Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9479/08.1TBCSC.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: TESTAMENTO
DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
LEI ESTRANGEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Tendo um testamento sido feito por português em país estrangeiro, encontramo-nos perante uma situação jurídico-privada internacional, que põe em contacto duas ordens jurídicas diversas, havendo que aplicar as normas de conflitos de leis, de acordo com os princípios do Direito Internacional Privado (DIP) português, a fim de indagar qual a lei aplicável para decidir, desde logo, a questão da validade formal do testamento (art. 65º do C. Civil).
2. A lei prevê, neste preceito legal, uma pluralidade de leis substantivas potencialmente aplicáveis à forma das disposições por morte, incluindo aquelas que são objecto de testamento, sob a motivação de favorecimento da sua validade formal.
3. E o art. 2223º do CC determina que o testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido respeitada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.
4. É a intervenção do oficial público que constitui a “marca de água” de autenticidade e solenidade exigida nos citados normativos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Andrew ... ... e Esther ... propuseram acção declarativa de condenação com processo ordinário contra Maria ... ... ..., peticionando:

A)-seja declarado e a Ré condenada a reconhecer que os Autores Andrew e Esther são os únicos e universais herdeiros de Elvira Maria ... ..., cuja qualidade lhes adveio por virtude do testamento de 24/07/2005, na proporção de 65% para o Autor Andrew e de 35% para a Autora Esther;

B)-seja declarado e a Ré condenada a reconhecer que é nula, ineficaz e de nenhum efeito, por abusiva e ilegitimamente celebrada sem preenchimento dos legais pressupostos, a habilitação realizada na escritura pública referida no artigos 8º desta petição, celebrada no dia 4 de Abril de 2008, em Lisboa e na Avenida Defensores de Chaves, nº 51 – B, no Cartório Notarial de Carlos Manuel da Silva Almeida, em que a Ré declarou ser a única e universal herdeira de Elvira Maria ... ...;

C)-seja declarado e a Ré condenada a reconhecer que ela, Ré, não tem qualquer direito sobre os bens que integram a herança aberta por óbito de Elvira Maria ... ..., nomeadamente sobre os prédios descritos no artigo 7º da petição;

D)-seja declarado e a Ré condenada a reconhecer que são infundados e inconsistentes todos e quaisquer actos de registo de aquisição, averbamento ou qualquer outro acto de registo predial que a Ré, ou quem quer que seja por sucessão na posição dela ou em acto subsequente ao dela, tenha promovido ou requerido em função ou em resultado da habilitação declarada na referida escritura pública sobre quaisquer bens que integrem a herança aberta por óbito de Elvira Maria ... ..., nomeadamente os bens descritos no supra artigo 7º – e, bem assim, decretar-se a anulação de todos os actos de registo que, nesse contexto, tenham já sido praticados;

E)-seja declarado e a Ré condenada a reconhecer que os Autores têm o direito de inscrever no registo, a seu favor, em conformidade com o testamento deixado por Elvira Maria ... ..., a aquisição do direito de propriedade sobre os bens da herança aberta por óbito desta, nomeadamente sobre os prédios identificados no artigo 7º deste articulado, que são os prédios descritos na 1ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob os números 1331/20080922 – freguesia de Coimbra (Sé Nova) e 2578/19830107 – freguesia de Santo António dos Olivais.

Alegaram, em síntese, que Elvira Maria ... ... faleceu em 11.02.2008, em Londres, no estado de divorciada, sem ascendentes nem descentes, sendo a R. a sua única irmã; que em 24.07.2005 fez o seu último testamento, onde instituiu como seus únicos herdeiros os aqui AA., tendo esse testamento sido feito com observância da lei do país em que a testadora residia; que foi observada a forma solene, pelo que o testamento é válido em Portugal; que a R., no dia 04.04.2008 se habilitou notarialmente como cabeça de casal e única herdeira da sua irmã Elvira e registou os bens descritos no artº 7º da p.i. a seu favor, tendo declarado que a irmã não tinha feito testamento; que desde 31.07.2008 tentaram informar a R., por escrito da existência do testamento, mas só lograram fazê-lo em 18.09.2008, uma vez que a R. não recebeu as cartas que foram enviadas para o seu domicílio pessoal, tendo apenas recebido carta que lhe foi enviada para o seu domicílio profissional, sendo que a R., quatro dias depois de receber tal carta fez inscrever a seu favor, no Registo Predial, os prédios descritos no artº 7º da p.i.

A R. veio contestar, começando por invocar a má-fé dos AA., alegando em síntese que estes sabem que o testamento que invocam não tem qualquer validade, sendo certo que não foi objecto do chamado “grant of probate”, o qual é, pela lei inglesa, o acto oficial de homologação; que não tem a apostilha exigida pela Convenção de Haia de 1961; que os AA. tinham ascendente sobre a sua irmã Elvira, por motivos religiosos, sendo que Elvira sofria de problemas do foro psiquiátrico, que se foram agudizando com o tempo, tinha fantasias suicidas, chegava a mutilar-se com facas e cigarros, ouvia vozes, sendo que devido a tais problemas esteve várias vezes internada em hospitais psiquiátricos ingleses, tendo sido estes os motivos que permitiram que a irmã Elvira tenha sido levada a assinar o documento a que os AA. chamam de testamento.

Conclui pedindo que a acção seja julgada improcedente, por não provada e ser a R. absolvida do pedido e os AA. condenados a reconhecer a A. como única e universal herdeira da sua irmã, sem que todavia tenha individualizado  qualquer pedido reconvencional.

Foi apresentada réplica.

Foi proferido despacho saneador em que se admitiu a réplica e onde se fixou a matéria de facto que considerou provada (matéria assente) e se elaborou a base instrutória. Tal despacho não sofreu reclamações.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu absolver a ré da R. da totalidade dos pedidos formulados pelos AA.

Inconformado, veio o autor interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:

1- Na alínea J da matéria dada como provada, consta um documento do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, de 26/8/2008, que consta da sentença, que refere “a última vontade e testamento da falecida (uma copia é anexada) foi provada e registada no Tribunal de Justiça …..”. (fls. 380 e seguintes dos autos).

2- Tal documento é o “grant of probate” que a sentença considera não existir nos autos relativamente ao testamento que é indicado pelo A. como sendo o único.

3- Ora, se o “grant of probate” relativo ao testamento constante da petição estava dado como facto assente, como pode agora a sentença ignorá-­lo?

4- E mais: como pode agora a sentença vir basear a decisão num facto que não foi sequer dado como provado, a saber, a existência de um testamento posterior ao apresentado pelos AA.?

5- Todos os documentos e peças, incluindo a petição inicial, foram enviados para o Tribunal através do Citius, portanto digitalmente, e nunca foi ordenada a junção de originais.

6- Ora, pelo que fica dito a sentença padece de nulidade nos termos do art. 615º, 1, c) do CPC, uma vez que os fundamentos de facto estão em contradição com a decisão, pelo menos apresenta-se ambígua e obscura.

7- Por outro lado, estando dado como provado a existência do “grant of probate”, não se pode aplicar o artigo 2223º do CC, uma vez que foi observada uma forma solene na sua feitura e aprovação. Pelo menos uma forma que a lei inglesa considera solene: feito por elaborado e redigido, por escrito, perante entidade para tal habilitada (Will Drafters & Lda) e atestado por duas testemunhas, e aprovado pelo Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester (pontos 11 e 12 da matéria dada como provada na sentença A.2).

8- A sentença, para fundar a sua decisão, vem basear-se num facto que não consta dos factos assentes ao dizer: “Elvira ... ..., uma vez que a mesma elaborou documento idêntico em 7.8.2005 (cfr. fls. 1089 a1092 dos autos), junto pela R. como copia certificada, uma vez que está selado com selo branco a fls. 1089. Importa referir que não se trata do mesmo documento, uma vez que as datas não coincidem e que o primeiro teve como testemunhas S A e Je o segundo teve como testemunhas a mesma J e P.”

9- Os pontos 13 da matéria dada como provada na sentença (A2 – Da base instrutória) está em contradição com a alínea J dos factos provados (A.1 Matéria de facto dada como assente no saneador).

10-Ora, em sede de fundamentação da sentença a “Mª. Juiz a quo” aparece com um facto novo, que não foi quesitado nem dado como provado: que existe um outro testamento feito a 7/8/2005.

11-De resto, a R. conhecia deste Outubro de 2008 tal documento, e não o juntou aos autos em momento algum, tendo até vindo depor como em sede de audiência sem que tal documento tivesse sido mencionado.

12-Não o tendo feito oportunamente, a R. não o poderia agora juntar tal documento, visto que não se tratava de um facto superveniente no entendimento que a lei dá ao conceito. Nem a sentença o poderia considerar como superveniente. Dito doutra forma, o Juiz “a quo” não poderia tomar conhecimento de tal facto, que não estava alegado nem quesitado, pelo que a sentença é nula, nos termos do artigo 615º, 1, d), segunda parte do C.P.C.

13-Por outro lado, deveria ter sido considerado provado um facto não contestado por nenhuma das partes e relevante para a boa decisão da causa, a saber, que a falecida Elvira ... residia há muitos anos na Inglaterra, nomeadamente que aí residia em 2005.

14-Tal facto deveria ter sido dado como assente, desde logo porque admitido por acordo, e também com base nos depoimentos de R (fls. 738-740), S A (fls. 751), Jfls 748 a 765), An (fls. 926 a 928), H (1005 a 1009), e com base nos documentos juntos aos autos, nomeadamente o assento de óbito junto à p.i. como documento 1, o testamento feito em Inglaterra e os relatórios médicos a fls. …., do ano de 2005.

15-Pelos motivos já referidos a sentença viola ainda os artigos 607º, 4 e 5 do CPC.

16-Durante o julgamento é que a R. pede para falar de novo, e apresenta um documento dizendo que esse sim é o último testamento da sua irmã.

17-O facto de não o ter junto logo aos autos, e de o ter guardado para a sessão do julgamento indica clara má fé.

18-Mas a verdade é que tal documento não poderia ter interesse para provar quesito algum, pois havia já a alínea J dada como provada no saneador e como tal reproduzida na sentença.

19-Por fim não deverá ser dado como provado que o estado de saúde de Elvira ... se agudizou ao longo do tempo com base no depoimento gravado da testemunha Armando que diz: “quando nós começamos a ir busca-la para o nosso lado outra vez e a junta-la com os amigos de cá, porque hoje com a net consegue-se facilmente a pessoa fazer pelo skype, por isto, por aquilo, as pessoas tem contacto e aí ela melhorou imenso” (cfr gravação rot. 00:00:01 a 00:42:14). Este depoimento é confirmado se cotejado com as testemunhas J (fls 748 a 765), A(fls. 926 a 928), H(1005 a 1009).

20 - Por isso deverá ser alterada a resposta dada ao quesito 15, na sentença (A.2) no sentido de constar apenas que Elvira ... sofreu desde muito nova de problemas psiquiátricos. Nada consta nos depoimentos sobre o agravamento ao longo do tempo.

21 -Por fim, quer nos depoimentos gravados quer nos escritos não se pode deduzir a frequência e o tipo de medicamentos que Elvira ... tomava, mas apenas os medicamentos que tomou quando esteve hospitalizada, e que constam dos relatórios. A testemunha Armando diz “Ela tomava, eu não sei se ela tomava, eu via que ela tinha remédios para tomar, agora se os tomava não faço a mínima ideia” e ainda “ela esteve cá em casa…. na nossa casa eu via que ela tomava remédios e “cada vez que fazia um tratamento desses de emagrecimento entrava em …. como se diz na gíria flipava” (cfr gravação rot. 00:00:01 a 00:42:14).

22- Assim, porque não se sabe que medicamentos tomava ou se tomava deverá ser retirado o ponto 16 da matéria dada como provada na sentença (A.2), ou pelo menos que passe a dizer que enquanto esteve internada tomou os medicamentos que constam do respectivo relatório.

Nestes termos deverá ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que reconheça a matéria de facto dada como provada no saneador e que considere a acção provada e procedente e em consequência condene a R. nos pedidos efectuados.

A ré apresentou contra-alegações, e ampliou o objecto do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A sentença recorrida não merece reparo, porquanto o Recorrente, nas suas alegações, limita-se a apontar nulidades e outros erros na resposta dada à matéria de facto dada como provada na sentença recorrida sem qualquer fundamentação válida.

2. Assim, a sentença recorrida não é nula, nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, uma vez que: uma sentença é nula “ quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença ou acórdão expressa ”, isto é, apenas existe oposição entre os fundamentos e a decisão “ quando há contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, ou seja, quando existe um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente ” (cfr. NETO, Abílio, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição revista e ampliada, Li sboa, Ediforum, 2014, pp. 737 e 738);

3. No caso concreto, o conteúdo da declaração que se dá como provado na alínea J) da matéria de facto dada como assente no despacho saneador não determina que se tenha de dar igualmente como provado o quesito 13.º da base instrutória. Ou seja, o tribunal apenas deu como provado que existe uma declaração do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, datada de 26 de agosto de 2008, mas não que a mesma se traduz no “Grant of Probate” do documento junto aos autos pelos Autores como “testamento” (cuja prova não foi produzida).

4. Se o tribunal tivesse, desde logo, considerado que o conteúdo documento mencionado na alínea J) constituía o “Grant of Probate” da declaração referida no quesito 1.º da base instrutória, não teria questionado essa circunstância no quesito 13.º da mesma.

5. Se, assim não fosse não teria, acrescente -se, o ora Recorrente, no seu requerimento probatório, requerido a notificação da Embaixada de Portugal em Londres para vir dizer se o documento que juntou aos autos, correspondente ao reproduzido na alínea J) da matéria de facto assente, se tratava do “Grant of Probate”.

6. Por isso, não pode o mesmo vir agora alegar o contrário. Pelo que se conclui que não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, porquanto a construção da decisão do tribunal e os fundamentos em que se apoia conduzem logicamente ao resultado expresso na mesma.

7. Do mesmo modo, a sentença recorrida também não é ambígua ou ininteligível. De acordo com Abílio Neto, op. cit. p. 739: “Uma sentença sofre, de ambiguidade quando a parte decisória propriamente dita tem mais do que um sentido, tornando -se, assim, incerto, indefinido ou duvidoso o respectivo comando; será obscura, quando o seu exacto sentido não possa alcançar -se. De todo o modo, essa ambiguidade ou obscuridade hão -de atingir um grau de tal modo elevado que a decisão proferida se torne ininteligível, ou seja, que não seja possível alcançar com segurança a forma como se quis resolver o litígio, o que de modo nenhum se confunde com um eventual erro de julgamento. ”

8. Ora, no caso concreto, inexiste qualquer dúvida quanto à forma como o tribunal pretendeu resolver o presente litígio: os Autores não demonstraram que o documento que juntaram aos autos foi objecto do “Grant of Proba te”, não se aplicando, por isso, o disposto no artigo 2223.º do Código Civil, até porque o referido documento não foi o último testamento de Elvira Maria ... ..., o que o torna inválido, justificando-se assim a absolvição da ora Recorrente dos pedidos formulados pelo ora Recorrido.

9. Por outro lado, não é igualmente nula a sentença recorrida, nos termos da alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto “ O excesso de pronúncia pressupõe que o julgador vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes” (cfr. NETO, Abílio, op. cit., p. 746), o que não ocorreu in casu.

10. Como é bom de ver, o tribunal, na sua decisão, em nada se afastou da questão suscitada, desde logo, pela ora Recorrida, na sua contestação, e na qual se centrou o litígio: a aferição da validade do documento junto pelo ora Recorrente como “testamento”, o que se traduz na necessidade de esse documento ter sido objecto do “Grant of Probate”.

11. Com efeito, o “Grant of Probate” é considerado, pela lei inglesa, o acto oficial de homologação e aprovação do testamento, o que mereceu o acordo do ora Recorrente no artigo 29.º da sua Réplica. Portanto, a forma solene a ter em conta é o “Grant of Probate”, e não o facto de o documento junto como “testamento” ter sido elaborado e redigido perante um a alegada entidade habilitada para tal (a Will Drafters & Lda.). O que não se provou, porquanto os Autores não foram capazes de o demonstrar.

12. Nesse sentido, não andou mal o tribunal ao ter aceite, enquanto meio probatório, o testamento posterior, datado de 7/8/2005 este sim, objecto do “Grant of Probate”, pois foi enviado pelo “Probate Officer” –, através do qual a Recorrida demonstrou a invalidade do documento junto, pelos Autores na medida em que provou que este não constituiu a última vontade da testador e não foi objecto do “Grant of Probate”.

13. Por outro lado, deve ter-se igualmente em conta que o juiz já não se encontra limitado pela quesitação de pontos de facto, mas apenas com a enunciação de temas da prova (cfr. artigo 596.º do CPC - aplicável in casu por força do artigo 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).

14. Os temas da prova permitem que “ a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais facilmente possível a realidade histórica tal com o esta, pela prova produzida, se revelou nos autos ” (cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113//XII, p. 15 apud NETO,           Abílio, op. cit. p. 677).

15. Adicionalmente, a ora Recorrida, em depoimento de parte, referiu espontaneamente a existência de outro testamento, datado de 7/8/2005 (cfr. gravação rot. 00:00:01 a 00:25:54), tendo sido depois ordenada a junção do mesmo pelo tribunal.

16. O facto de a Recorrida ter conhecimento do documento desde Outubro de 2008, não impede o tribunal de conhecer do mesmo, podendo ordenar a sua junção aos autos, dada a sua importância para a descoberta da verdade material.

17. Note -se que, ao abrigo do artigo 6.º do CPC (aplicável igualmente in casu por força do artigo 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), impende sobre o juiz um dever de gestão processual, isto é, de direcção activa do processo, garantindo a justa resolução do litígio.

18. Além disso, a fundamentação da sentença deve compreender toda a matéria de facto adquirida, nomeadamente todos os factos que resultem da instrução da causa e são provados por documentos pelo que não violou igualmente a sentença recorrida o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC.

19. Neste âmbito, importa atender a que mesmo quando a junção de documentos é efectuado após os articulados, “ podem ainda ver-lhes ser atribuída a possibilidade de, através do seu valor probatório, o tribunal considerar adquiridos para o processo certos factos ”, respeitados que sejam (e foram -no) os artigos 5.º e 413.º do actual, CPC (cfr. NETO, Abílio, op. cit. p. 695).

20. Quanto ao alegado pelo Recorrente no sentido de que deveria ter sido considerado provado que Elvira Maria ... ... residia em Inglaterra em 2005, sempre se dirá que tal não se revela essencial para a decisão do caso concreto, uma vez que o facto que eventualmente relevaria para o efeito seria a prova da nacionalidade britânica da mesma, o que não foi demonstrado pelo Recorrente.

21. Por sua vez, no que se refere à alegação do recorrente de que não se deveria ter dado como provado que o estado de saúde de Elvira Maria ... ... se agudizou ao longo do tempo, sempre se dirá que a alegação do recorrente não colhe, uma vez que, de acordo com o depoimento da testemunha Dra. Sofia Brissos, psiquiatra, com larga e reconhecida experiência forense, que analisou os relatórios e registos médicos da testadora (os quais se reportam não só ao tempo em que esteve internada, mas também em que beneficiou de apoio domiciliário, até ao seu óbito):“Esta senhora (…) terá começado manifestar -a sintomatologia psiquiátrica no início da idade adulta e podemos dizer, grosso modo, que ela tinha uma perturbação psicótica e com alterações de humor, nomeadamente sintomatologia depressiva e uma das manifestações que depois, ultimamente, eram mais frequentes, de facto, eram as tentativas de suicídio e os sintomas psicóticos que foram interferindo cada vez mais, como é típico, no dia -a-dia e no funcionamento do doente até chegar ao ponto em que ela deixou de trabalhar e os períodos livres de sintomas eram cada vez mais curtos.

Eu posso, aliás, garantir que, nos últimos anos de vida, já não existiam períodos -completamente livres de sintomas (…). ”

“Em 2005, ela tem-vários internamentos, alguns deles compulsivos, o que denota que, de facto, ela tinha uma (…) anomalia psíquica grave, se m dúvida nenhuma. ” “Em 2005, houve-vários episódios graves de descompensação da doença que determinaram o internamento compulsivo (…) e que, apesar do acompanhamento estrito que esta mulher tinha, e até muito apertado do ponto de vista domiciliário, ela não estava bem e verbalizava que algumas das decisões que tomava talvez não fossem as mais corretas, porque eram as vozes que diziam para as tomar. ” (cfr. gravação rot. 00:00:01 a 00:36:54 ).

22. Por último, no que respeita à alegação do Recorrente de que dever á ser retirado o ponto 16 da matéria de facto dada como provada ou que do mesmo passe apenas a constar que enquanto esteve internada Elvira Maria ... ... tomou os medicamentos referidos nos relatórios médicos, não tem também a mesma razão de ser, atendendo a que os relatórios e registos médicos - que se reportam não só ao tempo em que aquela esteve internada, mas também em que beneficiou de apoio domiciliário -,(até ao seu óbito) indicam a toma de medicamentos do foro psiquiátrico, bem como tal resulta inclusive dos depoimentos das testemunhas P (fls. 740), S A (fls. 750), ... (fls. 847), A (fls. 927) e H (fls. 1007), que tinham um contacto próximo com a testadora.

23. Neste sentido, andou bem a douta sentença recorrida ao absolver a Ré (ora Recorrida) de todos os pedidos formula dos pelo Autor (ora Recorrente), assim se alcançando a verdade material e a justa composição do litígio.

24. Com efeito, foi ainda dado como provado que Elvira Maria ... ... sofreu desde muito nova de problemas do foro psiquiátrico que se agudizaram ao longo do tempo, que tomava medicamentos anti-depressivos e que tinha fantasias suicidas, mutilava-se várias vezes com facas e cigarros e dizia que ouvia vozes, tendo estado interna da várias vezes em hospitais psiquiátricos em Londres.

25. Neste conspecto, importa retirar a conclusão necessária e evidente que o testamento junto pelos Autores também seria sempre inválido atendendo ao quadro psiquiátrico apresentado pela irmã da Ré.

26. Pelo que, para além do facto de não se ter provado que o testamento foi objecto do “Grant of Probate” e da existência de um testamento posterior, também se conclui – e assim se deveria ter reconhecido na sentença recorrida pela nulidade daquele dada incapacidade para testar da “testadora”.

27. Ficou ainda provado que os Autores são membros de uma congregação da Igreja Evangélica, tal como a irmã da Ré, sendo que o testamento foi feito em benefício do Autor, que é filho do pastor da irmã da Ré, o que muito se estranha e não pode deixar de se concluir que tal actuação teve em vista subverter o disposto no artigo 2194.º do Código Civil, que considera inválida a disposição a favor do médico ou enfermeiro que tratar o testador, ou do sacerdote que lhe prestar assistência espiritual, se o testamento for feito durante a doença e o seu autor vier a falecer dela (normatividade igualmente acolhida pela lei inglesa).

28. Não se tendo provado que Elvira Maria ... ... tivesse nacionalidade britânica, não se concluiu, nem se reconheceu na sentença recorrida que o testamento junto pelos Autores nunca seria válido em Portugal.

29. Se atentarmos ao disposto no n.º 2 do artigo 65.º do Código Civil, segundo o qual “ Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada ”, facilmente concluímos que teria sempre de ser cumprida uma das formas do testamento previstas na lei portuguesa (testamento público ou cerrado – cfr. artigos 2224.º, 2225.º e 2226.º do CC), bem como os requisitos constantes do n.º 2 do artigo 108.º do Código do Notariado.

30. Em suma, tudo o supra exposto determina, de forma cabal e plena, a invalidade do testamento em causa e a sua inexistência na ordem jurídica portuguesa e de qualquer Estado de Direito Democrático.

Termos em que, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando -se na íntegra a sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*

II. Factos considerados provados em 1ª instância:

1 - Elvira Maria ... ... faleceu em 11 de Fevereiro de 2008, em 39 Darlington Road, Londres, em Inglaterra, no estado de divorciada de Stephen– Al. A) dos factos assentes.

2 - Não deixou descendentes nem ascendentes - Al. B) dos factos assentes.

3- A Ré Maria ... ... ... é a única irmã da falecida Elvira Maria ... ... – Al. C) dos factos assentes.

4 - À data da sua morte, Elvira Maria ... ... tinha inscrito a seu favor ½ do prédio urbano composto por cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andares e quintal, com a área coberta de 144 m2 e descoberta de 300 m2, sito na Rua ...., n.º , freguesia da Sé Nova, em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo 982 e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 1331/20080922 – Al. D) dos factos assentes.

5 - À data da sua morte, Elvira Maria ... ... tinha inscrita a seu favor a fracção autónoma designada pelas letras “AD”, correspondente ao primeiro andar centro do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua Interior de São Sebastião, n.º s de polícia 56 a 68-A, freguesia de Santo António dos Olivais, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo 6482 e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 2578/19830107-AD – Al. E) dos factos assentes.

6 - No dia 04 de Abril de 2008, no Cartório Notarial de Carlos Manuel da Silva Almeida, sito na Avenida Defensores de Chaves, n.º 51-B, perante o Notário, a Ré Maria ... ... ..., declarou, por escritura pública de habilitação, que:

«Que declara sob sua responsabilidade que, atento o disposto no artigo dois mil e oitenta do Código Civil, incumbe-lhe o cargo de cabeça de casal na herança aberta por óbito de sua irmã, Elvira Maria ... ....

Que, nessa qualidade, declara que no dia onze de Fevereiro de 2008, em Londres, Inglaterra, faleceu a referida Elvira Maria ... ..., no estado de divorciada de Stephen …….., natural da dita freguesia de Coimbra (Sé Nova), concelho de Coimbra, com última residência habitual em trinta e nove, Darlington Road, Londres, em Inglaterra.

Que a falecida não deixou descendentes nem ascendentes vivos e não fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como única e universal herdeira, sua irmã germana: ela outorgante atrás identificada.

Que, assim pela lei não há outras pessoas que, com a indicada herdeira, possam concorrer ou preferir na sucessão à mencionada herança.» - Al F) dos factos assentes.

7 - A Ré foi advertida de que incorria nas penas aplicáveis ao crime de falsidade se, dolosamente e em prejuízo de outrem, tivesse prestado declarações falsas – Al G) dos factos assentes.

8 - Pela apresentação a registo n.º 30 de 22/09/2008, a Ré inscreveu, a seu favor, a aquisição, por sucessão hereditária, dos imóveis descritos em D) e E), para o que entregou o documento comprovativo da regularização de Imposto de Selo e a escritura de habilitação a que se alude em F) – Al. H) dos factos assentes.

9 - A Ré indicou na escritura de habilitação e no registo predial a Rua , Lote N, conjunto três, Casa 25, em Vila da Bicuda, Cascais, como sendo o seu domicílio pessoal – Al. I) dos factos assentes.

10 - Em declaração do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, datada de 26 de Agosto de 2008, lê-se, entre o mais que aqui se dá por integralmente reproduzido, que: «Faço saber que Elvira Maria ... ..., de 39 Darlington Road, West Norwood, London, SE27 OUD, faleceu a 11 de Fevereiro de 2008, domiciliada em Inglaterra e País de Gales.

É ainda dado a conhecer que a última vontade e testamento da falecida (uma cópia é anexada) foi provada e registada no Tribunal de Justiça e que a administração de todos os bens que por lei delega ao representante da falecida foi concedida pelo Tribunal de Justiça nesta data para o executor Andrew Leslie ... («.)»- Al J) dos factos assentes.

11 - No dia 24 de Julho de 2005, Elvira Maria ... ..., declarou no escrito de fls. 18 e 19, com a epígrafe «Este é o último testamento da minha pessoa Elvira Maria ... ...», entre o mais, que:

«-Eu revogo todos os anteriores testamentos da minha pessoa Elvira Maria ... ..., com o endereço 39 Darlington Road, West Norwood, London, SE27 OUD;

-Eu nomeio como executor e depositário do meu testamento e de que qualquer assunto que dele derive (daqui em diante designado por «Meus depositários», o meu amigo Andrew ..., com o endereço , London, SE 19 3NQ;

-eu dou os meus bens móveis conforme definição da Administration of Estates Act 1935, s 55, aos meus depositários;

-os meus depositários devem tomar posse do resto do meu património tanto de modo a vendê-lo como (caso achem adequado e sem conduzir a prejuízo) a reter a totalidade ou nada dele e:

-pagar dívidas, taxas de herança, funeral e despesas de execução e legados; -distribuir o restante (“a minha porção restante”) nas seguintes proporções (atendendo a que se alguma das doações abaixo indicadas falhar esta deve ser adicionada proporcionalmente às doações que não falharem): (A) 65% para o meu amigo Andrew ... ..., com o endereço Rua,... –Mouraria 2500-304-Chão da Parada, Caldas da Rainha, Portugal, se ele sobreviver por 30 dias após o meu falecimento;

(B) 35% para a minha amiga Esther ..., com o endereço na Escócia, se ela sobreviver por 30 dias após o meu falecimento.» - resposta ao art. 1º da base instrutória.

12 – Provado apenas que a R. e o marido tiveram conhecimento do escrito referido em 11, porém não se provou a data em que tal conhecimento ocorreu – resposta ao art. 2º da base instrutória.

13 - Em 31/07/2008 e 03/09/2008, o Autor Andrew, por intermédio do seu advogado, remeteu à Ré cartas, nas quais reafirmou a sua qualidade, bem como da Autora Esther, de herdeiros testamentários de Elvira Maria ... ... – resposta ao art. 4º da base instrutória.

14 - Tais cartas foram endereçadas à Ré para a Rua dos ……, Lote N, conjunto três, Casa 25, em ………., Cascais – resposta ao art. 5º da base instrutória.

15 - As cartas foram devolvidas ao remetente com a indicação dos motivos “desconhecido”, “não atendeu” e “objecto não reclamado” – resposta ao art. 6º da base instrutória.

16 - Em 16/09/2008, foi remetida nova carta à Ré, para o seu domicílio profissional, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, com cópias das cartas a que se alude em 13 e 14 – resposta ao art. 7º da base instrutória.

17 - Carta que foi recebida em 18/09/2008 – resposta ao art. 8º da base instrutória.

18 - Em 21/10/2008, o advogado dos AA. remeteu carta à Ré, que esta recebeu em 22/10/2008, na qual informou que tomara conhecimento dos registos feitos pela Ré, a que se alude em H) e convidou-a a distratar a escritura de habilitação e a cancelar os registos no prazo de dez dias, tendo enviado cópia do escrito a que se alude em 11.º e respectiva tradução da língua inglesa para a língua portuguesa – resposta ao art. 9º da base instrutória.

19 - Os AA. não tiveram resposta da Ré – resposta ao art. 10º da base instrutória.

20 – Provado apenas que o teor da declaração descrita em 11.º foi elaborado e redigido pela Will Drafters, Ld.ª – resposta ao art. 11º da base instrutória.

21 - Foi feito na presença de duas testemunhas, que o assinaram – resposta ao artigo 12º da base instrutória.

22 – Os AA. são membros de uma congregação da área da Igreja Evangélica resposta ao art. 14º da base instrutória.

23 - Elvira Maria ... ... sofreu desde muito nova de problemas do foro psiquiátrico que se agudizaram ao longo do tempo – resposta ao artigo 15º da base instrutória.

24 - E tomava medicamentos anti-depressivos – resposta ao art. 16º da base instrutória.

25 - Tinha fantasias suicidas e mutilava-se várias vezes com facas e cigarros – resposta ao art. 17º da base instrutória.

26 - Elvira Maria ... ... dizia que ouvia vozes – resposta ao artigo 18º da base instrutória.

27 - Esteve internada várias vezes no Mausley e St. Thomas Hospital, ambos hospitais psiquiátricos, em Londres – resposta ao art. 19º da base instrutória.

28 - Elvira Maria ... ... pertenceu a uma congregação da Igreja Evangélica – resposta ao artigo 20º da base instrutória.

O Tribunal a quo considerou ainda não provados os seguintes factos:

a. Art. 3º da base instrutória - Não provado.

b. Aryt. 13º da base instrutória Não se mostra provado que a declaração descrita em 11.º tenha sido objecto do «grant of probate».

c. Art.º 21º da base instrutória - Não se mostra provado que Elvira Maria ... ... tivesse nacionalidade britânica.


*    

III. As questões a decidir resumem-se a saber:

            - se a sentença é nula;

            - se o tribunal poderia considerar um facto (existência de um testamento posterior ao alegado na p.i.) não alegado pelas partes, ou se tal viola o disposto no art. 5º, n.º 1, do CPC;

- se é caso de alterar a matéria de facto provada;

- se o testamento invocado na p.i. é formalmente válido;

- se o aludido testamento enferma de invalidade substancial (questão posta pela apelada em sede de ampliação do objecto do recurso).


*

IV. Do mérito do recurso

         Da putativa nulidade da sentença (art. 615º, n.º 1, al. c), do CPC):

Diz o autor apelante que na alínea J da matéria dada como provada, consta um documento do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, de 26/8/2008, que consta da sentença, que refere “a última vontade e testamento da falecida (uma copia é anexada) foi provada e registada no Tribunal de Justiça …..”. (fls. 380 e seguintes dos autos).

 Acrescenta que tal documento é o “grant of probate” que a sentença considera agora não existir nos autos relativamente ao testamento que é indicado pelo A. como sendo o único, pelo que os fundamentos de facto estão em contradição com a decisão, pelo menos apresenta-se ambígua e obscura.

Vejamos.

Na p.i os autores invocaram a existência de um testamento lavrado em Inglaterra no dia 24/07/2005, por força do qual foram instituídos os herdeiros de Elvira Maria ... ..., falecida a 11/02/2008, irmã da ré.

Juntaram cópia e tradução do mesmo (fls. 17 a 23).

Na contestação a ré alegou, além do mais, que “ainda que se aplicasse a lei inglesa, tal testamento só seria válido se tivesse sido objecto do chamado “Grant of probate” (art. 62º da contestação), ou seja, de um acto oficial de homologação e aprovação (art. 63º da contestação).

Entre os factos assentes, sob a al. J), foi seleccionado o seguinte facto:

Em declaração do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, datada de 26 de Agosto de 2008, lê-se, entre o mais que aqui se dá por integralmente reproduzido, que: «Faço saber que Elvira Maria ... ..., de 39 London, SE27 OUD, faleceu a 11 de Fevereiro de 2008, domiciliada em Inglaterra e País de Gales.

É ainda dado a conhecer que a última vontade e testamento da falecida (uma cópia é anexada) foi provada e registada no Tribunal de Justiça e que a administração de todos os bens que por lei delega ao representante da falecida foi concedida pelo Tribunal de Justiça nesta data para o executor Andrew ... («.)»

E sob o art. 13º da base instrutória perguntava-se se o testamento datado de 24 de Julho de 2005 foi objecto do “grant of probate”, acto oficial de homologação e aprovação de testamento, em Inglaterra.

Esse facto foi considerado não provado em julgamento.

E na motivação da matéria de facto exarou-se que:

“Dos documentos juntos aos autos resulta que o escrito referido em 1 dos factos assentes, datado de 24.07.2005, junto pelos AA. em cópia simples, não foi o último documento designado por “testamento” da referida Elvira ... ..., uma vez que a mesma elaborou documento idêntico em 07.08.2005 (cfr. fls. 1089 a 1092), junto pela R., como cópia certificada, uma vez que está selado com selo branco a fls. 1089). Importa referir que não se trata do mesmo documento, uma vez que as datas não coincidem e o primeiro teve como testemunhas S A e Je o segundo teve como testemunhas a mesma J eP.

Apesar de instados a fazê-lo, pelo Tribunal (mais de uma vez), os AA. não demonstraram nos autos que o documento datado de 24.07.2005 foi objecto do «grant of probate», sendo que a R. demonstrou que o documento de 07.08.2005 foi objecto de “grant of probate», uma vez que o documento foi remetido pelo “Probate Officer” – cfr. fls. 1092”.

Em face do teor dos descritos actos processuais, é a nosso ver manifesto que se não verifica a invocada contradição entre a resposta ao art. 13º da base instrutória e o facto considerado assente sob a alínea J).

Com efeito, sob a al. J) não se especifica se a declaração em causa respeita ao testamento datado de 24/07/2005 ou a outro.

Por essa razão, como salienta a apelada nas suas contra-alegações “o tribunal apenas deu como provado que existe uma declaração do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, datada de 26 de Agosto de 2008, mas não que a mesma se traduz no “Grant of Probate” do documento junto aos autos pelos Autores como “testamento” e essa factualidade foi levada à base instrutória (sob o artigo 13º), obtendo a resposta de não provado.

Assim, as considerações exaradas na fundamentação da sentença mostram-se conformes com a decisão tomada (que julgou improcedente a pretensão deduzida pelos autores), sendo claras e coerentes.

Desatende-se, por isso, a arguida nulidade.

Da putativa nulidade da sentença (art. 615º, n.º 1, al. d) do CPC)/Da alegada violação do art. 607º, n.ºs 4 e 5 do CPC:

Diz o apelante que, estando dado como provado a existência do “grant of probate”, não se pode aplicar o artigo 2223º do CC, uma vez que foi observada uma forma solene na sua feitura e aprovação.

Refere também que a sentença, para fundar a sua decisão, vem basear-se num facto que não consta dos factos assentes ao dizer: “Elvira ... ..., uma vez que a mesma elaborou documento idêntico em 7.8.2005 (cfr. fls. 1089 a1092 dos autos), junto pela R. como copia certificada, uma vez que está selado com selo branco a fls. 1089. Importa referir que não se trata do mesmo documento, uma vez que as datas não coincidem e que o primeiro teve como testemunhas S A e Je o segundo teve como testemunhas a mesma Je eP.”

Acrescenta que esse facto novo - que existe um outro testamento feito a 7/8/2005 -, não foi alegado (apesar da ré conhecer o mesmo desde Outubro de 2008), quesitado nem dado como provado, pelo que o tribunal “a quo” não poderia tomar conhecimento do mesmo, pelo que a sentença é nula, nos termos do artigo 615º, 1, d), segunda parte do C.P.C., e viola ainda o artigo 607º, 4 e 5 do CPC.  

Contrapõe a apelada que o tribunal, na sua decisão, em nada se afastou da questão suscitada, desde logo, pela ora Recorrida, na sua contestação, e na qual se centrou o litígio: a aferição da validade do documento junto pelo ora Recorrente como “testamento”, o que se traduz na necessidade de esse documento ter sido objecto do “Grant of Probate” e não o facto de o documento junto como “testamento” ter sido elaborado e redigido perante uma alegada entidade habilitada para tal (a Will Drafters & Lda.), sendo que a junção do testamento datado de 7/8/2005 foi ordenada pelo tribunal, através do qual se demonstrou a invalidade do documento junto pelos Autores.

Na motivação exarada na sentença sobre a matéria de facto, o tribunal a quo refere que:

 “Dos documentos juntos aos autos resulta que o escrito referido em 1 dos factos assentes, datado de 24.07.2005, junto pelos AA. em cópia simples, não foi o último documento designado por “testamento” da referida Elvira ... ..., uma vez que a mesma elaborou documento idêntico em 07.08.2005 (cfr. fls. 1089 a 1092), junto pela R., como cópia certificada, uma vez que está selado com selo branco a fls. 1089)”.

E na fundamentação de direito acrescenta que:

Dos factos dados como provados resulta desde logo que o documento apresentado pelos AA. como sendo o último testamento de Elvira Maria ... ..., não o é, porque a R. provou, através de junção aos autos, que a sua irmã fez um outro testamento, em data posterior à dos autos, que a ser válido, questão que não se põe nestes autos, tornou inválido o anterior”.

E concluiu que:

(…)”a R. demonstrou que o documento junto pelos AA. não era o último testamento de Elvira Maria ... ..., uma vez que demonstrou que esta fez (pelo menos) um testamento posterior, que tornou inválido aquele que foi junto pelos AA. e. assim sendo, têm de improceder, na íntegra, os pedidos formulados pelos AA..”

Dispõe o art. 615º, n.º 1, al. d), última parte, que é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

E estatui o art. 5º, nºs. 1 e 2, do CPC que:

1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

De sua vez prescreve o art. 607º, n.ºs 4 e 5, do CPC:

4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

Da conjugação destas normas decorre que o tribunal não pode conhecer de factos essenciais não invocados pelas partes.

Ora, a circunstância do testamento junto com a p.i não constituir a última vontade da falecida Elvira Maria ... ..., por esta ter posteriormente outorgado um outro testamento, constitui, em face da pretensão formulada pelos autores na p.i., matéria de excepção, consubstanciando um facto extintivo do direito daqueles fundado em testamento anterior.

Tendo a ré na contestação organizado a sua defesa mediante a invocação da invalidade formal e substancial do testamento datado de 24/07/2005, aquele facto (outorga de um novo testamento a 7/08/2005), constitui um facto novo essencial, do qual o tribunal não se poderia servir para fundamentar a improcedência dos pedidos formulados na p.i., sem que tivesse sido deduzido articulado superveniente (art. 588º, do CPC).

Efectivamente, tribunal a quo conheceu de matéria de excepção não alegada por qualquer das partes (e constituiu um dos fundamentos de facto para a improcedência da acção), máxime pela ré, e que não é de conhecimento oficioso.

Porém, o vício em que a sentença incorreu – ao tomar conhecimento de um facto novo essencial à defesa da ré e extrair do mesmo ilações a nível jurídico - não constituiu o único fundamento que determinou a improcedência da acção.

Na verdade, na sentença, o tribunal a quo exarou também que os AA. não demonstraram que o testamento junto com a p.i., datado de 24/07/2005, “foi objecto do “grant of probate”, pelo que, desde logo, não preenchia todos os requisitos previstos no artº 2223º do Cód. Civil, não podendo produzir efeitos em Portugal”.

Consequentemente, o vício cometido não determina a nulidade da sentença, pois que foi apenas um dos fundamentos nela esgrimidos e que conduziu à improcedência da acção, ao considerar um facto essencial não alegado pelas partes, em violação do estatuído no art. 5º, n.º 1, do CPC.

Esse facto não poderá, todavia, ser considerado na presente acção para efeitos de revogação do testamento outorgado dia 24/07/2005.

Das demais questões suscitadas na apelação:

Em sede de impugnação da matéria de facto, propugna o apelante que:

- se considere provado que a falecida Elvira ... residia há muitos anos na Inglaterra, nomeadamente que aí residia em 2005, por esse facto não ter sido contestado por nenhuma das partes e além do mais derivar dos depoimentos de diversas testemunhas, que indica, e dos documentos juntos aos autos, nomeadamente o assento de óbito junto à p.i. como documento 1, o testamento feito em Inglaterra e os relatórios médicos do ano de 2005;

- seja alterada a resposta ao quesito 15º, considerando-se não provado que o estado de saúde de Elvira ... se agudizou ao longo do tempo, passando apenas a constar que Elvira ... sofreu desde muito nova de problemas psiquiátricos;

- seja alterada a resposta à matéria do quesito 16º, dando-se como não provada, ou, pelo menos, que enquanto Elvira ... esteve internada tomou os medicamentos que constam dos respectivos relatórios médicos.

E em sede de ampliação do objecto do recurso, a apelada solicita (em via subsidiária) que:

- se considere que o testamento junto pelos Autores seria sempre inválido dada incapacidade para testar da “testadora”, atendendo ao quadro psiquiátrico apresentado pela irmã da Ré;

- se considere que os Autores são membros de uma congregação da Igreja Evangélica, tal como a irmã da Ré, sendo que o testamento foi feito em benefício do Autor, que é filho do pastor da irmã da Ré, o que teve em vista subverter o disposto no artigo 2194.º do Código Civil, sendo, por isso, inválida a disposição.

          Vejamos.

No que toca à impugnação da matéria de facto, mostra-se efectivamente assente por acordo das partes expresso nos articulados que a falecida Elvira ... ... residia em Inglaterra (vide factos alegados nos arts. 8º e 18º da p.i. e não impugnados pela ré, a qual, como resulta da escritura de habilitação de herdeiros, reconheceu que a sua irmã teve a sua última residência em Inglaterra).

Seja como for, para a decisão do recurso não se mostra necessário conhecer da impugnação da matéria de facto.

Na verdade:

Apurou-se que Elvira Maria ... ..., irmã da ré/apelada, no dia 24 de Julho de 2005, Elvira Maria ... ..., outorgou em Londres, Inglaterra, o testamento escrito que constitui fls. 18 e 19 dos autos, traduzido a fls. 411 e 412, com a epígrafe «Este é o último testamento da minha pessoa Elvira Maria ... ...».

Nesse testamento consta a seguinte declaração:

«-Eu revogo todos os anteriores testamentos da minha pessoa Elvira Maria ... ..., com o endereço , London, SE27 OUD;

-Eu nomeio como executor e depositário do meu testamento e de que qualquer assunto que dele derive (daqui em diante designado por «Meus depositários», o meu amigo Andrew ..., com o endereço London, SE 19 3NQ;

-eu dou os meus bens móveis conforme definição da Administration of Estates Act 1935, s 55, aos meus depositários;

-os meus depositários devem tomar posse do resto do meu património tanto de modo a vendê-lo como (caso achem adequado e sem conduzir a prejuízo) a reter a totalidade ou nada dele e:

-pagar dívidas, taxas de herança, funeral e despesas de execução e legados; -distribuir o restante (“a minha porção restante”) nas seguintes proporções (atendendo a que se alguma das doações abaixo indicadas falhar esta deve ser adicionada proporcionalmente às doações que não falharem):

(A) 65% para o meu amigo Andrew ... ..., com o endereço Rua Central, 35 –Mouraria 2500-304-Chão da Parada, Caldas da Rainha, Portugal, se ele sobreviver por 30 dias após o meu falecimento;

(B) 35% para a minha amiga Esther ..., com o endereço Kilmicgael Cottage, 59,Ballifeary Road, Inverness, IV35 PG, na Escócia, se ela sobreviver por 30 dias após o meu falecimento.».

Esta declaração foi elaborada e redigida pela Will Drafters, Ld.ª e foi feita na presença de duas testemunhas, que a assinaram.

A referida Elvira ... faleceu em 11 de Fevereiro de 2008, em 39 Darlington Road, Londres, em Inglaterra, no estado de divorciada de Stephen John Dockerill.

Não deixou descendentes nem ascendentes, sendo a Ré Maria ... ... ... a sua única irmã.

     A testadora Elvira ... possuía a nacionalidade portuguesa, como se infere do assento de nascimento junto a fls. 1571 dos autos, pois que nasceu em território português, não constando a menção de nacionalidade estrangeira dos seus progenitores – vide arts. 1º e 21º da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro).

   Exarou-se na sentença que o testamento dos autos não preenche os requisitos da lei portuguesa, nem mesmo para ser considerado um testamento internacional tal como a lei portuguesa o descreve, uma vez que apesar de o documento em causa ter sido assinado por Elvira Maria ... ..., na presença de duas testemunhas, não foi o mesmo elaborado por notário ou por agente consular – cfr. artºs 2179º e seguintes do Cód. Civil.

E acrescenta-se que:

No entanto, não se exclui que um cidadão português possa fazer um testamento em país estrangeiro que seja válido em Portugal. Porém, como resulta do disposto no artº2223º do Cód. Civil, “O testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura e aprovação.”.

A lei inglesa exige que o testamento seja assinado pelo(a) testador(a) , na presença de duas testemunhas e que ser objecto do”grant of probate” .

No caso dos autos o documento junto pelos AA. foi assinado pela “testadora”, cidadã portuguesa, na presença de duas testemunha, porém os AA. não demonstraram que foi objecto do “grant of probate”, pelo que, desde logo, não preenchia todos os requisitos previstos no artº 2223º do Cód. Civil, não podendo produzir efeitos em Portugal. Acresce que, ainda que preenchesse todos os requisitos exigidos pelo mesmo artº 2223º do Cód. Civil, a R. demonstrou que o documento junto pelos AA. não era o último testamento de Elvira Maria ... ..., uma vez que demonstrou que esta fez (pelo menos) um testamento posterior, que tornou inválido aquele que foi junto pelos AA. e. assim sendo, têm de improceder, na íntegra, os pedidos formulados pelos AA..”

            Contrapõe o apelante que na alínea J da matéria dada como provada, consta um documento do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, de 26/8/2008, que consta da sentença, que refere “a última vontade e testamento da falecida (uma copia é anexada) foi provada e registada no Tribunal de Justiça …..”. (fls. 380 e seguintes dos autos).

Tal documento é o “grant of probate” que a sentença considera não existir nos autos relativamente ao testamento que é indicado pelo A. como sendo o único.

Assim, o testamento foi elaborado e redigido, por escrito, perante entidade para tal habilitada (Will Drafters & Lda) e atestado por duas testemunhas, e aprovado pelo Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester.

Tratando-se de um testamento feito por português em país estrangeiro, encontramo-nos perante uma situação jurídico-privada internacional, que põe em contacto duas ordens jurídicas diversas – a portuguesa e a inglesa –, havendo que aplicar as normas de conflitos de leis, de acordo com os princípios do Direito Internacional Privado (DIP) português, a fim de indagar qual a lei aplicável para decidir, desde logo, a questão da validade formal do testamento datado de 24/07/2005 feito por Elvira ... (falecida irmã da ré), em Inglaterra.

Inexistindo qualquer convenção internacional em contrário, vinculativa da República Portuguesa, haverá que ter presente que, de acordo com o estatuído nos arts. 25.º e 62.º do CC, a lei aplicável à sucessão por morte é a lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, sendo essa lei pessoal, segundo o art. 31.º, n.º 1, do CC, a lei da nacionalidade do indivíduo.

Certo é que, no caso em análise, o que está primacialmente em causa é uma questão atinente à forma do testamento outorgado na Inglaterra.

Nesta matéria rege o disposto no art. 65º do CC, onde se prescreve que as disposições por morte, bem como a sua revogação ou modificação, serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto for celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local (n.º 1); se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada (n.º 2).

A lei prevê, neste preceito legal, uma pluralidade de leis substantivas potencialmente aplicáveis à forma das disposições por morte, incluindo aquelas que são objecto de testamento, sob a motivação de favorecimento da sua validade formal. O limite à referida pluralidade ocorre no caso de a lei pessoal do autor da herança exigir, em relação às disposições mortis causa, ainda que elas ocorram no estrangeiro, sob pena de nulidade, determinada forma.

Acerca deste normativo, Marques dos Santos (Parecer publicado na CJ do STJ, Ano III – Tomo II, pág. 7), escreveu:

Em matéria de forma das disposições por morte, o artigo 65.º, n.º 1, do Código Civil Português estabelece assim uma conexão alternativa, nos termos da qual o testamento será formalmente válido se corresponder às prescrições de uma qualquer das quatro leis aí indicadas:

a) lei do lugar onde o acto for celebrado;

b) lei pessoal do autor da herança no momento da declaração;

c) lei pessoal do autor da herança no momento da morte;

 d) lei para que remeta a norma de conflitos da lei local, isto é, da lei indicada em a), se, por hipótese, ela se não considerar competente.

Há aqui, consabidamente uma nítida preocupação de justiça material, uma ideia de favor negotii (aqui favor testamenti), na acepção de favor validitatis, tendente a favorecer a validade formal das disposições por morte, segundo o princípio ut res magis valeant quam pereant”.

Quanto à forma exigida, a lei portuguesa estabelece, por um lado, que o testamento é público ou cerrado, o primeiro escrito pelo notário no seu livro de notas, e o último o escrito e assinado pelo testador ou por outra pessoa a seu rogo (ou escrito por outra pessoa a rogo do testador e por este assinado), e, por outro, que o testamento cerrado deve ser aprovado por notário nos termos da lei do notariado, sob pena de nulidade – arts. 2204 a 2206.º, do CC.

Reportando-nos ao caso dos autos, constatamos que nenhuma das formas comuns de testamento previstas pela lei portuguesa foi observada.

Por conseguinte, à luz do art. 65.º, n.º 1, do CC, que remete, pois, para a lei portuguesa, o testamento analisado não é válido, quanto à forma, por não corresponder a uma das modalidades formais de celebração previstas no direito português.

Ainda que, por força do art. 65º, n.º 1, do CC fosse aplicável a lei do lugar onde o testamento foi celebrado (a lei inglesa), o certo é que esta exige uma forma de aprovação do testamento - o grant of probate -, sendo a entidade competente para tal aprovação um High Court - vide informação prestada a fls. 574 pelo Cônsul Geral de Portugal em Londres, estando as partes de acordo quanto a tal, conforme expressaram na contestação e réplica.

No dizer do Ac STJ de 18/03/75, relatado pelo Cons. Acácio Carvalho, acessível in www.dgsi.pt., o "probate" integra a aprovação oficial desse acto, e, consequentemente, a verificação de que a mesma foi feita pela pessoa a que respeita e isto porque a lei inglesa não exige formalidades especiais para a feitura do testamento.

Vejamos se no caso foi observada essa formalidade.

Na p.i os autores invocaram a existência de um testamento lavrado em Inglaterra no dia 24/07/2005, por força do qual foram instituídos os herdeiros de Elvira Maria ... ..., falecida a 11/02/2008, irmã da ré.

Na contestação a ré alegou, além do mais, que “ainda que se aplicasse a lei inglesa, tal testamento só seria válido se tivesse sido objecto do chamado “Grant of probate” (art. 62º da contestação), ou seja, de um acto oficial de homologação e aprovação (art. 63º da contestação).

Na réplica os autores alegaram que o testamento foi elaborado e escrito pela “Will Drafters, Lda”, entidade com competência para a elaboração de testamentos na Inglaterra, à semelhança do que a lei portuguesa prescreve relativamente aos notários (arts. 17º e 28º da réplica) e que o testamento foi objecto do chamado “grant of probate” e que já solicitaram esse acto oficial de homologação e aprovação, protestando juntá-lo aos autos logo que chegue ao seu poder (arts. 29º e 30º da réplica).

Na sequência do despacho de fls. 376 os autores foram notificados para em 10 dias juntarem aos autos o original do testamento e cópia certificada da tradução do mesmo.

Os autores vieram então juntar aos autos as cópias que constituem fls. 380/381, alegando tratar-se do “grant of probate” respeitante ao testamento junto com a p.i., tendo a fls. 405/406 junto a respectiva tradução, bem como do testamento junto com a p.i (fls. 411/413).

Na sequência destes desenvolvimentos processuais, a 3/03/2011, após a prolação do despacho saneador, foram seleccionados os factos assentes e a base instrutória.

Entre os factos assentes, sob a al. J), foi seleccionado o seguinte facto:

Em declaração do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, datada de 26 de Agosto de 2008, lê-se, entre o mais que aqui se dá por integralmente reproduzido, que: «Faço saber que Elvira Maria ... ..., de 39 Darlington Road, West Norwood, London, SE27 OUD, faleceu a 11 de Fevereiro de 2008, domiciliada em Inglaterra e País de Gales.

É ainda dado a conhecer que a última vontade e testamento da falecida (uma cópia é anexada) foi provada e registada no Tribunal de Justiça e que a administração de todos os bens que por lei delega ao representante da falecida foi concedida pelo Tribunal de Justiça nesta data para o executor Andrew Leslie ... («.)»

E sob o art. 13º da base instrutória perguntava-se se o testamento datado de 24 de Julho de 2005 foi objecto do “grant of probate”, acto oficial de homologação e aprovação de testamento, em Inglaterra.

Esse facto foi considerado não provado em julgamento.

E na motivação da matéria de facto exarou-se que:

“Dos documentos juntos aos autos resulta que o escrito referido em 1 dos factos assentes, datado de 24.07.2005, junto pelos AA. em cópia simples, não foi o último documento designado por “testamento” da referida Elvira ... ..., uma vez que a mesma elaborou documento idêntico em 07.08.2005 (cfr. fls. 1089 a 1092), junto pela R., como cópia certificada, uma vez que está selado com selo branco a fls. 1089). Importa referir que não se trata do mesmo documento, uma vez que as datas não coincidem e o primeiro teve como testemunhas S A e Je o segundo teve como testemunhas a mesma J eP.

Apesar de instados a fazê-lo, pelo Tribunal (mais de uma vez), os AA. não demonstraram nos autos que o documento datado de 24.07.2005 foi objecto do «grant of probate», sendo que a R. demonstrou que o documento de 07.08.2005 foi objecto de “grant of probate», uma vez que o documento foi remetido pelo “Probate Officer” – cfr. fls. 1092”.

Do que se deixa dito decorre que sob a al. J) não se especifica se a declaração nela vertida respeita ao testamento datado de 24/07/2005 ou a outro.

Por essa razão, como salienta a apelada nas suas contra-alegações “o tribunal apenas deu como provado que existe uma declaração do Tribunal de Justiça – Cartório da Comarca de Winchester, datada de 26 de Agosto de 2008, mas não que a mesma se traduz no “Grant of Probate” do documento junto aos autos pelos Autores como “testamento” e essa factualidade foi levada à base instrutória (sob o artigo 13º), obtendo a resposta de não provado.

Acresce que a declaração referenciada em J) não contém o selo branco da entidade certificante, ao contrário da junta a fls. 1089/1091, relativamente ao testamento datado de 7/08/2005.

E analisando o “grant of probate” que constitui fls. 1089, relativo a este último testamento, verifica-se que o mesmo faz referência ao “SMK/RM/2432/...”, sendo essa referência idêntica à que consta de fls. 405/408/409 junta pelos autores, o que inculca a ideia de que a aprovação não se reporta ao testamento de 24/07/2005.

Assim, não se provou que o testamento invocado na p.i. tenha sido aprovado pelo tribunal inglês.

Ademais, dispõe o art. 2223º do CC que o testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido respeitada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.

E esse carácter solene, que a lei exige do acto testamentário, traduz-se na intervenção da entidade dotada de fé pública, seja na elaboração da disposição de última vontade, seja na aprovação por mera delibação das disposições lavradas pelo declarante”- cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado vol. VI, Coimbra Editora, pag. 356.

Trata-se de uma exigência que cabe no âmbito do n.º 2 do art. 65º do C. Civil – cfr. Ac. STJ de 9/01/1996 (relator Cons. Torres Paulo, proc. nº. 087703, acessível em www.dgsi.pt).

É, por conseguinte, a intervenção do oficial público com funções notariais que constitui a “marca de água” de autenticidade e solenidade exigida nos arts. 65.º e 2223.º do CC – vide Ac. STJ de 18 de Junho de 2013, Gregório Silva Jesus (Relator)

Trata-se de garantir que a formação da vontade do autor da herança seja correcta e fidedigna.

Ora, essa solenidade não se mostra provada nos autos.

Com efeito, se, por um lado, está em causa um testamento assinado pela própria testadora, por outro, não foi o mesmo aprovado por oficial público, não se tendo demonstrado que a testadora o tenha apresentado junto do tribunal para aprovação.

Existe também, fora das formas comuns de testamentos, o testamento internacional.

Porém, este tipo de testamento terá que ser elaborado, para ser válido, conforme as formalidades prescritas nos arts. 2º a 5º da Lei Uniforme Sobre a Forma de um Testamento Internacional (art. 1º desta Lei), introduzida na ordem interna através do Dec-Lei nº 252/75 de 23/5.

Ora, o testamento em causa nos autos também não pode valer como testamento internacional, por falta de intervenção de um notário ou de um agente consular português em serviço no estrangeiro (vide art. 4º), elemento que o documento dos autos, claramente, não possui.

Sendo o testamento inválido, em face desta conclusão fica prejudicada a apreciação da impugnação da matéria de facto suscitada pelo apelante e bem assim a ampliação do objecto do recurso.

Improcede assim a apelação.

      

1. Julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida;

2. Custas devidas nesta Relação pelo apelante;

3. Notifique.

Lisboa, 9 de Maio de 2017


(Manuel Ribeiro Marques - Relator)

(Pedro Brighton - 1º Adjunto)

(Teresa Sousa Henriques – 2ª Adjunta)