Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
696/16.1PSLSB.L1-3
Relator: CONCEIÇÃO GONÇALVES
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
INJÚRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I–No nosso sistema jurídico, para a unidade e pluralidade de infracções não releva a unidade ou pluralidade de acções praticadas pelo agente, mas, conforme plasmado no artº 30º, nº 1 do CP, os tipos legais de crime violados com a conduta empreendida.

II–O juízo concreto de reprovação pode ter que ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis ao mesmo tipo legal de crime. (cfr. artº 30º, nº 1, in fine).

III–Se com a conduta empreendida, no crime de injúria, o arguido se dirige a duas pessoas, ofendeu por duas vezes o bem jurídico protegido pela norma- a honra e consideração de que goza cada pessoa- incorrendo na prática de dois crimes em concurso efectivo (homogéneo).

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.

           
I.–Relatório.


1.–Nos presentes autos de processo sumário a correr termos na Comarca de Lisboa - Lisboa -Instância Local -Secção de Pequena Criminalidade, Juiz 2, com o número supra identificado, o arguido M...., com os sinais dos autos, por sentença de 27.05.2016, foi condenado nos termos seguintes:

a)-pela prática, como autor material, de dois crimes de injúria agravada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 181º, nº 1 e 184º, ambos do Código Penal, por cada um dos crimes, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), e efectuado o cúmulo jurídico destas penas, foi o arguido condenado na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à mesma taxa diária, o que perfaz a quantia de total 1.000.00 ( mil euros), ou, subsidiariamente, nos termos do artº 49º do Código Penal, em 133 dias de prisão.
b)-pela autoria material de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p., nos termos do disposto nos artigos 143º, e 145º, nºs. 1, al. a) e 2, por referência ao artº 132º, nº 2, al. l) e 386º, todos do Código Penal, por cada um dos crime, na pena de 10 (dez) meses de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de 14 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa, por igual período, sujeita a regime de prova, sob fiscalização e supervisão da DGRS, nos termos dos artigos 53º e 55º do Código Penal.
           
2.–O arguido, não se conformando com a decisão dela veio recorrer terminando a motivação com a formulação das seguintes conclusões:

“1.-O Tribunal a quo, salvo o devido respeito –que é muito – não fez correcta apreciação da lei aplicável, conforme se demonstrará.
2.-O arguido foi condenado pela prática, em autoria matéria, de dois crimes de injúrias agravada p. e p. nos termos do disposto nos artigos 181º, nº 1 e 184º, ambos do Código Penal, por cada um dos crimes, na pena de 130 (cento e trinta) dias multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), e efectuado o cúmulo jurídico destas penas, foi o arguido condenado na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à mesma taxa diária, o que perfaz a quantia de total 1.000.00 ( mil euros), ou, subsidiariamente, nos termos do artº 49º do Código Penal, em 133 dias de prisão.
3.-Foi dado como provado, em audiência de julgamento, que o arguido, chegado ao gabinete de ortopedia, dirigindo-se aos médicos aí presentes disse “quem é o burro cá do sítio? Quem é o mais inútil de vocês, caralho?
4.-Estipula o artº 181º nº 1 do CP que (...).
5.-Ora, existe unidade de resolução criminosa quem, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação (ac. do STJ de 11/5/1998, in BMJ nº 377, p. 431).
6.-Por outro lado, “do desenvolvimento dos factos na sequência uns dos outros, todos ocorridos no mesmo local, num curto espaço de tempo e sem soluções de continuidade sensíveis, indicia-se que o réu agiu em resultado de uma só resolução criminosa (as. Rel. do Porto de 17/12/1986 (sumariado in BMJ nº 362, p. 600).
7.-De sorte que, no caso dos autos, tendo as expressões ofensivas da honra e consideração dos ofendidos sido proferidas pelo arguido de forma genérica para os elementos presentes, é de concluir, á luz do senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, que o arguido agiu em execução de uma só resolução criminosa que se prolongou durante toda a situação.
8.-Mercê da unidade de propósito criminoso, o arguido cometeu apenas um crime de injúria.
9.-Assim sendo, a sentença recorrida não pode subsistir, na parte em que condenou o arguido em duas penas parcelares de 130 dias de multa (...).
10.-De facto, uma vez que o arguido apenas cometeu, em concurso real, um crime único de difamação”.
           
3.–O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (cfr. fls. 110).

4.–O Ministério Público veio responder ao recurso, concluindo pela total improcedência do recurso, considerando que em face da alegação de recurso tem-se por afastado o crime continuado, tendo o arguido actuado numa única situação que ele próprio criou e que em nada diminuiu a sua culpa. Além de que o crime continuado é expressamente afastado pela lei penal no caso de bens eminentemente pessoais, como resulta do nº 3 do artº 30º do CP, protegendo o crime de injúrias a honra e consideração de uma pessoa que é um bem eminentemente pessoal.
Há concurso real quando o agente pratica actos que preenchem, autonomamente, várias vezes o mesmo crime ou quando através de uma mesma acção viola a mesma norma repetidas vezes.
O arguido pretendeu atingir, e atingiu, a honra e bom nome de duas pessoa. Assim, na prática o mesmo pretendeu e realizou um ilícito por pessoa uma vez que se dirigiu às várias pessoas constantes do local.
Assim, o arguido atingiu bens eminentemente pessoais de duas pessoas.
Temos de concluir que o arguido efectivamente praticou dois crimes de injúria agravada, um por cada pessoa cuja honra quis e logrou atingir, pelo que nenhuma censura merece a sentença, devendo ser mantida.

5.–Neste Tribunal, o Exmº Procurador Geral-Adjunto emitiu o parecer que consta a fls. 128, expressando a concordância com a argumentação expendida pelo MP na 1ª instância, considerando que o recurso não merece provimento.

6.–Colhidos os Vistos legais, procedeu-se á Conferência.

Cumpre, agora, decidir.
*

II–FUNDAMENTAÇÃO.

1.–Conforme é aceite pacificamente pela doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extraia da motivação, assim se definindo as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[1].

Atentando nas conclusões apresentadas pelo recorrente, o objecto do recurso restringe-se à questão de saber se o arguido com a sua conduta incorreu num só crime de injúria agravada, em vez de dois, conforme foi condenado?

2.–Da decisão.

2.1.-Para bem decidir impõe-se antes de mais atentar na matéria de facto apurada:
O Tribunal a quo deu como provados, com relevo para a questão suscitada, os seguintes factos:
“No dia 24.04.2016, cerca das 9h40m, foi solicitada a intervenção dos agentes S… e M…, junto do piso 6, do Hospital de S…. sito na Avª …., em Lisboa, onde o arguido, que ali se encontrava à espera de ser atendido, estava a causar distúrbios.
Nesse circunstancialismo, o arguido foi chamado a apresentar-se junto do gabinete de ortopedia, onde se encontravam a prestar assistência médica os ofendidos P...., V.... e MB...., médicos e funcionários daquela unidade hospitalar pública, que se encontravam em exercício de funções e devidamente identificados, para que lhe fossem prestados cuidados médicos.
Entrado no gabinete médico, e sem que nada o fizesse prever, o arguido de imediato se dirigiu aos médicos P.... e MB...., dizendo-lhes: “Quem é o burro cá do sítio? “Quem é o mais inútil de vocês, caralho?”.
O arguido, ao referir-se aos médicos P.... e MB.... da forma como se referiu, quis ofender a honra e a consideração que lhes eram devidos, bem sabendo que os mesmos eram médicos e funcionários públicos do mencionado hospital público e que se encontravam em pleno exercício de funções.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei criminal.
O arguido é estudante universitário, frequentando o 3º ano na Faculdade de Direito da Universidade ..... É solteiro e vive em casa dos pais.
 
3.–Apreciando:

3.1.-O recorrente não põe em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto, e também se não vislumbra do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras de experiência comum, a ocorrência de qualquer dos vícios elencados no nº 2 do artº 410º do CPP, cujo conhecimento sempre seria oficioso[2].
Assim, não se verificando qualquer dos vícios referidos nem existindo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, tem-se por definitivamente fixada a decisão sobre a matéria de facto.

3.2.-O recorrente, sem colocar em causa o carácter ofensivo da honra e consideração conferido às expressões por si proferidas, e subsunção da sua conduta nos termos previstos nos artigos 181º e 184º do Código Penal, vem, contudo, discordar que com a sua conduta tenha incorrido na prática de dois crimes de injúria agravada, em concurso real efectivo. Segundo o recorrente apenas pode ser condenado pela prática de um só crime.
E porquê.
Defende o recorrente que existe unidade de resolução, sendo os vários actos o resultado de um só processo de deliberação. E que o arguido agiu em resultado de uma só resolução criminosa colhe-se “do desenvolvimento dos factos na sequência uns dos outros, todos ocorridos no mesmo local, num curto espaço de tempo e sem soluções de continuidade sensíveis”.
Diz ainda que, tendo as expressões ofensivas da honra e consideração dos ofendidos sido proferidas pelo arguido de forma genérica para os médicos presentes, é de concluir, á luz do senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, que o arguido agiu em execução de uma só resolução criminosa que se prolongou durante toda a situação.
E assim, mercê da unidade de propósito criminoso, o arguido cometeu apenas um crime de injúria.

Vejamos:
O recorrente coloca a questão da unidade ou pluralidade de crimes, ou, se bem vemos, também do crime continuado.
Respondendo a esta questão importa, para uma maior clareza, proceder ao seu enquadramento teórico, ainda que forma breve.
Como escreve Figueiredo Dias (Direito Penal, Tomo I, capítulo 41º, 2007, fls. 977 e seguintes), torna-se indispensável determinar quando e sob que pressupostos e circunstâncias se está perante um crime ou antes perante uma pluralidade de crimes.
Atentando na letra da lei, dispõe sobre esta matéria o artº 30º do Código Penal, sob a epígrafe “Concursos de crimes e crime continuado” o seguinte:
“1.-O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2.-Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Do texto da lei resulta que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Doutrinalmente costuma falar-se  na primeira hipótese de concurso heterogéneo, e na segunda de concurso homogéneo.

Na análise deste problema da unidade ou pluralidade de infracções têm sido seguidas, no essencial, duas vias fundamentais: a de atender prioritariamente  à unidade ou pluralidade de tipos legais de crimes violados; ou a de conferir relevo decisivo à unidade ou pluralidade de acções praticadas pelo mesmo agente.

E é fácil de ver que o nosso ordenamento jurídico penal vigente acolheu a primeira dessas vias[3].

Na doutrina, cedo o  Prof. Eduardo Correia defendeu o critério que veio a ser plasmado no artº 30º, nº 1 do CP, ou seja, decisivo para aferir da unidade ou pluralidade de infracções não é a unidade ou pluralidade de acções em si mesmas consideradas, mas sim a unidade ou pluralidade de tipos legais de crimes violados pela conduta de um mesmo agente, e submetidos, num mesmo processo penal, à cognição do Tribunal.

Destarte, se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais, e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal, e estamos, portanto, perante uma única infracção.

Pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico (cfr. artº 30º, nº1, in fine, do CP).

Esta orientação não foi imune a críticas, nomeadamente por abandonar cedo de mais, nas palavras do prof. Figueiredo Dias, a concepção global do tipo para tornar determinante da unidade ou pluralidade de crimes, em último termo, a unidade ou pluralidade de bens jurídicos violados pela conduta do agente. Reafirmando que o bem jurídico assume na questão da tipicidade um relevo primacial e insubstituível, entende, contudo, que os restantes elementos típicos não podem ser minimizados, não se podendo esquecer que a certos propósitos deve mesmo recorrer-se, para além da análise de todos eles, a uma consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo.

Para Figueiredo Dias, "o crime por cuja unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside pois nem por um lado na mera acção, nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela acção; reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside, (...) no ilícito-típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do Tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acção de crimes" (ob. cit. capítulo 41º, fls. 988 e 989).

Em resumo: o aplicador da lei tem de começar por determinar, por interpretação típica e sistemática, se uma pluralidade de normas ou de leis incriminadoras convocadas em abstracto por um certo conteúdo de ilícito são concretamente aplicáveis umas ao lado das outras ou se, diferentemente, há umas normas que prevalecem sobre outras e excluem a sua aplicação.

"Se, face às normas concretas e efectivamente aplicáveis, vários tipos legais se encontrarem preenchidos pelo comportamento global haverá concurso, mas não necessariamente concurso efectivo ou puro. Este pode não existir, se se verificar que à pluralidade de normas efectivamente aplicáveis corresponde, apesar dela, um sentido jurídico-social de ilicitude material dominante, verificando-se então um concurso aparenteou impuro. Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual, no entanto, também ela pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial do crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente. Isto significa que o procedimento não pode em qualquer caso reduzir-se ao trabalho sobre normas, mas tem sempre de ser completado com um trabalho de apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto" (ob. cit. fls. 991).

Assim, nos casos em que a relação lógico-formal entre as normas não consegue apontar uma norma prevalecente, o intérprete deverá olhar para o comportamento na sua globalidade e interrogar-se sobre o sentido da ilicitude em causa. Para tanto há-de o intérprete averiguar se dessa pluralidade típica decorre, numa consideração global, um sentido social de ilicitude, formado pela justaposição dos concretos ilícitos; ou pelo contrário, um sentido único, na exacta medida em que um dos ilícitos singulares domina, de forma preponderante sobre os outros. E assim, quando todos os sentidos dos concretos ilícitos-típicos forem autónomos, independentes entre si, o concurso será efectivo, puro ou próprio. Quando, inversamente, apenas um dos ilícitos típicos singulares possuir essa autonomia de sentido, então o concurso deverá considerar-se aparente, impuro ou impróprio”.
 
Feita esta breve resenha acerca do ensinamento dogmático-conceitual sobre a matéria do concurso de crimes, vejamos então o caso concreto destes autos.

E o trabalho está muito facilitado, porque desde logo temos como adquirido que é um só o tipo legal preenchido pela conduta do arguido. O que nos resta apurar é se esse mesmo e único tipo legal foi mais que uma vez preenchido pela conduta do arguido, ou se só o foi uma vez: e ainda, no caso da primeira alternativa, se a isso deve corresponder uma pluralidade de infracções ou uma só infracção?

A resposta está essencialmente na análise do tipo legal em causa, na sua interpretação, à luz do bem jurídico que se pretende proteger, sendo que a própria natureza deste nos aponta o caminho a seguir.

Incorre na prática do crime em causa “quem injuriar outra pessoa (...)dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração....”.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade, mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa.
Conforme resultou apurado, logo que entrou no gabinete médico, “...e sem que nada o fizesse prever, o arguido de imediato se dirigiu aos médicos P... e MB...., dizendo-lhes: “Quem é o burro cá do sítio? “Quem é o mais inútil de vocês, caralho?”.

Tais epítetos dirigidos aos médicos em exercício de funções no contexto em que foram proferidos são ofensivos da honra e consideração tal como considerado foi pela sentença recorrida. E o arguido cometeu tantos crimes de injúria quantas as pessoas ofendidas, neste caso, os dois médicos a quem o arguido se dirigiu e ofendeu na sua consideração. Também os concretos ilícitos-típicos são autónomos, independentes entre si, tendo o arguido com a sua conduta incorrido na prática, em concurso real e efectivo, de dois crimes de injúria agravada, conforme foi condenado.

Por último, refira-se que a argumentação avançada pelo recorrente, de que agiu em execução de uma só resolução criminosa que se prolongou durante toda a situação, e assim, mercê da unidade de propósito criminoso, o arguido cometeu apenas um crime de injúria, não tem, face ao que se deixou exposto, qualquer sustentação jurídica.

Como aludimos supra, para a unidade e pluralidade de infracções não releva a unidade ou pluralidade de acções praticadas pelo agente, mas os tipos legais de crimes violados com a conduta empreendida. E o arguido, com a sua conduta, dirigindo-se a duas pessoas, ofendeu por duas vezes o bem jurídico protegido pela norma.

E a figura do crime continuado a que parece também apelar o recorrente está, para além do mais, liminar e legalmente arredado, tendo o legislador eliminado a figura do crime continuado nos crimes contra as pessoas, conclusão a que sempre se chegaria, uma vez que a lógica do crime continuado não se pode aplicar do mesmo modo aos crimes cujos bens protegidos são eminentemente pessoais, onde o pressuposto matriz deste crime, da atenuação da culpa, é insustentável.

Assim, a sentença recorrida ao subsumir a conduta do arguido na prática de dois crimes de injúria agravada interpretou correctamente os preceitos legais aplicáveis, e de harmonia com o entendimento consensual da jurisprudência nesta matéria, decidindo assim com acerto, não merecendo qualquer censura.

Improcede assim o recurso.                                              
*

IV–Decisão.

Termos em que os Juízes da ...ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se na íntegra o decidido.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 Ucs.
Notifique.
*
                                                                      

Lisboa, 22/02/2017.


Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Alves Gonçalves e assinado pela Exmª Desembargadora Maria Elisa Marques.


(Relatora) - Conceição Gonçalves
(Adjunta) - Maria Elisa Marques 

                                                                                           
[1]Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed. 2007, pág.103; entre outros, mais recentemente, o ac.do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt, e ainda, o acórdão do Pelenário das Secções Criminais do STJ nº 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2]A sindicância da decisão sobre a matéria de facto no âmbito dos vícios enunciados no artº 410º, nº 2, do CPP é de conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo STJ no acórdão nº 7/95, publicado no DR I-A de 28/12/1995.
[3]Enquanto que a segunda via tem sido seguida principalmente pela jurisprudência e doutrina germânicas, e depois, por influência
destas, passou para outros países.