Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
439/22.0T8AVV-B.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: RECLAMAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CASO JULGADO – DECISÃO ANTERIOR NÃO IMPUGNADA
CASO JULGADO FORMAL
VALOR DA ACÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Na reclamação do despacho de não admissão de recurso de sentença (art.643º do CPC), despacho esse que a julgou irrecorrível por ter sido proferida em causa com valor processual de € 3 851, 32, inferior à alçada da 1ª instância (art.629º/1 do CPC), não pode ser apreciada qualquer invocação de erro do valor processual da causa, quando o mesmo foi fixado no prévio despacho saneador, que transitou em julgado por falta de interposição de recurso (que seria sempre admissível, nos termos do art.629º/2-b) do CPC).
2. Não existe, de qualquer forma, fundamento jurídico para a defesa que o valor da ação, para efeitos de recurso, deve somar os valores fixados no procedimento cautelar preliminar à mesma e o valor fixado à ação.
3. Não é recorrível a sentença, nos termos do art.629º do CPC, quando: foi proferida em causa com o valor processual de € 3 851, 32; os fundamentos da apelação, sobre a qual recaiu o despacho de não admissão, não integram a invocação de erro da mesma por violação de acórdão de uniformização de jurisprudência, que pudesse preencher a previsão de recorribilidade excecional do art.629º/2-c) do CPC; não é aplicável ao recurso de apelação de uma sentença o fundamento de recorribilidade excecional do art.629º/2-d) do CPC, apenas aplicável ao recurso de revista de um acórdão da Relação.
4. Os limites de recorribilidade do art.629º do CPC não violam normas constitucionais dos arts. 13º, 20º e 202º da CRP, maxime, em particular na causa onde foi proferida a sentença recorrida (na qual o seu valor processual foi fixado por despacho sobre o qual as partes não interpuseram recurso).
Decisão Texto Integral:
Os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte

ACÓRDÃO

I. Relatório:

AA e mulher, BB deduziram contra CC:
1. Inicialmente, a 07.03.2022, a providência cautelar, na qual:
1.1. Atribuíram o valor processual de € 30 001, 00 e pediram a condenação da requerida: a abster-se «de praticar todos e quaisquer actos que ofendam e lesem posse e a propriedade e direitos dos Requerentes, em que estes estão investidos e são titulares, relativamente à agua e à canalização (servidão) referidas neste articulado, para que a Requerida se abstenha de pôr qualquer obstáculo ao exercício dos direitos dos Requerentes , neles se incluindo o de continuarem a servir-se da água, tal como se vinha processando e na medida das necessidades do seu prédio e ainda condenar-se a Requerida a realizar os trabalhos necessários à reposição da circulação de agua através do seu prédio reparando os danos e ruptura que causou no tubo existente ou em alternativa permitir o acesso dos requerentes ao local para fazerem os trabalhos necessários para o efeito, suportando a Requerida os respectivos custos, fixando-se como sanção pecuniária compulsória a quantia de € 200,00 por cada dia de mora por parte da Requerida no cumprimento da decisão.»; a pagar a «quantia de € 2.000,00, sendo metade para os Requerentes. e metade para o Estado, por cada infracção que a Requerida cometa e que ponha em causa os direitos dos requerentes, quantia que se fixa a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829-A do Cód. Civil.».

1.2. A 28.06.2022 foi homologado o seguinte acordo:
«Cláusula Primeira
Os Requerentes e os Requeridos acordam que as águas identificadas nos artigos 10.º a 20.º, da petição inicial, supostamente propriedade dos ... conforme se alega na contestação, será discutida numa outra ação judicial a intentar por aqueles, mantendo as partes a suas posições vertidas nos articulados.
Cláusula Segunda
Quanto à água identificada nos artigos 21.º a 32.º da petição inicial a Requerida compromete-se a religar, provisoriamente, o tubo que transporta a água dos Requerentes e mantê-lo ligado até decisão proferida na ação principal a intentar no prazo legalmente previsto nos termos do disposto no artigo n.º 373.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil.
Cláusula Terceira
A Requerida obriga-se a efetuar e religação provisória impreterivelmente até ao dia ../../2022.
Cláusula Quarta
Os Requerentes nos termos expostos desistem dos demais pedidos.
Cláusula Quinta
As custas em dívida serão suportadas em partes iguais, por Requerentes e Requerida, prescindindo mutuamente de custas de parte.».

2. Após, a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, a 07.07.2022, à qual veio a ser apensada a providência cautelar de I-.1 supra, e na qual:

2.1. Na petição inicial, os autores atribuíram à ação o valor processual de € 5 000, 01 e pediram:
«a) Declarar-se o direito de propriedade dos AA. sobre a agua e canalizações e construções existentes no prédio identificado em 9.º desta petição
b) Condenar-se a R. a reconhecer este direito de propriedade dos AA. e a servidão e aqueduto que incidem sobre o prédio sua propriedade identificado em 9.º a favor dos AA.
c) Condenar-se a R a abster-se da prática de quaisquer actos lesivos do direito dos A. sobre a agua e canalizações e construções identificadas neste articulado e mais ser condenada a abster-se de praticar todos e quaisquer actos que ofendam e lesem posse e a propriedade e direitos dos AA, em que estes estão investidos e são titulares, relativamente à agua e à canalização e servidão de aqueduto referidas neste articulado, para que a Re se abstenha de pôr qualquer obstáculo ao exercício dos seus direitos, neles se incluindo o de continuarem a servir-se da água, tal como se vinha processando e na medida das necessidades dos seus prédio e o de se deslocarem até ao ao prédio rústico onde este se integra, para vigiar, acompanhar e conservar as obras de condução da água efectuadas pelos AA..
d) Condenar a Re a repor a condução da agua nas exactas condições em que esta se efectuava antes das obras que realizou e pagar o custo das mesmas, fixando-se em caso de incumprimento a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória de € 100 por cada dia de atraso que se verifique no cumprimento desta obrigação.
e) Condenar-se a Re a pagar aos AA. a titulo de indemnização por danos patrimoniais na quantia de € 2360,00 euros acrescida dos juros e de mora a taxa legal desde a data da citação ate efectivo e integral pagamento bem como na indemnização a titulo de danos não patrimoniais de € 1000 acrescidos dos juros de mora contados desde a data de citação ate efectivo e integral pagamento.
f) d) Bem como em custas e procuradoria condigna.».

2.2. No despacho saneador de 28.12.2022 foi fixado o valor da ação, através da seguinte decisão, sobre não impugnada em recurso:
«Na sua Petição Inicial vieram os Autores indicar como valor da acção o valor de 5.00,01 €.
A Ré não se pronunciou quanto a tal valor.
Foi dada a oportunidade aos Autores para justificarem o valor atribuído à causa, tendo os mesmos alegado que tiveram em conta as quantias peticionadas a título de danos
patrimoniais e não patrimoniais, o valor patrimonial dos seus prédios e um valor indicativo e estimado do direito de servidão de aqueduto.
A Ré não se pronunciou quanto a esta explicação.
Uma vez que cabe ao juiz fixar o valor da causa no despacho saneador, não estando vinculado ao valor indicado pelas partes (cfr. art.º 306.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil), cumpre decidir.
O valor da acção corresponde à utilidade económica imediata do pedido (cfr. n.º 1 do art.º 296.º do C. P. Civil), prevendo a lei vários critérios, gerais e específicos, para aferir de tal utilidade.
Para saber que critério utilizar é necessário atender aos pedidos formulados pelos Autores. Ora, com a presente acção os Autores pretendem: (…)
Prevê o art.º 297.º n.º 2 do C. P. Civil que, para efeitos de determinação do valor da causa, nos casos em que são formulados pedidos cumulativos deve o valor de cada um ser somado para se alcançar o valor final da acção.
Assim, terá o Tribunal de atribuir um valor certo a cada pedido e posteriormente somar todos.
Os pedidos formulados na al. A) prendem-se com o reconhecimento do direito de propriedade sobre águas e canalizações, ou seja, não existe um pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial.
Contudo, tendo em conta que não existe uma avaliação do valor das águas em causa, podemos tomar como referência o valor patrimonial do prédio dos Autores – 491,32 € – para fixar como valor das águas, canalizações e servidão de aqueduto esse mesmo valor.
Os pedidos formulados nas als. B) e C) são dependentes do primeiro pedido.
O pedido formulado na al. D) tem valor certo (cfr. art.º 297.º n.º 1 do C.P. Civil).
Pelo exposto, o valor da acção é de 3.851,32 €, nos termos dos arts.º 296.º, 299.º n.º 1, 306.º n.ºs 1 e 2, 302.º n.º 1 e 297.º n.ºs 1 e 2, todos do C.P.Civil.».
2.3. Na sentença de 05.05.2024 foi julgada improcedente a ação, nos seguintes termos:
«Por todo o exposto e ao abrigo dos preceitos legais supra invocados, decide este Tribunal julgar a presente ação totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolve a Ré, CC, dos pedidos contra si deduzidos pelos Autores, AA e BB.».
2.4. Os autores interpuseram recurso de apelação, em cujas conclusões:
a) Nas conclusões 1 a 3 introduziram a impugnação da matéria de facto e de direito e na conclusão 27 apresentaram conclusão sobre as mesmas.
b) Nas conclusões 4 a 16 declararam impugnar a matéria de facto:
c) Nas conclusões 17 a 26 defenderam, quanto à matéria de direito:
«17. o Tribunal a quo não coloca em causa a propriedade da agua – dos AA. nem a sua origem – cfr factos provados.
18. Nem que a mesma percorra o prédio da Re sendo conduzida através de um tubo, que a conduz ao prédio dos AA.
19. Uma acção em que se peça a condenação de quem se diz ter ofendido o direito de servidão de presa ou de aqueduto a abster-se dessa violação e reparar os estragos que tenha causado não é constitutiva, mas de condenação, referente apenas à servidão, seu exercício e violação por actuação considerada ilícita.
20. Na acção de condenação não constitutiva o seu objecto é a actuação daquele que em concreto ofende o direito do autor, não se pretendendo qualquer alteração na ordem jurídica existente, mas apenas que, reconhecendo-se que tendo o autor direito à água e a transportá-la em aqueduto para o seu prédio, os seus direitos foram ofendidos pelos réus devendo ser reintegrado neles.
21. No âmbito do procedimento cautelar apenso, na transação homologada por sentença a Re obrigou-se a “religar” o tubo que havia cortado. Se religou e assumiu ter cortado é porque o tubo existia no seu terreno e abastecia o prédio dos AA. Outra não pode ser a conclusão.
22. E o que se pede na açao é naturalmente o reconhecimento da servidão de aqueduto mas como fundamento para que a A. se abstenha da violação da mesma e o reconhecimento de que os AA. tem direito a agua e a transporta-la em aqueduto para o seu prédio através do prédio da Ré, tendo esta ofendido tal direito.
23. Mesmo sem alteração da matéria de facto devia já o tribunal ter julgado procedente este pedido, porem realizou errado enquadramento do direito aos factos, não o fazendo.
24. A servidão de aqueduto – tal como a de presa - pressupõe o direito à utilização da água. Portanto, mesmo que não se tivesse provado a quem pertencia a água, não tinha qualquer relevância para o reconhecimento da servidão de aqueduto (cfr., assim, o Ac. da RP de 27.04.2009, proc. 745/2002.P1, in www.dgsi.pt).
25. Deve assim, ser alterada a decisão proferida, julgando a ação totalmente procedente e condenando-se a Ré nos pedidos.».
2.5. A 25.10.2024 foi proferido despacho a indeferir a admissão do requerimento de recurso:
«Ref.ª ...47 de 18-06-2024: Inconformados com a sentença proferida nos autos, vieram os Autores, AA e mulher, BB, da mesma interpor recurso.
Sobre as decisões que admitem recurso, reza o artigo 629.º n.º 1, do C.P.C. que, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
Deflui, pois, do exposto, que, em princípio, a parte vencida apenas poderá recorrer de qualquer decisão se o valor do processo exceder a alçada do tribunal que a proferiu e, além disso, se o decaimento exceder metade dessa alçada.
Uma vez que as alçadas do tribunal de 1.ª instância e da Relação são, respetivamente, de 5.000,00 EUR e de 30.000,00 EUR, em regra, só é admissível a interposição de recurso de apelação ou revista quando o valor processual superar, respetivamente, aqueles limites e, além disso, quando a sucumbência da parte superar metade desse valor (cf. artigo 44.º, n.ºs 1 e 3, da L.O.S.J.).
Só assim não será se, independentemente do valor da causa, for sempre admissível recurso ao abrigo dos n.ºs 2 e 3, do citado artigo 629.º.
Ora, no caso, em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., o valor da causa foi fixado, no despacho saneador, em 3.851,32 EUR (cf. ref.ª ...54)
Este despacho não foi objeto de recurso, nem os Autores ou Réus impugnaram o valor atribuído à causa e que, como tal, se consolidou, pelo que, a sentença proferida nos autos não é passível de recurso, em conformidade com o n.º 1, do citado artigo 629.º, nem se verifica, no caso, qualquer uma das circunstâncias que permita a interposição de recurso independentemente desse valor.
Deflui, pois, do exposto, que não se verifica, desde logo, o primeiro requisito de que depende a admissibilidade do presente recurso, i.e., o valor da causa é inferior à alçada deste Tribunal.
Pelo exposto, decide-se não admitir o recurso interposto pelos Autores.».
2.6. A 05.11.2024 os autores/recorrentes reclamaram da falta de admissão do recurso de 2.5. supra, nos seguintes termos:
«Salvo o devido respeito, que é muito, na Decisão Reclamada o Juiz a quo fez incorreta apreciação dos factos e aplicação do Direito aos mesmos.
Olvida-se que, por um lado que a presente ação tem por origem e fundamento direto no prévio procedimento cautelar, que correu termos sob o n.º Providencia Cautelar com o nº 439/22.... no Juízo Local Cível de Viana do Castelo - Juiz ....
Essa mesma providencia cautelar constitui o apenso B dos presentes autos e tem o valor de € 30.000.01 euros.
Ora, este processo com valor de ação fixado em 30.000,01 deu origem, nos termos da Lei processual, porque a validade dos presentes autos está dependente do primeiro e vice-versa aos presentes autos de processo principal.
Tais circunstâncias determinam que se verifique relação de dependência entre o procedimento cautelar deduzido e o processo ulteriormente instaurado, sendo o direito que o requerente pretende ver acautelado pelo primeiro, idêntico ao objeto e âmbito de discussão no presente processo.
Assim verificando-se uma relação de instrumentalidade e dependência entre a providência cautelar e o presente processo onde são interessados os requerentes e a requerida da primeira, deverá aquela, ser apensada a este último, como se verificou pois era caso de consideração do disposto no artigo 364.º, n.º 2, do CPC.
Assim, e desde logo o valor da ação, para efeitos de recurso, deve considerar os valores fixados num e noutro processo que, somados, legitimam a o recurso interposto havendo assim fundamento para a legitimidade e interesse do embargado para interpor o presente recurso, bem como o esmo cumpre as regras da alçada.
Ademais, quer no procedimento cautelar, quer nos presentes autos foi pedida a “Condenar a Ré a repor a condução da agua nas exactas condições em que esta se efectuava antes das obras que realizou e pagar o custo das mesmas, fixando-se em caso de incumprimento a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória de € 100 por cada dia de atraso que se verifique no cumprimento desta obrigação;” cfr PI
Pelo que tal valor deve contabilizado para efeitos da admissão do recurso.
Sem prejuízo do exposto o recurso deve ser sempre admitido nos termos das alíneas c) e d) do art 629.º do CPC pois como consta das alegações e objeto do recurso, a decisão foi proferida no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, em concreto “A servidão de aqueduto – tal como a de presa - pressupõe o direito à utilização da água. Portanto, mesmo que não se tivesse provado a quem pertencia a água, não tinha qualquer relevância para o reconhecimento da servidão de aqueduto (cfr., assim, o Ac. da RP de 27.04.2009, proc. 745/2002.P1, in www.dgsi.pt).
E também o Acórdão do STJ preferido no processo 178/16.1T8TND.C1.S1, 7.ª SECÇÃO, in www.dgsi.pt onde em sentido contrario à decisão recorrida se decidiu: “ (…) A acção em que se peça a condenação de quem se diz ter ofendido o direito de servidão de presa ou de aqueduto a abster-se dessa violação e reparar os estragos que tenha causado não é constitutiva, mas de condenação, referente apenas à servidão, seu exercício e violação por atuação considerada ilícita. IV - Na acção de condenação não constitutiva o seu objecto é a actuação daquele que em concreto ofende o direito do autor, não se pretendendo qualquer alteração na ordem jurídica existente, mas apenas que, reconhecendo-se que tendo o autor direito à água e a transportá-la em aqueduto para o seu prédio, os seus direitos foram ofendidos pelos réus devendo ser reintegrado neles.”
Acresce que como se disse, a decisão a proferir no recurso afecta o acordo obtido na transação homologada por sentença no procedimento cautelar apenso. Deve assim, para efeitos de valor da açao serem as duas açoes e valores respectivos somados para efeitos de admissão do recurso e considerados no conjunto sob pena de se frustrar o direito ao recurso do Recorrente numa ação em que as consequências diretas da decisão proferida o efectam em montante acima do valor do tribunal Recorrido.
Na verdade, o requisito da alçada, em que se funda o despacho de rejeição do recurso, o direito ao recurso, designadamente o de interpor recurso para Tribunal Superior, não pode ser limitado pelo legislador ordinário, e , em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição sob pena de por uma questão de “quantum” se limitar ou impossibilitar um recurso.
Pese a jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual o que existe é um “genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude”, deve estar vedada, o que não se verifica, “a redução intolerável ou arbitrária” desse direito.
Este é também um direito que decorre do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e pese o direito ao recurso não se apresente com natureza absoluta, convivendo sempre com preceitos que fazem depender a multiplicidade de graus de jurisdição de determinadas condições objectivas ou subjectivas, estas devem respeitar os princípios constitucionais sendo certo que limitar em face do valor da ação um recurso não integra a amplitude constitucional de liberdade permitida ao legislador pela CRP.
Daí que a limitação nos termos do despacho proferido ofende os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito, e o direito a um processo justo e equitativo.
Pelo que se requer,
Seja dado provimento à presente reclamação, reformando-se e, ou, revogando-se a douta decisão que não admitiu o recurso interposto, substituindo-se essa por uma outra que o admita, com todas as devidas e legais consequências.».
2.7. A parte contrária opôs-se à reclamação, defendendo o despacho reclamado.
2.8. A 26.12.2024 foi proferida decisão sobre a reclamação, julgando a mesma improcedente e mantendo o despacho reclamado.
2.9. Os reclamantes, após notificados de I- 2.8. supra, reclamaram da decisão para a conferência, declarando «e não se conformando com o teor do mesmo vem IMPUGNAR a mesma – nos termos do n.º 4 do art 643 in fine do n.º 3 do art. 652.º ambos do CPC, com efeito suspensivo, para a CONFERENCIA, requerendo que, sobre a matéria do despacho recaia um acórdão. No mais mantem os fundamentos da Reclamação apresentada e que dá como integralmente reproduzidos.».
2.10. A reclamada opôs-se à reclamação de I- 2.9. supra e defendeu a manutenção da decisão de I-2.8. supra.

II. Questões a decidir:

Importa decidir se o despacho da 1ª instância e objeto da reclamação do art.643º do CPC, incorre em erro de direito: por o valor processual da presente ação dever incorporar o valor do procedimento cautelar que lhe está apenso, nos termos do art.364º/2 do CPC; por se verificarem as exceções do art.629º/2-c) e d) do CPC; por as limitações à recorribilidade defendidas no despacho ofenderem os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito e o direito a um processo justo e equitativo.

III. Fundamentação:

1. Enquadramento jurídico:
1.1. Fixação do valor processual da ação:
1.1.1. A cada causa deve ser atribuído um valor processual (art.296º do CPC).
É critério geral de fixação do valor da ação, em referência à altura em que a mesma é proposta nos termos do art.299º/1 do CPC, o previsto no art.297º/1 do CPC: «1 - Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.».
O valor da ação ou da causa pode contemplar a soma de valores: quando o autor formular vários pedidos cumulados, prevendo o art.297º/2 do CPC que «2 - Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.»; quando aos pedidos da ação se somarem pedidos reconvencionais de réu/reconvinte, definindo o art.299º/2 do CPC que «2 - O valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 530.º. 3 - O aumento referido no número anterior só produz efeitos quanto aos atos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção.».
1.1.2. Proferida decisão sobre o valor da causa, nos termos do art.306º do CPC, sobre a qual não seja interposto recurso, forma-se caso julgado nos termos gerais.
De facto, a lei ordinária, em decorrência do prescrito no art.205º da CRP, define: que a sentença que decida a relação material controvertida, que não seja passível de recurso ordinário ou de reclamação e tenha transitada em julgado (art.628º do CPC), fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º do CPC para o caso julgado e a litispendência, ressalvado recurso extraordinário de revisão dos arts.696º do CPC (art.619º do CPC) e sem prejuízo da oposição à execução baseada em sentença transitada em julgado (art.729º do CPC); que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (art.620º/1 do CPC).
Segundo o critério da eficácia, a decisão terá força obrigatória (arts. 619º/1 e 620º/1 do CPC): dentro do processo e fora dele, se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa (caso julgado material); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que tiver recaído unicamente sobre a relação processual (caso julgado formal).
Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição)»[i], manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:
a) Num efeito negativo e formal, que opera como exceção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a ação repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objeto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts.577º/i), 578º, 580º e 581º do CPC[ii]. Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objeto posterior[iii].
b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objetos processuais distintos[iv] [v]. Neste caso, a decisão anterior vincula a decisão de mérito do distinto objeto posterior[vi].

1.2. Recorribilidade de decisões:
1.2.1. A recorribilidade de uma decisão judicial é aferida nos termos previstos no art.629º do CPC.
Por um lado, o legislador define como regra que o recurso se afere pelo valor da ação face ao valor da alçada do Tribunal recorrido e pelo valor da sucumbência, nos termos do art.629º/1 do CPC- «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.».
O valor da alçada de 1ª instância de € 5 000, 00, de acordo com o fixado no nº1 do art.44º da LOSJ, aprovada pela Lei nº62/2013, de 26.08.
Por outro lado, o legislador prevê exceções nas quais o recurso é sempre admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência:
_ No art.629º/2-a) a c) do CPC prevê:
«2. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;
b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;». Neste caso da al. c), para que se julgue preenchido este fundamento de recorribilidade excecional da sentença, é necessário que o recurso invoque a contrariedade da decisão recorrida contra jurisprudência uniformizada, jurisprudência esta que se refere aos acórdãos de uniformização da jurisprudência, decididos pelo pleno das secções cíveis e previstos nos arts.686º e 687º e nos arts.688º a 695º do CPC.
__ No art.629º/3-a) a c) do CPC prevê:
«3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação:
a) Nas ações em que se aprecie a validade, a subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, com exceção dos arrendamentos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios;
b) Das decisões respeitantes ao valor da causa nos procedimentos cautelares, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Das decisões de indeferimento liminar da petição de ação ou do requerimento inicial de procedimento cautelar.».
Por outro lado, ainda, o legislador prevê, ainda, a recorribilidade das seguintes decisões, quando estas fossem irrecorríveis por razões estranhas à alçada do Tribunal, no art.629º/2-d) do CPC «d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.».
1.2.2. Os limites legais de recorribilidade de decisões judiciais, apesar terem sido objeto de impugnações no plano da constitucionalidade, têm sido julgados admissíveis e não violarem a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os arts.13º, 20º e 202º da CRP (passíveis de estar subjacentes à invocação feita na reclamação).
De facto, nenhuma das normas da Constituição invocadas prevê expressamente um direito constitucional ao recurso em processo civil, e sem que o mesmo pudesse sofrer limitações pelo legislador ordinário: o art.13º da CRP define apenas o princípio da igualdade de dignidade social perante a lei e de proibição de discriminação face aos fatores na mesma indicados («1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»); o art. 20º da CRP define o princípio geral do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (através da previsão apenas de que «1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. 2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. 3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça. 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.»); o art.202º da CRP, respeitante à função jurisdicional dos Tribunais da Parte da Organização Política, define tão só que «1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. 2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. 3. No exercício das suas funções os tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades. 4. A lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos.»).
Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal Constitucional não tem considerado inconstitucionais os limites de recorribilidade de decisões, por considerar que o legislador ordinário goza em processo civil de amplas possibilidades de conformação em matéria de recursos, desde que a restrição não seja arbitrária. Neste sentido, veja-se, v.g. o AC. TC 253/18, relatado por Gonçalo de Almeida Ribeiro[vii]. Lopes do Rego, por sua vez, também reiterou que «A Jurisprudência constitucional tem entendido, de forma reiterada, que- fora do âmbito do processo penal- não está generalizadamente assegurado o “direito ao recurso”, que não pode considerar-se compreendido no art.20.º da Constituição- embora não seja lícito ao legislador estabelecer arbitrariamente limitações ao recurso em determinados processos ou situações sem que tal regime de desfavor seja suportado por uma justificação objectiva ou razoável»[viii].

2. Apreciação da situação em análise:

Importa apreciar a reclamação do art.643º do CPC (face à reclamação para a conferência da decisão singular proferida na mesma), atendendo aos atos processuais provados e relatados em I supra e ao regime de direito aplicável situação exposto em III- 1. supra.
Por um lado, no despacho saneador de 28.12.2022 foi fixado à presente ação o valor processual de € 3 851,32 (referido em I- 2.2. supra).
A impugnação dos critérios de fixação do valor processual da ação utilizados neste referido despacho, caso os autores/aqui recorrentes entendessem que os mesmos estavam errados, deveria ter sido feita no recurso desse despacho de fixação de valor, sempre recorrível independentemente do valor, nos termos do art.629º/2-b) do CPC.
Ora, não tendo os autores/aqui recorrentes interposto recurso desse despacho de fixação de valor processual, este transitou em julgado e impõe-se definitivamente nesta ação comum (conforme referido em III-1.1.2. supra).
Assim, não podem os recorrentes discutir nesta reclamação do art.643º do CPC o valor fixado nesse despacho saneador, nem os critérios no mesmo utilizados ou não utilizados. De qualquer forma, ainda que pudesse ser feita essa discussão, a defesa dos recorrentes de que o valor processual da ação deveria ser somado ao valor processual do procedimento cautelar preliminar e apenso, não tem qualquer fundamento jurídico, face ao regime legal, em particular o referido em III.- 1.1.- 1.1.1. supra (o valor processual é fixado em cada processo, seja ação ou procedimento cautelar, nos termos dos arts.296º ss e 304º/3 do CPC; a soma de valores está apenas prevista para a cumulação dos pedidos em cada ação e para determinar o valor da causa, entre os pedidos da ação e os pedidos da reconvenção que tiverem utilidade distinta daqueles, conforme referido em III- 1.1.1.1. supra; o valor atribuído ao procedimento cautelar, de cariz provisório, não determina a fixação de valor da ação definitiva).
Ora, o valor da ação de € 3 851,32 é inferior ao valor da alçada de 1ª instância de € 5 000, 00.
Desta forma, não está preenchido o requisito regra de recorribilidade das decisões, que exige que a causa tenha valor superior à alçada da 1ª instância, nos termos do art.629º/1 do CPC.
Por outro lado, os fundamentos da apelação expostos em I-2.4. supra, sobre a qual recaiu o despacho de não admissão, aqui reclamado, não integram a invocação de erro da decisão por violação de algum acórdão de uniformização de jurisprudência (sendo que os acórdãos da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça invocados nesta reclamação, ainda que tivessem ambos sido invocados no recurso, tratam-se apenas, respetivamente, de acórdãos proferidos em recursos ordinários de apelação e de revista), que pudesse preencher a previsão de recorribilidade excecional do art.629º/2-c) do CPC, nos termos como a mesma também foi explicada em III-1.2.1. supra
Por outro lado, ainda, também não é aplicável ao recurso de apelação de uma sentença o fundamento de recorribilidade excecional do art.629º/2-d) do CPC, apenas aplicável ao recurso (de revista) de um acórdão da Relação, com o fundamento deste se encontrar em contradição com outro acórdão da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental.
Por fim, não se reconhece que os limites de recorribilidade do art.629º do CPC violem normas constitucionais, face ao referido em III-1.2.2. supra e à presente situação.
Assim, e não tendo sido suscitado, nem se verificando o preenchimento, de qualquer outro dos fundamentos da recorribilidade excecional prevista nos nº2 e nº3 do art.629º do CPC, improcede a reclamação e confirma-se o despacho reclamado, exatamente como fez a decisão singular impugnada.

IV. Decisão:

Pelo exposto, os juízes da 1ª secção cível acordam não atender à reclamação da decisão singular de 26.12.2024, e, em consequência, julgar improcedente a reclamação apresentada nos termos do art.643º do CPC e manter-se o despacho do Tribunal a quo reclamado.
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Custas da reclamação pelos reclamantes, fixando a taxa de justiça em 1 UC.
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Guimarães, 06.02.2025
Elaborado, revisto e assinado eletronicamente pelo coletivo de juízes

Alexandra Viana Lopes (J. Des. Relatora)
Maria Gorete Morais (J. Des. 1ª Adjunta)
João Peres (J. Des. 2º Adjunto)


[i] Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, Almedina, vol. II, Almedina, 2018, nota 2-I ao art.619, pág.185.
[ii] Lebre de Freitas, in «Um polvo chamado Autoridade do Caso Julgado», pág.693, in www.portal.oa.pt
[iii] Ac. RG de 07.08.2014, relatado por Jorge Teixeira no processo nº600/14.TBFLG.G1.
[iv] Lebre de Freitas, in artigo citado in ii, pág.693
[v] Rui Pinto, in obra citada in i, nota 2- II ao art.619, pág.186.
[vi] Ac. RG de 07.08.2014, referido supra.
[vii] Vd. acórdãos e doutrina citados por José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol.3º, Almedina, março de 2022, nota 3 ao art.629º, págs.24 e 25.
[viii] Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Dezembro de 1999, nota VII ao art.678º do CPC, pág.453.