Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
898/23.4T8PTL.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CONTRATO DE CRÉDITO
COMERCIANTE
FIANÇA
OBRIGAÇÃO MERCANTIL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinadas questões, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela, razão pela qual, enquanto meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem confrontar-se com questões novas.
II- Nos artºs 312º a 317º do CC, encontram-se previstas as chamadas “presunções presuntivas”, também conhecidas de curto prazo, as quais se fundam na presunção de cumprimento, presunção essa que pode ser ilidida pelo credor (ainda que apenas e só por via de confissão do devedor, nos termos previstos nos artºs 313º e 314º do CC).
III- A relação contratual estabelecida entre as partes principais do contrato de crédito – uma relação comercial, entre empresas comerciais -, não se encontra abrangida pelo art.º 317º alínea b) do CC, destinada apenas às relações comerciais estabelecidas entre empresas comerciais e particulares.
IV- Nos termos do art.º 101º do CComercial, “todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respetivo afiançado”, pelo que, tendo-se os réus comprometido a responder pessoal e solidariamente com a sociedade por eles representada, pelo exato e fiel cumprimento das obrigações por ela assumida, eles são responsáveis solidários pelas dívidas daquela.
V- Vigora nesta situação o regime da solidariedade passiva, podendo o credor demandar tanto o fiador como o afiançado, sozinhos ou conjuntamente, sem que o primeiro se possa recusar a cumprir sem estar excutido (todo ou em parte) o património do afiançado.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Margarida Gomes
2ª Adjunta: Sandra Melo                                                      
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EMP01..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ..., ..., intentou a presente ação declarativa de processo comum contra AA e BB, ambos residentes no Lugar ..., ..., ... ..., peticionando:

a) Que seja reconhecida a resolução do contrato, e consequentemente os Réus condenados a:
b) Proceder à restituição da quantia mutuada, de € 4.987,98, reduzida do valor da bonificação prometida (€ 698,32), sendo o valor em dívida de € 4.289,66 (420 kg × € 4.987,98 / 3.000 kg = € 698,32) (€ 4.987,98 - € 698,32= € 4.289,66);
c) Pagar o montante indemnizatório de (3.000 kg – 420 kg) x € 27,50 x 20% = € 14.190,00; no montante global de € 18.479,66 (€ 4.289,66 + € 14.190,00), tudo acrescido de juros de mora à taxa legal de juros comerciais, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
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Para fundar a sua pretensão, alegou em síntese, que no exercício do seu comércio, de venda por grosso de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos, no dia ... celebrou com os Réus e com a Sociedade EMP02..., Lda., o contrato de comércio nº ...1, através do qual os Réus se obrigaram a comprar quantidades mínimas mensais não inferiores a 40 kg de café ... –Lote ..., até aos 3.000 kg prometidos em compra, tendo-lhe sido prometido conceder uma bonificação de € 4.987,98 (1.000.000$00), quando, cumulativamente, a totalidade do café prometido em venda se mostrasse integralmente adquirida e paga e em função dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano.
Alegou ainda, que nessa mesma data emprestou à Sociedade EMP02..., Lda., a título gratuito, a quantia de € 4.987,98 (1.000.000$00) para investimento directo em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial, sendo que a obrigação de restituição da quantia mutuada seria cumprida por via de compensação com as quantias liquidadas a favor da Autora anualmente, e a título de desconto/bonificação.
Sucede que as quantidades de café prometidas comprar foram incumpridas pela representada dos Réus, pelo que, no dia 30 de Abril de 2006 e 27 de Novembro de 2019, foram enviadas cartas aos Réus a interpelá-los para o pagamento das quantias em dívida, não tendo os Réus pago as quantias devidas e aí reclamadas, tendo apenas procedido à devolução dos bens referidos na clausula 09 do documento 01 e clausula 01 do documento 02.
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Regularmente citados, vieram os réus contestar, impugnando os factos vertidos na petição inicial, alegando, em síntese, que o Restaurante “EMP02...” procedeu à devolução de todo o equipamento cedido, em março de 2007, data em que foi resolvido o contrato celebrado entre a autora e o referido restaurante, tendo sido pagas as quantias exigidas pela autora, não existindo qualquer montante em dívida.
Arguiram, ainda, a exceção da prescrição, nos termos do art.º 317º, b) do Código Civil, acrescentando que apenas celebraram o contrato na qualidade de fiadores, não tendo recebido quaisquer quantias ou equipamentos, tendo a fiança terminado em 2007, com a revogação do contrato efetuada pela autora.
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Na audiência de julgamento a autora pronunciou-se sobre a exceção perentória da prescrição, alegando, em síntese, que a mesma deve improceder, porque o contrato foi celebrado entre comerciantes, e atenta a qualidade das partes e a atipicidade do contrato em causa nos autos, o prazo de prescrição é de vinte anos.
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Foi então proferida a final a seguinte decisão:
“Nos termos e com os fundamentos acima expostos, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:
a) Reconhece-se a resolução do contrato celebrado entre a autora e os réus, descrito em 2) e 11);
b) Condenam-se os Réus, AA e BB, no pagamento à Autora, EMP01..., S.A., da quantia de € 14.532,26 (…), acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos à taxa de juros comerciais em vigor, contados desde a data da resolução do contrato até efectivo e integral pagamento;
c) Absolvem-se os réus do pagamento das demais quantias peticionadas.
Custas a cargo da autora e dos Réus, na proporção do respectivo decaimento – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela vieram os RR interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso da sentença que condenou os recorrentes.
2. Conforme consta dos autos, os recorrentes agiram na qualidade de fiadores.
3. O fiador não é um mero devedor de uma divida alheia, mas antes e também de uma dívida própria, a dívida afiançada, devendo o mesmo que deve o devedor e não aquilo que por este é devido.
4. O património do fiador responde por dívida alheia, sendo, em princípio, subsidiária, nos termos do artigo 638º do código civil.
5. Assim, e em primeira linha, não ficou demonstrado que se esgotaram todas as vias perante o devedor principal para satisfação do crédito do recorrido.
6. Por outro lado, e citando acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 27-06-2023 “I - Tal como resulta do AUJ nº 6/2022, ocorrendo o vencimento antecipado de um crédito pagável em prestações compostas por capital e juros, designadamente em razão da insolvência do devedor, nem por isso se altera a natureza da obrigação original, caracterizada pela convenção de pagamento fraccionado do capital e juros, em termos aplicáveis quer ao devedor principal, quer aos fiadores.
7. O prazo de prescrição de um tal crédito é de cinco anos, nos termos do art.º 310.º, al. e), do CC, sendo aplicável igualmente à obrigação do fiador.
8. Ora, sendo a obrigação de restituição da quantia mutuada cumprida por via de compensação, conforme alegado na petição inicial, a prescrição do referido crédito seria de cinco anos.
9. O contrato data de 2000, o incumprimento iniciou-se, conforme afirmado na petição inicial em 2000 (tendo sido alegado que “Desde março de 2000 a março de 2004, foram comprados 420 kg de café dos 3.000 kg prometidos”).
10. Assim, há muito que se encontra prescrita a obrigação dos recorrentes.
11. Mais se diga que os ora recorrentes são particulares, tendo alegado o pagamento das quantias em dívida nos termos da alínea b) do artigo 317º do Código Civil.
Termos pelos quais, revogando a sentença recorrida e substituindo-a por decisão que declare a prescrição da obrigação, absolvendo os recorridos, far-se-á a já acostumada JUSTIÇA!”
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Dos autos não consta que tenha sido apresentada Resposta ao recurso.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso de Apelação são:
- A de saber se as questões colocadas pelos recorrentes (nas primeiras conclusões do recurso) constituem questões novas, insuscetíveis de apreciação por este tribunal; e
- Se os créditos reclamados pela A na ação se encontram prescritos.
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Os factos a considerar para a decisão das questões colocadas, são os que resultam do relatório deste acórdão, e ainda os que foram dados como provados (e não provados) na primeira instância, e que são os seguintes:

“A - FACTOS PROVADOS
Da instrução e discussão da causa, julgou-se provada a seguinte factualidade:
1. A Autora, no exercício do seu comércio de venda, por grosso, de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos, os Réus e a Sociedade EMP02..., Lda., NIPC ...90, no dia ..., subscreveram um acordo escrito que denominaram de “contrato de comércio ...1”;
2. No documento descrito em 1) ficou consignado que os réus “outorgam por si, e em representação – com poderes para tanto – do EMP02..., Lda.”;
3. Na cláusula 1 do documento referido em 1) ficou consignado “A PO (ora autora) promete vender à representada dos SO (ora réus) três mil quilos de café EMP03..., lote ..., em fracções mensais mínimas de quarenta quilos (…);
4. Na cláusula 2 do mesmo documento: “E conceder-lhe uma bonificação de um milhão de escudos, quando, cumulativamente, a totalidade do café ora prometida em venda se mostrar integralmente adquirida e paga, a liquidar anualmente em função directa e proporcionada dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano”;
5. Na cláusula 4 ficou consignado: “Os SO prometem comprar, para a sua representada, o café mencionado no nº 1, desta promessa, nos termos exarados”;
6. Nesta mesma data, a Autora emprestou à Sociedade EMP02..., Lda., a título gratuito, a quantia de € 4.987,98 (1.000.000$00) para investimento directo, em mercadorias e bens de equipamento, no seu estabelecimento comercial;
7. A obrigação de restituição da quantia mutuada seria cumprida por via de compensação com as quantias liquidadas a favor da Autora anualmente e a título de desconto / bonificação;
8. Ainda na mesma data, a Autora emprestou, a título gratuito, pelo prazo de vigência do contrato, no estado de novos, em bom estado de funcionamento e de conservação, os seguintes bens, avaliados em € 2.5939,75 (520.000$00): “1 Máquina de Café de 2 Grupos ... 99E” (Refª. ...99) e “1 Moinho de Café Automático ...” (Refª. ...07);
9. No documento descrito em 1), as partes convencionaram que o incumprimento do mesmo, conferiria ao promitente vendedor o direito de o anular/resolver e o de reclamar, nomeadamente, indemnização no modo aí previsto, ou seja: − a quantia correspondente a 20% do valor do café prometido em compra e ainda não adquirido; e; − restituição imediata do remanescente da quantia mutuada em dívida; − a devolução dos bens de equipamento emprestados;
10. No mesmo documento, as partes acordaram que os Réus responderiam pessoal e solidariamente pelo exacto e fiel cumprimento das obrigações a que a Sociedade EMP02..., Lda. ficou adstrita;
11. Em 29 de Dezembro de 2000, foi celebrado um adicional ao acordo descrito em 1), no qual consignaram que a Autora emprestou à representada dos Réus, a título gratuito, pelo prazo de vigência do contrato, no estado de novo, em bom estado de funcionamento e de conservação o seguinte bem, avaliado em € 607,34 (121.760$00): “1 Moinho Automático ...” (Refª. ...07) – e a Representada dos Réus devolveu, na mesma data: “1 Moinho de Café Automático ...” (Refª. ...07);
12. Desde Março de 2000 a Março de 2004, apenas foram comprados 420 kg de café dos 3.000 kg prometidos em compra;
13. No dia 30 de Abril de 2007, foram enviadas cartas, pela autora, aos Réus com o seguinte teor (…);
14. No dia 27 de Novembro de 2019 foram enviadas cartas pela autora, aos réus, a conceder-lhes o prazo máximo de 10 dias para pagamento da quantia de € 10.242,60 “decorrente da resolução do contrato de comércio nº ...1”;
15. Os Réus procederam à devolução dos bens referidos na cláusula 09 do documento 01 e cláusula 01 do documento 02.

B - FACTOS NÃO PROVADOS
Dos relevantes para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
a) Que para restituição da quantia mutuada, os Réus tenham entregue à Autora o cheque n.º ...89, a sacar do Banco 1..., no montante de € 4.987,98 (1.000.000$00), autorizando-a a completar o seu preenchimento, com a aposição da data de emissão, correspondente à do seu vencimento;
b) Que a carta descrita em 12) tenha sido enviada em 2006;
c) Que os réus tenham pago as quantias descritas em 12) e 13)…”.
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I- Das questões (novas) colocadas pelos recorrentes a esta Relação:

Nas primeiras conclusões do seu recurso, começam os recorrentes por alegar que agiram na qualidade de fiadores, e que não ficou demonstrado nos autos que se esgotaram todas as vias perante o devedor principal para satisfação do crédito da recorrida.
Ora, embora o não refiram expressamente, parece resultar das suas alegações, que os recorrentes pretendem fazer valer na ação o seu direito à excussão prévia, como fiadores da devedora principal.
Efetivamente, tendo em consideração a elaboração doutrinal e jurisprudencial da figura da fiança, ela define-se como “o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor” (art.º 627.º, n.º 1 do CC).
Trata-se de uma obrigação acessória (art.º 627.º n.º 2), criada voluntariamente pelo fiador, que a garante com a universalidade do seu património.
A fiança implica que haja um segundo património, o património de um terceiro (fiador), que vai, conjuntamente com o património do devedor, responder pelo pagamento da dívida, de modo que o credor passa a ter como garantia de cumprimento dois patrimónios: o do devedor e o do fiador. Temos então que o património do devedor continua a responder por uma dívida própria, enquanto que o património do fiador responde por uma dívida alheia. Ou seja, da parte do fiador há uma responsabilidade pessoal pelo cumprimento de uma obrigação alheia (Pedro Martinez-Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, Almedina, 1994, pag. 29).
Acresce que a fiança tem a si associada duas características essenciais: a acessoriedade (reportada à circunstância de a fiança estar subordinada e acompanhar a obrigação principal - artigos 627.º, n.º 2, 628.º, 631.º, 632.º e 651.º do CC), e a subsidiariedade (reportada à circunstância de o fiador só responder pelo pagamento da obrigação se e quando resultar provado que o património do devedor resultar insuficiente para liquidar a obrigação por este último contraída – art.º 638º e ss. do CC).
Ou seja, nos termos do artigo 638.º n.º 1 do CC, intitulado “Benefício da Excussão”, “Ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito”.
Ora, parece ser a este “Benefício da excussão” que os recorrentes se referem nas primeiras conclusões do seu recurso, como facto impeditivo do direito da A (no pressuposto, claro está, de não terem renunciado àquele benefício).
Acontece que tal exceção (perentória) é suscitada pela primeira vez nos autos, em sede de alegações de recurso, constituindo para nós uma questão nova, que impede este tribunal de segunda instância, de tomar dela conhecimento.
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Uma outra questão colocada pelos recorrentes em sede de recurso prende-se com a prescrição do direito de crédito da A, que seria de 5 anos, nos termos do art.º 310.º, al. e), do CC, prazo aplicável igualmente à obrigação do fiador, alegadamente porque a obrigação de restituição da quantia mutuada seria cumprida por via de compensação, conforme alegado na petição inicial.
Invocam os recorrentes a seu favor o acórdão da RP, de 27-06-2023, do qual consta o seguinte: “I - Tal como resulta do AUJ nº 6/2022, ocorrendo o vencimento antecipado de um crédito pagável em prestações compostas por capital e juros, designadamente em razão da insolvência do devedor, nem por isso se altera a natureza da obrigação original, caracterizada pela convenção de pagamento fraccionado do capital e juros, em termos aplicáveis quer ao devedor principal, quer aos fiadores”.
E concluem: o contrato data de 2000; o incumprimento iniciou-se, conforme afirmado na petição inicial em 2000 (tendo sido alegado que “Desde março de 2000 a março de 2004, foram comprados 420 kg de café dos 3.000 kg prometidos”), pelo que há muito que se encontra prescrita a obrigação dos recorrentes.
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Ora, como já se adiantou acima, trata-se de (duas) questões que foram suscitadas apenas em sede de recurso, constituindo por isso questões novas, das quais este tribunal da Relação não pode tomar conhecimento.
Efetivamente, no nosso direito adjetivo, a função do recurso ordinário tem como desiderato a reapreciação de uma decisão recorrida, sendo o modelo adotado entre nós o da reponderação e não o do reexame (Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, 2009, pág. 81), o que equivale a dizer que o nosso sistema de recursos inclina-se para a solução que defende que o objeto do recurso é a decisão recorrida, e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida, impondo-se tão só ao tribunal ad quem apreciar se ela é a que “ex lege” devia ter sido proferida.
Dito de outra forma, e como efetivo meio impugnatório de decisões judiciais, a interposição do recurso apenas vai desencadear a reapreciação do decidido, não comportando ele o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida (no momento e lugar adequado) à apreciação do tribunal a quo.
Segundo Elisabeth Fernandez (“Princípio do Dispositivo e Objecto de Decisão de Recurso”, in “As Recentes Reformas na Acção Executiva e nos Recursos”, Coimbra Editora, 2010, págs. 334, 336 e 337), o princípio do dispositivo vigente no processo cognitivo da primeira instância tem igual aplicação no âmbito das instâncias impugnatórias, desde logo quanto ao seu objeto – o objeto originário do processo configura uma espécie de limite máximo para o funcionamento do efeito devolutivo do processo.
Defende aquela Autora que “…de um modo geral, o tribunal de recurso não pode aceitar novos contributos das partes, no que concerne a pretensões, atos ou provas, pois o tribunal de recurso não leva a cabo o reexame da controvérsia, mas antes e tão só a reponderação da decisão recorrida. Na verdade, porque o objeto do recurso, segundo este modelo, não é a questão controvertida mas a decisão impugnada, é óbvio que a sindicância desta decisão só pode lograr-se mantendo incólumes os elementos fácticos e probatórios do processo, pelo que o ponto de partida dos poderes cognitivos do tribunal da relação não pode, por via de regra, extravasar aqueles que o tribunal a quo detinha quando julgou a causa e emitiu a decisão impugnada”.
Com efeito, os recursos destinam-se a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia, e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas. Não sendo tais questões sujeitas à apreciação do tribunal da primeira instância, e não sendo elas de conhecimento oficioso, está vedada a sua apreciação ex novo em sede de Apelação, no âmbito do qual não se podem criar e emitir decisões novas sobre questões novas.
Escreve Abrantes Geraldes a esse propósito (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2016, 3ª ed., Almedina, págs. 97/99), que “A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina (…) importante limitação ao seu objeto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando (…) estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Compreendem-se perfeitamente as razões que levaram a que o sistema assim fosse arquitectado. A diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os tribunais superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios…”.
O mesmo entendimento é perfilhado por Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (CPC anotado, vol. III, tomo I, 2ª ed., pág. 8), de que “Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso…”.
A assunção desta regra encontra também na jurisprudência numerosos exemplos, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, de que “As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição” (Ac. do STJ de 1.10.2002, CJSTJ, tomo III, pág. 65; e de 15/09/2010, 12/09/2013, 02/12/2013, 09/07/2014, 14/01/2015, e 22/02/2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt.).
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Ora, da análise da contestação dos RR, verificamos que não são levantadas nenhuma das questões acima enunciadas, apenas suscitadas por via do recurso.
Os RR, na contestação, invocam apenas a prescrição presuntiva dos créditos da A, prevista no art.º 317º, alínea b) do CC, alegadamente por serem particulares, e ter ocorrido o pagamento das quantias em dívida.
Ora, como é bom de ver, a exceção da prescrição presuntiva de 2 anos tinha por base um fundamento bem diferente da prescrição de 5 anos ora invocada em sede de recurso: no primeiro caso, a venda de bens de um comerciante a quem não é comerciante, por contraposição, no segundo, à venda em prestações, com amortização do empréstimo concedido, por compensação com a bonificação concedida periodicamente ao comprador.
Ou seja, estamos perante fundamentos fático/jurídicos muito diferentes em ambas as pescrições, sendo certo que no tribunal recorrido foram apenas apreciados os fundamentos invocados pelos RR para a prescrição presuntiva prevista no art.º 317º, alínea b) do CC, e não para a prescrição de 5 anos, prevista no art.º 310º alínea e) do CC.
 E o mesmo sucedeu quanto ao caráter subsidiário da fiança, e ao benefício da Excussão prévia que lhe está associado, questão que também não foi suscitada na primeira instância pelos RR, e também ali não conhecida.
Em suma, o tribunal recorrido não apreciou – porque não lhe foram colocadas -, as questões ora colocadas pelos recorrentes apenas em sede de recurso.
Trata-se efetivamente de questões novas, nunca colocadas ao tribunal da primeira instância, que como tal não se debruçou sobre as mesmas, e por isso, não pode este tribunal de recurso apreciá-las neste momento, por não serem também de conhecimento oficioso.
Era dever dos RR colocar ao tribunal recorrido, ainda que a título subsidiário, e para a hipótese de vingar a tese da A, as questões ora colocadas, para serem ali apreciadas; não o tendo feito, e precludindo o seu direito de o fazer fora do local adequado – a contestação -, as questões agora invocadas apresentam-se como questões novas, que não podem ser apreciadas em sede de recurso.
Está também aqui em causa o princípio da preclusão, que significa que os atos (maxime as alegações de factos) que não tenham tido lugar no ciclo próprio (articulados) ficam precludidos; a parte deixa de os poder alegar (e provar) noutro momento processual.
Ou seja, devendo os fundamentos da ação ou da defesa ser formulados todos de uma só vez num certo momento, a parte terá de deduzir uns a título principal e outros in eventu - a título subsidiário -, para a hipótese de não serem atendidos os formulados em primeira linha (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 382, e Ac. STJ de 13-5-2014 disponível em www.dgsi.pt.)
Por isso se afirma reiteradamente, que “as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos” (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, pág. 98), os quais constituem um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas, e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo (art.º 627º nº1 do CPC) sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso (Acs. do STJ de 28-4-2010, de 3-02-2011 de 12-5-2011, de 24-4-2012, de 5-5-2016, de 3-11-2016 e da RC de 29-5-2012, todos disponíveis em www.dgsi.pt e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 153 a 158). 
Como é sabido, a decisão da 1ª instância apenas se pode pronunciar sobre a factualidade que tiver sido alegada pelas partes, e apenas pode incidir sobre as questões concretas por elas suscitadas. Assim, também a decisão do recurso somente poderá abordar questões sobre as quais tenha incidido a decisão recorrida, sem embargo, claro está, das questões de conhecimento oficioso.
Como ensina Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 2ª ed., LEX, Lisboa 1997, pág. 395), no direito português os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas.
O recurso ordinário consubstancia-se, pois, num pedido de reapreciação de uma decisão, não transitada em julgado, dirigido a tribunal hierarquicamente superior, e com fundamento na ilegalidade da decisão, visando revoga-la ou substituí-la por outra mais favorável ao recorrente.
Os recursos constituem, assim, mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, pois que a diversidade de graus de jurisdição determina, em regra, que os tribunais superiores sejam apenas confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios.
Dito de outro modo, o ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinadas questões, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela, razão pela qual, enquanto meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem confrontar-se com questões novas.
Destarte, não tendo o tribunal recorrido se pronunciado quanto às questões analisadas - de saber se os recorrentes beneficiavam do benefício da excussão prévia relativamente à devedora principal, e se o direito de crédito da A se encontrava prescrito à luz do art.º 310º alínea e) do CC -, e não sendo essas questões de conhecimento oficioso, estamos perante questões novas, cujo conhecimento está vedado a esta Relação.
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II- Da prescrição dos créditos reclamados pela A:

Na última conclusão do recurso, vêm os recorrentes invocar que são particulares, tendo alegado o pagamento das quantias em dívida, nos termos da alínea b) do artigo 317º do CC, pelo que pretendem que se declare a prescrição da obrigação.
Sem o dizerem expressamente, depreende-se da alegação dos recorrentes que os mesmos discordam da decisão proferida na primeira instância sobre a exceção da prescrição por eles invocada na contestação, alegando que o crédito reclamado pela A estaria prescrito, ao abrigo da citada alínea b) do art.º 317º do CC.
Mas sem razão, adiantamos já, nenhuma censura nos merecendo a decisão recorrida sobre a matéria.
Começou por apreciar-se na decisão recorrida a exceção da prescrição dos créditos reclamados pela A, nos seguintes termos:
“Da excepção de prescrição
No âmbito dos presentes a Autora peticiona o pagamento de uma indemnização pelos Réus, com fundamento em responsabilidade civil contratual.
Em sede de contestação vieram os Réus deduzir excepção peremptória de prescrição, alegando em síntese que subscreveram o contrato de fornecimento de café na qualidade de fiadores, o EMP02... pagou todas as dívidas à autora, pelo que ao abrigo do disposto no art.º 317º, b) do Código Civil, o crédito encontra-se prescrito.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o art.º 317º, alínea b) do Código Civil que prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor.
Por seu turno, estabelece o artigo 309.º do Código Civil, que o prazo ordinário da prescrição é de 20 anos.
Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição – artigo 298.º, n.º 1 do Código Civil.
Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação, ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito – artigo 304.º, n.º 1 do Código Civil.
A prescrição é, assim, uma excepção peremptória que, se verificada, importa a absolvição total ou parcial do pedido, nos termos do art. 576º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Civil. O tribunal não pode conhecer desta excepção oficiosamente; tem de ser invocada por aquele a quem aproveita, conforme arts. 303º do C.C. e 579º do C.P.C.
Ora, tal como supra referido, a prescrição verdadeira e própria tem por efeito extinguir o direito, por tal modo que o beneficiário dela tem a faculdade de recusar a prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito. O fundamento último da prescrição parece dever situar-se na negligência do credor em não exercer o seu direito durante um período de tempo razoável, em que seria legítimo esperar que ele o exercesse, se nisso estivesse interessado.
Nos arts. 312º a 317º do CC, encontram-se previstas as chamadas presunções presuntivas, também conhecidas de curto prazo, que se fundam na presunção de cumprimento, a qual pode ser ilidida, ainda que apenas e só por via de confissão extrajudicial (caso em que só releva se for feita por escrito) ou judicial (caso em que tanto vale a confissão expressa como a tácita) do devedor.
O efeito da prescrição presuntiva não é, propriamente, a extinção da obrigação, mas antes a inversão do ónus da prova, que deixa de onerar o devedor que, por isso, não tem de provar o pagamento, para ficar a cargo do credor, que terá de demonstrar o não pagamento, o que, como referido, apenas por confissão do devedor pode fazer.
Importa, assim, apurar se o pedido de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 18.479,66, se deve considerar um crédito de quem exerce profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias, não destinadas ao exercício industrial do devedor (caso em que se encontra sujeita ao prazo de prescrição de 2 anos) ou se está abrangido pelo prazo ordinário de prescrição, de 20 anos.
Vejamos.
A autora alega que celebrou com o EMP02... e com os réus, um contrato de comércio, e que, no cumprimento do mesmo, cedeu à ré, em regime de comodato, equipamentos, emprestou-lhe uma quantia em dinheiro, sendo que os réus se obrigaram a consumir, no seu estabelecimento comercial, exclusivamente, café da marca da autora, numa quantidade mínima.
Alega, ainda, que os réus não compraram as quantidades mínimas mensais de café a que se tinham obrigado, deixou definitivamente de consumir café da marca da autora e de comprar café à mesma, tendo originado a resolução do contrato por parte desta última.
Assim, a autora peticiona o pagamento da quantia acima mencionada a título de indemnização pelo incumprimento contratual (valor correspondente ao investimento efectuado com o contrato, proporcionalmente aos quilos de café não consumidos).
Ora, (…) trata-se de um contrato misto que constitui, inequivocamente, um acto de comércio no seu todo, incluindo (…) a parte que contém elementos tipificadores do contrato de compra e venda comercial. Veja-se até que, de acordo com o disposto no art.º 99º do Cód. Comercial, mesmo nos casos em que o ato seja cindível e seja comercial (objectiva ou subjectivamente) para uma das partes e não para a outra, o regime aplicável é o comercial, ou seja, o acto de comércio misto é regido unitariamente como um só acto de comércio.
Assim, o contrato sub judice é, em toda a sua extensão, em relação a todas as suas cláusulas, um só acto de comércio. – Neste sentido, leia-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 03.10.2017, a propósito de um caso muito semelhante ao dos autos.
Com relevância para o caso concreto, dispõe o art.º 101º do Cód. Comercial que «todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respectivo afiançado», e constata-se que os réus comprometeram-se a responder, pessoal e solidariamente, com a sociedade EMP02..., Lda., pelo exacto e fiel cumprimento das obrigações por esta assumidas, derivadas “directamente do contrato ou da sua resolução” – cláusula 15 do contrato de fls. 7.
Assim sendo, o prazo de prescrição constante da alínea b) do art.º 317º do Código Civil, não é aplicável aos autos, quer porque os créditos advenientes do contrato em análise – acto de comércio – são créditos de comerciantes pelos objectos vendidos a quem é comerciante e a quem os destinou ao seu comércio (sendo que é irrelevante a alegação de que os réus apenas assinaram o contrato na qualidade de fiadores) -, quer pelo facto de o valor peticionado na presente acção se tratar de uma indemnização pelo incumprimento contratual, sendo-lhe aplicável o prazo ordinário de prescrição de vinte anos – art. 309º do CC-, que ainda não ocorreu (tendo em consideração o ano da alegada resolução do contrato: 2007).
Termos em que, o Tribunal julga improcedente a excepção peremptória de prescrição invocada pelos Réus…”.
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Como se disse, nenhuma censura nos merece a decisão proferida, que após ter feito uma análise correta do tipo de contrato celebrado pelas partes, concluiu, e bem em nosso entender, que o crédito reclamado pela A na ação não se encontra prescrito, não lhe sendo aplicável a prescrição presuntiva do art.º 317º do Código Civil.
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Dispõe efetivamente o art.º 317º, alínea b) do Código Civil, que prescrevem no prazo de dois anos, além do mais, “os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor”.
O preceito legal transcrito encontra-se inserido na Subsecção III, intitulada “Prescrições Presuntivas”, estando previstas nos artºs 312º a 317º do CC, as chamadas presunções presuntivas, também conhecidas de curto prazo, as quais se fundam na presunção de cumprimento, presunção essa que pode ser ilidida pelo credor (ainda que apenas e só por via de confissão do devedor, nos termos previstos nos artºs 313º e 314º do CC).
O efeito da prescrição presuntiva não é assim a extinção da obrigação, mas antes a inversão do ónus da prova, que deixa de onerar o devedor quanto à mesma, o qual não tem de provar o pagamento, passando tal ónus a ficar a cargo do credor, que terá de demonstrar o não pagamento, o qual, como se referiu, apenas por confissão do devedor pode fazer-se (art.º 344º do CC).
E a razão de ser da lei é simples:
Como esclarecidamente se salientou no Ac. do STJ de 08.05.2013 (disponível em www.dgsi.pt), «a razão de ser deste regime especial desenhado para este tipo de prescrições de curto prazo, assenta em considerações de ordem prática, colhidos da experiência comum e conexionadas com o tipo de relações contratuais (seus sujeitos e objecto) que estão em causa. Como ensina Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica – II- 452), a lei “(...) estabeleceu curtos prazos para a prescrição dos créditos do merceeiro, do hoteleiro, do advogado, do procurador etc., etc., porque se trata de créditos que o credor adquire pelo exercício da sua profissão, da qual vive. Ao fim de um prazo relativamente curto o credor, em regra, exige o seu crédito, pois precisa do seu montante para viver. Por outro lado, o devedor, em regra, também paga estas dívidas dentro de curto prazo, porque são dívidas que contraiu para prover às suas necessidades mais urgentes. Mesmo quando o devedor é pessoa de más contas, prefere não pagar outras dívidas e ir pagando estas, até porque de outra maneira acabaria por não ter quem o servisse. Finalmente, o devedor em regra não cobra recibo destas dívidas, quando as paga; e se exige recibo não o conserva por muito tempo”. Sendo assim, atenta a especial natureza deste tipo de prescrição, não basta invoca-la, sendo ainda necessário que, quem dela pretenda prevalecer-se, alegue o pagamento, ainda que não tenha de o provar, ou pelo menos, não pode alegar factualidade incompatível com a presunção de pagamento, sob pena de ilidir a presunção».
Ora, embora o não digam, estamos em crer que os recorrentes se referem à primeira parte do artigo citado, a qual se refere aos “créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio…”, uma vez que ficou provado nos autos que a Autora se dedica ao comércio de venda, por grosso, de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos, tendo outorgado o “contrato de comércio ...1” descrito nos autos, com os Réus e a Sociedade EMP02..., Lda.
Acontece que, como decorre da matéria de facto provada, também a empresa representada pelos recorrentes, é ou era uma empresa comercial, cujo objeto social era o da restauração, tendo os RR outorgado o referido contrato em representação da mesma (como seus legais representantes).
Donde, é evidente que estamos perante um crédito de um comerciante por objetos vendidos/fornecidos a quem, à data da celebração do contrato, era igualmente comerciante; a venda dos produtos em causa – as quantidades de café acordadas -, foi feita pela A à sociedade EMP02... Lda., a qual se dedicava também ao comércio da restauração, destinando os bens adquiridos ao exercício do seu comércio.
É assim por demais evidente que a relação contratual estabelecida entre as partes principais do contrato não se mostra abrangida naquela disposição legal – destinada apenas às relações comerciais estabelecidas entre empresas comerciais e particulares.
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O que os recorrentes pretendem invocar ademais (quer-nos parecer), é que enquanto avalistas não são comerciantes, nem destinaram a compra dos produtos ao seu comércio, convocando a norma legal em análise para a relação de fiança que estabeleceram no contrato celebrado. Dizem que apenas celebraram o contrato na qualidade de fiadores, não tendo recebido quaisquer quantias ou equipamentos, tendo a fiança terminado em 2007, com a revogação do contrato efetuada pela autora.
Mas também sem razão.
Como resulta dos autos, a principal relação contratual foi estabelecida entre as duas empresas, sendo a compradora representada pelos RR, no contrato de crédito celebrado.
Mas estes comprometeram-se também, assumindo uma relação especial de garantia, a responder, pessoal e solidariamente com a sociedade por si representada, pelo exato e fiel cumprimento das obrigações por ela assumidas, derivadas “diretamente do contrato ou da sua resolução” (cláusula 15 do contrato de fls. 7).
Ora, dispõe o art.º 101º do Cód. Comercial, que “todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respetivo afiançado”.
Assim sendo, tendo-se os réus comprometido a responder pessoal e solidariamente com a sociedade por eles representada, pelo exato e fiel cumprimento das obrigações por ela assumida, eles são responsáveis solidários pelas dívidas daquela.
Vigora nesta situação o regime da solidariedade passiva (ainda que imperfeita), podendo o credor demandar tanto o fiador como o afiançado, sozinhos ou conjuntamente, sem que o primeiro se possa recusar a cumprir sem estar excutido (todo ou em parte) o património do afiançado, podendo apenas exigir do afiançado, no caso de cumprir, tudo o que pagou. (Ac. RC de 07/10/2008, disponível em www.dgsi.pt).
Como consta do Ac. citado, “Muito embora tal princípio (de subsidiariedade) seja a regra na fiança (…), ele comporta exceções, como decorre da previsão do art.º 101º do Código Comercial, onde se prevê e estipula que “todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respetivo afiançado”.
E a razão de ser da doutrina estatuída em tal normativo excecional tem a ver, como vem sendo dominantemente entendido, com as especiais características e exigências da atividade económica em causa.
Consabidamente, para além das simples garantias gerais (tendo por objeto o património do devedor) comuns a todos os credores, podem ainda estes exigir a fixação de outras garantias especiais, tendentes a salvaguardar os seus interesses no caso de incumprimento das obrigações estabelecidas pela parte com a qual contrataram.
Garantias especiais essas que podem assumir a natureza real ou pessoal, sendo as garantias pessoais aquelas em que através delas outras pessoas, além do devedor, ficam responsáveis, com o seu património, pelo cumprimento da obrigação.
Ora, de entre as garantias especiais, destaca-se, como sua figura-tipo, a fiança, cujo regime geral se encontra plasmado nos artºs 627º e ss. do CC.
Em termos jurídicos, essa figura jurídica costuma definir-se e conceptualizar-se como o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 6ª ed., pág. 475).
Feitos estes considerandos, com aplicação ao caso em apreço, facilmente se conclui que os recorrentes prestaram a sua fiança a uma obrigação mercantil, assumida pela sociedade EMP02... Lda. perante a A, encontrando-se assim o caso abrangido pela previsão do citado art.º 101º do CComercial, sendo os recorrentes responsáveis solidários perante a A - e principais pagadores -, pelo cumprimento/pagamento da obrigação contraída pela devedora principal (a referida sociedade da qual eles são ou foram legais representantes).
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Improcedem, assim, todas as conclusões da Apelação dos recorrentes.
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III- Decisão

Assim, em face do exposto, julga-se improcedente a Apelação, e confirma-se na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes (art.º 527º nº 1 e 2 do CPC).
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Sumário do Acórdão (art.º 663º nº 7 do CPC).

I - O ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinadas questões, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela, razão pela qual, enquanto meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem confrontar-se com questões novas.
II- Nos artºs 312º a 317º do CC, encontram-se previstas as chamadas “presunções presuntivas”, também conhecidas de curto prazo, as quais se fundam na presunção de cumprimento, presunção essa que pode ser ilidida pelo credor (ainda que apenas e só por via de confissão do devedor, nos termos previstos nos artºs 313º e 314º do CC).
III- A relação contratual estabelecida entre as partes principais do contrato de crédito – uma relação comercial, entre empresas comerciais -, não se encontra abrangida pelo art.º 317º alínea b) do CC, destinada apenas às relações comerciais estabelecidas entre empresas comerciais e particulares.
IV- Nos termos do art.º 101º do CComercial, “todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respetivo afiançado”, pelo que, tendo-se os réus comprometido a responder pessoal e solidariamente com a sociedade por eles representada, pelo exato e fiel cumprimento das obrigações por ela assumida, eles são responsáveis solidários pelas dívidas daquela.
V- Vigora nesta situação o regime da solidariedade passiva, podendo o credor demandar tanto o fiador como o afiançado, sozinhos ou conjuntamente, sem que o primeiro se possa recusar a cumprir sem estar excutido (todo ou em parte) o património do afiançado.
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Guimarães, 31.10.2024.