Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MARGARIDA PINTO GOMES | ||
Descritores: | TRANSACÇÃO HOMOLOGAÇÃO ERRO DE DECLARAÇÃO RECURSO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/30/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I- Para se poder concluir pela anulabilidade da transação, por erro na declaração indispensável se torna uma discussão processual, com alegação e prova dos factos correspondentes ao invocado vício da vontade, pelo que não constitui este recurso o meio próprio para discutir a anulação da transação nos moldes pretendidos. II- É de entender como determinado o objeto da cláusula na qual “O Réu reconhece expressamente que não liquidou aos Autores, em número que não consegue esclarecer, mas sempre superior a 36 meses, as mensalidades respeitantes à renda acordada”. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I – RELATÓRIO: AA e BB, instauraram ação declarativa de condenação com processo comum contra CC, pedindo que: a) se declare a resolução do contrato de arrendamento urbano celebrado entre os Autores e o Réu, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção resultante da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto; b) se condene o Réu a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue aos Autores, livre de pessoas e bens; c) se condene o Réu no pagamento do valor das rendas vencidas no montante de €2.655,00, bem como ao pagamento das rendas vincendas até à efectiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora; d) se condene o Réu nas custas processuais. Alegam os autores serem donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua ..., União das Freguesias ... (...), ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art.º n.º ...50, sendo que, quando os Autores adquiriram o prédio supra identificado, no ano de 1976, o mesmo já se encontrava arrendado aos pais do Réu, não tendo sido reduzido a escrito. Após o falecimento dos pais do Réu, o que ocorreu há, pelo menos, mais de dez anos, assumiu aquele a posição de arrendatário daquele imóvel. O montante da renda mensal, inicialmente paga pelos pais do Réu e depois por este, nunca foi actualizado, sendo que o Réu estava obrigado a efectuar, assim, o pagamento de uma renda mensal no valor de 15 euros. Sucede que não obstante o Réu estar obrigado ao pagamento mensal do valor da renda no montante de 15 euros, há 15 anos que tal pagamento não é efectuado, apesar de, por diversas vezes, o mesmo ter sido interpelado para efectuar o pagamento das rendas em atraso, encontrando-se em dívida, até à presente data, o montante de € 2.655,00 (177 meses x €15,00). Para além de não efectuar o pagamento do valor da renda convencionado, o Réu vive e convive no imóvel arrendado com dezenas e dezenas de gatos que passeiam livremente quer pelo exterior, quer pelo interior do imóvel, fazendo as suas necessidades fisiológicas no interior da habitação, onde quer que seja, contribuindo para a grave deterioração do imóvel arrendado, gerando ainda graves problemas de higiene e possíveis problemas de saúde (incluindo pública) que, para além de afectarem o próprio Réu, afectam também os moradores dos prédios vizinhos. Os Autores já tentaram por inúmeras vezes contactar o Réu sensibilizando-o para os graves problemas de higiene causados pela utilização imprudente e descuidada que aquele faz do imóvel arrendado, não tendo até à presente data tais avisos surtido quaisquer efeitos. Os Autores procederam, inclusive, à interpelação formal do Réu, mediante o envio de carta registada com aviso de recepção, datada de 11 de Dezembro de 2018, solicitando que este procedesse à entrega do bem imóvel em causa devoluto de pessoas e bens. Foram inclusive tomadas diversas diligências, nomeadamente junto do Instituto da Segurança Social, I.P., para que pudesse ser providenciada a ajuda social de que o Réu manifestamente necessita, sendo que, não obstante terem sido tomadas diversas iniciativas com vista à promoção de soluções adequadas a proporcionar ao Réu adequadas condições de habitabilidade junto dos diversos organismos públicos competentes, o mesmo recusa terminantemente quaisquer alternativas ao abandono do imóvel arrendado. Apesar de os Autores reconhecerem a situação de carência económica e social em que o Réu vive, o facto é que os mesmos não podem mais tolerar que um prédio urbano que é sua propriedade se mantenha ocupado por um arrendatário que não paga qualquer montante, por mais irrisório que seja, a título de renda mensal e que, para agravar toda a situação, leva a cabo uma conduta que contribuí para a sua grave deterioração e perda de utilidade económica, sendo que o estado de deterioração em que o prédio se encontra impede que imóvel venha a ser objecto de futuros novos contratos de arrendamento, sem que previamente seja levada a cabo uma profunda operação de limpeza e reabilitação. Citado veio o Réu apresentar contestação alegando que reside há mais de 20, 30 e 35 anos que reside no imóvel propriedade dos Autores de que é arrendatário. Pagava a respetiva renda e os senhorios emitiam o respetivo recibo. Sucede que, pelo menos desde fevereiro de 2002, os senhorios não mais emitiram os recibos de quitação e isto apesar das diversas interpelações do Réu e de terceiros, que por si entregavam as quantias em dinheiro, aos senhorios. O valor devido pela renda era pago, contudo não era emitido o recibo. Alega ainda ser absolutamente falso que o Réu dê um uso imprudente ao imóvel sendo que, quase diariamente, o Réu tem auxílio de pessoas amigas para as tarefas de higienização da habitação e rossios; O Réu tem 61 anos de idade, padece de graves problemas de saúde, nomeadamente de locomoção, tendo-lhe sido atribuída uma incapacidade permanente de 70%, Vem o Réu alegar que os Autores devem ser responsabilizados pelos danos não patrimoniais causados ao Réu, na medida em que, o Réu confrontado com a possibilidade de ser despejado daquela que sempre foi a sua casa de morada, desde que deixou de ser emigrante, ficou angustiado, triste e desgostoso e bastante ansioso, danos morais que merecem a tutela do direito e que devem ser fixados em quantia não inferior a €2.000,00 (dois mil euros). Saneado o processo foi designada data para a audiência de discussão e julgamento. A 3 de fevereiro de 2022 as partes juntaram aos autos a seguinte transação: I. Autores e Réu acordam na imediata cessação, por acordo, do contrato de arrendamento referido nos autos. II. Os Autores consentem, contudo, que o Réu, a título de comodato, permaneça gratuitamente no referido prédio até 31/05/2022, data em que o terá que entregar aos Autores devoluto de pessoas e bens. III. O Réu reconhece expressamente que não liquidou aos Autores, em número que não consegue esclarecer, mas sempre superior a 36 meses, as mensalidades respeitantes à renda acordada. IV. As partes renunciam ao prazo do recurso. V. Custas a cargo do Réu. A 4 de fevereiro de 2022 foi proferida a seguinte sentença: “Nos presentes autos de Ação de Processo Comum nº 385/19.... que AA e BB move contra CC, por se mostrar válida, quer pela qualidade dos intervenientes, quer pela natureza disponível do objeto, homologo pela presente sentença a transação que antecede, condenando e absolvendo nos seus precisos termos, ao abrigo do disposto nos artigos 1248.º a 1250.º do Código Civil e artigos 277.º, al. d), 283.º, 284.º, 287.º, 288.º, 289.º, 290.º, 291.º, todos do Código de Processo Civil. Custas conforme o acordado - cf. artigos 527.º e 537.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e artigos 1.º, 3.º e 6.º, do Regulamento das Custas Processuais e tabela I anexa. Registe e notifique. Foram os presentes logo notificados da sentença que antecede, do que disseram ficar cientes. Inconformado com a sentença veio o Réu CC recorrer da mesma apresentando as seguintes conclusões: 1- O recorrente não se pode conformar com a presente sentença homologatória de transação, e pese embora a transação que se alcançou nos presentes autos, o Réu não concorda com o teor da mesma. 2- O artigo 291º do CPC refere que a transação pode ser declarada nula ou anulada como os outros atos da mesma natureza, querendo com isto tornar claro que se pretende neste particular remeter para o regime jurídico do negócio jurídico – conforme preveem os artigos 285º e 289º do CC, como salienta Lebre de Freitas. 3- A decisão judicial corporizada na homologação da transação, que constitui um ato jurídico, deve interpretar-se segundo os princípios legalmente impostos e acomodados para os negócios jurídicos e, neste contexto, terá o intérprete de indagar qual a vontade das partes aí exteriorizada, de tal modo que, encontrada esta, todas as circunstâncias envolventes do processo possam ser clarificadas e tomem um sentido definitivamente exato. 4- Resulta do disposto no artigo 1248º, n.º 1, do Código Civil (CC), que a transação é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões. 5- Na verdade, a decisão judicial, corporizada na homologação do pacto afirmado pelas partes na ação, constituindo um ato jurídico, deve interpretar-se segundo os princípios legalmente impostos e acomodados para os negócios jurídicos. 6- Ora, se é assim, a decisão judicial corporizada na homologação do pacto afirmado pelas partes na acção, constituindo um acto jurídico, há-de interpretar-se segundo os princípios legalmente impostos e acomodados para os negócios jurídicos (art.º 195.º do C.Civil). 7- Neste contexto terá o intérprete de indagar qual a vontade das partes exteriorizada na transacção que o Juiz, ao homologá-la, jurisdicionalizou de tal modo que, encontrada esta, todas as circunstâncias envolventes do processo se clarificam e tomam um sentido definitivamente exacto - "as decisões, como os contratos, como as leis, como, afinal, todos os textos, têm de ser interpretados e não lidos; ler não é o fim; é o princípio da interpretação". 8- Assumindo a transacção judicial a natureza jurídica de um autêntico contrato, há-de ela incluir-se no regime legal acomodado para o regime geral dos negócios jurídicos (artigo 217.º e segs. Do C.Civil), designadamente é permissível que se apure se, em especificada transação, ocorreu erro na declaração que a materializou, nos termos e pelo modo como está doutrinado e condensado nos artigos 247.º do Cód. Civil - quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro. 9- Ora o Recorrente entende que deve ser analisada profundamente a transação efetuada nos presentes autos, uma vez que a mesma não exprime de todo a vontade real e esclarecida do aqui recorrente, e que deixou o mesmo numa posição totalmente desprivilegiada. 10- Com efeito, o vertido na transação não acautela de todo os interesses e direitos do R., e não traduzem de todo a vontade real do aqui, ocorrendo um vício da vontade negocial que se traduz ou envolve uma deficiência de discernimento do seu autor constituindo um erro que corresponde à ignorância ou falsa representação de uma realidade (a ignorância do que se ignora), padecendo de vício de anulabilidade, devendo por tal facto ser revogada. 11- Com efeito, o aqui recorrente não compreendeu o alcance da transação, uma vez que não lhe foi explicado o seu conteúdo, constatando agora o aqui recorrente que a transação apenas contém cláusulas que desfavorecem o A., senão vejamos: -o contrato de arrendamento do imóvel que o R. na qualidade de inquilino ocupa desde cessa de forma imediata, - a entrega do imóvel aos AA. até 31/05/2022 - a confissão de uma dívida por parte do aqui recorrente a título de rendas aos AA, - custas a cargo do Réu - a renúncia ao prazo de recurso. 12- Com efeito, e conforme facilmente se depreende pelo teor da contestação apresentada nos autos, e que exprime a verdade e a vontade real do aqui recorrente, constata-se que o conteúdo do termo de transação outorgado nos presentes autos é de todo contrário aos interesses do aqui recorrente, já que: - o recorrente encontra-se no locado há mais de 35 anos, através de contrato de arrendamento celebrado com os primitivos senhorios; - o recorrente sempre pagou as rendas, não admitindo ser devedor de qualquer quantia aos AA; - o recorrente é portador de incapacidade de 70 % que constitui uma limitação à denúncia do contrato de arrendamento por parte dos AA. 13- Ora, em primeira linha cumpre referir que o aqui recorrente, é pessoa humilde, de pouca escolaridade, com as limitações que lhe são conhecidas nos autos, e não foi devidamente esclarecido sobre o alcance do documento assinado – transação - já que não consta do acordo um elemento essencial para o recorrente e que as partes haviam acordado previamente: a venda do imóvel cerne do contrato de arrendamento a terceiro com reserva de usufruto a favor do recorrente. 14- Se o recorrente soubesse que tal não havia ficado garantido nos autos, não teria transacionado, optando antes pelo prosseguimento da ação, é que o mesmo só assinou o documento transação porque estava honestamente convicto daquelas circunstâncias já que, nenhum interesse teria em fazer cessar o contrato de arrendamento, confessar-se devedor de uma quantia que o mesmo não admite dever, entregar o locado até 30 de maio, e por último renunciar ao prazo de recurso nos presentes autos. 15- O mandatário dos recorridos e a patrona do aqui recorrente sabiam ou não deviam ignorar, a essencialidade daquele motivo, que até foi objeto de discussão prévia à transação. 16- Deste modo, a vontade declarada do recorrente foi viciada por erro sobre as qualidades do objecto da transação (foi divergente da vontade que teria tido sem aquele erro); para o recorrente era essencial o elemento sobre o qual incidiu o erro (não teria celebrado a transação se se tivessem apercebido do erro). 17- O mandatário dos recorridos e estes conheciam a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro (o que até foi discutido previamente). 18- Por isso, nos termos dos arts 251º e 247º CC, a transacção é anulável por erro relevante, essencial e conhecido ou cognoscível. 19- Além disso, constata-se ainda que ocorreu um vício na sentença homologatória da transação relativamente à idoneidade do objecto do negócio, pois de acordo com o vertido na clausula III parte do objecto negocial (dívida do recorrente para com os AA) não é determinável, uma vez que não se consegue extrair qual o valor do qual o R. se confessa alegadamente devedor para com os AA. a título de rendas, sendo por isso um objecto inidóneo. 20- Nesse aspecto em particular, o negócio jurídico é por isso nulo por indeterminabilidade do seu objecto – artº 280º do CC. 21- Pelo que a sentença, ao concluir pela validade da transação, quanto ao seu objecto, confirmando os termos e efeitos desses actos ou negócios jurídicos de direito substantivo praticados no processo, absolvendo do pedido e/ou condenando nos termos que resultam da transacção, deve ser revogada por nulidade do objecto da transação, que não deu cumprimento ao disposto no artigo 300º, n.º 3 do CPC. 22- Pelo exposto e por inexistência das condições necessárias para a mesma ter sido proferida –idoneidade do objeto do negócio, a sentença homologatória da transação violou o disposto no artigo 280 do CC, e artigo 290º, n.º 3 do CPC, sendo ainda nos termos do previsto nos artigos 251º e 247º CC, anulável por erro relevante, essencial e conhecido ou cognoscível. 23- Nos termos expostos e com os fundamentos invocados, deverá, pois, revogar-se a sentença recorrida, com todas as consequências legais. Decidindo assim, far-se-á, como sempre, por V. Exas JUSTIÇA. Notificados vieram os autores pronunciar-se sobre a inadmissibilidade do recurso porquanto o Réu desistiu do prazo de recurso (632.º, n.º 1 do CPC). Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre apreciar. * II- OBJETO DO RECURSO: O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impondo-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como as que sejam de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas, cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo certo que o tribunal não se encontra vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e que visam sustentar os seus pontos de vista, isto atendendo à liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito. Assim considerando o teor das conclusões apresentadas pelo Recorrente e atrás supra transcritas, importa ao recurso aferir se unicamente respeita a saber se a transacção judicial devia ou não ter sido homologada. * III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: Com relevância para o presente recurso há a considerar a factualidade resultante do relatório supra. * IV – DO DIREITO: Resulta do atrás exposto que o recorrente pretende ver revogado o despacho que, veio a homologar a transação judicial formulada nos autos porquanto a transação está ferida de erro na declaração, sendo que a vontade declarada não corresponde à vontade real do autor e isto porque o mesmo não compreendeu o alcance da transação que lhe não foi explicado, transação essa que apenas contém cláusulas que o desfavorecem, dela não constando um elemento essencial para o recorrente, a saber, a venda do imóvel a terceiro com reserva de usufruto a favor do recorrente, o que era do conhecimento da parte contrária. Invoca ainda o recorrente a nulidade da transação porquanto na sua cláusula III não é indicado o valor concreto em dívida. Vejamos. Define o nº 1 do artº 1248º do Código Civil a transação como sendo “(…) o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões”, resultando do nº 2 do mesmo preceito legal que “as concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”. Assim configurada, poderemos dizer que a existência de concessões recíprocas constitui requisito constitutivo do contrato de transação, sendo deste modo deixados os termos da exigida reciprocidade à liberdade das partes e à avaliação que as mesmas façam da distribuição do risco do resultado do litígio. Como refere o Dr Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3, pág 489 e ss, poderemos então dizer que a transação situar-se-á, assim, a meio da desistência do pedido e da confissão. Por outro lado, em termos adjetivos, a transação encontra regulamentação nos artºs 283º e seguintes do Código de Processo Civil, mostrando-se relevantes, para o caso em crise, o artº 284º, segundo o qual, a transação modifica o pedido ou faz cessar a causa nos precisos termos em que se efetua, o artº 289º nº 1, segundo o qual, não é permitida a transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis e o artº 291º nº 1 do qual resulta que, a transação pode ser declarada nula ou anulada como os outros atos da mesma natureza. Importa, porém, ter em atenção que, no caso dos autos, estamos a apreciar uma transação que teve lugar no âmbito de um processo judicial, sendo tal transação homologada por sentença. Ora, conforme resulta do artº 290º do Código de Processo Civil: 1.A confissão, a desistência ou a transação podem fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo. 2.O termo é tomado pela secretaria a simples pedido verbal dos interessados. 3.Lavrado o termo ou junto o documento, examina-se se, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a confissão, a desistência ou a transação é válida, e, no caso afirmativo, assim é declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos. 4.A transação pode também fazer-se em ata, quando resulte de conciliação obtida pelo juiz; em tal caso, limita-se este a homologá-la por sentença ditada para a ata, condenando nos respetivos termos. Assim, sendo efetuada a homologação em ata, nos termos previstos no atrás citado nº 4, como aconteceu nos autos em audiência final de 4 de fevereiro de 2022, o juiz, caso verifique que a transação é válida pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, limita-se a homologá-la por sentença, ditada para a ata, condenando nos respetivos termos. Como se refere no Acordão da Relação do Porto, de 20 de setembro de 2021, subscrito pelo Sr Desembargador Nelson Fernandes, in www.dgsi.pt, “Como resulta da citada norma, dependendo é certo a eficácia da transação da prolação da sentença homologatória, constata-se que a função dessa sentença não é a de apreciar/decidir as razões e argumentos das partes sobre a respetiva controvérsia substancial e sim, apenas, diversamente, a de verificar/fiscalizar a regularidade e a validade do acordo, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nele intervieram. Daí que, verdadeiramente, como de resto resulta do n.º 1 do artigo 1248º do CC, se possa dizer, sem grande margem para dúvidas, que a fonte real da resolução do litígio não é nestes casos propriamente a sentença homologatória e sim o ato de vontade das partes, mais propriamente a respetiva convergência no sentido de, mediante recíprocas concessões, terminam um litígio”. E continua aquele D. Aresto “Isso mesmo tem sido evidenciado pela nossa Jurisprudência, ao pronunciar-se sobre o alcance da transação judicial, de que é exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de novembro de 2018[4], nos termos do qual, entendimento que também sufragamos, “«tal sentença não conhece do mérito da causa, mas chama necessariamente a si a solução de mérito para que aponta o contrato de transação, acabando por dar, ela própria, mas sempre em concordância com a vontade das partes, a solução do litígio. E uma vez transitada em julgado, como que corta, e definitivamente, o cordão umbilical que a ligava à transação de que nascera» (ASTJ de 4.11.93, apenas com sumário disponível em www.dgsi.pt e publicado em BMJ 431/417, realce acresc.; no mesmo sentido, transcrevendo o passo do acórdão, ASTJ, de 25.3.2004, publicado na página referida)”. A transação é, pois, o negócio das partes, e a intervenção do juiz é meramente fiscalizadora da legalidade do objecto desse contrato e da qualidade das pessoas que o celebram, não lhe cabendo conhecer do mérito, sancionando sim a solução que as partes encontraram para a demanda, como que absorvendo o acertamento que esses sujeitos processuais deram ao litígio, no âmbito da autonomia privada e dentro dos limites da lei, convencionando o que bem entenderam quanto ao objecto da causa (neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 21 de dezembro de 2006, citado no D. Aresto atrás enunciado e aqui seguido. Efetivamente, decorre do nº 1 do artº 291º, do Código de Processo Civil, que a transacção, o acordo que as partes declararam celebrar, pode ser declarada nula ou anulada como os outros actos da mesma natureza, isto é, como a generalidade dos contratos. Dispõe, ainda, o nº 2 do mesmo preceito, que o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a transação não obsta a que se intente acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação desta ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação. Resulta, pois, daqui que a transação pode ser declarada nula ou anulada, designadamente com fundamento em vícios da vontade dos outorgantes ou natureza do seu objecto, como a generalidade dos contratos, sendo, todavia, o meio adequado para o efeito a acção a que se refere o mencionado artº 291º do Código de Processo Civil ou o recurso de revisão. Aqui chegados, revertamos ao caso sub judice. Na sua petição inicial vieram os autores alegar serem donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua ..., União das Freguesias ... (...), ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art.º n.º ...50, sendo que, quando o Autores adquiriram tal o prédio, no ano de 1976, o mesmo já se encontrava arrendado aos pais do Réu, não tendo sido reduzido a escrito, tendo o Réu após o falecimento dos seus pais, assumido a posição de arrendatário daquele imóvel. Sucede que não obstante o Réu estar obrigado ao pagamento mensal do valor da renda no montante de 15 euros, há 15 anos que tal pagamento não é efectuado, apesar de, por diversas vezes, o mesmo ter sido interpelado para efectuar o pagamento das rendas em atraso, encontrando-se em dívida, até à presente data, o montante de € 2.655,00 (177 meses x €15,00). Alegam ainda os autores que o réu vive e convive no imóvel arrendado com dezenas e dezenas de gatos que passeiam livremente quer pelo exterior, quer pelo interior do imóvel, fazendo as suas necessidades fisiológicas no interior da habitação, onde quer que seja, contribuindo para a grave deterioração do imóvel arrendado, gerando ainda graves problemas de higiene e possíveis problemas de saúde (incluindo pública) que, para além de afectarem o próprio Réu, afectam também os moradores dos prédios vizinhos. Na sua contestação veio o réu alegar o pagamento das rendas peticionadas e a ausência de emissão de recibos pelos autores, alegando ainda ser absolutamente falso que o Réu dê um uso imprudente ao imóvel sendo que, quase diariamente, o Réu tem auxílio de pessoas amigas para as tarefas de higienização da habitação e rossios. Ora, em sede de transação acordaram autores e réu que: I. Autores e Réu acordam na imediata cessação, por acordo, do contrato de arrendamento referido nos autos. II. Os Autores consentem, contudo, que o Réu, a título de comodato, permaneça gratuitamente no referido prédio até 31/05/2022, data em que o terá que entregar aos Autores devoluto de pessoas e bens. III. O Réu reconhece expressamente que não liquidou aos Autores, em número que não consegue esclarecer, mas sempre superior a 36 meses, as mensalidades respeitantes à renda acordada. IV. As partes renunciam ao prazo do recurso. V. Custas a cargo do Réu. Compulsados os articulados das partes e a transação nada resulta, como resulta das alegações e conclusões do recurso, quanto a um acordo entre autores e réu no sentido de os primeiros procederem à venda do imóvel em causa a terceiro, com reserva de usufruto a favor do recorrente. E não só nada resulta quanto a tal acordo (que foi omitido da transação) como também não é possível aferir que se o recorrente soubesse que tal não havia ficado garantido nos autos, não teria transacionado, optando antes pelo prosseguimento da ação, uma vez que o mesmo só assinou o documento transação porque estava honestamente convicto daquelas circunstâncias já que, nenhum interesse teria em fazer cessar o contrato de arrendamento, confessar-se devedor de uma quantia que o mesmo não admite dever, entregar o locado até 30 de maio, e por último renunciar ao prazo de recurso nos presentes autos. Para se poder concluir como pretende o recorrente pela anulabilidade da transação, por erro na declaração indispensável se torna uma discussão processual, com alegação e prova dos factos correspondentes ao invocado vício da vontade, pelo que não constitui este recurso o meio próprio para discutir a anulação da transação nos moldes pretendidos. Importa agora apreciar o invocado vício na sentença homologatória da transação relativamente à idoneidade do objecto do negócio, e isto porque, conforme conclui o recorrente, de acordo com o vertido na clausula III parte do objecto negocial (dívida do recorrente para com os autores) não é determinável, uma vez que não se consegue extrair qual o valor do qual o réu se confessa alegadamente devedor para com os autores a título de rendas. Entende o recorrente ser por isso inidóneo o objecto, o que determinaria a sua nulidade por indeterminabilidade do seu objecto, nos termos do disposto no artº 280º do Código Civil. Conclui que a sentença, ao concluir pela validade da transação, quanto ao seu objecto, confirmando os termos e efeitos desses actos ou negócios jurídicos de direito substantivo praticados no processo, absolvendo do pedido e/ou condenando nos termos que resultam da transacção, deve ser revogada por nulidade do objecto da transação, que não deu cumprimento ao disposto no artigo 300º, n.º 3 do CPC (julgamos nós que referindo-se ao nº 3 do artº 291º, atualmente em vigor). Desde já se diga que, resulta do nº 3 do artº 291º do Código de Processo Civil que “quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da regularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o ato ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito”. A procuração forense, sem atribuição de poderes especiais, confere ao mandatário poderes de representação da parte para a generalidade dos atos processuais, conforme resulta do nº 1 do artº 44º do Código de Processo Civil, mas, conforme resulta do nº 2 do artº 45º do referido diploma legal, “os mandatários judiciais só podem confessar a ação, transigir sobre o seu objeto e desistir do pedido ou da instância quando estejam munidos de procuração que os autorize expressamente a praticar qualquer desses atos”. Assim, a falta ou insuficiências de poderes ou a irregularidade do mandato que se venha a manifestar em relação a atos de desistência, confissão ou transação referidos nos artºs 285º ss e que sejam praticados pelo mandatário no âmbito do processo judicial será cominada com a nulidade, conforme resulta do nº 3 do artº 291º do Código de Processo Civil, atrás enunciada. Ora, no caso dos autos, a transação foi assinada pelo próprio réu (e em nenhum momento foi invocada a sua falsidade), pelo que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, não teria de ser dado cumprimento ao disposto no nº 3 do artº 291º do Código de Processo Civil, aliás nulidade que teria de ser formulada perante o tribunal a quo (e não foi) e não em sede de recurso. E será que a cláusula III da transação segundo a qual “O Réu reconhece expressamente que não liquidou aos Autores, em número que não consegue esclarecer, mas sempre superior a 36 meses, as mensalidades respeitantes à renda acordada”, se encontra ferida de nulidade como pretende o recorrente? Estabelece o nº 1 do artº 280º do Código Civil que “é nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”. Por seu lado, resulta do nº 2 do citado preceito que “é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”. Deste preceito resultam os requisitos do objeto negocial, dele se inferindo serem condições de validade do negócio jurídico a possibilidade física ou legal, a não contrariedade à lei, a determinabilidade, a não contrariedade à ordem pública e a conformidade com os bons costumes do objeto negocial. No que ao caso importa e recorrendo aos ensinamentos do Professor Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição atualizada, pág. 548, “O objeto negocial deve ser individualmente concretizado no momento do negócio ou poder vir a ser individualmente determinado, segundo um critério estabelecido no contrato ou na lei. Esta exigência refere-se, sobretudo, ao objeto mediato do negócio”. No caso sub judice e como já atrás se referiu, o réu declara, em sede de transação, não ter liquidado aos Autores, em número que não consegue esclarecer, mas sempre superior a 36 meses, as mensalidades respeitantes à renda acordada. Ora, salvo o devido respeito por contrária opinião, o objeto desta cláusula é concretizável, a saber, as rendas em dívida, que são pelo menos 36, sendo certo que a renda é a acordada. O objeto é determinado e o valor em dívida, determinável – a saber 36 rendas acordadas. Acrescente-se que, mesmo que se entendesse não ser determinável o objeto desta cláusula, o mesmo não era suficiente para invalidar, por nulo, todo o negócio, ou seja, toda a transação. Nestes termos, nada há a censurar à sentença homologatória, julgando-se, pois improcedente o recurso. * V - Decisão: Considerando quanto vem exposto acordam os Juízes desta Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida Custas pelo recorrente/réu. Guimarães, 30 de novembro de 2022 Relatora: Margarida Pinto Gomes Adjuntas: Maria da Conceição Bucho Raquel Rego |