Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
746/22.2T9PTL.G1
Relator: JÚLIO PINTO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
RECURSO PARA O TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL – RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – A decisão administrativa de cassação da carta de condução é passível de impugnação judicial, como prevê o art. 148º, nº 13, do Cód. da Estrada, nos termos do aludido regime geral das contraordenações.
II – No entanto, nas situações respeitantes ao recurso das decisões em 1ª instância em sede de impugnação judicial, ou seja, relativamente aos recursos para os Tribunais da Relação das sentenças aí prolatadas, tal só ocorrerá nas hipóteses previstas no predito art.º 73º do RGCO.
III – A decisão administrativa aplicada pela ANSR ao arguido, não se enquadra em qualquer das situações prevenidas nas alíneas a) a e) do art. 73º, nº 1, do RGCO, uma vez que na decisão administrativa impugnada judicialmente não se procede à aplicação de qualquer coima, nos termos do previstos no art.º 1º do RGCO (Constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.), nem pode ser considerada uma sanção acessória de uma coima.
IV – A situação concreta também não é enquadrável no nº 2 do art. 73º do RGCO.
V – A decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que conheceu da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente não é passível de ser impugnada por via recursiva para este Tribunal da Relação, por não estarmos face a qualquer uma das situações taxativamente previstas nos nºs 1 e 2 do art. 73º, do RGCO.
Decisão Texto Integral:
Reclamação

Processo contraordenação nº 746/22.2T9PTL.G1

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

No processo administrativo autónomo de cassação do título de condução, com o n.º ...19/2020, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), determinou a cassação do título de condução n.º ...39, de que é titular o arguido AA.
Não se conformando com essa decisão, o arguido impugnou-a judicialmente, dando origem aos autos com o NUIPC 746/22...., a correr termos no Juízo Local Criminal de Ponte de Lima, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., em cujo âmbito foi proferida sentença, em 10-10-2023, a julgar improcedente, na totalidade, o recurso, confirmando integralmente a decisão administrativa.

Não se conformando com essa decisão, AA veio interpor recurso da mesma para este Tribunal da Relação de Guimarães.

Em 1ª instância o Ministério Público respondeu ao recurso, propugnando pela sua improcedência.

Neste Tribunal da Relação, a Sr.ª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo que o recurso do arguido deverá, ao abrigo do art.º 417.º n.º 6 a) do CPP, ser rejeitado por inadmissibilidade legal nos termos do art.º 73.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10 e pela inexistência dos pressupostos previstos no n.º 2 deste normativo.
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No dia 20/02/2024 foi proferida, pelo ora relator, decisão sumária nos termos do disposto no art. 417º, nº 6 al. b) do CPP, rejeitando o recurso interposto, por considerar ser a decisão recorrida legalmente irrecorrível, com fundamento no disposto nos arts. 420º, nº 1 al. b) e 414º, nº 2 e 3 do CPP, em conjugação com os arts. 148º, nº 13 e 186º do Código da Estrada, e art. 73º do D.L. 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações – RGCO).

Desta decisão veio reclamar o recorrente AA, requerendo o julgamento em conferência, nos termos do disposto no art. 419º, nº3 al. a) do CPP.
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Notificado o Ministério Público nada disse.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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II Fundamentação

O recorrente alinha a seguinte linha argumentativa: (Transcrição)

(…)
«Apresentou o reclamante recurso nos termos do artigo 148º nº 12 do código da estrada, 73 nº a alínea b) do DL 433/82, de 27 de Outubro e subsidiariamente 399º e seguintes do código de processo penal.
Não se encontra uniforme a jurisprudência no que tange à prescrição do
procedimento e decisão de cassação (que se invoca), e que a questão figura-se necessária à melhoria de aplicação do direito, recorrendo igualmente ao abrigo do número 2 do artigo 73º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Argui-se ainda a inconstitucionalidade do art.º 148.º do CE por violação do princípio ne bis idem consagrado no art.º 29.º, n.º 5 da CRP, e da interpretação de ue o artigo 189º do código da estrada não se aplica à cassação da carta prevista no artigo 148º do código da Estrada.
A cassação do título de condução é ordenada em processo autónomo, apenas iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução, como imposto pelo art. 148º nº 10 do CE.
Aparte a circunstância de o procedimento direcionado à cassação da carta de condução ser diferenciado dos processos de contraordenação, em cujo âmbito tenham sido apurados os factos integradores das sucessivas infracções estradais justificativas da perda total de pontos, nunca poderá deixar de se considerar que também a cassação da carta de condução por perda de pontos, dada a sua natureza sancionatória, terá de estar sujeita a um prazo prescricional.
Entende-se que o procedimento respectivo, incluída a sua impugnação judicial terá de estar também sujeito ao prazo prescricional de dois anos, imposto pelo art. 188º do Código da Estrada e às causas de suspensão e interrupção ali também previstas.
Assim sendo, e tal sentença é passível de recurso. Independentemente do resultado do recurso tem sido amplamente aceite a recorribilidade da decisão (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-20191 ou Tribunal da Relação de Lisboa de 10-11-20212)
Diz-nos o Tribunal da Relação do Porto datado de 07-05-20203 , posição com a qual concordamos : “A não existência de menção expressa à recorribilidade da medida de cassação da carta no elenco previsto no art.73º do Dec.Lei nº433/82 Código da Estrada não impede a sua impugnação judicial, assim como o recurso para o Tribunal da Relação.
II - Se a lei admite expressamente o recurso para o Tribunal Superior das sanções acessórias como é o caso da perda de direitos (cfr. a interdição da
actividade de condução cujo exercício depende de título público, cfr.art.21º nº1
alínea b) do Dec.Lei nº433/82), por maioria de razão, deve entender-se ser
admissível impugnação Judicial e o recurso para o Tribunal Superior se essa medida de perda de direitos for cominada a título principal, como se verifica na cassação da carta de condução.”
1 Em
http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/50a7f98defe8097d80258792003683d
4?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/f6690251f5a1a3c7802584e400561f45
?OpenDocument
3vhttps://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/db47235dd2db18918025858f005444
44?OpenDocument
Por outro lado, os pressupostos da cassação da carta de condução previsto no n.º 2 conjugado com a alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do Código da Estrada derivam precisamente de condenações anteriores, embora disfarçadas sobre a atribuição de pontos, de forma absolutamente automática, sem que, como medida de segurança que é, e não é igualmente por se dizer que é administrativa que deve oferecer menos garantias do que a medida de segurança imposta pelos Tribunais, nos termos do art.º 101º do C. Penal, não pode nunca ser automática, como se decidiu no Ac. TC n.º 362/92, pelo que entendemos violam as normas citadas o n.º4 do art.º 30º da CRP, ao estipularem a aplicação obrigatória da medida da cassação da carta de condução por via da condenação transitada em julgado das decisões que servem de fundamento à sentença.
Nesta sede, foi totalmente ignorada a argumentação do arguido que as coimas foram pagas e que a condutora habitual é a cônjuge do arguido.
Nesta perspetiva de automatização do procedimento não se atende à verdade dos factos, mas puramente à verdade administrativa, não se dando como não provado que “não foi o arguido quem conduzia o veículo” mas, “que o mesmo não identificou condutor”.
É inconstitucional a norma do art.° 148.° n.° 2 ao consagrar o carácter
automático da cassação do título de condução «definitivo», isto é, a condutores que já tenham ultrapassado o regime probatório.
A proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de 2 anos o que igualmente contradiz um dos principais princípios do direito assente no facto de a pena dever ser graduada em função da culpa do infrator.
Assim, a norma ínsita na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da
Estrada, na interpretação de que a cassação do título de condução aí prevista opera de forma automática, enferma de inconstitucionalidade por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
A escolha da medida da pena, ou até o direito lato sensu, não deve ser pura matemática. O Tribunal Constitucional aplicando a Lei Fundamental, só pode concluir pela inconstitucionalidade material da lei, uma vez que o artigo 30.º, n.º 4 da CRP proíbe a perca de direitos, seja qual for a sua natureza, como efeito necessários de uma pena.
Mais se firma que, do princípio do ne bis in idem (firmado no nº 5 do artigo 29º da CRP) resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.
Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material. Com efeito como pressuposto material da aplicação da pena acessória deveria averiguar-se da especial censurabilidade do condutor no caso concreto.
Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade pratica de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.
Assim e atentas as questões levantadas, tratando-se (salvo melhor opinião) de decisão recorrível, deverá a reclamação proceder e o recurso ser apreciado.»          
*
Diga-se, desde já, que o instituto da reclamação da decisão sumária do relator para a conferência não pressupõe - o que à primeira vista se poderia ter como requisito natural - a discordância com os fundamentos do decidido.
Com efeito o que se pretende com este instituto, que chegou ao Processo Penal depois de introduzido quer no Processo Civil, quer no processado atinente ao Tribunal Constitucional, é que quem se sentir prejudicado e discordar do sentido da decisão sumária, possa obter a substituição da decisão singular do relator pela colegial do tribunal, não se visando alargar o âmbito do conhecimento a outras questões que o despacho não apreciou.
O que se visa com o instituto da reclamação nem sequer é tanto a impugnação da decisão sumária, o que é próprio dos recursos – mas antes a pretensão de substituição do órgão excepcional – o relator – pelo órgão normal – a conferência como tribunal colectivo, para proferir determinada decisão.
Donde, nos debruçaremos apenas sobre a questão que foi objeto da antecedente decisão sumária, retomada na reclamação, ou seja, da admissibilidade do recurso interposto.

É do seguinte teor a decisão sobre a qual incide a reclamação.

Decisão sumária (Transcrição parcial).
«A cassação do título de condução de veículo com motor não tem no nosso ordenamento jurídico uma única natureza, existindo previsões autónomas no Código Penal e no Código da Estrada.
No Código Penal, encontra-se previsto no artigo 101.º, com a epígrafe “Cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor”, que constitui uma medida de segurança não privativa da liberdade [veja-se a sua inserção sistemática no Livro I – Parte Geral / Título III – Das consequências jurídicas do facto / Secção IV – Medidas de segurança não privativas da liberdade], aplicada pela via judicial a agente imputável ou inimputável, tendo como pressuposto a sua perigosidade, revelada pela prática de certos ilícitos típicos.

Por sua vez, no Código da Estrada o regime da cassação tem sofrido variações ao longo do tempo, mas com a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro, a cassação do título de condução, nos termos dos artigos 148.º e 169.º, n.º 4, passou a ser da exclusiva competência do Diretor-Geral de Viação.
Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, foi introduzido no Código da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, à semelhança do que vigora em diversos países europeus.
O artigo 148.º, com a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, passou, então, a ter a seguinte redação [ao caso não nos importa a alteração introduzida no n.º1, al. a), pelo - DL n.º 102-B/2020, de 09/12]:
«1– A prática de contra-ordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtracção de pontos ao condutor na data do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a)- A prática de contra-ordenação grave implica a subtracção de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efectuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contra-ordenações graves;
b)-A prática de contra-ordenação muito grave implica a subtracção de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contra-ordenações muito graves.
2–A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.
3–Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contra-ordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtracção a efectuar não pode ultrapassar os seis pontos, excepto quando esteja em causa condenação por contra-ordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtracção de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4–A subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a)- Obrigação de o infractor frequentar uma acção de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b)- Obrigação de o infractor realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c)- A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5–No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6–Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contra-ordenações graves ou muito graves no registo de infracções é de dois anos para as contra-ordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes colectivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7–A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de acção de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8–A falta não justificada à acção de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9–Os encargos decorrentes da frequência de acções de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infractor.
10–A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11–A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efectivação da cassação.
12–A efectivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13–A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contra-ordenações.»
De acordo com o disposto no artigo 121º-A, n.º 1, do Código da Estrada, a cada condutor são atribuídos 12 pontos.
Nos sucessivos regimes legais manteve-se a competência da autoridade administrativa para ordenar a cassação do título de condução – competência que passou para o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – ANSR (artigo 169.º, n.º 4 – presentemente n.º3) - , dependendo o seu decretamento da verificação, em processo autónomo, da perda total dos pontos atribuídos ao título habilitante. A cada uma das infrações contraordenacionais ou penais previamente verificadas, corresponde a subtração de um determinado número de pontos, mas a cassação só é legalmente admissível com o esgotamento do crédito concedido, correspondente ao esvaziamento da pressuposta – com a concessão do título – aptidão para conduzir veículos com motor.
Quer isto dizer que a cassação do título de condução, ao abrigo do artigo 148.º do Código da Estrada, não é uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da condenação por contraordenações graves e muito graves e/ou da aplicação de pena acessória de proibição de conduzir em razão da prática de crime rodoviário. A cassação tem por base um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir, mas tal juízo está associado à condenação por ilícitos contraordenacionais ou criminais relativos à condução, determinantes da aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir ou de pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
É em função dessa relação com a condenação por infração rodoviária, de natureza contraordenacional ou criminal, que o legislador estabeleceu que a decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações, ou seja, como um recurso de “impugnação judicial”, como tal definido por lei – artigo 59.º, n.º 1 do RGCO -, em processo contraordenacional.
Mas, em sede de direito das contraordenações, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do RGCO à luz da CRP e da CEDH” ed. 2011, pág. 298, «no direito das contra–ordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista» – o que significa, no que se reporta à viabilidade de recurso das decisões judiciais proferidas em primeira instância para o Tribunal da Relação, que o mesmo só é admissível nos expressos casos previstos na lei, isto é, no art. 73º do RGCO.
«Estamos, pois, perante norma de natureza especial em relação ao regime estabelecido nos arts. 399º e 400º do Cód. de Processo Penal – e que assenta na intenção do legislador de, em processo de natureza contraordenacional, limitar o recurso para o Tribunal da Relação –, não se mostrando por isso aqui configurada qualquer situação de lacuna processual legal, pois que aquela primeira norma afasta a aplicabilidade desta segunda.
Notar-se-á que a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art. 20º/1 da Constituição da República Portuguesa (onde se dispõe que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos»), não implica a generalização do duplo grau de jurisdição.
Tal princípio constitucional apenas garante imperativamente um grau de jurisdição, o que, no regime do processo contraordenacional está, desde logo, assegurado pela possibilidade de impugnação judicial das decisões da autoridade administrativa perante o juiz da comarca em cuja área territorial tiver sido praticada a infracção.» (cfr. Ac da RP de Porto, 29 de Junho de 2023, in www.dgsi.pt)
Sufragando esta jurisprudência, no caso vertente só seria passível de recurso da decisão que conheceu da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação do título de condução de que é titular o ora requerente, se a situação concreta fosse enquadrável em qualquer das alíneas do nº 1 do art. 73º do RGCO, ou na situação excecional prevista no nº 2 do mesmo diploma legal, em algum dos casos ali especifica e exclusivamente previstos.
Nos termos do art. 186º do Cód. da Estrada, a situação em análise, uma vez que se trata de matéria de natureza contraordenacional prevista nesse diploma que consagra o direito que rege a circulação estradal, são sempre suscetíveis de serem impugnadas por via judicial as decisões proferidas pela autoridade administrativa, com recurso de impugnação judicial, e impugnação pela mesma via da decisão proferida em 1ª instância que venha a recair sobre aquela decisão administrativa. No entanto, essa impugnação por via recursiva terá de obedecer ao regime previsto na lei geral aplicável às contraordenações, no dito RGCO.
Também a decisão administrativa de cassação da carta de condução é passível de impugnação judicial, como prevê o já citado art. 148º, nº 13, do Cód. da Estrada, nos termos do aludido regime geral das contraordenações.
No entanto, nas situações respeitantes ao recurso das decisões em 1ª instância em sede de impugnação judicial, ou seja, relativamente aos recursos para os Tribunais da Relação das sentenças aí prolatadas, tal só ocorrerá nas hipóteses previstas no predito art.º 73º do RGCO.

Prevê este preceito:

“Artigo 73.º
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.”

“Percorridas as várias situações em que o art. 73º do RGCO tutela a viabilidade de recurso para o Tribunal da Relação, constata–se que as mesmas se reportam a critérios relativos ou à dimensão da coima aplicada, à circunstância de haver lugar à aplicação de sanções acessórias, ou a incidências processuais relacionadas como a tramitação processual ao abrigo da qual a decisão do tribunal foi proferida ; ou ainda quando essa admissibilidade seja ditada por motivos de manifesto interesse jurisprudencial. (Ibidem Ac. RP citado)
Regressando ao caso vertente, verificamos que a decisão administrativa aplicada pela ANSR ao arguido, não se enquadra em qualquer das situações prevenidas nas alíneas a) a e) do art. 73º, nº 1, do RGCO.
Sendo certo que, salvo o devido respeito por opinião diversa, não estamos perante o que possa ser considerado uma sanção contraordenacional, uma vez que na decisão administrativa impugnada judicialmente não se procede à aplicação de qualquer coima, nos termos do previstos no art.º 1º do RGCO (Constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.), nem pode ser considerada uma sanção acessória de uma coima.

Para além disso, como bem se diz no parecer emitido pelo Ministério Público:

«2-Da rejeição do recurso extraordinário ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10:
Alega, por outro lado, o recorrente, no requerimento de interposição de recurso, que não há uniformidade da jurisprudência no que tange à prescrição do procedimento e decisão de cassação, e que a questão “ …figura-se necessária à melhoria de aplicação do direito…”, pretendendo, dessa forma, ver o recurso apreciado ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10.

Como é sabido, revestindo o recurso previsto nesta norma natureza extraordinária, apenas pode/deve ser admitido quando se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade de jurisprudência, ou seja, quando a questão colocada, necessite de ser esclarecida e seja passível de abstração, podendo contribuir para a solução de casos idênticos, além de que deve limitar-se a situações que afetem os direitos do recorrente de forma grave ( cfr. neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2023, no Processo n.º 865/22.5Y5LSB.L1-9).
(….)”
Ora, não obstante o recorrente apresentar argumentos porque considera encontrar-se, no caso, prescrito o procedimento da decisão de cassação, não indica, sequer, que decisões dos nossos tribunais superiores têm tratado a questão concreta de forma diferente, “ impondo-se, por isso, a uniformização..”
Por outro lado, não constitui afectação grave de qualquer direito legítimo do recorrente a cassação da carta decorrente da perda das condições exigíveis e indispensáveis para a concessão do título de condução, quando foi o seu próprio comportamento que conduziu ao termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. Aliás, a cassação não representa a perda de um direito adquirido, mas de verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito ( Cfr. Ac de 10/11/2021, no Processo n.º 179/21.8Y2VNG).”
Pelas razões apontadas, com as quais concordamos, também temos o entendimento que a situação concreta não é enquadrável no nº 2 do art. 73º do RGCO, não obstante a posição do requerente ou do Ministério Público, no sentido de este Tribunal da Relação dever aceitar o recurso da sentença proferida, por tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Assim sendo, face a tudo que acabou de se expor, entendemos que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que conheceu da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente não é passível de ser impugnada por via recursiva para este Tribunal da Relação, por não estarmos face a qualquer uma das situações taxativamente previstas nos nºs 1 e 2 do art. 73º, do RGCO.
Sendo certo que, nos termos do disposto no nº 3 do art. 414º, do CPP, a decisão de admissão do recurso proferida em 1ª instância não vincula este Tribunal da Relação.
Ora, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 414º, nºs 2 e 3, e 420º, nº 1 al. b) do mesmo diploma legal, o recurso deve ser rejeitado sempre que, se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, nomeadamente quando a decisão for irrecorrível, por inadmissibilidade legal.
É o que acontece no caso vertente.
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Decisão.

Pelo exposto, nesta Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, decide-se sumariamente rejeitar o recurso apresentado pelo AA, por se considerar que a decisão impugnada é legalmente irrecorrível.»
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Apreciemos então a reclamação

Consoante se apura do exposto, o arguido, confrontado com a decisão sumária proferida nos presentes autos veio exercer a prerrogativa legal concedida pelo art.º 417º n.º 8, do Cód. Proc. Penal, essencialmente no pressuposto de que a decisão proferida no âmbito do recurso de impugnação judicial é passível de impugnação por via de recurso ordinário para o Tribunal da Relação.
O normativo invocado contempla a possibilidade de a decisão sumária ser sindicada através de reclamação para a conferência, sendo entendimento da jurisprudência que a reclamação constitui uma prerrogativa legal de impugnação dos atos decisórios enunciados nos n.ºs 6 e 7, do citado art.º 417º, posta à disposição do destinatário da decisão que por ela se considere diretamente prejudicado, com vista à sua revogação, modificação ou substituição com base em violação da lei.
Na situação aqui em apreço está, pois, em causa a inadmissibilidade do recurso, com a qual o recorrente, e reclamante, não se conformou.
No entanto, afigura-se-nos, salvo o devido respeito por opinião diversa, ser de manter o que decidido ficou no âmbito da decisão sumária reclamada, ou seja que o recurso interposto deve ser rejeitado, por se considerar que a decisão é legalmente irrecorrível, ao abrigo das disposições já aludidas constantes dos arts. 420º, nº 1 al. b), 2 e 414º, nº 2 do CPP, em conjugação com os arts. 148º, nº 13 e 186º do Código da Estrada, e art. 73º do D.L. 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações – RGCO).
Saliente-se, antes de mais, que a reclamação para a conferência não se destina a suprir qualquer captis diminutio da decisão singular, não tendo como finalidade a obtenção de uma nova decisão fundada num qualquer critério de maior força ou melhor autoridade do órgão colegial em relação ao órgão singular, funcionando antes como meio de impugnação de alguns específicos atos que a lei delimita, posta à disposição do destinatário, da decisão do relator e que por esta veja os seus interesses prejudicados, com vista à sua revogação ou modificação com base numa qualquer ilegalidade que o reclamante há-de concretizar e substanciar.
Com efeito, como decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, a reforma do Código de Processo Penal introduzida pela Lei n.º 48/2007, visou racionalizar o funcionamento dos tribunais superiores, “promovendo-se uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular”.

Daí que, deixando de ser obrigatório o julgamento, o tribunal de recurso passou a funcionar em três níveis:

1 - Decisões da competência do relator [incumbindo ao relator proferir decisão sumária sempre que alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso, este deva ser rejeitado, existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso, ou a questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado - art.º 417º n.º 6 - a) a d)];
2 - Decisões em conferência [se não for possível proferir decisão sumária e funcionando com uma composição mais restrita, já que engloba apenas o presidente da secção, o relator e um adjunto – art.º 419º];
3 - Decisões em julgamento [apenas quando requerido – arts. 411º n.º 5 e 423º. (Cfr., além do mais, fls. 14 da citada Exposição de Motivos disponível in dgpj.mj.pt.)

Ora, no caso vertente, verdadeiramente o reclamante não anota qualquer anomalia à decisão proferida, manifesta-se, no entanto, tal como já havia feito no recurso que interpôs, pela sua admissibilidade e pela prolação de uma decisão que aprecie as questões que foi colocando, como seja as de natureza constitucional, prescrição e violação do princípio ne bis in idem.
Antes de mais, e por uma questão de economia processual, damos aqui por reproduzido tudo o que já exarado ficou na decisão sumária alvo de reclamação.
Acrescentando-se, porém, que nos encontramos num patamar prévio à apreciação das ditas questões que o reclamante entende deveriam ter sido analisadas e aplicadas no caso concreto. Ou seja, o que cumpre apreciar, agora pela via colegial, é se o recurso é, ou não, admissível.

Vejamos.
Como se retira do já expendido quando da prolação da decisão reclamada, encontramo-nos perante uma decisão administrativa que é o epílogo de um processo dessa natureza destinado à apreciação de decisões das quais resulta a perda de pontos na carta de condução.
Essa decisão tomada no âmbito do procedimento administrativo não se configura, salvo melhor opinião, como resultado de um procedimento contraordenacional, o processo administrativo a ela conducente está previsto como um procedimento autónomo, nos termos do art. 148.º, nº 10.º do CE. Neste dispositivo do direito estradal está contemplada a possibilidade de cassação do título de condução, no âmbito do «sistema de pontos e cassação do título de condução», agregado à licença de condução de veículos na via pública, que só tem início «após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução».
Esta decisão administrativa é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações, conforme o 148.º, nº 13.º do CE. Porém, tal recurso da decisão que conheceu do mérito da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação do título de condução de que é titular o ora requerente, só seria possível se fosse integrável, enquadrável em algum dos casos previstos no art. 73º do RGCO, que aí são especifica e exclusivamente previstos, como se ponderou na decisão reclamada.
Ora, no caso vertente, em que está em causa uma decisão cuja materialidade jurídica contraordenacional se mostra tutelada no Código da Estrada, a possibilidade de recurso que o art. 186º desse CE consagra, apenas se verificará nos termos em que a mesma esteja prevista na lei geral aplicável às contraordenações. É esse também o sentido que se extrai do citado art. 148º, nº 13 do mesmo diploma legal.
Repetimos aqui o que já deixamos vertido na decisão sumária alvo desta reclamação, citando Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do RGCO à luz da CRP e da CEDH” ed. 2011, pág. 298, «no direito das contra–ordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista» – o que significa, no que se reporta à viabilidade de recurso das decisões judiciais proferidas em primeira instância para o Tribunal da Relação, que o mesmo só é admissível nos expressos casos previstos na lei, isto é, no art. 73º do RGCO.
Estamos, pois, perante norma de natureza especial em relação ao regime estabelecido nos arts. 399º e 400º do Cód. de Processo Penal – e que assenta na intenção do legislador de, em processo de natureza contraordenacional, limitar o recurso para o Tribunal da Relação –, não se mostrando por isso aqui configurada qualquer situação de lacuna processual legal, pois que aquela primeira norma afasta a aplicabilidade desta segunda.
Notar–se–á que a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art. 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (onde se dispõe que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos»), não implica a generalização do duplo grau de jurisdição.
Tal princípio constitucional apenas garante imperativamente um grau de jurisdição, o que, no regime do processo contraordenacional está, desde logo, assegurado pela possibilidade de impugnação judicial das decisões da autoridade administrativa perante o juiz da comarca em cuja área territorial tiver sido praticada a infracção. (cfr. Ac da RP de Porto, 29 de junho de 2023, in www.dgsi.pt)
É certo que o art. 32°, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que respeita às garantias de defesa em processo criminal, no seu nº 10 garante ao arguido os «direitos de audiência e defesa», nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios. Mas, como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/04/2021 (proc. 194/20.9T9ALB.P1), «A decisão de cassação do título de condução constitui, assim, uma decisão que não envolve necessidade de interpretação de regras de direito, sendo o grau de impugnação para os tribunais judiciais a que alude o nº 13 do artº 148º do CE manifestamente suficiente para garantia de defesa dos interesses em causa».
Aqui chegados, voltando à situação em apreço, afigura-se-nos evidente que não estamos perante qualquer das situações prevenidas nas alíneas do aludido art. 73º, nº 1, do RGCO, designadamente perante a aplicação de uma coima de valor superior a €249,40, ou de alguma sanção acessória aplicada ao requerente, como previsto nas alíneas a) e b) desse dispositivo do direito das contraordenações.
Cabendo aqui realçar que a cassação do título de condução determinada pela ANSR ao abrigo do disposto no art. 148º do Cód. da Estrada não reveste a natureza jurídica de «sanção acessória».
«Por princípio, a sanção acessória não é um efeito automático da prática da infracção que a prevê, porque tem que ser decretada numa decisão condenatória, dependendo a sua aplicação da verificação de pressupostos autónomos, em função da natureza da infracção em causa, da existência de uma moldura abstracta privativa e da valoração dos critérios gerais de determinação das sanções principais. Ou seja, a sanção acessória é aplicável ao agente imputável em cumulação com uma sanção principal, dependendo desde logo de uma condenação nesta última; porém, não é um efeito dessa sanção (principal), mas antes uma consequência do ilícito (criminal ou contraordenacional).
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias – em “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, ed. 1993, pág. 96 –, “continua a considerar–se que certos efeitos jurídicos da condenação desempenham uma função preventiva adjuvante da pena principal, de que o sistema penal não pode, ou não quer, prescindir ; e, na verdade, e uma função preventiva que não se esgota da intimidação da generalidade, mas se dirige também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do delinquente”, sendo necessário, para a sua aplicação, «que o tribunal comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória» – ob. citada, pág. 197.
Porque se trata de uma sanção, ainda que acessória, a determinação da sua medida deve operar-se de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação daquela principal.
Tendo estes aspetos em consideração, e volvendo ao caso concreto, é evidente que ao arguido/recorrente não vem aplicada qualquer sanção acessória.
A cassação do título de condução prevista no art. 148º do Cód. da Estrada constitui antes um efeito das penas (principais ou acessórias) aplicadas por ilícitos de mera ordenação social ou crimes, ambos de natureza rodoviária, e que tenham determinado a perda total de pontos atribuídos ao respetivo titular. Trata-se de uma sanção de natureza meramente administrativa, de um efeito decorrente da aplicação prévia de verdadeiras penas, sanção essa aplicada em processo que se inicia após a ocorrência da perda total de pontos de que o condutor beneficia.
Em bom rigor, adianta–se, a decisão administrativa que foi objeto de impugnação judicial nos autos não conheceu sequer de qualquer contraordenação, não tendo sido por isso aplicada através dela qualquer coima e logicamente também nenhuma sanção que dela pudesse ser considerada acessória, sendo que para tal necessário seria que tal decisão administrativa tivesse assentado num procedimento administrativo, no qual se tivesse decidido a aplicação de uma coima e eventualmente também de uma sanção acessória, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos arts. 1º e 33º do RGCO o que não aconteceu no caso autos, porquanto as coimas e sanções acessórias que, após o trânsito em julgado das respetivas decisões, determinaram a abertura do procedimento administrativo autónomo onde foi comunicada a decisão de cassação que deu origem à impugnação judicial, e que constituem o seu primeiro e último fundamento material, foram aplicadas em processos já extintos e cuja materialidade é já insuscetível de discussão – isto é, os factos constitutivos das contraordenações ou dos crimes que, na soma (rectius, subtração) pontual a eles correspondente, impõem a cassação da carta, não voltam nem poderiam voltar a ser julgados no processo administrativo de cassação, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
Como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/05/2023 (proc. 1159/22.1T9VCD.P1), «O que no processo administrativo autónomo se visa é apenas produzir uma ordem de cassação da carta de condução, após verificação da ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao titular da carta de condução – cf. art.º 148º, nº 10, do CE. Ou seja, decisão que é proferida após e apenas por causa da verificação da soma negativa dos pontos correspondente ao somatório das contraordenações ou crimes praticados, entretanto objeto de decisões já transitadas em julgado. Soma essa que está pré-anunciada, de um modo perfeitamente previsível, transparente, tanto quanto pedagógico, para o respetivo titular da licença, que não pode ignorar ou deixar de saber que a cassação da carta é um resultado meramente reflexo do trânsito em julgado daquelas decisões condenatórias e não da ordem administrativa de cassação, que apenas executa a consequência jurídica daquelas adveniente. E tanto assim é que a efetivação da cassação ocorre com a sua notificação ao titular da carta (“A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação” - art.º 148º, nº 12, do CE) e desse modo também lhe comunicando algo que já deveria saber, por força das anteriores condenações e da perda total de pontos que as mesmas representavam, isto é, que deixou de ter as condições de aptidão que estiveram na base da concessão do título de condução, e assim se verificando a caducidade do título de condução que inicialmente lhe tinha sido atribuído – art.º 130º, nº 1, al. d), do CE.
Assim, é bom de ver que a cassação da carta a que se refere o art.º 148º do CE não é uma sanção contraordenacional, porquanto não traduz em si a aplicação de qualquer coima – art.º 1º do RGCO -, nem é uma sanção acessória da coima». (Cfr. Ac. da RP, de 25/10/2023, in www.dgsi.pt, que seguimos de perto)
Também no Ac. da RE, de 7 de novembro de 2023, disponível no mesmo sítio, se afirma:
«Tal sistema, conhecido e praticado em diversas latitudes do nosso entorno cultural, assenta na conceção de que a licença de conduzir é um direito que, mediante certas condições, se atribui aos cidadãos interessados em conduzir veículos na via pública, condicionado a certas circunstâncias ligadas ao comportamento rodoviário, estabelecendo-se quais é que poderão determinar a perda de pontos e, por consequência, a (eventual) perda da licença de conduzir (a sua cassação), sendo a cassação da carta de condução uma decisão administrativa autónoma, decorrente da perda dos pontos de que os condutores partem quando obtêm a licença de condução. Sendo ademais óbvio não constituir uma sanção acessória, por como tal não estar prevista em lei anterior, nomeadamente nas normas sancionatórias dos comportamentos que dão origem à perda de pontos. Nem poderia logicamente haver uma «sanção acessória» sem que houvesse uma principal de que aquela dependesse! Mas qual seria ela? Parecendo-nos, em remate, incontroverso que não poderia haver uma «sanção acessória» do jaez que o reclamante arvora, sem como tal estar prevista na lei. Pois uma qualquer (!) «sanção acessória» não prevista em lei prévia sempre seria inconstitucional, por violação do princípio da legalidade das penas - artigo 29.º, § 3.º da Constituição).
O Tribunal Constitucional (2) já foi chamado a pronunciar-se em matéria cogente, a propósito do § 11.º do artigo 148.º CE , no sentido em que ali se estabelece um período fixo da medida de cassação do título de condução, tendo considerado o seguinte: «este sistema implica a possibilidade de cassação do título legal de condução em caso de diminuição dos pontos decorrente de condenações por crimes ou contraordenações rodoviárias bem como o estabelecimento de uma condição negativa para a sua aquisição. O decurso do tempo e a conduta do condutor condicionam, porém, os efeitos das infrações cometidas no cômputo dos pontos.
Efetivamente, aos 12 pontos de que dispõe à partida cada condutor poderão acrescer três, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária, até atingir o limite de 15 pontos. Também é possível adicionar um ponto mais em cada período de revalidação da carta sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, com o limite de 16 pontos, sempre que o condutor voluntariamente frequente ação de formação com as regras regulamentares.»
E prossegue afirmando que o regime instituído tem «um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.»
Importa atentar que a atribuição de título de condução pela República  Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado.
Rematando aquele aresto em termos para aqui integralmente transponíveis: «foram as referidas condenações em penas acessórias de proibição de conduzir que desencadearam a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução a que alude a alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do CE. Neste quadro, a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir.
Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. O mesmo juízo acarreta a proibição de concessão de novo título de condução por um período de dois anos após a efetivação da cassação, decorrente do n.º 11 do artigo 148.º do CE.»
2 Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 15mai2020, Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros; e n.º acórdão 154/2022, de 17fev2022, Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro. Sobre o mesmo temário (constitucionalidade e legalidade do regime da cassação previsto no artigo 148.º CE) podem ver-se: acórdão TRCoimbra, de 6nov2019, proc. 4289/18.0T8PBL.C1, Des. Maria José Nogueira; acórdão TRCoimbra, de 13nov2019, proc. 186/19.0T8CTB.C1, Des. Vasques Osório; do TRLisboa, de 16mar2021, proc. 3523/19.4T9AMD.L1-5, Des. Paulo Barreto; do TRLisboa, de 19out2021, proc. 326/20.7Y5LSB.L1-5, Des. Jorge Gonçalves; do TRPorto, de 30abr2019, proc. 316/18.0T8CPV.P1, Des. Pedro Vaz Patto; do TRPorto, de 10fev2021, proc. 118/20.3T9AGD.P1, Des. Liliana de Páris Dias; do TRPorto, de 12mai2021, proc. 3577/19.3T8VFR.P1, Des. Paula Guerreiro; do TRGuimarães, de 27jan2020, proc. 2302/19.3T8VCT.G1, Des. Jorge Bispo; deste TRÉvora, de 20out2020, proc. 218/20.T8TMR.E1, Des. Fátima Bernardes; do TRÉvora, de 27abr2021, proc. 1377/20.7T8TMR.E1, Des. Ana Bacelar.

No segundo dos arestos citados (e mais recente) do Tribunal Constitucional (3) sublinha-se o equilíbrio entre o sacrifício imposto ao condutor e os direitos e interesses que se destina a salvaguardar, em termos que integralmente subscrevemos, concluindo: «a norma sindicada consubstancia uma medida justificada de restrição da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, não violando as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.»
3 O já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2022, de 17fev2022, Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro.
Face a tudo o exposto, não se verificando na decisão administrativa que está na génese deste recurso qualquer das circunstâncias passíveis fundamentar a interposição do mesmo, designadamente as previstas nas als. a) e b) do nº 1 do artigo 73.º do RGC, ou outra das aí previstas, porquanto nem aquela decisão administrativa impugnada conheceu de qualquer contraordenação; nem no procedimento administrativo autónomo em causa foi aplicada qualquer coima ou qualquer sanção acessória, jamais seria admissível.
Também não vislumbramos que o mesmo recurso se possa enquadrar nas hipóteses previstas no nº 2. do mesmo artigo 73º do RGCO, não obstante a menção expressa nesse sentido pelo recorrente.
Quanto a essa possibilidade, do recurso ser admissível à luz do disposto no nº 2 do art. 73º do RGCO, apontamos novamente para os fundamentos vertidos na decisão reclamada, que aqui damos por reproduzidos, não vislumbrando que a situação vertente seja enquadrável nas hipóteses previstas nesse dispositivo, ou seja, por se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
De tudo quanto fica exposto, conclui-se que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância sobre o mérito da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o requerente (ao abrigo do disposto no art. 148º, nº 4, al. c) e 10 do Cód. da Estrada), não é suscetível de recurso para o Tribunal da Relação, por não se mostrar preenchida qualquer das possibilidades taxativamente constantes do art. 73º do RGCO.
Neste sentido da irrecorribilidade das decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas de cassação do título de condução, já se pronunciaram, para além dos arestos acima citados, o Tribunal da Relação do Porto, nos Acórdãos de 28/04/2021 (proc. 194/20.9T9ALB.P1) Dr.ª Eduarda Lobo, de 17/05/2023 (proc. 1159/22.1T9VCD.P1) Dr. Francisco Mota Ribeiro, e ainda as Decisões sumárias de 23/03/2023 (proc. 2728/22.5T9AVR.P1), e de 04-05-2023 (proc. 2885/22.0T8VFR.P1) Dr. William Themudo Gilman, Decisão sumária de 29/06/2023 (proc. 188/21.7T9FLG.P1) Dr. Paulo Costa – todas as decisões disponíveis em www.dgsi.pt/jtrp.nsf.

Pelo que, e sendo certo que, nos termos do disposto no art. 414º, nº 3, do CPP Penal, não está este Tribunal da Relação vinculado à decisão de admissão do recurso proferida pelo Tribunal de primeira instância, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 414º, nº 2 e 3, e 420º, nº 1, al. b), do mesmo diploma legal, deve ser rejeitado o recurso interposto, por inadmissibilidade legal.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam julgar improcedente a reclamação para a conferência, apresentada pelo arguido AA, e rejeitar o recurso apresentado por a decisão impugnada não ser recorrível.

Custas pelo recorrente, fixando-se em três (3) UCs a respetiva taxa de justiça. – art. 420º, nº 3, do CPP.
           
Notifique.
O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 9 de abril de 2024

Os Juízes Desembargadores

Relator - Júlio Pinto
1º Adjunto – Fernando Chaves
2º adjunto – Cristina Xavier da Fonseca