pelas razões que mais à frente se explicitarão, a emissão e o conteúdo dos documentos juntos a fls. 59 e 60. E vem descrito como não provado o seguinte facto: a)À data do furto, em 28-11-2011, ou em 27-11-2011, a mercadoria da autora existente no local de risco sito no nº 97-F da Avenida dos Combatentes, em Algés, orçasse o valor de 881.816,88 euros. III-Abordemos então as questões suscitadas, tanto na apelação principal como na subordinada, começando-se pela primeira. Nela são levantadas duas questões essenciais que importa definir. Nas conclusões 2ª a 26ª, a recorrente “...” defende que a autora, ora apelada, ao receber dela as quantias que liquidou e pôs à sua disposição e ao subscrever os recibos relativos a tais pagamentos, aceitou como bons os montantes pagos e fez extinguir o seu direito de crédito, pelo que não pode agora pretender a revisão em alta daquelas quantias. Já nas conclusões 27ª e segs. defende o acerto da liquidação a que procedeu e das quantias que pagou, para o que, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto, pede que se tenham como não provados os factos supra descritos em 17º, 18º, 20º e 21º e que se julgue como provado o facto que na sentença figura como não provado. Por razões de prioridade lógica, importa começar pela análise da primeira, já que, se se acolher como boa a tese da apelante, fica esvaziada de interesse a segunda questão. Da quitação dada pela autora: Interessa começar por relembrar os seguintes factos julgados como provados e não postos em causa pelas partes: “12º-Em Abril de 2012, a ré procedeu à liquidação do sinistro referido em 6º à autora, pela forma seguinte: Danos em bens do senhorio- € 660,00; Equipamento/mobiliário -€ 350,00; Mercadorias furtadas-€ 96.709,97. Total € 97.719,97. 13º-Aos valores referidos em 12º acresceu o pagamento de 30% daquela liquidação, de 29.286,06 euros, a título de prejuízos indirectos. 14º-A autora aceitou como boas as liquidações da ré relativamente aos danos causados à loja (€660,00) e ao equipamento/mobiliário (€ 350,00). 15º-Relativamente ao valor atribuído pela R. às mercadorias furtadas, a A. solicitou-lhe a sua reavaliação, pelo que em 26-04-2012, já após realizados os pagamentos referidos em 12º, a ré comunicou à A. que «o processo de reavaliação encontra-se a decorrer, pelo que entraremos em contacto assim que o mesmo esteja concluído.» 16º-Ao que a autora lhe respondeu, por intermédio da Secose, pela mesma via email e na mesma data que «Ficamos então a aguardar. Até lá reiteramos o nosso entendimento, já oportunamente transmitido (e de acordo até com a interpretação do vosso email sob resposta) de que os valores até agora recebidos pelo cliente são considerados adiantamentos, não se considerando o mesmo satisfeito com as indemnizações parcialmente emitidas.»” Embora a sentença o não tenha enunciado discriminadamente ao expor os factos tidos como provados, em sede de fundamentação de direito, aludiu aos documentos juntos a fls. 59 e 60 dos autos e sobre eles desenvolveu raciocínio essencial para a decisão que emitiu. O primeiro destes documentos, da autoria da apelante ..., intitula-se “Acta de acordo de liquidação de sinistro” e indica como entidade recebedora a apelada ... e ..., reportando-se à apólice acima referida em 3º (1º lugar) e ao sinistro ocorrido em 28.11.2011; dela consta a menção do valor de € 97.620,21 como indemnização por todos os danos patrimoniais, não patrimoniais e/ou despesas, resultantes do referido sinistro; está datado de 17.4.2011 e, no canto inferior direito, junto aos dizeres “entidade recebedora”, foram apostos o carimbo desta e uma assinatura, sob os seguintes dizeres: “Com o presente acordo de liquidação a entidade recebedora tem à disposição a quantia em referência a título de indemnização. Com o recebimento do montante mencionado, considerar-se-á completamente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência do sinistro a que se reporta o processo acima indicado, dando assim plena quitação à ... – companhia de Seguros, e subrogando-a em todos os seus direitos, acções e recursos, contra possíveis responsáveis nos termos da lei.” O montante acima referido foi, como deste documento consta, obtido através da dedução de € 99,76 a título de franquia aos montantes constantes do facto 12º. O segundo destes documentos contém todas as menções acabadas de mencionar, mas com uma quantia de € 29.286,06, a que se reporta o facto 13º. São documentos que a ... trouxe aos autos com a contestação, mostram-se assinados pela autora, aqui apelada, ... e ... e foram por esta aceites como verdadeiros na réplica apresentada. E, por isso, são documentos particulares com força probatória plena quanto às declarações aí atribuídas à autora, seja quanto ao recebimento das quantias neles referidas, seja no tocante ao afirmado total ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com o sinistro em causa – arts. 374º, nº 1 e 376º, nº 1, ambos do CC. Por isso, a sua emissão e o seu conteúdo têm de ser aditados, como se disse já, ao rol de factos provados, importando avaliá-los no plano jurídico. Segundo o art. 787º do CC, quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita. Escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[1], que a quitação é uma declaração de recebimento da prestação, devidamente identificada[2], não significando necessariamente que o crédito fique extinto, embora tal esteja, por via de regra, subjacente ao documento de quitação; porém, como dizem os mesmos autores, citando Carbonnier, muitas vezes a declaração de quitação extravasa do simples recebimento da prestação, abrangendo também a declaração de que nada mais é devido, seja a título do crédito que por esta prestação é satisfeito, seja a qualquer outro título. Estas noções aplicam-se ao caso em análise, já que a quitação contida nos documentos de fls. 59 e 60 dá como extinto o crédito, na medida em que neles ... e ... declara nada mais ter a receber da ... no seguimento do sinistro em causa nestes autos. De facto, a declaração de vontade feita pela autora nesses documentos, apreciada à luz da regra geral de interpretação consagrada no nº 1 do art. 236º, do CC.[3], só pode significar isso mesmo, pois que seria esse o sentido “apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante”[4] É a teoria da impressão do declaratário que, pela sua natureza essencialmente objetivista, assegurará “tutela plena à legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração”[5] A propósito da doutrina consagrada neste dispositivo legal, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela [6] “O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efetivamente atribuir. Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista” Exemplo desta restrição é o caso de o declaratário conhecer a vontade real do declarante, hipótese em que a declaração emitida valerá de acordo com essa vontade real – nº 2 do art. 236º. E declarações negociais do jaez das prestadas pela apelada, em princípio, asseguram que nada mais é devido ao credor, salva a hipótese de terem sido proferidas com falta ou vícios da vontade ou de, ulteriormente, ocorrerem ou virem a ser conhecidos outros danos passíveis de indemnização. Neste sentido nada vem alegado pela apelada ... e .... Esta, porém, defende em contra-alegações o seguinte – cfr. fls. 405 destes autos: “… devendo a quitação de fls. 59/60 ser interpretada pelo quitado conforme a impressão que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante; e sendo certo, por outro lado, que nenhumas negociações haviam sido estabelecidas entre as partes no sentido de o segurado aceitar como boa a liquidação de fls. 30 e 31 e que o que as partes vinham promovendo muito antes de 17 de Abril de 2012 (data dos recibos) e prosseguiram sem interrupções até 2 de Maio seguinte era, bem pelo contrário, a obtenção de um entendimento acerca do valor final a indemnizar, com prejuízo naturalmente da liquidação provisória de fls. 30/31, substituindo-a por uma liquidação definitiva que a R. integrasse da totalidade do sinistro, a conclusão axiomática a retirar destas premissas é a de que não apenas a R. não podia deixar de saber que os pagamentos de fls. 59 e 60 tinham natureza provisória e, portanto, não liberatórios da sua responsabilidade, como ainda que tais pagamentos o foram sem prejuízo da negociação então ainda em curso visando a obtenção de um consenso acerca do quantum a pagar à A. à luz dos reais prejuízos que o sinistro lhe causou.” Mas esta linha de interpretação das declarações de vontade – de quitação - constantes dos documentos em causa não pode ser por nós acompanhada, desde logo por assentar em factos – a existência de negociações e o seu conteúdo - que se não encontram provados. De nada valem, naturalmente, as transcrições de depoimentos que nas alegações vêm feitas a propósito deste raciocínio, pois que tais depoimentos testemunhais não são invocados como elemento probatório em impugnação que a apelada deduza contra a decisão que julgou os factos; só nesse âmbito poderiam ser considerados e, eventualmente, relevar. Voltando agora aos factos acima descritos sob os nºs 12º a 16º, importa dizer que o pedido de reavaliação feito por ... e ... não está localizado no tempo em relação à efetivação dos pagamentos e à assinatura, por ela, dos documentos de fls. 59 e 60, pelo que não há como partir desses factos para a interpretação da declaração de quitação. Aliás, das duas, uma: -Ou este pedido de reavaliação, cujos termos e razões subjacentes se desconhecem, foi anterior aos pagamentos e à emissão dos recibos e, então, a insatisfação subjacente ao mesmo é superada pela posterior declaração de quitação emitida nos termos mencionados no texto dos documentos, acima transcrito; -Ou foi posterior e, então, sem prova de falta ou vício da vontade ou de danos supervenientes, traduzirá uma negação inidónea para destruir a anterior declaração de nada mais ser devido a esse título. A verdade é que, perante o seu teor literal, só podemos ver na quitação inserta nesses documentos a afirmação de que nada mais havia, efetivamente, a receber. Por outro lado, a resposta positiva da ... ao pedido de reavaliação não tem necessariamente subjacente uma determinação já formada no sentido de vir a pagar algo para além do que já havia pago; sem assumir aí qualquer obrigação, a ... podia, com isso, estar simplesmente a admitir que mais tarde tomaria posição sobre o assunto, determinada por razões de marketing e imagem perante um cliente, e não em estrita análise jurídica dos factos. E sempre sem renunciar à faculdade de invocar ter feito já um pagamento liberatório. Ao assumir, mais tarde, esta última posição, a apelante ... agiu em conformidade com o Direito, não se vendo que com isso tenha defraudado injustamente expectativas criadas por ... e .... Assim, esta nada mais tem a receber, para além do que consta dos documentos de fls. 59 e 60. Tem sido este entendimento da nossa jurisprudência em casos de declarações de quitação deste género, umas no âmbito de indemnizações devidas por sinistros e pagas por entidades seguradoras e outras no seio de relações jurídicas de natureza laboral.[7] Atingida esta conclusão a apelação procede, ficando prejudicada a a apreciação da segunda das enunciadas questões e, nomeadamente, da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Improcede também a apelação subordinada. IV-Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e improcedente a apelação subordinada e, consequentemente, revogando-se a sentença, absolve-se a ré ... do pedido contra ela formulado por ... e .... Custas, aqui e na 1ª instância, a cargo da autora. Lxa. 18.10.2016 (Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho) (Maria Amélia Ribeiro) (Graça Amaral) [1] Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, págs. 38-39 [2] Nomeadamente com a indicação do crédito, a identidade de quem cumpre, a data do cumprimento e a assinatura do credor. [3] Nos termos do qual «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele». [4] Autores e obra citada, mas no Volume I, pág. 223. [5] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 444 [6] Volume I da obra citada, pág. 223. [7] A título de exemplo, cfr. os acórdãos do STJ, todos acessíveis em www.dgsi.pt., de 12.06.2003, Relator Conselheiro Quirino Soares; de 19.01.2006, Relator Conselheiro Moitinho de Almeida (e arestos do mesmo Tribunal nele citados); de 16.09.2008, Relatora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza; de 10.12.2009, Relator Conselheiro Pinto Hespanhol. |