Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5003/2008-4
Relator: NATALINO BOLAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
REPETIÇÃO DO INDEVIDO
RETRIBUIÇÃO
ACTO PESSOAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I –É da competência dos tribunais cíveis o conhecimento do pedido por danos morais e outros formulados pela ex-entidade patronal, se fundados em actos praticados pelo trabalhador no domínio da gestão da sua vida privada, ou seja, fora do tempo e local do trabalho e sem relação com este.
II – É igualmente dos tribunais cíveis a competência em razão da matéria para conhecer a acção em que, finda a relação laboral, a entidade patronal pede que o seu ex-trabalhador lhe restitua o que indevidamente lhe pagou a título de retribuição
(sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: I – Relatório

A…, S.A., propôs, em 14.01.2008, no Tribunal do Trabalho de Almada, a presente acção declarativa com processo comum contra

B…,

pedindo que o Réu seja condenado a pagar à Autora, para além do mais:

a) Indemnização de 9.050 € pelos danos de imagem sofridos pela actuação culposa do Autor em sede do acidente melhor descrito supra em 18° a 25°, 38° e 39° e a título de reembolso dos custos que a Autora suportou com assessoria de imprensa no sentido de minorar esses danos;

b) O valor que esta tenha de pagar relativamente à viatura marca Renault, modelo Clio, matrícula …, totalmente perdida por força da actuação culposa do Réu melhor descrita supra em 16° a 25°, a liquidar durante a presente acção, caso seja apurada até à sentença final, ou em liquidação dessa sentença, caso tal apuramento não seja até aí possível;

c) 1855,80 € a título de repetição de contas finais indevidamente pagas em dobro e com as quais o Réu se mostra indevidamente enriquecido;

d) Juros moratórios à taxa legal, os quais por comodidade de cálculo se contarão apenas a contar da citação;

Alegou, em síntese, que:

 - o R. trabalhou para a Autora até 22.1.2007 altura em que foi despedido com justa causa;

- certo dia, durante a vigência do contrato, após ter finalizado a jornada de trabalho, dirigiu-se a um café sem se encontrar ao serviço da autora e sem autorização ou conhecimento desta, colocou-se em estado de alcoolémia;

 - seguidamente tomou o veículo da empresa e abalroou violentamente um veículo parado, e dois peões que tiveram morte imediata.

- Além de destruir o veículo que lhe fora distribuido pela Autora, exclusivamente para o desempenho das suas funções (dano que não será suportado pelo seguro atenta a alcoolémia) o R. provocou danos muito graves na sua Imagem.

- Despedido com justa causa, o R. acabou por receber, indevidamente, por erro de cálculo da A., € 1.855,80.
O senhor juiz proferiu despacho liminar declarando a incompetência do Tribunal do Trabalho em razão da matéria e absolvendo o Réu da instância.

         Inconformada com a decisão, veio a Autora interpor recurso de apelação (ou, de agravo, se se entender que continua a existir o recurso de agravo em processo laboral) para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes conclusões:

         (…)

Termina pedindo a revogação da decisão recorrido

        

         O recorrido não contra-alegou.

         Nesta Relação foi entendido tratar-se de recurso de apelação, ordenando-se a alteração da espécie.

O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.

Nada obstando ao conhecimento da causa, cumpre decidir.

O âmbito do recurso é limitado pelas questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) , salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).

         Assim, a questão a que cumpre dar resposta no presente recurso consiste em saber se o tribunal do trabalho é competente em razão da matéria para apreciar e decidir as questões colocadas pelo autor.      

                  

         II - FUNDAMENTOS DE FACTO

         Os factos com interesse para a decisão da causa são os referidos acima, deixando-se, no entanto, transcrita a petição para melhor compreensão e que é do seguinte teor:

1° - O Réu trabalhou sob as ordens e direcção da Autora entre 15.10.1973 e 22.1.2007, exercendo ultimamente as funções inerentes à categoria profissional de técnico de assitência e manutenção de elevadores.

2.º - No dia 11.11.2006, o Réu – por conta da Autora – efectuou diversos trabalhos de manutenção de elevadores.

3° - Iniciou esses trabalhos às 8 horas e 37 minutos na Av…., em Lisboa, onde fez a manutenção de dois elevadores...

4° - Daí seguiu para a Rua …, nas imediações da primeira, onde também fez a manutenção de dois elevadores, até cerca das 12 horas e 40 minutos desse dia.

5° - Interrompeu o trabalho para almoçar, o que fez num restaurante denominado "…", nessa zona da cidade, juntamente com dois colegas seus.
6° - Dirigiu-se a esse restaurante ao volante do veículo comercial de marca Renault, modelo Clio, matrícula …., que lhe estava distribuído pela Autora exclusivamente para o desempenho das suas funções.
7° - A acompanhar o almoço ingeriu cerca de meio litro de vinho tinto, tendo finalizado a refeição com dois copos de uísque,...
8° - Bebidas que o deixaram em estado de embriaguez, impróprio para conduzir veículos ou realizar o seu trabalho.
9° - Terminado o almoço, dirigiu-se – ao volante do acima referido veículo – para a sobredita Rua…, no n° 26, onde retomou o seu trabalho cerca das 13 horas e 50 minutos e fez a manutenção de dois elevadores,...
10° - Tendo continuado o seu trabalho nas imediações desse local, à Rua …, 48, onde fez a manutenção de mais dois elevadores...
11° - E finalizou o seu dia de trabalho, cerca das 17 horas e 36 minutos.
12° - Terminado o seu trabalho, o Réu – ao volante da supra-mencionada viatura – dirigiu-se, de acordo com prévia combinação com os colegas com quem almoçara, a um café que conhecem por "Café… ", sito nas imediações da Av. …, em Lisboa.
13° - O referido estabelecimento não se situava sequer nas proximidades do trajecto que o Réu teria de tomar para voltar para sua casa, que se situa na Amora.
14° - O Réu dirigiu-se a esse café sem se encontrar ao serviço da Autora e sem autorização ou conhecimento desta.
15º - Ainda vestindo o seu uniforme de trabalho distribuído pela Autora.
16° - Nesse estabelecimento ou nas respectivas imediações, o réu bebeu um número indeterminado de cervejas "minis" (de 20 cl.) juntamente com os seus colegas com quem almoçara e ainda outras pessoas conhecidas.
17º - Bebidas que o deixaram em estado de embriaguez, impróprio para a condução de veículos.
18° - Não obstante, cerca das 18 horas e 40 minutos o Réu tornou a tomar o volante do acima referido veículo,...
19° - Iniciando a respectiva marcha na Av. …, onde o deixara estacionado,...
20° - Logo o acelerando de forma exagerada e imprópria às condições do local onde conduzia e dirigindo-se em velocidade excessiva nunca inferior a setenta quilórnetros por hora no sentido do ponto onde a Av. … se inicia, no entroncamento com a Av. ...

21° - O Réu não atentou no facto de circular de noite, numa artéria com mau piso, íngreme, com diversos veículos estacionados na berma, obras ocupando parte da faixa de rodagem e trânsito nos dois sentidos, que desaconselhariam outra marcha que não fosse lenta.
22° - A seguir a uma curva à esquerda com boa visibilidade e no preciso ponto em que a Av. … apresenta um traçado plano,...
23° - O Réu, sem se aperceber de que se encontrava um veículo Mitsubishi Strada, ligeiro de grandes dimensões, parado do lado direito da faixa de rodagem, junto à berma e a um recorte para estacionamento existente frente ao n° 11 da referida Av….,...
24° - Foi embater nele com grande violência e sem qualquer esboço de travagem.
25° - De tal maneira que todo o capot do veículo …, que o Réu conduzia, entrou por baixo da parte traseira do Mitsubishi Strada.
26° - Sucede que, junto à parte traseira do referido veículo Mitsubishi Strada se encontravam duas pessoas a descarregar objectos,...

27° - Pessoas das quais o Réu também não se apercebeu.
28° - As referidas pessoas foram colhidas pela violência do abalroamento, tendo morte instantânea.
29° - O acidente teve muito ampla cobertura noticiosa nos órgãos de comunicação social,...

30° - Inclusivamente nos noticiários televisivos, onde a imagem do veículo da Autora foi amplamente difundida.

31º - Inclusivamente com alusões a que o mesmo seguiria desgovernado.
32° - Assim dando da Autora uma péssima imagem junto da opinião pública,...
33° - A qual se traduziu, entre outros reflexos, naquela e noutras alusões depreciativas nos órgãos de comunicação social e num geral sentimento de que a Autora tinha ao volante dos seus veículos pessoas com aquele tipo de conduta.
34° - Tal obrigou a Autora a contratar o mais rapidamente possível um gabinete de imprensa, tentando minimizar os efeitos de uma tal tragédia sobre a sua imagem,...
35° - Contratação que teve os inerentes e vultosos custos, que ascenderam a seis mil e cinquenta euros — cfr. doc. n° 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
36° - Acresce que a Autora teve de destacar diverso pessoal de primeira linha para acompanhar o funeral das vítimas, tentar apurar o circunstancialismo do acidente e tratar de vários assuntos conexos com ele, enquanto a locadora do veículo distribuído ao Réu teve de destacar pessoal seu para o resgatar, dado que se encontrava apreendido,...

37° - Tudo com prejuízo das suas tarefas habituais ao serviço da Autora ou da dita locadora.

38° - O veículo de marca Renault, modelo Clio, matrícula …, conduzido pelo Réu, ficou completamente destruído em sequência do que vai narrado supra em 18° a 25°.
39° - Tendo sido dado como perda total, com declinação de assunção de responsabilidade pela seguradora respectiva uma vez que o Réu se encontrava alcoolizado.
40° - O que implicará que a Autora suporte o respectivo custo, ainda não apurado.
41° - Mas, muitíssimo mais grave do que tudo o que vem de ser exposto, foi o resultado do acidente,...
42° - Que se traduziu na morte de duas pessoas, concretamente um casal que era o amparo de duas filhas menores, respectivamente de onze e treze anos de idade.
43° - Com todo o trágico cortejo factual que vem associado a quejando drama humano.
44° - O Réu bem sabia que o seu trabalho de manutenção de elevadores é realizado por vezes a grande altura, em difíceis condições de equilíbrio nas quais os trabalhadores necessitam de estar de posse de todas as suas faculdades,...
45° - E que não devia tê-lo efectuado em estado de embriaguez, sob pena de poder ter um grave acidente, inclusivamente mortal.
46° - O Réu bem sabia igualmente, aliás como qualquer cidadão, que é proibido conduzir veículos em estado de embriaguez.

47° - E que essa proibição emerge de estar demonstrado que a condução de veículos em estado de embriaguez é susceptível de causar acidentes graves (como, aliás, foi o caso).
48° - O Réu sabia ainda que o veículo que lhe estava distribuído pela Autora é um instrumento de trabalho, que deveria ter tratado com o máximo cuidado,...
49° - Também não podendo utilizá-lo fora do tempo e dos locais de trabalho, a não ser quando o Réu se deslocasse daí para a sua residência e vice-versa.
50° - O Réu também sabia que os técnicos da Autora são a sua imagem viva, uma vez que esta não tem outra forma de publicidade...
51º - que a mesma é uma empresa de grande prestígio que actua, porém, num mercado extremamente concorrencial, onde qualquer publicidade negativa pode fazer-lhe diminuir drasticamente receitas, com prejuízo grave para a sua actividade económica e, consequentemente, para todos os que nela trabalham.
52° - que, por isso, deveria ter utilizado o seu veículo e o seu uniforme sempre em circunstâncias relacionadas com o trabalho, de forma irrepreensível e jamais em contextos em que o bom nome da Autora pudesse ser posto em causa.
53º - O Réu actuou sem qualquer preocupação, conformando-se com o desrespeito grave e ostensivo de todas estas regras, tendo:

a) Conduzido um veículo em serviço e trabalhado em estado de embriaguez;

b) Utilizado o seu uniforme da Autora fora de serviço e em local público onde foi visto por várias pessoas a beber, nas imediações de um café;

c) Conduzido fora de serviço, em estado de embriaguez, uma viatura da Autora;

d) Desrespeitado as regras de trânsito sobre limitação de velocidade, ao volante de um veículo da Autora;

e) Dado causa a um acidente grave que originou:
· A morte de duas pessoas,
· A destruição de um veículo que lhe fora confiado pela Autora para o seu trabalho, e
· A abertura de um processo-crime contra o Réu, autuado com o n° 71/06.6SRLSB e a correr presentemente os seus termos nos Serviços do Ministério Público junto dos Juízos Criminais de Lisboa.

54° - O Réu violou gravemente os seus deveres laborais de cumprir as normas de segurança no trabalho, velar pela conservação e boa utilização de um bem que lhe fora confiado pela Autora para o exercício da sua função e incumpriu ordens e instruções da Autora relativas à disciplina do serviço, mormente relativas ao uso de viaturas da mesma Autora – cf. art. 121°, n° 1, alíneas d), f) e i) do Código do Trabalho.

550 - Os acima melhor descritos comportamentos do Réu enquadram-se nomeadamente nas alíneas a), e) e h) do n° 3 do art. 396° do Código do Trabalho,...

56° - Bem assim, a condução de um veículo da Autora em estado de embriaguez, fora do local e tempo de trabalho, dando origem a um gravíssimo acidente, constitui infracção de capital relevância.

57.º - Cada uma das infracções disciplinares praticadas pelo Réu, aliás com elevadíssimo grau de culpa, e acima descritas é susceptível — por si — de tornar imediata e praticamente impossível a relação de trabalho com a Autora,...

58° - Impossibilidade que efectivamente sucedeu.

59° - Cada uma dessas infracções constitui, pela sua gravidade e consequências, fundamento para a aplicação da sanção disciplinar de despedimento com justa causa — cf. art. 396°, n° 1 do Código do Trabalho.

60° - Razão pela qual, após processo disciplinar onde foi assegurada toda a legal tramitação e todos os direitos do Réu, a Autora lhe aplicou, por adequada, a sanção disciplinar de despedimento com justa causa.

61° - Sanção que chegou ao conhecimento do Réu em 22.1.2007, por carta registada com aviso de recepção,...

62.º - Nesse dia se pondo fim à relação de trabalho supra identificada em 1°.
63° - Toda a factualidade aqui exposta se encontra melhor documentada em sede do processo disciplinar que foi movido ao Réu pela Autora e aqui se protesta juntar.
64° - Sucede ainda que, por lapso, a Autora transferiu em duplicado o valor líquido de mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e oitenta cêntimos que pagou ao Réu a título de contas finais aquando da cessação do contrato de trabalho com ele.

65° - Ao dar pelo erro, remeteu ao Réu a 28.2.2007 carta com todos os elementos pertinentes a que o Réu pudesse verificar que recebera em duplicado e, portanto, a mais essa quantia, carta e elementos que se anexam como doc. n° 2 e se dão por reproduzidos.
66° - O Réu não deu resposta a essa carta nem às interpelações que se lhe sucederam no sentido de devolver a verba com que indevidamente se locupletou.
67° - Continuando a devê-la à Autora, por força das regras da repetição do indevido.
68° - Pelo exposto, deve o Réu à Autora por força de infracções disciplinares praticadas ao serviço desta:

a) O valor que esta tenha de pagar relativamente à viatura marca Renault, modelo Clio, matrícula 32-34-VZ, totalmente perdida por força da actuação culposa do Réu referida supra em 16° a 25°, 38° e 39°, a liquidar durante a presente acção, caso seja apurada até à sentença final, ou em liquidação dessa sentença, caso tal apuramento não seja até aí possível;

b) Indemnização pelos danos de imagem que a Autora sofreu com o acidente causado pelo Réu e suas consequências até poder contratar assessoria de imprensa para os debelar, em valor que se estima em três mil euros;

c) O reembolso, a título de indemnização, pela assessoria de imprensa que esta teve de contratar para evitar maiores danos de imagem em resultado do sobredito acidente, no valor de seis mil e cinquenta euros.

68° - E, por força das regras do enriquecimento sem causa espoletadas pelo recebimento em dobro e por engano das suas contas finais, deve o Réu à Autora mais mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e oitenta cêntimos.

Nestes termos e nos mais de direito que V. Exa. doutamente suprirá deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora:

e) Indemnização de 9.050 € pelos danos de imagem sofridos pela actuação culposa do Autor em sede do acidente melhor descrito supra em 18° a 25°, 38° e 39° e a título de reembolso dos custos que a Autora suportou com assessoria de imprensa no sentido de minorar esses danos;

f)O valor que esta tenha de pagar relativamente à viatura marca Renault, modelo Clio, matrícula 32-34-VZ, totalmente perdida por força da actuação culposa do Réu melhor descrita supra em 16° a 25°, a liquidar durante a presente acção, caso seja apurada até à sentença final, ou em liquidação dessa sentença, caso tal apuramento não seja até aí possível;

g) 1855,80 € a título de repetição de contas finais indevidamente pagas em dobro e com as quais o Réu se mostra indevidamente enriquecido;

h) Juros moratórios à taxa legal, os quais por comodidade de cálculo se contarão apenas a contar da citação;

i) Condigna procuradoria.

         III – FUNDAMENTOS DE DIREITO

         Cumpre, agora, apreciar e decidir se para a dirimir o litígio a que se referem os autos é competente o tribunal do trabalho.

         A recorrente afirma-o defendendo que o pedido de devolução de retribuições indevidamente pagas emerge de um contrato de trabalho, na medida em que importa perceber, pelo menos, o que é devido a título de remuneração (...) e o que alegadamente foi pago a mais, indevidamente, donde resulta que sempre importa analisar a relação estabelecida entre o empregador e o trabalhador, sendo que “a causa de pedir na presente acção conecta-se com uma relação jurídica laboral.

Indica, assim, como violados com o despacho que julgou incompetente o tribunal do trabalho para conhecer da presente acção, os art.ºs art. 85°, alíneas b) e o) da LOFTJ e 101°, 102°, n° 1, 105°, n° 1 e 495° do Código de Processo Civil.

         A competência (tal como a personalidade e a capacidade judiciárias, a legitimidade,…), é um dos pressupostos processuais positivos porque a sua existência é essencial para que o juiz se deva pronunciar sobre a procedência ou improcedência da acção.

A incompetência de um tribunal em razão da matéria, sendo um dos casos de incompetência absoluta (art.º 101.º do CPC), obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e implica a absolvição do réu da instância (art.ºs 105.º n.º 1,    494.º al. a) e 493.º n.º 2 do CPC).

É jurisprudência pacífica que a competência em razão da matéria se fixa em função dos termos em que o autor propõe a acção, atendendo ao direito a que o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente protegido, devendo, por isso, essa questão da competência ser decidida em conformidade com o pedido formulado na petição inicial e a respectiva causa de pedir invocada.

         Como afirmação do exposto permita-se-nos a transcrição, a este propósito, do que se decidiu no douto Ac. do STJ de 3.7.2003 in www.dgsi.pt, com a seguinte passagem:

“…..à semelhança do que acontece quanto aos demais pressupostos, há-de a competência do tribunal aferir-se pelos termos em que a acção é proposta e determinar-se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos, ou seja, pela maneira como o autor configura o pedido e a respectiva "causa de pedir"

Em suma, para decidir qual das diversas normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais deve olhar-se "aos termos em que a acção foi posta - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para a qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.) seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal - ensina Redenti - afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, como antítese com aquele que será mais tarde o quid decisum): é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.”.

         No mesmo sentido podem ver-se, Prof. Manuel de Andrade, in Noções Fundamentais de Processo Civil, ed. 1979, págs. 90/91, Miguel Teixeira de Sousa, in "A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns", Lisboa, 1994, pag. 36 e, entre outros, os Acs. STJ de 06.07.78 in BMJ n.º 278/122, de 5.2.2002 in CJ 2002/I/68, de 11.12.2002, de 22.06.2006, in www.dgsi.pt, da RL de 11/10/2000, 16.11.2005 e 2.5.2007, da RP de 06/04/2000, e de 04/03/2002, todos in www.dgsi.pt, e da RE de 06.11.2002 in CJ/2002/V/146 e da RG de 17.11.2004 in CJ 2004/V/286.

Atentemos agora no âmbito da competência material dos tribunais do trabalho no confronto com a causa de pedir e o pedido formulados na acção.

Os tribunais do trabalho têm competência em matéria cível para conhecer, para além do mais, “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado…” (art.º 85.º al. b) da Lei 3/99 de 13 de Janeiro – Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), bem como “das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a de trabalho, por acessoriedade, complementariedade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente” (artigo 85º, alínea o), da LOFTJ).

No caso dos autos, a autora veio a tribunal pedir a condenação de um ex-trabalhador – despedido, ao que alega, por justa causa e no seguimento de processo disciplinar – no pagamento de determinadas importâncias, descrevendo os factos que considera geradores do direito peticionado, do seguinte modo:

 1 – Pagamento da indemnização de 9.050 € pelos danos de imagem sofridos pela actuação culposa do Réu em sede do acidente melhor descrito supra em 18° a 25°, 38° e 39° e a título de reembolso dos custos que a Autora suportou com assessoria de imprensa no sentido de minorar esses danos;

2 - O valor que esta tenha de pagar relativamente à viatura marca Renault, modelo Clio, matrícula …, totalmente perdida por força da actuação culposa do Réu melhor descrita supra em 16° a 25°, a liquidar durante a presente acção, caso seja apurada até à sentença final, ou em liquidação dessa sentença, caso tal apuramento não seja até aí possível;

Segundo a descrição dos factos geradores do dano de imagem e do valor da viatura, estes terão resultado de um acidente grave de que terá sido causador o então trabalhador, utilizando um veículo e um uniforme das autora, acidente que, tendo sido largamente noticiado pelos órgãos de comunicação social, lhe causou os mencionados danos.

Vem também invocado pela autora que o reú só poderia utilizar o seu veículo e o seu uniforme em circunstâncias relacionadas com o trabalho (facto sob 52.º).

Contudo, tal como muito bem se refere no despacho recorrido, “ os pedidos (…) não se fundam na relação de trabalho, não surgindo nem no tempo nem no local de trabalho e nem por causa dele, mas sim exactamente fora do tempo e das circunstâncias que se prendem com a prestação da actividade”.

É a própria autora que, nos art.ºs 12.º a 14.º da petição afirma que o réu, que só podia conduzir o veículo no exercício das suas funções, vem dizer que, na altura dos factos, o réu já tinha terminado o serviço, não estava no local de trabalho tendo-se dirigido para um café sem autorização ou conhecimento da ré e situado em local que não era, sequer, nas proximidades do trajecto do réu para casa.

Daqui se deduz que os factos eventualmente geradores de responsabilidade civil já não terão relação com questão emergente da relação laboral.

Foram actos praticados na gestão da vida privada do trabalhador  - fora do tempo e local de trabalho  - e, por isso, as questões colocadas por actos praticados nestas circunstâncias não são questões emergentes de relações laborais, não se subsumindo ao disposto no art.º 85.º al. b) da Lei 3/99 de 13 de Janeiro – Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – nem ao disposto na al. o) do mesmo artigo.

Por tais motivos, para conhecimento dessas questões não é competente o tribunal do trabalho, tal como foi decidido na 1.ª instância.

3 – Pede, ainda, a autora, a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 1855,80 € a título de repetição de contas finais efectuadas aquando do despedimento e indevidamente pagas em dobro e com as quais o Réu se mostra indevidamente enriquecido;  

Também aqui falece a razão à recorrente.

Como se deduz da petição, a quantia que a autora reclama resulta de contas finais efectuadas com o trabalhador já após a decisão do despedimento.

Conforme se decidiu recentemente nesta Relação – Ac. de 12.02.2008 in www.dgsi.pt, “Os tribunais cíveis são competentes em razão da matéria para conhecer a acção em que, finda relação laboral, a entidade patronal pede que o seu ex-trabalhador lhe restitua o que indevidamente lhe pagou a título de retribuição”

Face ao pedido e seus fundamentos como são configurados pela Autora, verifica-se que o direito que esta pretende exercer emerge do facto de o Réu não cumprir com a obrigação de restituir o indevidamente recebido resultante da relação jurídica prevista no artigo 476º, n.º 1, do Código Civil.
Assim é esta a relação jurídica que, ponderando o disposto no artigo 397º do Código Civil, constitui o Réu na obrigação de restituir à Autora a quantia peticionada e não a relação jurídica laboral que ambos mantiveram e que cessou por iniciativa da Autora.
Efectivamente apurar se, aquando do pagamento ao Réu a titulo de salários da quantia peticionada, não existia a obrigação da Autora lhe pagar tais salários não visa demonstrar que o Réu infringiu qualquer obrigação resultante da relação jurídica laboral que ambos mantiveram, antes apenas serve para constituir o Réu na obrigação de restituir o indevidamente recebido.
Pode assim concluir-se, como no Acórdão da Relação de Lisboa, de 1/3/2007 – Proc. n.º 1700/2007.6 in
www.dgsi.pt -, que a Autora faz emergir o pedido que formula contra o Réu do instituto do enriquecimento sem causa, donde deriva que, a causa de pedir invocada, embora relacionada com uma primitiva relação de trabalho, não radica directamente naquela, mas sim numa relação jurídica diversa, de carácter civil, pelo que os Tribunais de Trabalho não são os competentes em razão da matéria, mas sim os Tribunais Cíveis, de competência residual (cfr., também no sentido da competência destes tribunais em casos de enriquecimento sem causa, os Acs. da R.L., de 27/6/2002, e da R.P. de 19/6/2006, Processos 0055638 (Acórdãos TRL) e 0611344 (Acórdãos TRP) www.dgsi.pt.).

Improcedem, assim, as conclusões do recurso.

SUMÁRIO

I - É da competência dos Tribunais Cíveis a acção em que uma entidade patronal pede a condenação do ex-trabalhador no pagamento de quantias de que se considera lesada, com origem em actos praticados pelo trabalhador fora da hora e do local de trabalho;

II – É igualmente da competência dos Tribunais Cíveis a apreciação do pedido de pagamento de uma quantia por força da figura do enriquecimento sem causa, por pagamentos indevidos aquando da cessação do contrato de trabalho.

         IV - DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e manter, na íntegra, o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.
        

         Lisboa, 24 de Setembro de 2008




Natalino Bolas
Leopoldo Soares
Seara Paixão