Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7810/18.0T8VNF.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: DANOS NÃO PATRIMONIAIS
RECIBO DE QUITAÇÃO
RENÚNCIA À INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO NEGOCIADOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A gravidade do dano não patrimonial, referida no n.º 1 do art.º 496.º do C.C., deve ser medida à luz de um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, e porque tais danos atingem bens imateriais, como a integridade física, a saúde, a honra, a liberdade, a paz e a tranquilidade, que não são susceptíveis de uma avaliação pecuniária, a indemnização não visa repor a situação que existia antes do acto lesivo, desiderato impossível de obter, visando antes compensar psicologicamente o lesado das perturbações emocionais ou afectivas, como as dores, os desgostos, os incómodos significativos, os medos e receios relevantes, que sofreu, e sofre, pelo prazer que anda normalmente associado à compra de um bem material desejado ou à realização de algo que proporcione satisfação, destarte minorando os aludidos sofrimentos.
II- A indemnização deve ser fixada em dinheiro, em montante que será calculado pelo tribunal recorrendo à equidade, o que lhe permite ater-se somente às circunstâncias do caso concreto, com vista a alcançar uma solução equilibrada e justa, de acordo com as regras da boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da ponderação das realidades da vida, e os padrões de indemnização adoptados pela jurisprudência, com vista a salvaguardar, quanto possível, o princípio da igualdade.
III- Muito embora, na esmagadora maioria das situações, os recibos de quitação emitidos e enviados pelas seguradoras devam considerar-se válidos e constituírem impedimento a que o lesado que os subscreveu venha pedir a reparação de prejuízos que ultrapassem o montante aí fixado, o que se entende para evitar as situações de sucessivos acordos e arrependimentos, geradores de instabilidade e incerteza nas relações entre as partes, não se pode olvidar o contexto em que os ditos recibos foram emitidos e assinados, e que deve ser ponderado para identificar e delimitar a vontade do lesado.
IV- Tendo ficado provado que a seguradora apenas negociou com o lesado o ressarcimento de danos patrimoniais, nunca tendo sido, sequer, referidos os danos de natureza não patrimonial que o mesmo lesado sofreu, o que era do conhecimento da seguradora, os dizeres constantes do recibo standardizado que “o abaixo assinado declara aceitar … a quantia de … como indemnização por todos os danos patrimoniais, não patrimoniais e/ou despesas resultantes do sinistro em referência”, que a seguradora enviou ao lesado para comprovar o ressarcimento de apenas os primeiros (patrimoniais) não podem ser entendidos como renúncia à indemnização pelos danos não patrimoniais, salvo havendo prova em contrário, cujo ónus incumbe à seguradora, por consubstanciar um facto extintivo do direito à indemnização.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- S. C., residente em Braga, intentou a presente acção declarativa comum contra a “X, Companhia de Seguros, S. A.”, com sede no Porto, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 7.368,76 (sete mil trezentos e sessenta e oito euros e setenta e seis cêntimos), acrescida dos juros vincendos à taxa legal desde a data de citação até efectivo e integral pagamento.

A supramencionada quantia refere-se às indemnizações:

a) pelos danos ainda existentes no veículo, a quantia de € 1.138,76;
b) pela privação do uso do veículo, a quantia de € 1.170;
c) pela privação do uso do apartamento, a quantia de e € 1.560; e
d) para compensação dos danos não patrimoniais decorrentes da privação do uso do apartamento e sofridos por via do sinistro, a quantia de € 3.500.

Fundamenta alegando, em síntese, que no dia 8 de Setembro de 2017, o veículo com a matrícula UZ, que se encontrava estacionado na garagem colectiva do edifício “Y”, em Vila Nova de Famalicão, incendiou-se, em consequência do que as chamas se alastraram aos outros veículos também estacionados na mesma garagem, designadamente o veículo da Autora, com a matrícula BJ, provocando-lhe danos, bem como provocou danos na fracção que a Autora habita e cuja reparação ascendeu a € 14.034,30.
Em consequência do referido incêndio o seu veículo sofreu danos os quais não foram totalmente reparados pela Ré, faltando ainda pagar-lhe a quantia de € 1.138,76.
Mais alega que, ela própria, sofreu danos resultantes da privação do uso do seu veículo, os quais contabiliza na importância de € 1.170,00.
Alegando que até incumbir o seu advogado de intentar a presente acção desconhecia que lhe assistia o direito a reclamar os danos patrimoniais resultantes da privação do uso do seu apartamento, assim como a reclamar indemnização pelos danos não patrimoniais, liquidando agora aqueles pela importância de € 1.560, e estes pela importância de € 3.500.
Fundamenta esta última indemnização alegando que o abandono forçado e dramático, com a sua filha, da sua casa de habitação, bem como da alteração drástica da rotina estabelecida e do conforto e bem-estar a que ambas estavam habituadas, lhes causaram sérios e relevantes incómodos e mal-estar. Mais alegou ter padecido de perda de sono, medo, acordando várias vezes de noite, em pânico, à procura de sua filha, irritação e inquietação, medo que ainda hoje sente, tendo passado a ser muito sensível aos cheiros relacionados com o fumo, vindo-lhe à memória o sucedido.
Citada, a Ré contestou alegando ter já indemnizado a Autora por todos os danos sofridos e relativos ao veículo BJ, bem como que a mesma foi ressarcida dos danos ocorridos na sua habitação pela seguradora W, à qual ela, Ré, reembolsou do que pagou à Autora.
Respondeu a Autora recusando ter sido totalmente ressarcida dos danos que sofreu, recusando ainda que os recibos de quitação juntos pela Ré possam ser interpretados nesse sentido. Trata-se, alega, de documentos/recibos tipo, pré-elaborados, sendo certo que a Ré até acabou por pagar essa indemnização em períodos diferentes e por parcelas, sem atender à renúncia dos direitos dela, Autora, constantes dos aludidos recibos.

Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar à Autora:

- a quantia de € 1.138,76 (mil cento e trinta e oito euros e setenta e seis cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação (06-12-2018) e até integral pagamento;
- a quantia de € 520 (quinhentos e vinte euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão e até integral pagamento.

Inconformada, traz a Autora o presente recurso pedindo a revogação da decisão, no segmento em que absolve a Ré do pedido de condenação desta em indemnização pelos danos não patrimoniais.
Contra-alegou a Ré propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que foram, os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Apelante/Autora formulou as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo ao decidir os pedidos c) e d) formulados na p.i., incorreu em erro de julgamento, de facto e de direito, sendo que, a respeito do primeiro erro (de facto), se impõe ter em devida conta que, embora não decisivo para a alteração ora pretendida, face à prova produzida nos autos, não podia deixar de dar como provado o ponto 2, de que «Até incumbir o seu mandatário para intentar esta acção, a Autora desconhecia que lhe assistia o direito a reclamar os danos patrimoniais resultantes da privação de uso do seu apartamento bem como o direito a reclamar os danos não patrimoniais»», tanto assim que, recorrendo à prova, (documental, declarações de parte e testemunhal), que o tribunal a quo se refere ter sido a valorada, resulta inequívoco que a A. provou essa matéria, seja através dos documentos seja pelo depoimento de parte e prova testemunhal, a registar:
1.1 a) Documental: 1 e 2 juntos pela Ré (recibos)
aa) Tais documentos, (meros formulários tipo, pré-elaborados pela Ré, sem indicação de local e data, que aludem, de forma genérica e abstrata, a “sinistro em referência”, remetidos pela Ré à A. por correio em duas ocasiões diferentes), foram impugnados pela A. e, apesar da Ré ter indicado testemunhas para “atestar” a sua veracidade do seu conteúdo, entre elas, D. T., como se verá adiante, não logrou provar ter pago os danos de privação de uso e os danos não patrimoniais;
ab) O facto de a Ré ter emitido um primeiro documento com a indicação, além do mais, de “plena e completa quitação”, de 1.404,01 €, (doc. 1 junto com a contestação) a 31.01.2018 e a 18.03.2018, volvido mais de um mês, ter emitido novo documento, com o mesmo teor, mas com a importância de 558,20 €, (doc. 2 junto com a Contestação), leva também a concluir que se a Ré, efectivamente, o interpretasse e/ou entendesse como ora alega, não teria emitido um segundo recibo, com o mesmo tipo de texto, dando “plena e total quitação”.
ac) A A. desconhecia o significado e/ou distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais, (como até a própria testemunha da Ré, J. R., o reconheceu também), e/ou o sentido e alcance de “total quitação”, pois, se assim fosse, como resulta do seu depoimento, nunca assinaria o primeiro dos documentos quando ainda tinha pendente, além do mais, a reparação do veículo (Vide doc. 1 junto com a Contestação).
ad) Não se extrai desses documentos a especificação, pelo menos de forma clara, objectiva e esclarecedora, sobre quais e o tipo de danos, - patrimoniais ou não patrimoniais – que a Ré, estava a ressarcir, sendo certo que a ter o valor que se quer prevalecer, representaria da sua parte – além de indevido enriquecimento - um desvirtuamento e um aproveitamento da falta de esclarecimento e vontade da A. que nunca representou como estando a abdicar da plenitude dos seus direitos, para mais, quando ainda estava pendente a reparação total e perfeita do veículo, como resultou da prova produzida, infra especificada, valorada pelo tribunal a quo, como as declarações de parte e os depoimentos de D. T. e J. R..
b) O Depoimento da Autora - S. C., gravado na aplicação informática (H@bilus Media Studio), foi esclarecedor a respeito do que se conclui supra, como se extrai da transcrição: Rotações: 30:01 a 33:32; 35:18 a 36:37; 36:35 a 37:52.
ca) D. T., funcionário da Ré (…). 2.ª Sessão de julgamento de 03 de Junho de 2019, pelas 09.45 horas. Depoimento registado no sistema H@bilus Media Studio, rotações: 00:50 a 02:27 (…) e 08:39 a 09:30.
cb) J. R., engenheiro civil. Depoimento registado no sistema H@bilus Media Studio. 2.ª Sessão de julgamento de 03 de Junho de 2019, rotações: 09:53 a 12:51; 12:52 a 14:29 (…); e 14:36 a 16:40.
1.2 O tribunal a quo admite que o próprio profissional de seguros da Ré – D. T. – que não logrou discriminar a que respeitam os valores constantes dos referidos recibos, depôs no sentido totalmente contraditório com aquele perito J. R., pois que mencionou que na sua perspectiva os recibos em causa reportavam-se ao veículo, dado que a alimentação e o alojamento foi tratado com a W.
1.3 O tribunal a quo expressa-se, sem daí tirar as devidas ilações, que «perante a conjugação dos depoimentos destas duas testemunhas, com as declarações prestadas pela Autora, ficou convencido que a Ré não indemnizou a Autora pelos danos do veículo e em causa nos autos (isto é, os reclamados pela Autora e não aqueloutros que foram reparados pela oficina), e muito menos que a Autora quando assinou os recibos constantes de fls. 30 a 32 fê-lo com a consciência de que não poderia exigir quaisquer outras responsabilidades à Ré no que aos danos do veículo diz respeito.»
1.4 Em jeito complementar, o tribunal a quo é quem refere que o depoimento da testemunha J. R. é perfeitamente consentâneo com as declarações prestadas pela Autora no sentido de que os recibos de indemnização que assinou e que recebeu, em casa, pelo correio, reportam-se à diferença de alojamento e da alimentação que não era coberta pela apólice de seguros da W, o que permite concluir, como não provada a factualidade constante do ponto 4.
1.5 Também é o próprio tribunal a quo que admite que «só em Janeiro de 2018 é que a Autora é ressarcida dos danos respeitantes ao edifício, recheio e privação do uso, e na sequência de uma reunião com o(s) perito(s) que apenas tratavam de regularizar esses danos (e não os referentes aos veículos), motivo pelo qual é perfeitamente legítimo concluir como a Autora, no sentido de que que aquela indemnização não se reportava ao “processo todo”, mas antes à parte respeitante aos danos com a habitação.»
1.6. Decorre que, a fazer fé no que refere a douta sentença, sobre o valor que atribuiu às declarações de parte, não podia deixar o tribunal de dar como provado a matéria do facto 2, pois, embora não fundamental para a alteração que se impõe do decidido na douta sentença, evidencia erro de julgamento, impondo-se a alteração para provado, com a redação “até incumbir o seu mandatário para intentar esta acção, a Autora desconhecia que lhe assistia o direito a reclamar os danos patrimoniais resultantes da privação de uso do seu apartamento bem como o direito a reclamar os danos não patrimoniais” ou, se assim se não entender, pelo menos, “que a Autora desconhecia que lhe assistia o direito a reclamar os danos não patrimoniais”.
2. Embora não decisiva a alteração da matéria de facto relacionada com o ponto 2 da matéria não provada para a boa decisão deste recurso, o certo é que da factualidade provada não restam dúvidas de que a A., tal como sucedeu com os danos referentes ao veículo (parte deles), não recebeu qualquer quantia a título de compensação pelos danos não patrimoniais, pese embora neles referenciados, em duas ocasiões diferentes, nos recibos que assinou, juntos pela Ré.
3. As regras da experiência e normalidade do acontecer permitem, em complemento ou não com a prova produzida, afirmar que se a Ré tivesse pago o que quer que seja a título de privação de uso do apartamento e, em maior grau, a título de dano não patrimonial, conseguia, com toda a facilidade, pois que empresa de seguros se trata, justificar e discriminar todas as rúbricas a que se reportava os valores pagos.
4. Não é por acaso que a Ré se contém e se limita a dizer que pagou tudo à A. na sua p.i. sem discriminar, recorrendo, para tanto, a expressões abstractas, genéricas, como as que, habilmente, faz nos itens 4 e 7 da sua mui douta contestação, como aliás, parece querer dar ares disso mesmo no item 8, pelo que deve ser extraído ilações, em sede de reparação dos factos vertidos nas al. T., U. e V., (abrange o dano não patrimonial).
5. A matéria de facto constante em B.B., com a redacção de que “os pagamentos referidos em X. e Y. reportavam-se à indemnização pelos danos referentes à fracção propriedade da Autora não cobertos pela seguradora W”, - ou seja, aqueles que se relacionam com os recibos juntos aos autos pela Ré - conjugada com a que resulta em Z. constitui um elemento interpretativo seguro no sentido do que se sustenta nas conclusões anteriores.
6. O afirmado torna-se ainda mais consistente - embora aqui se trate mais de omissão/erro e/ou confusão do que uma questão de interpretação - se se atender ao referido, de forma redutora, na douta sentença sobre a “matéria de direito”, no sentido que (…) «A Autora reclama danos respeitantes a dois objectos distintos: por um lado os referentes ao veículo de que é proprietária; e por outro lado à fracção de que também é proprietária, sendo certo que inexistem dúvidas que ambos foram afectados pelo incêndio/sinistro em questão, nem tal sequer é questionado pela Ré.», bem demonstrando que, na apreciação de todas as vertentes do dano, senão omitiu, confundiu a apreciação do dano não patrimonial.
7. Uma análise superficial levaria a supor que o tribunal a quo confundiu “os outros danos relacionados com a fracção”, como os da al. c) e d), principalmente estes últimos, (não patrimoniais), porém, a leitura atenta de todo o iter cognoscitivo-valorativo da decisão, permite concluir que o tribunal a quo esqueceu literalmente, porque não os ponderou sequer, os danos não patrimoniais.
8. Em reforço das conclusões anteriores, o facto de na al. T. dos factos provados, resultar que a A. ficou “privada do seu apartamento durante tempo não concretamente apurado” terá, certamente levado o tribunal a quo a desconsiderar o contexto em que se insere e é extraído este facto e determinado ao erro de análise e de decisão. (alíneas T., U. e V.).
9. O tribunal a quo acaba por se distrair e não retirar as devidas ilações dos ensinamentos que expressa sobre a técnica interpretativa, olvidando o que neles se expressa e, assim, conclui, de forma inusitada, ao referir que os danos a contemplar nesta sede, porque não ressarcidos, são apenas os da al. a) e b), quando, se bem atendermos a toda a factualidade provada, a própria fundamentação faz sempre referência, e tão só, aos danos no veículo, e aqueles relacionados com a fracção, nada mais.
10. O facto da al. aa), que inclui erradamente a referência conclusiva a “nomeadamente”, e que deve ser eliminada, também é expressivo, atento o contexto, que se refere aos danos na fracção, (patrimoniais) que, naturalmente, se distinguem e têm natureza diferente daqueles que constam da matéria de facto provada em T., U. e V.
11. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art.º 564º, n.º 1 do C.C.), sendo certo que a indemnização não se destina a repor o «status quo ante» mas antes a consubstanciar uma compensação susceptível de minorar ou atenuar os efeitos da lesão sofrida.
12. Resultou provado, além do mais, que «T. O abandono da sua casa devido ao incêndio causou à Autora incómodos e mal-estar advindos do abandono, forçado e dramático, com a sua filha, da sua casa de habitação, bem como da alteração da rotina estabelecida e do conforto e bem-estar a que, tal como a sua filha, estava habituada, pois tiveram que ficar num hostel e de fazer as refeições fora de casa, ficando privada do seu apartamento durante tempo não concretamente apurado, o que lhe provocou irritação e inquietação. U. Ainda hoje a Autora tem medo, e passou a ser muito sensível aos cheiros relacionados com fumo, pois, quando o sente, o que ainda é frequente quando abre os armários vem à memória o sucedido, o que também acontece, por vezes, quando conduz. V. Desde então, a Autora é uma pessoa ansiosa e demasiado preocupada com o bem-estar e segurança da filha, sentindo-se insegura.
13. Tais danos revestem alguma gravidade e não podem deixar de ser contemplados na indemnização que assiste à A., à luz do art.º 494.º do CC., aqui violado.
14. Os danos não patrimoniais são os que afectam bens não patrimoniais (bens da personalidade), insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, de que resultam o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia, a tristeza, insegurança, inquietação, irritação, insegurança, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados.
15. Perante a descrita factualidade, não pode deixar de se considerar injusta a não compensação, por sinal, em quantia que se reputa modesta, de 3.500,00 €, atento a insegurança, susto, medo, incómodos, sofrimentos e demais vicissitudes associadas às consequências do incêndio, que a A. suportou e, em certas vertentes, vai ter de continuar a suportar.
16. O ser humano, mesmo abstraindo das vicissitudes e limitações inerentes à condição de cada indivíduo, tem direito a gozar a vida de forma plena, o que já não será possível, uma vez posto em causa com o incêndio a vida (da A. e sua filha menor), e tudo o mais relacionado e que dever ser sopesado na fixação da compensação a atribuir à A.
17. A sentença recorrida ao decidir como decidiu violou, entre outras, as normas jurídicas contidas nos artigos 564.º, n.º 1, 490.º n.º 3, 494.º, do Código Civil.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

De acordo com as conclusões acima transcritas, pretende a Apelante que:

- se reaprecie a decisão de facto quanto ao segmento fáctico impugnado;
- se reaprecie a decisão questão ao pedido indemnizatório referente aos danos não patrimoniais.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provados os seguintes factos:

A. No dia 8 de Setembro de 2017, por volta das 3 horas da manhã, o veículo ligeiro de passageiros, Renault Scénic, matrícula 93-50–UZ, que se encontrava aparcado na garagem colectiva do edifício “Y”, sito no n.º 25 da Rua Y, Vila Nova de Famalicão, sem que nada o fizesse prever, incendiou-se.
B. O veículo UZ pertencia a Joaquim Paulo Silva Gomes, que era o seu único e legítimo possuidor, quem tinha a sua direcção efectiva e procedia à sua conservação e manutenção.
C. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, estavam próximos do veículo UZ outros veículos, também aparcados, e no lugar a que lhes estava afecto, entre os quais, e a menos de 4 metros, o veículo ligeiro de passageiros, marca Volkswagen Polo, matrícula BJ, a gasolina, cor azul metalizado, pertencente à Autora.
D. Como consequência directa e necessária do incêndio, as chamas do veículo UZ alastraram-se pela garagem, ao ponto de derreter tubagens e fios eléctricos, tal a intensidade que a temperatura passou a atingir, atingindo não só o veículo BJ, mas também as fracções dos pisos superiores à garagem afectas a habitação (apartamentos), incluindo a pertencente à própria Autora.
E. A fracção autónoma pertencente à Autora, identificada pela letra “E”, 3.º B, sita no 3.º andar desse edifício, onde a mesma habitava juntamente com a sua filha sofreu danos cujo custo de reparação ascendeu a € 14.034,30.
F. O veículo BJ foi atingido pelas chamas e ondas de calor, bem como pelas fuligens e objectos, como pedaços de cimento e outros materiais que, devido às altas temperaturas, se iam projectando e/ou desprendendo, principalmente do tecto.
G. O incêndio em causa determinou a imediata deslocação ao local da PSP1 e da Policia Judiciária, que concluiu “(…) Incêndio de origem acidental, tendo começado na viatura Renault Scénic, matrícula UZ, cujo fogo propagou do interior do capô até ao interior da viatura e daí para o exterior. No habitáculo do motor foi visível a bateria com sinais de sobreaquecimento e, consequente, abertura em leque, bem como as cablagens com pontos de fusão, o que indicou uma sobrecarga.
(…) No contacto com o proprietário desse veículo o mesmo referiu que o utilizou nesse dia, tendo aparcado por volta das 18,00 h.”.
H. Como consequência do incêndio, o veículo BJ sofreu danos como queimaduras, empolamento da pintura, amolgadelas, como as resultantes da queda e projecção de pedaços de cimento e/ou outros objectos e fuligens, para além do mais, na antena, que ficou derretida parcialmente, nos retrovisores, que ficaram com riscos e nos frisos do lado direito, que também ficaram com riscos.
I. O veículo BJ deu entrada no dia 13.09.2017 na oficina da marca, X – Comércio de Automóveis, S.A., sita em …, Santo Tirso.
J. A perícia do veículo BJ efectuada pela K – Gestão de Peritagens, S.A. iniciou-se em 15.09.2017, que, com carácter condicional, acordou com a oficina o início da reparação a partir de 25.09.2017 e por dois dias úteis, avaliando os danos nos termos descritos no relatório constante de fls. 19, orçando a sua reparação em € 1.660,42.
K. Em 10.10.2017, quando levantou o veículo, a Autora constatou, para além do mais, que não tinha sido substituída a antena exterior que estava sem cobertura, nem os espelhos retrovisores dois piscas laterais) que apresentavam deterioração/deformação, devido à intensidade do calor e/ou queda e/ou projecção de pedaços de cimento e fuligens.
L. Os plásticos e borrachas que envolviam os vidros e portas, que antes do acidente estavam em bom estado, não foram substituídos, pelo que se mostravam com marcas, riscos e distorção/deformação pelo calor.
M. Antes do incêndio a antena exterior e os espelhos retrovisores piscas laterais) estavam em bom estado.
N. Face à discordância da reparação, em 3.11.2017, realizou-se uma reunião com a presença dos peritos, aos quais concluíram que os danos alegados pela Autora não podiam ser causados por uma fonte de calor ou queda de objectos, o que a Autora não aceitou.
O. A reparação dos danos referidos em H. implicam além de trabalhos de chapeiro e pintura, substituição e colocação da vareta de antena, substituição e colocação dos farolins pisca retrovisor esquerdo e direito, friso da porta frente direita e friso da porta de trás direita, cujo custo ascende à quantia de € 1.138,76.
P. Em 31 de Janeiro de 2018, a Ré comunicou à Protecção Jurídica da W que não assumia essa parte da intervenção.
Q. Face à não assunção da responsabilidade por parte da Ré, a Autora não levantou o veículo, que permaneceu na oficina até 30.11.2017, data em que a Autora acabou por levantar o veículo dada a necessidade de uso do veículo.
R. O veículo BJ estava estimado e em bom estado de conservação.
S. A Autora utilizava esse veículo diariamente, essencialmente para se deslocar para o exercício da sua actividade, de educadora de infância, bem como para as necessidades do dia-a-dia, como efectuar compras e ainda para transportar a sua filha para o colégio.
T. O abandono da sua casa devido ao incêndio causou à Autora incómodos e mal-estar advindos do abandono, forçado e dramática, com a sua filha, da sua casa de habitação, bem como da alteração da rotina estabelecida e do conforto e bem-estar a que, tal como a sua filha, estava habituada, pois tiveram que ficar num hostel e de fazer as refeições fora de casa, ficando privada do seu apartamento durante tempo não concretamente apurado, o que lhe provocou irritação e inquietação.
U. Ainda hoje a Autora tem medo, e passou a ser muito sensível aos cheiros relacionados com fumo, pois, quando o sente, o que ainda é frequente quando abre os armários vem à memória o sucedido, o que também acontece, por vezes, quando conduz.
V. Desde então, a Autora é uma pessoa ansiosa e demasiado preocupada com o bem-estar e segurança da filha, sentindo-se insegura.
W. Por via do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ……, a Ré assumiu a responsabilidade civil perante terceiros emergente da circulação do veículo de matrícula UZ, nos termos da apólice constante de fls. 33 verso e seguintes, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
X. A ré pagou à autora a quantia global de 1.962,30€ (mil, novecentos e sessenta e dois euros e trinta cêntimos), mediante recibo emitido em 31.1.2018, a quantia de 1.404,01€ e mediante recibo emitido em 15.3.2018, a quantia de 558,20€.
Y. Nos recibos referidos em X., a autora declarou ter recebido aquelas quantias “como indemnização por todos os danos patrimoniais, não patrimoniais e/ou despesas resultantes do sinistro em referência”.
Z. A Autora foi indemnizada pela seguradora W dos danos ocorridos na sua habitação em consequência do sinistro, nomeadamente os danos causados no recheio, no edifício, e alojamento e alimentação.
AA. A Ré reembolsou a seguradora W no montante de 23.189,03€ (vinte e três mil, cento e oitenta e nove euros e três cêntimos).
BB. Os pagamentos referidos em X. e Y. reportavam-se à indemnização pelos danos referentes à fracção propriedade da Autora não cobertos pela seguradora W.

ii) julgou não provados os seguintes factos:

1. O aluguer de um veículo equivalente ao da Autora tem um custo diário de pelo menos € 15.
2. Até incumbir o seu mandatário para intentar esta acção, a Autora desconhecia que lhe assistia o direito a reclamar os danos patrimoniais resultantes da privação de uso do seu apartamento bem como o direito a reclamar os danos não patrimoniais.
3. No cumprimento do contrato de seguro referido em W., a Ré indemnizou a autora por todos os danos por esta sofridos relativos ao seu veículo de matrícula BJ.
4. A Autora tinha perfeita consciência de que, com a declaração referida em Y., exonerava a ré de toda e qualquer responsabilidade e que não poderia exigir dela qualquer outro pagamento designadamente no que aos danos no veículo diz respeito.
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V.- A Apelante impugna a decisão de facto, pretendendo que seja julgada provada a facticidade constante do n.º 2 dos “factos não provados”.

O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
A Apelante cumpriu com todos os ónus que aquele dispositivo legal impõe, quer os enunciados nas três alíneas do n.º 1, quer o da alínea a) do n.º 2, na medida em que, de modo inequívoco, indicou o ponto da decisão de facto que tem por incorrectamente julgado, e apresentou o seu projecto de decisão, enunciando os meios de prova em que fundamenta o seu dissenso.
Além disso, situa no tempo da gravação as passagens dos depoimentos, de parte e testemunhais, em que alicerça o projecto de decisão que propõe.
Não há, assim, obstáculo legal a que se reaprecie a decisão de facto, nos segmentos fácticos impugnados.

b) Na reapreciação da decisão da matéria de facto impõe-se observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C., que, como ficou a constar da “Exposição de Motivos”, tem subjacente a intenção de reforçar os poderes da Relação, com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal, baseado apenas no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
Assim, não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto, e enquanto instância de recurso, a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, de modo a formar a sua própria convicção.

c) Revisitados os depoimentos, da Apelante e das testemunhas D. T. e J. R., resulta claro que as negociações da ora Apelante com as Companhias de Seguros, relativas ao que estas costumam designar por “regularização do sinistro”, reportaram-se apenas aos danos referentes à fracção autónoma da Apelante, como se refere em Z e BB dos “factos provados”, que se incluem todos na categoria normativa de danos patrimoniais.
Mais resulta das declarações de parte da ora Apelante, e se extrai do depoimento da testemunha J. R., que àquela não foi apresentada qualquer proposta de indemnização (nem, de resto, a nenhum dos afectados pelo sinistro) por danos integrantes na categoria normativa de danos não patrimoniais, cuja significação ou abrangência mostraram desconhecer – a testemunha J. R. acabou por os identificar sob a designação de “danos morais”.
Por suposto que um jurista conhece a significação dos conceitos de direito mas já não é de esperar o mesmo conhecimento de quem não tenha cultura jurídica, ainda que tenha outros saberes não menos elevados.
É, pois, de presumir – presunção judicial admissível, nos termos do disposto nos art.os 351.º e 392.º, ambos do Código Civil (C.C.) – que a ora Apelante, mau grado as suas habilitações académicas, só após a consulta a um advogado tivesse ficado ciente dos direitos que lhe assistiam, designadamente de reclamar uma indemnização pelos danos “não patrimoniais” - que estão mencionados nos “recibos”, e que não deviam aí figurar já que, como foi referido pelas acima mencionadas Apelante e Testemunha, e a Apelada/Ré bem sabia, nada propôs pagar e nem pagou, a este título, sabendo ainda que as importâncias aí mencionadas se reportavam, como refere o Tribunal a quo, “à diferença de alojamento e da alimentação que não era coberta pela apólice da W”.
Isto considerado conclui-se haver fundamento consistente para alterar a decisão de facto, sem embargo de se dever densificar e concretizar o conceito jurídico de “dano não patrimonial”.

d) Altera-se, pois, a decisão de facto, nos seguintes termos:

i) adita-se aos “factos provados”, a alínea CC.- A Apelante só depois de consultar o seu advogado é que foi esclarecida de que tinha direito a reclamar uma indemnização pelos incómodos, transtornos e sofrimentos resultantes do incêndio.
ii) elimina-se dos “factos não provados” o ponto de facto n.º 2.
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VI.- Resulta inequívoco que a situação sub judicio se subsume ao instituto da responsabilidade civil extracontratual, e que a facticidade apurada permite ter por preenchidos todos os pressupostos referidos no art.º 483.º do C.C..
A Apelada/Ré aceitou a sua obrigação de indemnizar os lesados dos danos que lhes resultaram do sinistro.
É apodíctico que os lesados devem ser ressarcidos não só dos danos de natureza patrimonial como também dos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – cfr. n.º 1 do art.º 496.º do C.C..
A gravidade do dano deve ser medida à luz de um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, e porque tais danos atingem bens imateriais, como a integridade física, a saúde, a honra, a liberdade, a paz e a tranquilidade, que não são susceptíveis de uma avaliação pecuniária, a indemnização não visa repor a situação que existia antes do acto lesivo, desiderato impossível de obter, visando antes compensar psicologicamente o lesado das perturbações emocionais ou afectivas, como as dores, os desgostos, os incómodos significativos, os medos e receios relevantes, que sofreu, e sofre, pelo prazer que anda normalmente associado à compra de um bem material desejado ou à realização de algo que proporcione satisfação, destarte minorando os aludidos sofrimentos.
A indemnização deve ser fixada em dinheiro, em montante que será calculado pelo tribunal recorrendo à equidade, o que lhe permite ater-se somente às circunstâncias do caso concreto, com vista a alcançar uma solução equilibrada e justa, de acordo com as regras da boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da ponderação das realidades da vida, e os padrões de indemnização adoptados pela jurisprudência, com vista a salvaguardar, quanto possível, o princípio da igualdade.
De acordo com o disposto no art.º 494.º, ex vi do n.º 4 do art.º 496.º, ambos do C.C., devem considerar-se ainda os seguintes parâmetros: o grau de culpa do lesante e a situação económica do lesante e a do lesado.
Na situação sub judicio ficaram provados os factos constantes das alíneas T., U., e V., ou seja, que “o abandono da sua casa devido ao incêndio causou à Apelante “incómodos e mal-estar advindos do abandono, forçado e dramático, com a sua filha, da sua casa de habitação, bem como da alteração da rotina estabelecida e do conforto e bem-estar a que, tal como a sua filha, estava habituada”, já que “tiveram que ficar num hostel e de fazer as refeições fora de casa”, sendo que a privação do seu apartamento lhe provocou “irritação e inquietação”. “Ainda hoje” a Apelante “tem medo, e passou a ser muito sensível aos cheiros relacionados com fumo, pois, quando o sente, o que ainda é frequente quando abre os armários vem à memória o sucedido, o que também acontece, por vezes, quando conduz”. “Desde então”, a Apelante “é uma pessoa ansiosa e demasiado preocupada com o bem-estar e segurança da filha, sentindo-se insegura”.
Tendo o incêndio ocorrido às 3 horas da madrugada, num período de descanso profundo, compreende-se que o sobressalto e o medo tenham sido muito elevados, por certo exacerbados, no caso da Apelante, pelo imperativo de proteger a sua filha, ainda menor. Os incómodos de ter de abandonar a própria casa de habitação e passar a viver o dia-a-dia num hostel entendem-se igualmente muito relevantes, e potenciadores de um apreciável grau de irritação. A persistência dos sentimentos de medo, ansiedade e preocupação demonstram a gravidade da situação vivida, e a afectação da saúde e do equilíbrio emocional.
Tudo considerado, tem-se por inequivocamente demonstrada a elevada gravidade dos danos não patrimoniais descritos, e o direito da Apelante a ser convenientemente ressarcida, crendo-se que a peticionada quantia de € 3.500,00 se mostra equilibrada, à luz dos princípios e pressupostos acima referidos.
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VII.- O Tribunal a quo, citando o Acórdão da Relação de Lisboa, de 05/03/2015, e atendo-se ao “entendimento pacífico na jurisprudência de que a declaração de quitação em que o lesado se considera integralmente ressarcido de todos os danos emergentes de um sinistro, declarando que a seguradora não tem qualquer outra obrigação a cumprir relativamente ao mesmo (não sendo alegados e provados vícios na formação da vontade), se deve ter como válida, revestindo eficácia extintiva relativamente a quaisquer deveres de ressarcimento para além daqueles a que respeita especificamente tal declaração, e que ainda que o respectivo texto seja previamente elaborado pela seguradora, não constitui cláusula contratual geral por lhes faltar a impossibilidade de negociação, pois se o lesado se acha com direito a ser ressarcido por outros danos que já conhece e de cuja indemnização não pretende prescindir, não a deve assinar, ou deverá fazê-lo com restrições ou reservas” (ut proc.º 1305/10.8TVLSB.L2-2, in www.dgsi.pt), entendeu que, por a declaração constante dos dois recibos de quitação juntos aos autos pela Apelada/Ré ter sido emitida no quadro de um processo negocial de indemnização dos danos referentes à fracção da ora Apelante, “e que não lhe foram ressarcidos pela sua companhia de seguros devido à existência de limites contratuais”, “uma vez recebida a quantia acordada no momento das declarações, não está a Apelante legitimada a exigir quaisquer outros danos relacionados com a fracção de que é proprietária, designadamente no respeitante à privação do seu uso e eventuais danos não patrimoniais”.
Ressalvado o respeito devido, não podemos sufragar este entendimento.
Muito embora, na esmagadora maioria das situações, estes recibos de quitação devam considerar-se válidos e constituírem impedimento a que o lesado que os subscreveu venha pedir a reparação de prejuízos que ultrapassem o montante aí fixado, o que se entende para evitar as situações de sucessivos acordos e arrependimentos, geradores de instabilidade e incerteza nas relações entre as partes, não poderemos olvidar o contexto em que os ditos recibos foram emitidos e assinados, e que deve ser ponderado para identificar e delimitar a vontade da Apelante.
Considerando-se ou não o conhecimento que ela não tinha da abrangência do seu direito à indemnização, ficou inequivocamente demonstrado que as importâncias recebidas, constantes de ambos os recibos, visavam ressarcir danos de natureza patrimonial, e que ambas as Seguradoras apenas negociaram o ressarcimento de danos desta natureza.
Nesta perspectiva, a referência expressa que deles consta que “o abaixo assinado declara aceitar … a quantia de … como indemnização por todos os danos patrimoniais, não patrimoniais e/ou despesas resultantes do sinistro em referência” poderá configurar um abuso de posição dominante.
Com efeito, se a Apelada/Ré, por simples comodidade ou estratégia de poupança de meios (por suposto, afastada a hipótese da intenção de se aproveitar de uma eventual distração ou menor informação do lesado) decide utilizar o modelo standardizado de recibos, evidenciaria a sua boa fé no cumprimento da obrigação riscando os dizeres respeitantes a outros danos que não os que estava a indemnizar.
Na situação sub judicio ganha maior evidência o facto de um dos recibos estar acompanhado de uma carta datada de 31/01/2018, e o outro com a data de 15/03/2018, contendo ambos os mesmos dizeres, e referindo-se ambos a danos ocorridos em data anterior, deste modo demonstrando que a Apelada/Ré desconsiderou a “declaração” de quitação total, pelo menos, constante do primeiro.
Como acima fiou exposto, a gravidade dos danos não patrimoniais sofridos pela Apelante constitui-os no merecimento da tutela do direito.
A responsabilidade pelo ressarcimento destes danos é da ora Apelada/Ré.
Muito embora a Apelante não tivesse com esta qualquer relação contratual, o dever de informação e de esclarecimento impunha-se-lhe, quer durante as negociações para a regularização do sinistro, quer aquando da assinatura dos recibos, uma vez que é ela quem domina todo o processo.
De resto, aplicar-se-ão de pleno aos danos não patrimoniais os fundamentos (interpretação normativa da declaração) em que assentou a consideração dos danos no veículo (que o Tribunal a quo condenou a Apelada/Ré a indemnizar), o qual a Apelante, ainda que manifestando a sua discordância quanto à (não) reparação, acabou por levantar da oficina em 30/11/2017, ou seja, dois meses antes da data do primeiro recibo.
Deste modo, impõe-se, de todo, recusar à declaração constante dos recibos o sentido que, objectivamente considerada, consubstancia uma verdadeira renúncia à indemnização pelos danos não patrimoniais, a qual a alegação e a facticidade provada permitem afirmar que a Apelante não quis, e dificilmente se concebe que a Apelada como tal a tivesse considerado, visto que também o não alegou - sendo seu o ónus de alegação e prova, por se tratar de um facto extintivo do direito à indemniação – e também se não provou.
Merece, pois, provimento a pretensão recursiva da Apelante, consequentemente, impondo à Apelada a obrigação de a ressarcir dos danos não patrimoniais que sofreu.
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B) DECISÃO

Considerando tudo quanto de vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, condenando a Apelada “X, Companhia de Seguros, S.A.” a pagar à Apelante a importância de € 3.500 (três mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por esta, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da sentença da 1.ª Instância – 01/07/2019 – até efectivo e integral pagamento, mantendo-se o demais decidido.
Custas da acção na proporção do decaimento, e da apelação pela Apelada.
Guimarães, 30/04/2020

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho