Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1766/11.8TMLSB-A.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
VALOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da relatora)

A prestação a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não tem de ser idêntica àquela a que estava obrigado o progenitor faltoso, podendo ser inferior ou superior – as prestações a satisfazer pelo Fundo são fixadas pelo tribunal, atendendo à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada ao progenitor e às necessidades específicas do menor, embora não possam exceder o limite máximo fixado na lei.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

                                                                       *

I – J alegou incumprimento da obrigação de pagamento da pensão de alimentos a seus filhos menores E e C, por parte da progenitora Y, desde 23-5-2012.

Notificada, veio a requerida dizer não poder, por não ter qualquer meio de subsistência, assegurar o cumprimento da prestação de alimentos aos menores, estando preenchidos os requisitos exigidos para que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores pague o valor mensal que a requerida, enquanto progenitor faltoso, não paga.

Foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«…julgo procedente o incidente de incumprimento da decisão de regulação das responsabilidades parentais, no segmento de alimentos e, decido que o valor actualmente em dívida em face do alegado pelo requerente é de 8 prestações vencidas para cada um dos menores – de Maio a Dezembro de 2012 -, perfazendo a dívida a esse título a quantia total de € 800,00 (oitocentos Euros)».

Veio então o requerente, em 11-1-2013, solicitar que fosse fixado o montante da prestação a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores no montante equivalente à prestação fixada.

Solicitado inquérito às condições sociais e económicas do agregado familiar do progenitor dos menores foi este realizado.

Após, foi proferida a seguinte decisão:

«…Ao abrigo dos arts. 1º e 2º da lei 75/98 de 19 de Novembro com as alterações introduzidas pela lei 66-B/2012 de 31 de Dezembro e art. 2º do D.L.164/99 de 13 de Maio com as alterações da lei 64/2012 de 20 de Dezembro fixo em 100,00 € (cem euros) a prestação a pagar mensalmente a cada um dos menores supra identificados pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social na qualidade de gestor do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores».

Apelou o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:

· O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS) foi condenado a pagar uma prestação mensal no valor de €100,00 (cem euros), para cada um dos dois menores, em substituição do progenitor, ora devedor.

· Ao progenitor foi fixada uma prestação no valor de €50,00 (cinquenta euros) para cada menor, que – determinado que foi o incumprimento e a impossibilidade de cobrança coerciva – irá ser suportada pelo FGADM em regime de sub-rogação nessa mesma medida.

· A obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM é autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal e não decorre automaticamente da lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.

· A intervenção do FGADM visa apenas que seja o Estado a colmatar a falta de alimentos do progenitor judicialmente condenado a prestá-los, funcionando como uma via subsidiaria para os alimentos serem garantidos ao menor.

· A necessidade de ponderação do "montante da prestação de alimentos fixada" só pode ter o sentido de ele constituir um factor limitativo da determinação do montante a fixar, pois se pudesse ser estabelecido, a cargo do Estado, um qualquer montante, era desnecessária a ponderação daquele factor e bastavam os outros dois critérios, as necessidades do menor e a capacidade económica do agregado familiar em que se integra.

· O art. 3.° n.º 1 da Lei n.º 75/98 não deixa dúvidas que o montante que o tribunal fixa a cargo do Estado é para este prestar "em substituição do devedor".

· Esta obrigação do Estado só existe enquanto não se verificar o "efectivo cumprimento da obrigação" por parte do obrigado a alimentos (n.º 1 do art. 1.º da Lei 75/98), pois a obrigação "mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor esta obrigado" (art. 9.° n.º 1 do DL 164/99), nomeadamente cessa quando "o menor atinja a idade de 18 anos" (n.º 2 do art. 1.° da Lei 75/98).

· Existe uma "substituição", apenas enquanto houver a obrigação original, por se verificarem os seus pressupostos e ocorrer incumprimento da mesma, o que seria diferente se estivéssemos perante uma obrigação diversa, desligada da originária.

· A sub-rogação não pode exceder a medida da sub-rogação total, porquanto, se o terceiro paga mais do que ao devedor competia pagar, ele não tem o direito de exigir do devedor o reembolso pelo excesso, e só poderá exigir do credor a restituição do que este recebeu indevidamente.

· Não desconhecendo o legislador do DL 164/99 o conceito técnico legal de sub-rogação e os efeitos a tal figura associados, nomeadamente que o "sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam" – cfr. art. 593.° do Código Civil – é legítimo concluir-se que, ao estabelecer esta sub-rogação legal, o legislador não podia deixar de ter implícito que a prestação a cargo do Fundo nunca poderia ser superior ao montante máximo da prestação alimentícia a que o menor tinha direito.

· Aceitar que a prestação fosse superior seria instituir-se, sem apoio normativo, uma prestação social em parte não reembolsável e, ainda para mais, sem que o credor a tenha de restituir como “indevida”.

· Não tem qualquer suporte legal fixar-se uma prestação alimentícia a cargo do FGADM superior à fixada ao progenitor, pois a diferença que daí resulta é fixada apenas para o FGADM e é uma obrigação nova.

· A manter-se a decisão, a obrigação e responsabilidade de prestar alimentos deixará de ser imputável aos progenitores obrigados, passando a ser única e exclusivamente da responsabilidade do FGADM.

· Não pode ser aceite a circunstância de se estabelecer uma prestação a satisfazer pelo FGADM, em medida superior à do obrigado principal, sem que a entidade responsável pela gestão deste Fundo, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., exerça no processo o direito ao contraditório, porquanto o mesmo não é interveniente no incidente em causa, como não foi in casu.

· O regime legal apenas prevê – art. 4.° n.º 3 do DL 164/99 – a notificação da decisão do tribunal que fixa a prestação ao IGFSS, I.P., sendo essa a forma de ter conhecimento do incidente e só a partir daí tendo possibilidades de intervir.

· Este incidente de suscitar a responsabilidade subsidiária do FGADM não é a forma de actualizar a prestação alimentícia devida ao menor.

· Existiu violação do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, uma vez que o FGADM não é o obrigado à prestação de alimentos, assumindo apenas a obrigação na medida da sub-rogação.

Não foram oferecidas contra alegações.

                                                           *

II - O Tribunal de 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

1 - Os menores E e C nasceram, respectivamente, a 22 de Fevereiro de 1998 e 1 de Julho de 2001 e são filhos de J e de Y.

2 - Por sentença nos presentes autos, foi declarado verificado o incumprimento da progenitora quanto ao pagamento da pensão de alimentos devida aos seus filhos no valor de € 50.00 para cada um.

3 - Foi julgado inviável o recurso aos meios previstos no art. 189º da OTM.

4 - O rendimento per capita do agregado familiar onde se inserem os menores é de € 123,40.

                                                           *

III – São as conclusões da alegação de recurso que definem o objecto da apelação. Assim sendo, a única questão que se nos coloca, atentas as conclusões apresentadas, é a de analisarmos se a prestação mensal a suportar pelo FGADM pode exceder o montante fixado originariamente à progenitora dos menores.

                                                           *

IV - A lei nº 75/98, de 19-11, que veio a ser regulamentada pelo dl 164/99, de 13 de Maio, criou a «Garantia dos Alimentos Devidos a Menores».

Determinou a referida lei ([1]) no nº 1 do seu artigo 1º: «1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efetivo cumprimento da obrigação».

Especificando o art. 2: «1 - As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, independentemente do número de filhos menores.

2 - Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor».

O nº 3 do art. 6 estabelece que o «Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores fica sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso.

No preâmbulo do diploma que regulamentou a lei – o acima citado dl 164/99 ([2]) – mencionou-se que «a Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral» e que «ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida», traduzindo-se «no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna».

Reafirma o nº 1 do art. 5 do dl 164/99 que o Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem foram atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso, mencionando o nº 5 do art. 3 que as prestações de alimentos são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, devendo aquele atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.

Da conjugação destas disposições afigura-se-nos ser de retirar que a prestação a cargo do Fundo não tem de ser idêntica àquela a que estava obrigado o progenitor faltoso – as prestações a satisfazer pelo Fundo são fixadas pelo tribunal, atendendo à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada ao progenitor e às necessidades específicas do menor (art. 2, nº 2 da lei 75/98 e art. 3, nº 5 do dl 164/99, de 13-5), embora não possam exceder o limite máximo fixado na lei.

Remédio Marques ([3]) diz-nos, a propósito, que o Fundo visa «propiciar uma prestação autónoma de segurança social, uma prestação a forfait de um montante, por regra equivalente ao que fora fixado judicialmente – mas que pode ser maior ou menor, sendo certo que as prestações atribuídas não podem exceder mensalmente, por cada devedor, o montante de quatro unidades de conta de custas». «A prestação do Fundo de Garantia pode ser superior ou inferior à que tenha sido anteriormente fixada ( …) Se assim não fosse, seria inútil e supérfluo ordenar-se a realização de diligências probatórias e o inquérito social acerca das necessidades do menor (…) É claro que, na hipótese de o Fundo ter sido condenado em um montante superior (mas em todo o caso inferior a 4 UC), a sub-rogação que possa vir a exercer contra o progenitor obrigado será somente parcial, até ao limite quantitativo da condenação deste último». «Vale tudo isto por dizer que ao Tribunal é licito e é exigível efectuar a reponderação da situação de facto do menor à luz da qual fora anteriormente fixada a pensão de alimentos cujo incumprimento tenha dado origem ao pedido de condenação dirigido contra o Fundo de Garantia, já que esta anterior pensão constitui apenas um dos índices de que o julgador se pode servir ao fixar a pensão do Fundo de Garantia…».

Também Helena Melo, João Raposo, Luís Carvalho, Manuel Bargado, Ana Teresa Leal e Felicidade d’Oliveira ([4]) discorrem no sentido de que o «pagamento levado a cabo pelo Fundo é independente do montante fixado ao obrigado que não cumpriu, embora esse valor seja uma referência para o tribunal das necessidades do alimentado, podendo ser inferior, igual ou superior, devendo o Tribunal atender à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor».

Aderimos a este entendimento. Efectivamente, o montante da prestação de alimentos fixada ao obrigado é um dos elementos a que o Tribunal terá de atender, consoante resulta do nº 2 do art. 2 da lei 75/98, mas não terá de ficar retido a esse montante como limite superior. Nem o teor desta disposição legal conduz a tal solução, nem a conjugação com as demais disposições aplicáveis o impõe.

Aliás, as crianças crescem e as suas despesas aumentam – as despesas de uma criança de três anos não são as mesmas de uma de dez anos. Embora se trate, apenas, de um argumento de ordem pragmática, será que a prestação inicialmente fixada, a satisfazer pelo progenitor, não haveria de se adaptar às novas necessidades do menor?

A jurisprudência mostra-se divergente quanto a esta questão.

Uma corrente jurisprudencial significativa recusa a possibilidade de a prestação a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores poder ser superior à fixada ao progenitor faltoso; é o caso, a título meramente exemplificativo, dos acórdãos desta Relação de 30-1-2014, de 20-02-2014 e de 13-3-2014 ([5]).

Outra corrente, igualmente significativa, considera que o único limite da obrigação que recai sobre o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores é a que resulta dos aludidos arts. 2, nº 1, da lei 75/98 e 3, nº 5, do dl 164/99; é o caso, também aqui a título meramente exemplificativo, dos acórdãos desta Relação de 11-02-2014, 29-04-2014 e 16-10-2014 ([6]).

Não negando a razoabilidade dos argumentos desenvolvidos por aquela primeira referida corrente, afigura-se-nos ser de aderir ao entendimento que supra manifestámos, nos termos expressos, no mesmo sentido que a corrente jurisprudencial enunciada em segundo lugar – ou seja, não nos parece ser caso para abandonar o entendimento já anteriormente perfilhado ([7]).

                                                           *

V – Face ao exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Sem custas.

                                                           *

Lisboa,  22 de Janeiro de 2015

Maria José Mouro

Teresa Albuquerque

Sousa Pinto


[1]Que tem as alterações introduzidas pelo art. 183 da lei 66-B/2012, de 31-12, com início de vigência a 1 de Janeiro de 2013.
[2] Que veio a ter as alterações introduzidas pelo dl 70/2010, de 16-6, e pela lei 64/2012, de 20-12.
[3]Em «Algumas Notas Sobre Alimentos Devidos a Menores», Coimbra, 2ª edição, pags. 234 e 237-239.
[4]Em «Poder Paternal e Responsabilidades Parentais», Quid Juris, 2ª edição, pag. 110.
[5] Aos quais se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, processos 306/06.5TBAGH-A.L1-6,
 1852/10.1TNTVD-A.L1-6 e 848/11.0TBLNH-A.L1-6.
[6] Aos quais se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, processos 346/08.0TBVFX-A.L1-7, 23668/10.5T2SNT.L1-1 e 4831/08.5TBALM-B.L1-2.
[7]   Assim, o acórdão de 11-7-2013, ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, processo 5147/03.9TBSXL-B.L1-2.