Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
638/14.9SGLSB.L1-5
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
AUTO DE NOTÍCIA
FÉ EM JUÍZO
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/31/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: “O auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).
Tem força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que presenciou a infracção e a descreveu no auto, podendo esse auto fundamentar a sentença.
Sem prejuízo da regra geral da liberdade de convicção, não deve ser descartada , por valer como prova muito relevante e válida e a ponderar pelo julgador, em julgamento por crime de condução sob o efeito de alcoolemia, faltando ou silenciando-se o arguido e não havendo outras testemunhas para além do agente autuante, as declarações em que este confirme o conteúdo e elaboração do respectivo auto, mas que, pelo decurso do tempo não seja já capaz de precisar a situação de facto naquele descrita ou mesmo que dela se recorde vagamente.

(Sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – 5ª SECÇÃO (PENAL)


I–RELATÓRIO:


1.1– Por sentença oral proferida em procº especial abreviado, a arguida idª nos autos, A. foi absolvida da imputação de autoria de crime de condução de veículo em estado de embriaguez pelas razões constantes da gravação em audiência que aqui se dão por reproduzidas.

1.2– Desta decisão recorreu o Ministério Público dizendo em conclusões da motivação apresentada:
“(…)
1- A arguida A. foi acusada nestes autos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelos arts. 69.° n° 1 e 292.° n° 1 do CP.
2- Na douta sentença recorrida foi a arguida absolvida do referido crime por o agente não se ter recordado dos factos para além do constante do auto de notícia pelo que não foi dada como provada a identificação do agente dos factos e bem ainda que o agente dos factos tenha sido a arguida acusada tendo-se considerado na decisão recorrida que " não pode o tribunal, apenas com este depoimento e com o auto considerar como provados os factos constantes da acusação."
3- O Ministério Público não se conforma com tal decisão.
4- Não se põe em causa que o agente tenha dito que nada se recordava para além do que leu no auto.
5- O que se põe em causa é que tal impeça de dar como provado a identidade da autora dos factos.
6- Do auto de notícia consta que a identificação da arguida foi documental, constando do mesmo que a arguida se fazia acompanhar de um título de residência e de uma carta de condução, ambos documentos com fotografia, sendo que este auto foi mesmo assinado pela arguida.
7- A arguida, notificada para comparecer nos serviços do Ministério Público 1/08/2014, veio efectivamente a comparecer naqueles serviços onde novamente se identificou e veio a aceitar a aplicação do instituto de suspensão provisória do processo (posteriormente revogada) e veio posteriormente aos autos, indicar nova morada.
8- O auto de notícia tem valor intrínseco, de facto nos termos do artigo 243.° do Código de Processo Penal, sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia.
9- O documento autêntico é o descrito n° 2 do art. 363.° do Cód. Civil, assim, documentos autênticos são "os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares. ", o valor de documento autêntico resulta do disposto no artigo 169.° do Código de Processo Penal no qual se dispõe que se consideram "provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. "
10- Assim, não tendo sido posto em causa o auto de notícia, nem pela arguida nem por nenhum outro elemento dos autos, verificando-se, aliás que o teor do mesmo é suportado pelos demais elementos e intervenções processuais da arguida constantes dos autos, e obedecendo o mesmo aos requisitos legais, deveria este ter sido valorado e ter sido dado como provada a identificação da arguida como agente dos factos.
11- Neste sentido, veja-se o Ac. do TRL datado de e proferido nos autos n° 241/08.2GGLSB.L1-9 constante do site www.dgsi.pt, em situação em tudo semelhante à dos autos, Ac. do TRE proferido em 20-12-2012 nos autos n° 721/07.7PBEVR.E1.
12- Assim, entende-se que, deverá o auto de notícia ser valorado como meio de prova nos termos do disposto nos artigos 243.° e 169.° do CPP e em conformidade deverá ser a decisão recorrida substituída por outra na qual se dê como provado que a arguida, no dia, hora e local indicado no auto conduzia o veículo aí indicado e que a mesma apresentava a taxa de álcool indicada no talão também junto aos autos, e em consequência condene a mesma pelo crime pelo qual vem acusada.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal concedendo provimento ao pressente recurso e, em consequência, alterando a douta decisão recorrida.

1.3– Em resposta nada disse a arguida.
1.4– Admitido o recurso e remetido a esta Relação, o MºPº emitiu parecer no sentido de  acompanhar as razões do recurso do seu par.  
1.5– Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora decidir.

II–CONHECENDO

2.1– O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo  do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP  [1].
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[2].
Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis  no âmbito dos poderes desta Relação.

2.2– Está em  discussão para apreciação , em síntese,  a seguinte questão:
Valor do auto de notícia elaborado por agente de autoridade testemunha em julgamento e que,  confirmando-o, não se recordava claramente da situação concreta em si mesma.

2.3–A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

2.3.1– Numa breve síntese do que se passou nos autos o MP recorrente apontou assim as razões da sua discordância (e que de seguida transcrevemos para maior facilidade de compreensão expositiva ):
A arguida A. foi acusada nestes autos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelos arts. 69.° n° 1 e 292.° n° 1 do CP.
Na douta sentença recorrida foi a arguida absolvida do referido crime por o agente autuante não se ter recordado dos factos para além do constante do auto de notícia.
A testemunha afirmou não se lembrar de nada para além do que consta no auto de notícia o qual confirmou ter elaborado, nomeadamente, quanto à identificação da arguida.
Assim, não foi dada como provada a identificação do agente dos factos e bem ainda que o agente dos factos tenha sido a arguida acusada.
Na douta sentença recorrida (proferida verbalmente e constante da gravação da plataforma "citius") o tribunal consignou que "para dar como provados e não provados estes factos o tribunal teve em atenção a prova, ou a falta de prova, produzida nestes autos, ou seja, a arguida não compareceu em audiência de julgamento [...] portanto não tendo sido ouvida em audiência a prova resultou do depoimento de uma testemunha, agente policial, que terá procedido à fiscalização e detenção da arguida em exercício de funções e que, desde o princípio até ao fim do seu depoimento, sendo um depoimento prestado de uma forma imparcial e séria, disse que não se lembrava da situação concreta dos autos, que tinha visto o auto inicialmente e que não se tinha lembrado da situação concreta, relatou em audiência o que leu no auto, não se lembrava de qualquer outra circunstância para além do que consta no auto [...] disse mesmo não ter a certeza de nada. E portanto [...] resulta que não pode o tribunal, apenas com este depoimento e com o auto considerar como provados os factos constantes da acusação." (minutos 7 e seguintes da ultima gravação constante do "citius".
- Na douta sentença recorrida dispõe-se que (a partir dos 6 minutos e 30 segundos até aos 7 minutos e 18 segundos da última gravação constante da plataforma "citius") "O Tribunal dá como provado: [...]o teor do talão do teste de fls. 4, o teor do qual aqui se dá por integralmente reproduzido, de onde resulta que pessoa, de identidade não concretamente apurada, no dia 01-08-2014 efectuou um teste de pesquisa de álcool no sangue tendo resultado apurado um taxa de álcool no sangue de 1,54 g/l;
- o teor do certificado de verificação de fls. 5 dos autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido,
- bem como o teor da notificação para o exercício do direito da contraprova, de fls. 9 dos autos, assinado por pessoa de identidade não concretamente apurada e de onde resulta, para além das demais notificações, que terá prescindido do exercício do direito de requerer a contraprova."
Deu-se ainda como provado o teor do CRC da arguida junto aos autos.
Quanto aos factos não provados resulta da sentença (entre os 7 minutos e 48 segundos e os 7 minutos e 58 segundos da ultima gravação constate do "citius") "De relevante não resultaram provados os demais factos, quase todos os resultantes de fls. 54 e 55, da acusação."
Não se põe em causa que o agente tenha dito que nada se recordava para além do que leu no auto, o que resulta abundantemente claro do depoimento do mesmo, na primeira gravação da plataforma "citius", a partir dos 5 minutos e 50 segundos.
Efectivamente, a referida testemunha, após ter prestado depoimento esclarecendo o que sabia e retirava dos autos e tendo sido perguntado à mesma se para além do que lera tinha alguma lembrança da situação concreta, esta referiu: "Não tenho a certeza. Li o auto. Vi que fui notificado. Não me recordava do que era o expediente. Reli o auto (entre os 9 minutos e 4 segundos e os 9 minutos e 20 segundos da referida gravação).
O que se põe em causa é que tal impeça de dar como provado a identidade da autora dos factos.
Ora do auto de notícia, que aqui se dá por integralmente reproduzido, constam os factos que o agente autuante presenciou, realizou e que verteu no mesmo.
Nesse mesmo auto está inscrito que a identificação da arguida foi documental e que a arguida se fazia acompanhar de um título de residência e de uma carta de condução, ambos documentos com fotografia.
Auto de notícia, este, que foi, aliás, assinado também pela arguida como resulta de fls. 2 dos presentes autos.
Seguidamente resulta ainda dos autos que a arguida, notificada para comparecer nos serviços do Ministério Público 1-08-2014, veio efectivamente a comparecer naqueles serviços onde, novamente, se identificou e veio a aceitar a aplicação do instituto de suspensão provisória do processo, posteriormente revogada (fls. 19).
A mesma veio novamente aos autos, indicar nova morada a fls. 28.
O que aqui se põe em causa é o valor que seu deu, ou antes não deu, ao auto de notícia. De facto nos termos do artigo 243.° do Código de Processo Penal que dispõe sobre o auto de notícia resulta que: "1-Sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem: a) Os factos que constituem o crime; b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; e c) Tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos. 2 -O auto de notícia é assinado pela entidade que o levantou e pela que o mandou levantar. 3-O auto de notícia é obrigatoriamente remetido ao Ministério Público no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias, e vale como denúncia. "
O artigo 99.° do Código de Processo Penal sobre os autos dispõe: "1- O auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele. 2- O auto respeitante ao debate instrutório e à audiência denomina-se acta e rege-se complementarmente pelas disposições legais que este Código lhe manda aplicar. 3- O auto contém, além dos requisitos previstos para os actos escritos, menção dos elementos seguintes: a) Identificação das pessoas que intervieram no acto; b) Causas, se conhecidas, da ausência das pessoas cuja intervenção no acto estava prevista; c) Descrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram, incluindo, quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual, à consignação do início e termo de cada declaração, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência; d) Qualquer ocorrência relevante para apreciação da prova ou da regularidade do acto. 4- É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 169.°
Já o artigo 169.° do Código de Processo Penal dispõe que: "Consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. "
O documento autêntico é o descrito n° 2 doart. 363.° do Cód.Civil , assim, documentos autênticos são "os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares. "

Assim, considera-se que foi erradamente apreciado o valor do auto de notícia nestes autos.

Este auto de notícia devia ter sido tomado em consideração, fazendo prova do que foi presenciado pelo agente de autoridade, a saber, que:

- no dia 01-08-2014 pelas 3h25, na Praça da Estrela, em Lisboa, a arguida conduzia o veículo automóvel com a matrícula XX-XX-XX.
- à arguida foi então efectuado o teste de alcoolémia por ar expirado, através do aparelho Drager Alcootest 7110 MKIIIP, AREF-0079, aprovado pelo IPQ e autorizado pela DGV, verificado e calibrado, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue de 1,54 g/l a que corresponde, após redução legal, a pelo menos 1,46 g/l.
-   ao actuar da forma descrita, a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente
[...].
De facto, o auto de notícia não foi posto em crise pela arguida nem por qualquer outro dos elementos constantes dos autos ou produzidos em audiência de julgamento.
O agente confirmou o auto que elaborou, todavia não se lembra da situação concreta.
O auto preenche os requisitos legais previsto no art. 243.° do CPP. Aliás, o auto foi mesmo assinado pela arguida.
Ora, o simples facto do agente não se lembrar da situação não põe em causa nem a veracidade do auto nem o seu valor intrínseco.
Assim, deve entender-se que o auto constante dos autos faz prova plena dos factos que se aí se encontram vertidos como praticados pelo agente autuante e dos factos que nele são atestados com base nas percepções do mesmo.
E isto até que o conteúdo do mesmo seja posto em causa, o que, no caso dos autos não foi.
Neste sentido, veja-se o Ac. do TRL  datado de e proferido nos autos n° 241/08.2GGLSB.L1-9 constante do site www.dgsi.pt
O referido Acórdão foi proferido em caso em tudo semelhante ao dos autos.
Neste sentido também Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, l.a Ed., Universidade Católica Editora, em anotação ao art.° 243.°, pág. 616 e 617.
Ainda no mesmo sentido o Ac. do TRE proferido em 20-12-2012 nos autos n° 721/07.7PBEVR.E1, in www.dgsi.pt.
(…)
Assim, entende-se que, até devido à demais postura processual da arguida que compareceu nos serviços do Ministério Público tendo aceitado pessoalmente uma suspensão, o auto de notícia não foi posto em causa nos presentes autos e não tendo sido posto em causa deverá ser o mesmo tido em consideração e ser valorado como meio de prova nos termos do disposto nos artigos 243.° e 169.° do CPP.

De facto a aceitação da arguida de uma suspensão não equivale a uma admissão do ilícito, todavia, a sua postura processual pode ser ponderada, nomeadamente, o facto de, nos autos, nunca ter sido posta em causa a identidade da arguida.

Em conformidade deverá ser a decisão recorrida substituída por outra na qual se dê como provado que a arguida, no dia 01-08.2014-pelas 3h25, na Praça da Estrela, em Lisboa, conduzia o veículo automóvel com a matrícula XX-XX-XX, que foi sujeita ao teste de alcoolemia por ar expirado e que a mesma apresentava a taxa de álcool indicada no talão também junto aos autos, devendo a arguida ser condenada pelos factos pelos quais vem acusada.”

3.2.2– A descrição processual que antecede foi por nós confirmada e é correcta, espelhando sem quaisquer lapsos, desvios ou imprecisões, o que ocorreu.
A gravação do depoimento da testemunha agente policial autuante D.P.e da decisão estão conforme o descrito.
Acrescentamos porém que, logo de início, no julgamento ocorrido a 12/12/2016 o sr agente disse recordar-se vagamente da situação (ocorrida em 1/08/2014) e confirmava a acção de fiscalização, o seu envolvimento na sua elaboração nos termos em que ele consta nos autos e os procedimentos subsequentes, apenas não tendo a certeza absoluta sendo certo que lera o auto de notícia que porém confirmava “qua tale”.
Nunca afirmou que o auto fosse falso ou inexato mas que da situação em si não se recordava em absoluto.
Ou seja, apenas com base nesta afirmação a Mmª Juiz entendeu que a prova era insuficiente.
De resto, temos por seguro que na posição apresentada pelo Ministério Público este está cheio de razão nos termos e pelas razões que expôs.
Diferente seria, mas que não foi o caso, se o Sr. agente não reconhecesse o auto e não confirmasse com segurança tê-lo elaborado. O auto nunca foi impugnado de falsidade. O talão de controle de alcoolemia refere o resultado do exame. A arguida teve conhecimento do auto, prestou e assinou TIR e assinou ter recebido todas as informações legais constantes de fls 9 (resultado da TAS, possibilidade de requerer  contraprova, obrigação de apresentação a julgamento, direitos que lhe eram conferidos, etc). Requereu ainda apoio judiciário (fls 14). Concordou e ficou sujeita a suspensão provisória do processo, com injunções ( 18 a 22, 24 ) mas que foi revogada por incumprimento ( fls 42). Seguiu-se julgamento e foi devidamente notificada.

Dado o exposto, causa-nos até alguma surpresa a decisão da 1ª instância perante dados tão evidentes quer processuais quer em face das regras da experiência mas, sobretudo, tendo em conta o valor probatório a conferir ao auto de notícia, não por si mesmo, sem mais, mas sobretudo porquanto o sr agente que o elaborou o confirmou ta quale, embora não se recordasse da situação “(…)  vagamente…ou…sem certeza absoluta(…)”

Serve isto para dizer que  seria de todo impensável exigir como prova derradeira a um agente policial que se lembrasse de todas as acções de fiscalização em que intervém mesmo que seja ouvido em julgamento passados cerca de quase dois anos e meio! Isso seria caminho certo para uma generalizada absolvição dos infractores!

Na  verdade, o MPº aponta o caminho certo e legal para evitar tais situações.

O auto de notícia conjugadamente analisado com as restantes enunciadas circunstâncias processuais não levaria nunca a um imperativo de consciência judicial que não fosse o da confirmação da sua veracidade, autenticidade e mencionado valor probatório.

Tal resulta da conjugação interpretativa entre os artigos 243º, 99.° e 169.° do Código de Processo Penal e 363.° e 371º nº1 do Cód. Civil, com as disposições já citadas., impondo deva ser tido o auto de noticia como documento autêntico e “(….) instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, considerando-se “(…) provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. "

Acompanhamos também sem hesitação a perspectiva da citada jurisprudência do Ac TRP (relator Almeida Cabral) de 11/03/2011, in « http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/a4b32513a7eaff668025795e0043c50c?OpenDocument » ,  da qual passamos a especificar os melhores argumentos, dada a sua similitude com o caso:
Ora, a razão do recorrente Ministério Público é por demais evidente, como incompreensível e peregrina é a decisão recorrida.
Desde logo, a sufragar-se o respectivo entendimento, estaria aberta a porta para a impunidade de muitas condutas ilícitas, sempre que a prova se limitasse ao auto de notícia e à confirmação do seu conteúdo.
Faltando ou silenciando-se o arguido e não havendo outras testemunhas para além do autuante, sempre que este, pese embora confirmando o conteúdo do respectivo auto, mas que, pelo decurso do tempo, ou pela confusão advinda dos muitos outros autos, entretanto, por si também elaborados, não fosse já capaz de precisar a situação de facto naquele descrita, sufragando-se a tese da decisão recorrida, a absolvição estaria sempre certa.
A decisão recorrida invoca o valor probatório do auto de notícia, mas ignora-o na sua materialização concreta, assim como ignora a competência dos órgãos de polícia criminal.
Repetindo-se aqui, embora, a motivação do recorrente, mas que assim haverá de ser, pela sua oportunidade e acerto, dispõe o art.º 243.º, n.º 1, do C.P.P. – diploma onde se integram as disposições legais a seguir citadas sem menção de origem – que, “sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem: a) – os factos que constituem o crime; b) – o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido (…)”.

O n.º 2 do referido preceito diz que o auto de notícia é assinado pela entidade que o levantou e pela que o mandou levantar.
O art.º 169.º, por sua vez, dispõe que “consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”.
Ora, conforme art.º 363.º do Cód. Civil, os documentos autênticos são os exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública, sendo particulares todos os demais.
O art.º 371.º, n.º 1, do mesmo diploma, dispõe que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
Sendo assim, resulta da conjugação de todos os referidos preceitos que, não havendo sido, por qualquer forma, postos em causa, quer a autenticidade do auto de notícia de fls. 4, quer a veracidade dos factos no mesmo descritos, pois que o arguido, para além de ter faltado ao julgamento, também não os contestou, sempre estes haveriam, necessariamente, de ter sido dados como comprovados pelo tribunal “a quo”, ainda que o autuante não tivesse sido ouvido.
Porém, o autuante também prestou o seu depoimento em julgamento, e, pese embora não se recordasse da situação de facto por si descrita no auto de notícia, remeteu para o conteúdo deste, o qual, assim, de forma implícita, reputou como verdadeiro.
A não se entender desta forma, o que quis dizer, então, o agente da GNR, quando afirmou que remetia para o auto de notícia por si elaborado e subscrito, o que o tribunal “a quo” até acolheu, mas que relevou negativamente!?
Depois, disse o mesmo tribunal na fundamentação da decisão recorrida, referindo-se ao auto, cujo valor probatório até diz reconhecer (!), que “não podia prescindir de todo e qualquer elo de ligação entre o seu conteúdo e o seu autor, agente de autoridade que terá presenciado os factos, impondo-se que este, ao menos, demonstrasse ao tribunal ter estado no local e ter presenciado os factos”.

Então, o autuante não assumiu a autoria do documento em causa, pese embora também tivesse dito que já não se recordava da ocorrência dos factos no mesmo descritos, o que a Mm.ª Juiz até relevou, como atrás já se referiu!?

E se elaborou o auto de notícia, bem como todos os demais documentos que o acompanham (fls. 4 a 8), designadamente a notificação ao arguido para comparecer no tribunal no dia seguinte (25/8/2008), não é por demais óbvio que o autuante esteve no local e presenciou os factos, tanto mais que nenhum outro agente policial é referido como tendo-os presenciado, ou elaborado qualquer um dos atrás referidos documentos? Aliás, o autuante é a única testemunha oferecida pela acusação!

Esta decisão, com o respeito que se impõe por quem a proferiu, é de todo descabida e sem sentido!

Daí que também se entenda, tal como o recorrente, estar-se perante uma “contradição insanável na fundamentação”, vício que se prevê no art.º 410.º, n.º 2, al. b).

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” verifica-se “quando, de acordo com um raciocínio lógico, na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal” - in “A Tramitação Processual Penal”, 1058, Tolda Pinto -, ou, ainda segundo Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª edição ob. cit., pág. 71, há “contradição insanável da fundamentação” quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há “contradição entre os fundamentos e a decisão” quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e que há “contradição entre os factos” quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.

Ora, no caso dos autos, a fundamentação impunha uma decisão contrária àquela que foi tomada, devendo darem-se como provados todos os factos constantes da acusação, e que na decisão recorrida ficaram a constar da “matéria de facto não provada”, deste modo se concedendo provimento ao recurso.

Impõe-se, pois, ordenar o reenvio dos autos à primeira instância, onde, sem necessidade de se proceder a novo julgamento, uma vez que os autos já dispõem de prova bastante para a decisão a proferir, a matéria de facto constante da acusação haverá de ser dada como comprovada, proferindo-se a adequada sentença condenatória.
(…)”

E ainda,  com as devidas adaptações o Ac TRE, de 20-12-2012 nos autos n° 721/07.7PBEVR.E1 (  relator Martinho Cardoso):
“(…) Sendo a verdade que se procura uma "verdade prático-jurídica" e devendo a sentença primacialmente convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz, como ensina aquele Ilustre Autor, "existirá quando e só quando (...) o tribunal lenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na «convicção», de uma mera opção «voluntarista» pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse" – cfr. "Direito Processual Penal", Vol. I, págs. 202 a 205.

Também o Conselheiro Maia Gonçalves, em anotação ao preceito legal em apreço, comenta que "livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova: "Código de Processo Penal Anotado", 10ª Edição, pág. 322.

Por outro lado, a elaboração do «auto de notícia» é obrigação imposta por lei a qualquer autoridade judiciária, órgão da polícia criminal ou entidade policial que presenciar qualquer crime de denúncia obrigatória (art.º 242.º, n.º 1 al.ª a) e 243.º, do Código de Processo Penal).

Portanto, o auto de notícia crime é lavrado por alguma das referidas entidades, com as formalidades prescritas no aludido art.º 243.º. Trata-se de documento escrito (v. art.º 255.º al. a), do Código Penal e 164.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), exarado, com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da competência que lhe é atribuída por lei; logo, estamos perante um documento autêntico (art.º 363.º, n.º 2, do Código Civil), não podendo confundir-se a natureza do documento com o problema da «fé em juízo» de tal documento, em termos de processo penal e no âmbito dos princípios acolhidos no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, atinentes às garantias da defesa (v. Acórdão do Tribunal Constitucional de 10/07/87, em BMJ n.º 369, pág. 258).

Isto, é evidente, sem prejuízo de os documentos autênticos só fazerem prova plena (art.º 371.º, n.º 1, do Código Civil) dos factos atestados com base nas percepções do documentador e dos que se passam na sua presença e de, no que se refere ao processo penal, ser admitido o contraditório de que falam os art.º 164.º, 169.º e 165.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., em anotação ao art.º 243.º, pág. 642, o auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).
Portanto, não tem qualquer força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade, que não tenha presenciado a infracção, mas tenha procedido a inquérito prévio sobre a matéria nele relatada, nem o auto elaborado por um agente de autoridade que mencione as declarações de uma testemunha, mas já tem força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que presenciou a infracção e a descreveu no auto, podendo esse auto fundamentar a sentença, mesmo que o seu autor tenha falecido antes da audiência.
Entendimento partilhado pelos Conselheiros Leal Henriques e Simas Santos, em Código de Processo Penal Anotado, II volume, pág. 16, que referem que os autos de notícia desde que obedeçam às prescrições legais gozam da força probatória que é conferida aos documentos autênticos e autenticados, isto é fazem prova plena dos factos que documentam, enquanto a sua autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (artigo 169 º do CPP ).

No mesmo sentido, ver o acórdão da Relação de Évora de 9-4-2003, CJ, 2003, II-255; e acórdão da Relação de Lisboa de 3-11-2011, sumariado na CJ, 2011, V-318.

Ora do auto de notícia resulta que o OPC que o elaborou, a testemunha N, constatou duas coisas: a primeira, que o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros; a segundo, que não tinha
carta de condução.

Depois, em julgamento, apesar desta testemunha já não se lembrar do caso concreto, afiançou que, não obstante, os factos que estivessem relatados no auto de notícia eram verdadeiros.

(…)”

Ora, dado o exposto, consideramos que, perante a prova constante do processo e se ter detectado um erro de julgamento manifesto, deva ser dada como provada integralmente a matéria da acusação, devem os autos baixar à 1ª instância para, face ao tempo decorrido, ser avaliada complementarmente, na medida do possível, a condição familiar social e económica actual da arguida a fim de ser determinada a sanção adequada ao caso.

III–DECISÃO:
3.1– Pelo exposto, julga-se o recurso provido e determina-se nos termos que antecedem, baixem os autos à 1º instância para as finalidades complementares enunciadas, a cumprir pelo mesmo tribunal de julgamento.



Lisboa, 31 de Outubro de 2017


                                                    
(Agostinho Torres)
(João Carrola)



[1]vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95
[2]vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de  Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335; e ainda  jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.