Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1549/23.2T9BRG.G1
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
LICENÇA AMBIENTAL
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. Considerando que da factualidade provada da decisão recorrida não consta a narração concretizada de factos consubstanciadora do tipo de culpa dolosa do ilícito contraordenacional pelo qual a arguida/recorrente veio a ser condenada e que foi invocada factualidade suscetível de a materializar/abalar, factualidade essa completamente descurada pelo tribunal a quo, verifica-se a existência do vício decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ínsito no artigo 410.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.

II. O facto de a arguida ter sofrido anterior condenação pela prática do mesmo tipo de contraordenação, de per si não é de molde a permitir a tipificação da conduta como dolosa ou, ao invés, meramente culposa.

III. É necessário apurar a razão ou razões que levaram a que volvidos 12 anos ainda não tenha sido proferida uma decisão sobre o pedido de licença ambiental formulado pela arguida/recorrente, da existência de eventual ocorrência de uma causa de indeferimento, sendo certo que o seu desconhecimento nunca poderia ter sido valorado, sem mais, em processo contraordenacional contra a arguida/recorrente, sob pena de se afrontar o princípio do in dubio pro reo.

IV. Acresce que com a entrada em vigor do DL n.º 11/2023 de 10 de fevereiro, que procedeu à reforma e simplificação dos licenciamentos ambientais, foi introduzida uma significativa alteração ao artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de agosto, tendo o legislador deixado cair por terra a exigência de “não se verificar nenhuma causa de indeferimento”, bastando-se com o decurso do prazo legalmente previsto para a decisão sem que esta tenha sido notificada ao interessado, para considerar tacitamente deferido o pedido de licenciamento e, in casu, desconhece-se se foi obtida alguma certificação nesse sentido.

V. Em virtude da mencionada alteração legislativa, com plenos efeitos desde 01-01-2024 - data anterior à da prolação da decisão recorrida - cumpria averiguar se, entretanto, alguma decisão havia sido notificada à arguida/recorrente sobre o por si peticionado pedido de licenciamento e o teor dessa mesma decisão.
Decisão Texto Integral:
I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito dos autos de recurso contraordenacional n.º 1549/23.... [1], que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Braga - Juiz ..., Tribunal Judicial da Comarca de Braga, na sequência de recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida/recorrente “EMP01..., Lda.”, melhor identificada nos autos, de decisão condenatória proferida pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, a 09-02-2024, veio o tribunal a quo a proferir sentença com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“(…)
Pelo exposto o Tribunal decide:
 A) Julgar o recurso parcialmente procedente e, em conformidade, condenar a arguida “EMP01..., Lda” na coima de 120.000,00 €, pela prática da contraordenação prevista no art.º 111.º n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08;
(…)”.

I.2 Recurso da decisão

Inconformada com tal decisão, dela vem recorrer a arguida para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“ (…)
1. A douta sentença recorrida padece dos vícios elencados no art. 410º, nº 2, als. a) e b) do CPP, os quais, nos termos do art. 426º do mesmo código, determinam o reenvio do processo para novo julgamento.
2. Atentos os fundamentos de facto e de direito invocados nestas alegações de recurso, a atividade industrial desenvolvida pela arguida, após a apresentação do pedido de Licença Ambiental, deve ser tida como lícita, quer pelo facto de estar autorizada pelo art. 13º, nº 4 do DL 194/2000, quer pela circunstância de a falta de resposta àquele seu pedido de licença, desrespeitando os prazos previstos no artigo 21º do DL 194/2000 de 21 de Agosto, atento o estatuído no artigo 108º do Código de Procedimento Administrativo, na versão introduzida pelo DL 442/91 de 15 de Novembro, ter conduzido ao seu deferimento tácito.
3. Uma interpretação diversa das aludidas normas legais, que defenda que não se verificou o deferimento tácito, comporta a violação dos princípios constitucionais do livre exercício da iniciativa privada, previstos nos arts 61º, nº1 e 86º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.
4. Em alternativa, se o entendimento da Relação propender para a existência de ilicitude, as circunstâncias em que ocorreu a suposta contraordenação são de molde a excluir a culpa da arguida.
5. De facto, o hiato temporal de mais de 12 anos que medeia entre o pedido de atribuição de Licença Ambiental e a instauração do presente auto de contraordenação, sem que as entidades competentes tenham dado qualquer resposta (demora que a sentença qualifica de injustificada) e sem que possa imputar-se à arguida qualquer conduta omissiva, jamais poderia merecer qualquer juízo de censura.
6. Pese embora as instalações existentes estivessem licenciadas pelo Ministério da Economia (Direção Regional do Norte) e pela Câmara Municipal ..., auguramos que as autoridades competentes pretendiam que a Recorrente, durante o referido hiato temporal de 12 anos (e os que poderiam advir), encerrasse a empresa, comprometendo a sua sobrevivência, prejudicando o tecido económico do país e o emprego de uma centena de funcionários.
7. Estaríamos, neste caso, perante uma exigência que não é legítima, muito menos razoável.
8. Numa situação de contornos algo similares à dos presentes autos, o acórdão proferido em 18.02.2020 pelo Tribunal da Relação de Évora (Pº 3137/19), publicado no site DGSI.pt, concluiu expressamente que: “O pedido de licença ambiental efectuado pela empresa proprietária da exploração pecuária em causa, e as diligências desenvolvidas ao longo de anos no sentido do seu deferimento, não permite imputar à arguida/recorrente, concessionária dessa mesma exploração, uma actuação negligente.”
9. A concluir-se pela prática de uma conduta contraordenacional, com fundamento na falta de Licença Ambiental, ela ter-se-ia consumado em Outubro de 2007, data limite prevista no art. 13º, nº 1 do DL 194/2000 para a obtenção dessa licença, pela qual a arguida já havia sido condenada por sentença proferida no âmbito do processo 3916/18.....
10. A confirmar-se essa infração, ela caraterizar-se-á como infração instantânea de efeitos permanentes.
11. Neste caso, a sentença condenatória de que se recorre traduz-se em ofensa ao princípio non bis in idem, consagrado no artº 29º nº5 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.”
12. Em consequência, a sentença recorrenda violou, nessa medida, os preceitos legais reportados nas alegações e conclusões do recurso.

TERMOS EM QUE,
deve a sentença recorrida ser revogada nos termos e com os fundamentos
constantes das alegações e conclusões recursivas, (…)”.

I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, o Exmo. Sr. Procurador da República junto da 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela sua improcedência.

I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, apresentando a seguinte conclusão [transcrição]:
“(…)
III- Assim, em CONCLUSÃO, somos de parecer que deverá o recurso ser declarado procedente revogando-se a decisão recorrida e remetendo-se os autos à 1ª instancia para novo julgamento.”.

I.5. Resposta

Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:

II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[2]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[3].
Assim, face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir reconduzem-se:

® Ao vício decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ínsito na alínea a), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
® Ao vício decisório da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ínsito na alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
® À alegada inexistência de ilicitude e exclusão da culpa.
® À violação do princípio non bis in idem.

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“(…)
I. RELATÓRIO
Nos presentes autos de impugnação judicial de decisão administrativa, o Ministério Público acusou (nos termos do art.º 62.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, doravante RGCO) “EMP01..., Lda.”, melhor identificada nos autos, pela prática da contraordenação prevista no art.º 111.º n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08.
*
Pela prática do referido ilícito contraordenacional foi a arguida condenada na coima de 240.000,00 €.
*
Em sede de recurso judicial interposto pela arguida veio esta impugnar tal decisão, defendendo, em primeira linha, que pediu a atribuição de licença ambiental já em 2007, sendo alheia ao porquê de a mesma ainda não ter sido concedida e, assim, agindo sem culpa.
Subsidiariamente, requer a arguida que a coima aplicada seja especialmente atenuada.
*
(…)
Questões a decidir:
A) Se a arguida agiu sem culpa;
B) Em caso negativo, se a coima deve ser especialmente atenuada.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO A. DE FACTO

Com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1) No dia ../../2019, pelas 09h30, o estabelecimento da arguida situado na Quinta ... - Apartado ...37, ..., ..., encontrava-se em funcionamento;
2) A arguida dedica-se à fundição injetada de alumínio, tendo o CAE principal 24540 - R3, sendo as peças fundidas do tipo caixilharia, componentes de máquinas de encadernação e de peças para a indústria automóvel, com capacidade instalada de 78 t/dia (Forno 1: 24 t/dia, Forno 4: 48 t/dia, Forno cadinho: 6 t/dia), actividade enquadrada na alínea b) da categoria 2.5 do Anexo I do DL n.º 127/2013, de 30/08 (Regime - PCIP);
3) A arguida não tem Licença Ambiental;
4) Ao actuar da forma descrita, a arguida, através do seu legal representante e/ou funcionários, incumpriu obrigação prevista na lei, bem sabendo que a mesma lhe estava cometida, atento o facto de integrar as normas que regem a sua actividade;
5) A arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente;
6) No âmbito do Processo n.º 3916/18...., por decisão transitada em julgado a 09/01/2019, foi a arguida condenada na coima de 17.000,00 € pela prática (a 24/07/2013) da contraordenação prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08;
7) A arguida efectuou um pedido de atribuição de Licença Ambiental em 2007, tendo feito o respectivo pagamento, não tendo, até à data, decisão.
*
Inexistem factos não provados.
*
Motivação de facto

Para considerar os factos provados supra enumerados, o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações do legal representante do arguido, na prova testemunhal produzida e na prova documental junta aos autos.
A arguida não coloca em causa que não tem Licença Ambiental, dizendo, apenas, que actuou sem culpa porque já fez o pedido para atribuição desta em 2007 e nada foi decidido.
Ora, tal argumentação não pode proceder.
A arguida sabe (porque o próprio legal representante e os seus trabalhadores o afirmaram) que não tem Licença Ambiental e que é obrigada a ter para poder continuar a laborar.
A questão no atraso na atribuição desta é uma questão paralela, que não torna a actuação da arguida não culposa.
Aliás, tal já foi explicado à arguida em anterior sentença, proferida no Proc. n.º 3916/18...., tendo a arguida persistido no seu comportamento, sendo, pois, óbvio e lógico que actuou com o perfeito conhecimento que não tinha Licença Ambiental e que, sem esta, não podia continuar a laborar.
Pelo exposto, foram dados como provados os factos relevantes da decisão impugnada, que na realidade não estavam impugnados, a não ser os factos relativos à culpa da arguida.
**
B. DE DIREITO

Da prática da contraordenação:

A arguida vem acusada da prática da contraordenação prevista no art.º 111.º n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08.
A al. a) do referido normativo prevê que “constitui contraordenação ambiental muito grave, nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto, (…) o funcionamento de uma instalação abrangida pelo presente decreto-lei sem as licenças previstas no presente decreto-lei”.
Subsumindo os factos ao direito, conclui-se que a arguida estava a laborar sem a competente licença ambiental, tendo perfeita consciência de que necessitava de tal licença para continuar em funcionamento.
Efectivamente, no dia ../../2019, pelas 09h30, o estabelecimento da arguida situado na Quinta ... - Apartado ...37, ..., ..., encontrava-se em funcionamento, sendo que a arguida se dedica à fundição injetada de alumínio, tendo o CAE principal 24540 - R3, sendo as peças fundidas do tipo caixilharia, componentes de máquinas de encadernação e de peças para a indústria automóvel, com capacidade instalada de 78 t/dia (Forno 1: 24 t/dia, Forno 4: 48 t/dia, Forno cadinho: 6 t/dia), actividade enquadrada na alínea b) da categoria 2.5 do Anexo I do DL n.º 127/2013, de 30/08 (Regime - PCIP).
A submissão de pedido de concessão da licença ambiental em 2007 e a falta de resposta até hoje é completamente irrelevante para se aferir, ou não, da prática da contraordenação.
Não tendo a necessária Licença Ambiental, a arguida sempre tinha a opção de deixar de funcionar até obter a licença, tendo optado por continuar aberta e, assim, a praticar uma contraordenação.
Veio ainda a arguida invocar o art.º 9.º n.º 1 do RGCO.
Determina o referido normativo que “age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”.
No caso de o erro ser censurável, a coima pode ser especialmente atenuada (cfr. art.º 9.º n.º 2 do mesmo diploma).
Voltando aos factos provados, inexiste qualquer erro sobre a ilicitude da conduta. A arguida bem sabia que o seu comportamento – funcionar sem Licença Ambiental – era proibido, tanto mais que já tinha sido condenada pela mesma contraordenação anteriormente.
Pelo exposto, estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos da contraordenação em causa.
*
Da medida da coima:

(…)
Vejamos, então, o caso concreto.
A arguida encontrava-se a laborar sem Licença Ambiental, tendo agido com dolo, o que constitui uma contraordenação muito grave, pelo que os limites mínimos e máximos da coima são de 240.000,00 € a 5.000.000,00 € (cfr. art.º 22.º n.º 4 al. b) da LQCOA).
A entidade administrativa decidiu aplicar a coima de 240.000,00 €, não atenuando a mesma por a arguida já ter um antecedente contraordenacional pela prática da mesma contraordenação.
Contudo, é necessário não esquecer que a arguida já submeteu o pedido de concessão da Licença Ambiental em 2007, pagando o respectivo valor e estando a aguardar, sem justificação para a demora da resposta, a decisão da APA.
É patente que esta circunstância tem de ser tomada em consideração para atenuar especialmente a coima, tratando-se de circunstância anterior e posterior (pois ainda se mantém) que diminui de forma acentuada a ilicitude do facto e a culpa da arguida.
Aplicando a atenuação especial da coima, a moldura abstracta passa a ser de 120.000,00 € a 2.500.000,00 €.
Considerando tudo o que já foi dito quanto à conduta da arguida, entende o Tribunal que a coima proporcional, suficiente e adequada é de 120.000,00 € (mínimo legal).
(…)”.

Apreciação do recurso:

Como é sabido, pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2019 de 2 de julho, foi fixada a seguinte jurisprudência:
«Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.».
E deste consta ainda que:
“(…)
- a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima não constitui um verdadeiro recurso, mas um reexame do objeto processual com plenos poderes em matéria de facto e de direito, com possibilidade de produção de prova;
- desta decisão judicial poderá haver recurso para a 2.ª instância, cujo objeto está apenas delimitado pelas questões de direito alegadas, podendo o tribunal conhecer de quaisquer questões de direito que a decisão recorrida pudesse ter conhecido, sem que esteja vinculado "aos termos e ao sentido da decisão recorrida", ou seja, sem que esteja vinculado aos fundamentos jurídicos expostos na decisão recorrida, e sem que esteja limitado apenas à análise de questões de direito decididas em sede de 1.ª instância;
- o recurso para a 2.ª instância restrito a matéria de direito, por força do disposto no art. 74.º, n.º 4, do RGCO, pode ter por fundamento qualquer um dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, não havendo qualquer restrição a este conhecimento atendendo a que o tribunal ad quem não está vinculado ao sentido e aos fundamentos da decisão recorrida;
- concluindo-se pela existência de alguns dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deverá o processo ser devolvido ao tribunal recorrido, nos termos do art. 75.º, n.º 2, al. b), do RGCO;
- em sede de 2.ª instância poderão ainda ser conhecidas as nulidades não sanadas, desde que arguidas ou de conhecimento oficioso, nos termos do art. 410.º, n.º 3, do CPP, ex vi art. 74.º, n.º 4, do RCGO.
Assim sendo, em processo contraordenacional, uma questão relativa a matéria de direito e conexionada com o objeto processual, ainda que não tenha sido debatida em 1.ª instância, poderá ser alegada e decidida em sede de recurso para a 2.ª instância, isto é, no processo contraordenacional, em sede de recurso, o tribunal de 2.ª instância pode decidir sobre questões de direito, ainda que estas não tenham sido objeto da impugnação judicial, competindo-lhe também apreciar os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e as nulidades (não sanada) nos termos do art. 410.º, n.º 3, do CPP. [sublinhado e negrito nossos].

Atentando nestas breves considerações gerais, comecemos, então, por analisar se a decisão recorrida padece ou não dos invocados vícios decisórios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ínsitos, respetivamente, nas alíneas a) e b) do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Insurge-se a arguida/recorrente contra a decisão recorrida, invocando a existência dos apontados vícios decisórios, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ínsitos, respetivamente, nas alíneas a) e b) do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Argumenta, para o efeito, que a matéria de facto provada apresenta-se insuficiente para a formulação de um juízo condenatório seguro, em particular para a afirmação da ilicitude, dado ser lacunar relativamente ao contexto e circunstâncias da laboração da empresa, aquando da imposição da obrigação legal de obtenção da Licença Ambiental, bem como sobre as vicissitudes do procedimento administrativo, instaurado na sequência do pedido de licença ambiental, em junho de 2007, tendo o tribunal a quo desconsiderado matéria de facto relevante para a criação de um juízo sólido no sentido da condenação, que poderia ter recolhido dos elementos insertos no próprio relatório da autoridade administrativa e nos documentos juntos ao processo.
Além disso, prossegue a arguida/recorrente existe contradição insanável entre os factos vertidos nos itens 3 – “a arguida não tem licença ambiental”; 7 – “a arguida efectuou um pedido de atribuição de licença ambiental em 2007, tendo feito o respectivo pagamento, não tendo até à data, decisão” e 8 – “a arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente” – uma vez que a arguida estava não apenas autorizada a laborar nas instalações existentes até à decisão, assim como não sendo esta proferida nos prazos previstos no art. 21º do Dl 194/2000 de 21 de Agosto, por aplicação do art. 108º do Código de Procedimento Administrativo, na versão introduzida pelo DL 442/91 de 15 de Novembro (tempus regit actum), alcançar-se-ia o deferimento tácito da Licença Ambiental.
Conclui, nessa sequência argumentativa, pela verificação dos apontados vícios decisórios, determinantes, nos termos do artigo 426.º, do Código de Processo Penal, do reenvio do processo para novo julgamento.
Vejamos:
O invocado artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”, dispõe o seguinte:
“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[4]. Tratam-se de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser autossuficiente.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provado seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada[5].
Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito,  de um “vício de confecção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir , tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final  do silogismo judiciário”.[6]
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
E, in casu, verifica-se, desde logo, o primeiro dos apontados vícios, ou seja, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [previsto na al. a), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal].
Com efeito, verifica-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando o tribunal não tiver considerado provado ou não provado um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer, nos termos do n.º 1 do artigo 358.º, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção, partindo-se do entendimento de que este vício distingue-se da nulidade da sentença prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, uma vez que esta só existe quando o tribunal não se tiver pronunciado sobre «questões que devesse apreciar» ou quando se tiver debruçado sobre «questões de que não podia tomar conhecimento», sendo que os conceitos de facto e de questão não são sobreponíveis.[7]
O próprio Supremo Tribunal de Justiça reconhece que os vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, estão «umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374 nº2 do Código de Processo Penal, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal» [8]
 Parte-se, afinal, do princípio de que na delimitação de toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduz à solução legal, compreende os factos alegados pela acusação e pela defesa, o que significará que o vício resulta da própria decisão, integrando esta com a acusação e a contestação, enquanto elementos que moldam o objeto da causa.
“1 – O ter um acórdão omitido pronúncia quanto a determinados factos alegados pelo arguido em sede de contestação, não os considerando como não provados, nem como provados não determina a nulidade prevista no art. 379.º, n° 1, al. c), 1ª parte do CPP
2 – O que releva é antes a ocorrência de um vício da matéria de facto: insuficiência da matéria de facto [art. 410.º n.º 2, a) do CPP], com o eventual reenvio para novo julgamento, insuficiência que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339.º, n.º 4 do CPP.
3 – Na verdade, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito. (…)»[9]
Trata-se de um vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa – artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adotada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objeto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal.[10]
Ora, descendo ao caso dos autos, constata-se que a sentença recorrida é lacónica, parca na apreciação dos factos, quanto a um dos elementos essenciais para a apreciação do recurso, concretamente no que tange ao elemento subjetivo da tipologia contraordenacional imputada à arguida/recorrente.
Veja-se que a arguida/recorrente foi condenada pelo tribunal a quo numa coima de 120.000,00 €, pela prática da contraordenação prevista no art.º 111.º n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08.
Porém uma simples leitura da sentença recorrida demonstra que esta não encerra em si a factualidade provada necessária ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo, na vertente dolosa, convocada pelo tribunal a quo aquando da fundamentação de direito/determinação da medida da coima.

Na verdade, a factualidade provada respeitante ao ilícito contraordenacional pelo qual a arguida/recorrente foi condenado é apenas a seguinte:

“1) No dia ../../2019, pelas 09h30, o estabelecimento da arguida situado na Quinta ... - Apartado ...37, ..., ..., encontrava-se em funcionamento;
2) A arguida dedica-se à fundição injetada de alumínio, tendo o CAE principal 24540 - R3, sendo as peças fundidas do tipo caixilharia, componentes de máquinas de encadernação e de peças para a indústria automóvel, com capacidade instalada de 78 t/dia (Forno 1: 24 t/dia, Forno 4: 48 t/dia, Forno cadinho: 6 t/dia), actividade enquadrada na alínea b) da categoria 2.5 do Anexo I do DL n.º 127/2013, de 30/08 (Regime - PCIP);
3) A arguida não tem Licença Ambiental;
4) Ao actuar da forma descrita, a arguida, através do seu legal representante e/ou funcionários, incumpriu obrigação prevista na lei, bem sabendo que a mesma lhe estava cometida, atento o facto de integrar as normas que regem a sua actividade;
5) A arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente;
6) No âmbito do Processo n.º 3916/18...., por decisão transitada em julgado a 09/01/2019, foi a arguida condenada na coima de 17.000,00 € pela prática (a 24/07/2013) da contraordenação prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08;
7) A arguida efectuou um pedido de atribuição de Licença Ambiental em 2007, tendo feito o respectivo pagamento, não tendo, até à data, decisão.” [sublinhado e negrito nossos].

Ou seja, é incontestável que na data da alegada prática do ilícito contraordenacional que aqui lhe vem imputado, a arguida/recorrente estava a laborar, que carece de licença ambiental para o efeito e que ainda não foi proferida qualquer decisão sobre o pedido de atribuição de Licença Ambiental que havia formulado, porém, não se pode esquecer que é igualmente incontestável que tal pedido de atribuição de Licença Ambiental foi efetuado pela arguida/recorrente já no ano de 2007, ou seja 12 anos antes da alegada prática do ilícito contraordenacional com que ora se vê confrontada, tempo mais do que suficiente, cremos nós, para que já tivesse sido proferida uma decisão.
Concordamos que não basta apresentar o pedido de licenciamento e aguardar, pacificamente, que algo aconteça, em contínua laboração, como se nada se passasse, porém não é menos verdade que a factualidade provada não nos permite tirar tal ilação, ou seja, que desde a data do pedido a arguida nada tenha feito com vista a obter tal decisão, e além disso é imperioso apurar porque razão volvidos 12 anos [tendo por referência a data da alegada prática do ilícito contraordenacional] ainda não foi proferida qualquer decisão sobre tal pedido, se o atraso nessa decisão é imputável à arguida ou à entidade decisora, sendo certo que a arguida/recorrente alegou diversa factualidade nesse sentido que se afigura de relevo conhecer e que o tribunal a quo desprezou, sem qualquer justificação.
Tal factualidade é relevante para apurar da existência do elemento subjetivo do tipo e, consequentemente, pela prática do apontado ilícito contraordenacional por parte da arguida/recorrente, sendo de notar, aliás, que a esse título apenas consta da sentença recorrida, concretamente da factualidade provada, que a arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente, sem qualquer sustento factual para tal, tanto mais que, analisada a decisão administrativa que constitui o objeto da impugnação judicial, ali foi dado como provado, não só que “a arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente” [alínea g)] – imputação dolosa - mas também que “(…) a arguida não agiu com a diligência necessária a que estava obrigada e de que era capaz (…)  [alínea i)] – imputação negligente -, e desse antagonismo o tribunal a quo não tirou qualquer consequência, designadamente em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Em suma, da factualidade provada não decorre um único facto que permita tirar a ilação ali vertida de que a arguida/recorrente agiu de forma “voluntária, livre e consciente”.
Como se refere no Ac. do STJ de 06.11.2008[11], “Uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contraordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar. Para além disso, deve conter os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional, pois, nos termos do art. 8.º do RGCO só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos previstos na lei, com negligência.”. [sublinhado e negrito nossos].
Como bem refere a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer o tribunal a quo não tomou posição sobre factualidade relevante invocada em fases anteriores do processo, máxime na impugnação judicial, que sendo relevante para além do mais aferir da existência de dolo, são invocados factos não constam da matéria de facto provada nem nos factos não provados (que são inexistentes).
Na sentença recorrida foi considerado não existir matéria de facto não provada, quando é certo que na impugnação judicial são invocados factos relevantes relativamente ao dolo/culpa, ou falta dela, do recorrente na obtenção da licença ambiental em falta, e que não mereceram qualquer atenção por parte da Mª juiz recorrida, sendo certo que o factos que considerou provados, (…), não constituem base factual suficiente que permita a imputação da pratica da contraordenação a titulo de dolo (…).
O simples facto de se dizer que a arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente (facto provado no ponto 5), desacompanhada de outros elementos, ou até de elementos contraditórios como se nos afigura ser o caso (cfr confronto entre os factos provado nos pontos 5 e 7), não pode permitir a conclusão de que estamos perante uma conduta dolosa.
Não se ignora que o recorrente aquando da fiscalização que originou estes autos já tinha sido condenada pela pratica do mesmo tipo de contraordenação, porém este facto podendo influir na medida concreta da pena de per si não é de molde a permitir a tipificação da conduta como dolosa ou, ao invés, meramente culposa, impondo-se apurar as circunstancias concretas que levaram à não emissão da licença e o porquê da arguida continuar a laborar sem a licença ambiental.
A fundamentação constante na decisão recorrida que a recorrente na ausência de licença deveria encerrar é vaga e descontextualizada, deveria ter-se apurado, e não apurou, quantos trabalhadores estão ao seu serviço, qual a solvabilidade económica da recorrida e quais as consequências do enceramento, o que não foi feito. A sentença é em absoluto omissa no que toca à situação económica da recorrente.
Do facto provado no ponto 7 resulta tão só que a recorrente cumpriu o ónus que sobre si recaía de pedir a licença ambiental, o que ocorreu em 2007, pagando o valor correspondente, impunha-se averiguar as razões que levaram à não emissão da licença, e a eventual existência de alguma ocorrência (imputável ao recorrente ou à entidade administrativa) justificativa de tal omissão ao longo de tantos anos, desconhece-se e era importante saber se a recorrente diligenciou e tomou medidas para obstar à inércia da entidade administrativa como lhe competia.”
A realidade é que o respetivo “processo de licenciamento” já se havia iniciado 12 anos antes da data dos factos e era do conhecimento da própria autoridade administrativa, que simplesmente o ignorou, do mesmo não extraindo qualquer consequência, designadamente quanto ao elemento subjetivo da conduta que imputou à arguida, como se lhe impunha que o fizesse, sendo certo que se o mero facto de pedir tal licença não permite, por si só que a arguida continue a laborar como se nada se passasse, não é menos verdade que se mostra relevante saber porque assim atuou e porque razão volvidos 12 anos após a data de tal pedido de licenciamento não foi proferida qualquer decisão sobre o mesmo, concretamente, se tal situação se deve ou não a razões imputáveis à arguida.
Só então, estará o tribunal a quo na posse de todos os elementos necessários para concluir pela existência, ou não, de conduta dolosa/negligente por parte da arguida/recorrente e, bem assim, para decidir a questão do erro sobre a ilicitude que lhe foi colocada em sede de impugnação judicial ao abrigo do artigo 9.º do RGCO.
Acresce que não se pode esquecer que estamos a falar de um hiato temporal de 12 anos para a tomada de uma decisão e o artigo 23.º, do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de agosto [Estabelece o regime de emissões industriais aplicável à prevenção e ao controlo integrados da poluição, bem como as regras destinadas a evitar e ou reduzir as emissões para o ar, a água e o solo e a produção de resíduos, transpondo a Diretiva n.º 2010/75/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativa às emissões industriais (prevenção e controlo integrados da poluição], na redação vigente na data dos factos, dispunha o seguinte:
“1-Decorrido o prazo estabelecido para a decisão do pedido de licença sem que esta tenha sido proferida e não se verificando nenhuma causa de indeferimento, considera-se tacitamente deferido o pedido de licenciamento.
(…)
3- Ocorrendo o deferimento tácito do pedido de EMP02..., a APA, I.P., emite automaticamente, através do balcão único, certidão comprovativa do decurso do prazo para a emissão da EMP02....
4-A certidão prevista no número anterior é substituída pela EMP02... respetiva assim que possível, devendo a decisão da EC sobre o início da exploração ter em conta o conteúdo do pedido de EMP02....”.
Competia, portanto, ainda, ao tribunal a quo apurar da existência ou não de deferimento tácito do pedido de licenciamento, pois, a existir em data anterior à da contraordenação imputada à arguida/recorrente, excluiria logo a tipicidade contraordenacional.
Note-se, aliás, que, entretanto, entrou em vigor o DL n.º 11/2023 de 10 de fevereiro, que procedeu à reforma e simplificação dos licenciamentos ambientais e este diploma legal, introduziu uma significativa alteração ao mencionado artigo 23.º [que regulamenta o “deferimento tácito”], que se alcança dos seguintes termos:
“1 - Decorrido o prazo estabelecido para a decisão do pedido de licença sem que esta tenha sido notificada ao interessado, considera-se tacitamente deferido o pedido de licenciamento.
(…)
3 - (Revogado.)
4 - (Revogado.)”.
Ou seja, o legislador deixou cair por terra a exigência de “não se verificar nenhuma causa de indeferimento”, bastando-se com o decurso do prazo legalmente previsto para a decisão sem que esta tenha sido notificada ao interessado, para considerar tacitamente deferido o pedido de licenciamento e, in casu, desconhece-se foi obtida alguma certificação nesse sentido.
In casu, além de se desconhecer a razão ou razões que levaram a que volvidos 12 anos ainda não tenha sido proferida uma decisão sobre o pedido de licença ambiental formulado pela arguida/recorrente, também se desconhece da eventual ocorrência de uma causa de indeferimento, mas tal desconhecimento nunca poderia ser valorado, sem mais, em processo contra-ordenacional contra a arguida/recorrente, sob pena de se afrontar o princípio do in dúbio pro reo.
E, em virtude da mencionada alteração legislativa, com plenos efeitos desde 01-01-2024 - data anterior à da prolação da decisão recorrida - também cumpria averiguar se, entretanto, alguma decisão havia sido notificada à arguida/recorrente sobre o por si peticionado pedido de licenciamento e o teor dessa mesma decisão, designadamente do alcance de eventual deferimento alcançado, pois no artigo 7 da factualidade provada apenas se diz “não tendo, até à data, decisão”, desconhecendo-se a que “data” se reporta.
Note-se que a arguida/recorrente alegou diversos factos, alguns dos quais aqui se trazem à colação a título meramente exemplificativo, no sentido de que já laborava antes da exigência legal em causa, em prazo, requereu a emissão da apontada licença ambiental e instruiu tal requerimento com todos os elementos exigíveis, tendo, inclusive, liquidado o valor cobrado para a prática desse ato, não lhe tendo sido dada qualquer justificação para a falta de decisão, tendo até, noutro processo contraordenacional de que foi alvo, sido reconhecido pelo tribunal que para o atraso na sua concessão terá contribuído a questão da sua sujeição à Avaliação de Impacte Ambiental que acabou por ser decidida de acordo com as pretensões da arguida e que pelo menos desde ../../2014 – altura em que foi emitido pela DREN parecer favorável quanto à dispensa de realização da Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) – estarem reunidas todas as condições para que fosse proferida decisão final sobre esse pedido. 
Ao não ter conhecido destes factos e desta concreta circunstância invocada pela arguida no seu recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, o tribunal a quo descurou factualidade relevante para a decisão da causa.
Assim sendo, considerando que da factualidade provada da decisão recorrida não consta a narração concretizada de factos consubstanciadora do tipo de culpa dolosa do ilícito contraordenacional pelo qual a arguida/recorrente veio a ser condenada e que foi invocada factualidade suscetível de a materializar/abalar, factualidade essa completamente descurada pelo tribunal a quo, verifica-se a existência do apontado vício decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ínsito no artigo 410.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.
Aliás, só com o apuramento de tais factos se pode apreciar da eventual existência de deferimento tácito, ou da possibilidade de a arguida assim o poder ter legitimamente entendido, factualidade, aliás, levada à consideração do tribunal que sobre a mesma nada apurou, não a consignando nem na matéria de facto provada nem na matéria de facto não provada.
Veja-se, ainda, que na sentença recorrida refere-se ser “necessário não esquecer que a arguida já submeteu o pedido de concessão da Licença Ambiental em 2007, pagando o respectivo valor e estando a aguardar, sem justificação para a demora da resposta, a decisão da APA.”.  Porém, daí o tribunal a quo não retirou qualquer ilação para a materialidade que deu como provada.
Acresce que, conforme decorre do citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência [n.º 3/2019 de 2 de julho], “(…) decidindo o tribunal de 1.ª instância o mérito da causa como se fosse a primeira vez, os seus poderes de cognição são plenos, abarcando as questões de facto e de direito, e com possibilidade de determinação do âmbito de prova a produzir (cf. art. 72.º, n.º 2, do RGCO). Não se limita a analisar a prova trazida pela Administração  e eventualmente a proceder a uma renovação para assim evitar o reenvio do processo para a autoridade administrativa, valorando ainda a prova que o impugnante, eventualmente, tenha indicado. (…) Além de que, o Ministério Público pode "promover a prova de todos os factos que considera relevantes para a decisão" (art. 72.º, n.º 1, do RGCO).
Assim sendo, aqui chegados, só nos resta concluir, que a sentença recorrida padece do apontado vício de insuficiência para a matéria de facto provada e como não constam dos autos todos os elementos de prova necessários para tomar decisão, não é possível suprir o vício, modificar a decisão de facto proferida e decidir, desde já, a causa, impõe-se a anulação da decisão recorrida e devolução do processo ao tribunal a quo [artigo 75.º, n.º2, al. b) do RGCO e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal ], com vista à realização de novo julgamento, com a inerente realização da prova que o tribunal a quo entender ser necessária para suprir a insuficiência apontada. 
Por isso, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos artigos 426.º e 426º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, ex vi 75.º, n.º 2, al. b), do RGCO, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as Juízas Desembargadoras da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:
 Julgar procedente o recurso interposto pela arguida/recorrente e, em consequência, julgando-se verificado o vício da alínea a), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal, anula-se a decisão recorrida e ordena-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos artigos 426º, n.º 1 e 426º-A, ambos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 75.º, n.º 2, al. b), do RGCO, com a inerente realização da prova que o tribunal a quo entender ser necessária para suprir a insuficiência apontada, reexaminando-se, depois, a causa, em conformidade.

Não são devidas custas.
Notifique.
Guimarães, 21 de maio de 2024
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

As Juízas Desembargados

Isilda Pinho [Relatora]
Isabel Gaio Ferreira de Castro [1.ª Adjunta]
Anabela Varizo Martins [2.ª Adjunta]


[1] Processo de Contraordenação n.º ...9 da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território.
[2] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010 in http://www.dgsi.pt,
[3] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[4] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..
[5] A propósito deste vício veja-se, entre outros, o Ac. do TRP de 15.11.2018 e de 09.01.2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do STJ de 08-01-2014, Processo n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11-11-2009, Processo: 346/08.0ECLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Acórdão de 26-11-2008, Processo: 08P3372, www.dgsi.pt.
[9] Veja-se, entre outros, Acórdão do S.T.J. de 26-10-2006, Processo: 06P3119; Acórdão do S.T.J., de 21.06.2007, Processo: 07P2268, ambos em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69.
[11] Proferido no Proc. nº 08P2804 e disponível in wwww.dgsi.pt