Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
747/15.7GBVLN .G3
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: REVOGAÇÃO DE PENA DE SUBSTITUIÇÃO NÃO PRIVATIVA DA LIBERDADE
CUMPRIMENTO DE PENA EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A Lei n.º 94/2017, de 23/08, eliminou as penas de substituição que implicavam o cumprimento de penas de prisão por curtos períodos – prisão por dias livres e regime de semidetenção – em casos de baixo risco, estabelecendo um regime transitório [artigo 12º] que possibilitava ao condenado naquelas penas requerer ao Tribunal a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371º-A do Código de Processo Penal, para que a prisão que faltasse fosse cumprida em regime de permanência na habitação e, concomitantemente, alterou o regime de permanência na habitação mediante a ampliação do respetivo campo de aplicação, passando a configurar também uma forma de execução da pena [de prisão], e não apenas uma pena de substituição, como sucedia no regime anterior.
II - Há quem sustente que a aplicação de uma qualquer pena de substituição, incluindo o regime de permanência na habitação, dependendo de um juízo de adequação às finalidades da punição, apenas pode ser formulado na sentença, momento da escolha da pena, e pelo Tribunal de julgamento, não podendo ser aplicada em momento posterior à sentença, e quem, diversamente, entenda que pode ser aplicada posteriormente, no Tribunal de condenação, nos termos previstos no artigo 371º-A do Código de Processo Penal, e, enquanto modalidade de execução da prisão, nomeadamente nas situações de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80º a 82º ou decorrente da revogação da pena de substituição prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 43º do Código Penal, ou no Tribunal de Execução de Penas, quando a pena de prisão já está em curso, nos termos previstos nos artigos 120º, n.º 1, al. b), e 138º, n.ºs 2 e 4, al. j), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, perfilhando-se o segundo entendimento.
III - Assim, sendo proferido despacho de revogação de pena de substituição não privativa da liberdade, nomeadamente de prestação de trabalho a favor da comunidade, quando a pena de prisão a cumprir não for superior a dois anos deve aí ser ponderado se estão reunidas as condições para esta ser executada em regime de permanência na habitação, nomeadamente, se por este meio se realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição e se o condenado nisso consente.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. - RELATÓRIO

1. No processo abreviado n.º 747/15...., que corre termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi proferido despacho judicial em 01.07.2023, mediante o qual se decidiu indeferir o requerimento formulado pelo condenado, AA, visando a substituição do cumprimento da pena de prisão de 5 (cinco) meses e 14 (catorze) dias de prisão pelo regime de permanência na habitação.
2. Inconformado com tal decisão, dela veio o condenado interpor o presente recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sendo a motivação rematada pelas seguintes conclusões e petitório [transcrição[1]]:
«1º
Na verdade, e salvo melhor entendimento, competia ao Tribunal a quo, a quando da revogação da pena de trabalho a favor da comunidade em que o arguido foi condenado, ponderar a existência de condições para que o arguido pudesse cumprir a pena de prisão na habitação, na medida em que naquele momento já dispunha da informação que necessitava para proferir decisão nesse sentido.

Ora o artigo 43º nº 1 al. c), determina que “Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização : c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º

Com as alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017 de 23/8 o regime de permanência na habitação previsto no artº 43º CP passou a constituir não só uma pena de substituição em sentido impróprio, mas também uma forma de execução ou cumprimento da pena de prisão, contrariamente áquilo que o Tribunal a quo entende no seu douto despacho.

Pelo que, entendemos que o disposto no artigo 59º nº 2 do código penal não é, nem poderia ser, incompatível com o recurso ao artigo 43º nº 1 al. c), ou seja, o facto de ali se determinar que o Tribunal revogando a pena de prestação a favor da comunidade e ordenar o cumprimento da pena de prisão subsidiária não significa que não possa aplicar outra pena substitutiva, como é o caso do regime de permanência na habitação, tal como se determina no artigo 43º nº 1 al c).

A sê-lo e a restringir a aplicabilidade deste regime, o artigo 59º violaria constitucionalmente a norma explicita do artigo 43º nº 1 al. c) do Código penal.

Ora, os factos dos presentes autos ocorreram em 20/12/2015, o artigo 43º nº 1 al. c) do CP na redação introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23.08, entrou em vigor a 22.11.2017, ou seja, após a pratica dos factos.

A sua aplicação seria sempre realizada em virtude da aplicação da lei penal no tempo na consideração do principio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, como é o caso em apreço. (vide artigo 29º do Constituição da República Portuguesa).

É possível neste momento, contrariamente ao que sucedia no regime anterior, aplicar ao regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade, como foi o caso.

Por esse motivo entendemos que não colhe sustento o argumento utilizado pelo tribunal a quo de que o facto de o artigo 59º, nº 2 do Código Penal ao estabelecer que a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, o que afastaria a aplicação subsequente de outra pena de substituição.
10º
Como também não deve acolher o argumento de que o momento para ponderar e aplicar o regime de permanecia na habitação é na decisão condenatória, já que não existe qualquer impedimento a que o Tribunal o faça posteriormente quando tal se justifique.
11º
A verdade é que o Tribunal a quo, aquando da audição do arguido para revogação da pena substitutiva de trabalho a favor da comunidade não requereu a realização de um relatório social do arguido, nem ordenou a realização de diligências que pudessem determinar a sua situação, económica, familiar e social atualmente.
12º
Também é verdade que o Tribunal não solicitou a prestação de consentimento pessoal por banda do arguido, apesar de o arguido ao requerer a aplicação do regime de permanência na habitação acabou por prestar o referido e necessário consentimento.
13º
Salvo o devido respeito, “ impunha-se que o Tribunal a quo ponderasse, no despacho recorrido [despacho que revogou a pena de substituição], a possibilidade de execução dessa pena de prisão em regime de permanência na habitação, aquilatando se estavam ou não verificados os pressupostos legais previstos no artigo 43º, n.º 1, do CP, designadamente, apreciando se essa forma de execução da pena de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que, frisa-se, não sucedeu.”
14º
Aquando o momento em que formulou o requerimento para que o tribunal ordenasse o recurso ao regime de permanência na habitação, relatou a sua situação laboral, social, familiar económica atual, condicentes com a aplicabilidade plena do regime de permanência na habitação.
15º
O facto de cumprir a pena de prisão em casa, na sua habitação, fará certamente demovê-lo da prática deste e de outros crimes, uma vez que ali, não conduzirá veículos automóveis sem habilitação legal, pelo que não há qualquer perigo de continuação da atividade criminosa e do cometimento de novos crimes.
16º
A execução da pena de prisão deverá constituir uma ultima ratio, em obediência aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da menor restrição possível dos direitos e liberdades dos cidadãos, cfr. artigo 18º, nº 2 da CRP.
17º
Face ao exposto, por se encontrarem reunidos os requisitos de que a sua aplicação depende, deverá substituir-se o cumprimento da pena de prisão pelo regime de permanência na habitação considerando que através da aplicação desta medida se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nos termos e para os efeitos do artigo 43º do CP.
18º
Entendemos, portanto, que o tribunal a quo violou o disposto no artigo 42º, 43º nº1 al. c) e artigo 59º todos do Código Penal.
19º
Desta forma, requer-se a V. exa. que se dê provimento ao presente recurso e em consequência seja o despacho recorrido seja agora revogado, e se seja substituído por outro que proceda á substituição do cumprimento da pena de prisão pelo regime de permanência na habitação.
20º
Caso V. Exa. entendam que este Venerando Tribunal não reúne a informação necessária a proferir aquele acórdão, requer-se a V.Exa. que seja o processo remetido á primeira instancia para que, após averiguadas pelo Tribunal a quo as condições do arguido/condenado, e efetuadas as diligências necessárias para o efeito, nomeadamente a obtenção da prestação de consentimento pessoalmente prestado pelo condenado (cf. artigo 43º, n.º 1, do CP e art. 4º, nºs 1 e 2, da Lei nº 33/2010, de 02.09), eventualmente de pessoas que com ele coabitem (cf. art. 4º, nºs 4 e 5, da Lei nº 33/2010) e a viabilidade de instalação de meios técnicos de controlo à distância conjugada com a prévia obtenção de relatório a solicitar aos serviços de reinserção social, nos termos do art. 7º, nº 2, da Lei nº 33/2010, seja aplicado o regime de permanência na habitação e seja o arguido autorizado a cumprir a sua pena de pena através deste regime com a aplicação de os meios técnicos de controlo disponíveis.

NESTES TERMOS REQUER–SE A V. EXª DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGAR O DOUTO DESPACHO RECORRIDO SUBSTITUINDO-SE POR OUTRO QUE SUBSTITUA O CUMPRIMENTO DA PENA DE PRISAO EFETIVA PELO REGIME DE PERMANENCIA NA HABITAÇAO, NOS TERMOS DO ARTIGO 43º Nº 1 AL. C) DO CP E ASSIM FARÃO V. EXAS. A MERECIDA E DEVIDA JUSTIÇA.!»

3. Após a admissão do recurso, a Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, concluindo que a decisão recorrida não violou qualquer preceito legal, devendo, consequentemente, ser mantida na íntegra.
4. Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sufragando entendimento diverso, aduzindo, além do mais, o seguinte:
«Analisados os autos verifica-se que o condenado recorreu do 1º despacho que revogou a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade. Tal recurso obteve procedência parcial. Na sequência de novo despacho de revogação daquela medida foi interposto novo recurso que foi julgado improcedente.
Naqueles recursos não foi suscitada a questão da aplicação do art. 43º nº 1 c) do Código Penal com a redação conferida pela Lei nº 94/2017.
Aquela norma é mais favorável ao arguido sendo assim, aplicável ao caso nos termos do disposto no art. 2º nº 4 do Código Penal.
Termos em que se entende que a situação deve ser reapreciada nos termos do disposto no art. 371º-A do CPP aplicável por identidade de razão.
O MP é assim, do parecer que o recurso deve ser provido.»
5. Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao aludido parecer.
6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. Decorre do disposto no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.
Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente e, outras, de conhecimento oficioso[3].
1.2- Assim, no caso concreto, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, e não se vislumbrando quaisquer (outros) vícios de conhecimento oficioso, a questão suscitada no recurso traduz-se em apreciar se a decisão recorrida deve ser substituída por outra que que, na sequência da revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, determine o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.

2. - Incidências processuais relevantes para a decisão
2.1 - Nos presentes autos, por sentença proferida em 14.07.2016, transitada em julgado, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, que se substituiu por 180 (cento e oitenta) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.

2.2 - Por decisão de 19.11.2018 foi revogada a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e determinado o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença.
Foi interposto recurso pelo arguido da referida decisão, o qual foi admitido, tendo sido proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 12.04.2021, que julgou parcialmente procedente o recurso e, determinou “que o tribunal de 1ª instância designe data para audição do arguido/condenado na presença do técnico da DGRSP que acompanhou a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, após o que deverá ser tomada a decisão que se impuser em função do que aí se apurar”.

2.3 - Após cumprimento do determinado pelo tribunal superior, foi proferido, em 14-09-2021, novo despacho judicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, que culminou com a seguinte decisão:
«Em face do exposto e ao abrigo do disposto no artigo 59.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, decide-se revogar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e determinar o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença, que no caso, descontadas as 16 (dezasseis) horas prestadas até ao momento, se fixa em 5 (cinco) meses e 14 (catorze) dias, atendendo ao disposto no artigo 58.º, n.º 3, e 59.º, n.º 4, do citado diploma legal.
Notifique (sendo o condenado pessoalmente) e, após trânsito, emitam-se mandados de detenção e condução do condenado ao Estabelecimento Prisional competente para cumprimento da referida pena.
Autue o presente despacho.»
Desta decisão interpôs o arguido recurso, que foi admitido, tendo este Tribunal da Relação de Guimarães, mediante o acórdão proferido em 09.05.2022, negado provimento ao mesmo e confirmado o despacho recorrido, que assim transitou em julgado nos seus precisos termos.

2.4 - Em 31.05.2022, veio o condenado formular requerimento, com a referência ...51, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, concluindo que «por se encontrarem reunidos os requisitos de que a sua aplicação depende, deverá substituir-se o cumprimento da pena de prisão pelo regime de permanência na habitação considerando que através da aplicação desta medida se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nos termos e para os efeitos do artigo 43º do CP.»

2.5 - Após ser facultado o exercício do contraditório ao Ministério Público, em 01.07.2022 foi proferido o despacho judicial objeto do presente recurso, que tem o seguinte teor [transcrição]:
«Ref.ª ...51:
Por sentença transitada em julgado foi o arguido AA condenado, nestes autos, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, que se substituiu por 180 (cento e oitenta) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Por decisão judicial, transitada em julgado ao abrigo do disposto no artigo 59.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, foi revogada a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e determinado o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença, que no caso, descontadas as 16 (dezasseis) horas prestadas, se fixou em 5 (cinco) meses e 14 (catorze) dias, atendendo ao disposto no artigo 58.º, n.º 3, e 59.º, n.º 4, do citado diploma legal.
Pretende, agora, o arguido que a pena de 5 (cinco) meses e 14 (catorze) dias de prisão seja cumprida em regime de permanência na habitação.
A Digna Magistrada do Ministério Público na douta promoção que antecede, promoveu o indeferimento do requerido.
Cumpre decidir.
O regime de permanência na habitação encontra-se regulado no artigo 44º do C.P. e é uma pena de substituição e não um modo de execução da pena, pelo que a sua aplicação terá de ter lugar na sentença condenatória, não sendo possível uma sua aplicação posterior.
Na realidade, a aplicação de uma qualquer pena de substituição, incluindo a prevista no art. 43º do C.P., depende de um juízo de adequação às finalidades da punição, que apenas pode ser formulado na sentença, no momento da escolha da pena, não podendo ser aplicada num momento posterior à sentença condenatória – vide o Ac. do TRC, de 18.03.2020, in www.dgsi.pt, Relatora Ana Carolina Cardoso e o Ac. do TRP de 07.03.2012, in www.dgsi.pt., mencionados na promoção que antecede.
Acresce que o artigo 59.º, n.º 2 do Código Penal estabelece que a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, o que afasta a aplicação subsequente de outra pena de substituição.
Assim, pelo tribunal foi aplicada uma pena de substituição – prestação de trabalho a favor da comunidade-, a qual veio a ser revogada.
Tal revogação implica a execução da pena de prisão, não podendo o tribunal aplicar nova pena de substituição em momento posterior à condenação transitada em julgado, pelo que se indefere o requerido.
Notifique.
*
Após trânsito, emita os competentes mandados de condução ao Estabelecimento Prisional.»

3. - Apreciação do recurso

Mediante o recurso em análise insurge-se o recorrente contra o despacho que indeferiu a sua pretensão de cumprir a pena de prisão em regime de permanência na habitação, materializada em requerimento que formulou após o trânsito em julgado do despacho que revogou a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e determinou o cumprimento da prisão correspondente, conforme o iter processual supra descrito.
Vejamos.
Dispõe o artigo 43º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23.08, sob a epígrafe “Regime de permanência na habitação”:
“1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;
c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º
2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.
4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:
a) Frequentar certos programas ou atividades;
b) Cumprir determinadas obrigações;
c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado;
d) Não exercer determinadas profissões;
e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas;
f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.
5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.”
Em traços largos, a Lei n.º 94/2017 eliminou as penas de substituição que implicavam o cumprimento de penas de prisão por curtos períodos – prisão por dias livres e regime de semidetenção –  em casos de baixo risco, estabelecendo um regime transitório [cfr. artigo 12º] que possibilitava ao condenado naquelas penas requerer ao Tribunal a reabertura da audiência, nos termos do art. 371º-A do Código de Processo Penal, para que a prisão que faltasse fosse cumprida em regime de permanência na habitação e, concomitantemente, alterou o regime de permanência na habitação mediante a ampliação do respetivo campo de aplicação, passando a configurar também uma forma de execução da pena [de prisão], e não apenas uma pena de substituição, como sucedia no regime anterior.
A apontada alteração inscreve-se no desiderato que o legislador nacional há muito vem prosseguindo em matéria de política criminal no sentido de a pena carcerária constituir a sua ultima ratio.
A este respeito pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 90/XIII, da Presidência do Conselho de Ministros, da qual promana a citada Lei n.º 94/2017, entre o mais e no que ao caso interessa, o seguinte:
«Vinca-se, por um lado, a sua natureza de regime não carcerário de cumprimento da pena curta de prisão e alarga-se, por outro lado, a possibilidade da sua aplicação aos casos em que a prisão é concretamente fixada em medida não superior a dois anos, quer se trate de prisão aplicada na sentença, de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.° a 82.° do Código Penal, ou de prisão decorrente da revogação de pena não privativa de liberdade ou do não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.° do mesmo diploma.
(...)
Não obstante, o procedimento atual em matéria de aplicação de penas à pequena criminalidade não é substancialmente alterado. O juiz continuará a proceder a uma dupla operação. Verificado que tem perante si um crime provado e concretamente punido com pena de prisão até dois anos, começará por determinar se é adequada e suficiente às finalidades da punição alguma pena de substituição (multa, suspensão da execução, trabalho a favor da comunidade) ou se é necessário aplicar a pena de prisão. Nesta última hipótese, ficam à sua disposição duas possibilidades de execução, pela ordem seguinte: ou em regime de permanência na habitação, ou dentro dos muros da prisão, em regime contínuo.»
Em face das referidas alterações, têm-se suscitado divergências quanto à qualificação da natureza do regime de permanência na habitação em termos dogmáticos – como pena de substituição (em sentido impróprio), meio de execução da pena, ou sistema misto (pena de substituição e forma de execução da pena)[4].
Ante a letra da lei e o supra transcrito quanto à motivação que lhe subjaz, afigura-se-nos que o regime de permanência na habitação reveste, desde a referida alteração legislativa, natureza mista: de pena de substituição em sentido amplo ou impróprio, na medida em que, tendo natureza privativa da liberdade, pode ser decidida na sentença condenatória em alternativa ao cumprimento da pena de prisão em meio prisional; de mera modalidade ou forma de execução da pena de prisão, uma vez que pode ser aplicada na fase de cumprimento de pena em consequência da revogação de pena não privativa da liberdade aplicada em substituição da pena de prisão, nos termos do artigo 43º, nº 1, al. c), do Código Penal[5].
Independentemente da caracterização dogmática do regime de permanência na habitação instituído pela Lei n.º 94/2017, inquestionável é que o intuito ressocializador das penas, reforçado pelo legislador com a sua consagração, e bem assim o reconhecimento do caráter residual da pena carcerária relativamente à pequena e média criminalidade e os princípios constitucionais, nomeadamente da necessidade e proporcionalidade, que necessariamente a hão de enformar, impõem ao juiz, uma vez fixada pena de prisão cujo cumprimento não exceda os 2 anos, o dever de analisar qualquer regime que institua menos restrições ao direito à liberdade e de fundamentar a necessidade daquele ocorrer em meio prisional[6].
Neste conspecto, há quem sustente que a aplicação de uma qualquer pena de substituição, incluindo o regime de permanência na habitação, dependendo de um juízo de adequação às finalidades da punição, apenas pode ser formulado na sentença, momento da escolha da pena, e pelo Tribunal de julgamento, não podendo ser aplicada em momento posterior à sentença[7], e quem, diversamente, entenda que pode ser aplicada posteriormente, no Tribunal de condenação, nos termos previstos no artigo 371º-A do Código de Processo Penal,  e, enquanto modalidade de execução da prisão, nomeadamente nas situações de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80º a 82º ou decorrente da revogação da pena de substituição prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 43º do Código Penal, ou no Tribunal de Execução de Penas, quando a pena de prisão já está em curso[8], nos termos previstos nos artigos 120º, n.º 1, al. b), e 138º, n.ºs 2 e 4, al. j), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, perfilhando-se o segundo entendimento.
Posto isto, atentemos no caso dos autos.
Em 14-09-2021 foi proferido despacho judicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, mediante o qual foi decidido revogar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e determinar o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença, que no caso, descontadas as 16 (dezasseis) horas prestadas, se fixou em 5 (cinco) meses e 14 (catorze) dias, atendendo ao disposto no artigo 58.º, n.º 3, e 59.º, n.º 4, do Código Penal.
Como se assinalou, decorre do artigo 43.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23/08, que, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade, quando a pena de prisão a cumprir não for superior a dois anos, sempre que o Tribunal concluir que por esse meio se realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição e o condenado nisso consentir, aquela é executada em regime de permanência na habitação.
A Lei n.º 94/2017, de 23/08, entrou em vigor em 21.11.2017 – cfr. artigo 14.º –, pelo que à data [da prolação da decisão que nos presentes autos revogou a pena de trabalho a favor da comunidade e determinou o cumprimento da prisão correspondente [5 (cinco) meses e 14 (catorze) dias] já se encontrava em vigor o artigo 43.º do Código Penal na redação introduzida pelo referido diploma.
Assim, ao contrário do sustentado pelo tribunal a quo no despacho ora recorrido, nada impedia que fosse ponderada a aplicabilidade do regime de permanência na habitação em momento posterior ao da condenação, podendo e devendo sê-lo aquando da decisão de revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, a tanto não obstando o disposto no artigo 59º, n.º 2, do Código Penal, ao estabelecer que tal determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, pois daqui apenas se retira que esta se torna efetiva, não ficando excluída a possibilidade de ser executada em regime de permanência na habitação, caso se verifiquem os necessários pressupostos. Não se trataria da “aplicação subsequente de outra pena de substituição”, como referido na decisão recorrida, mas, antes, de ponderação da modalidade de execução da pena de prisão efetiva.
O próprio recorrente sustenta no recurso em apreciação que se impunha ao Tribunal a quo que ponderasse no despacho que revogou a pena de substituição [que refere impropriamente como “despacho recorrido”, mas que não é o objeto do presente recurso, mas de recurso anterior, já apreciado e decidido (em 09.05.2022)] a possibilidade de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, aquilatando se estavam ou não verificados os pressupostos legais previstos no artigo 43º, n.º 1, do Código Penal, designadamente, apreciando se essa forma de execução da pena de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que não sucedeu [cfr. Conclusão 13.ª].
Ora, da análise do sobredito despacho datado de 14.09.2021 não ressalta, efetivamente, a fundamentação da ponderação do tribunal a quo que conduziu ao afastamento do regime de permanência na habitação e à opção pela prisão em ambiente prisional. Todavia, é inquestionável que em tal decisão se determinou que, após trânsito, fossem emitidos «mandados de detenção e condução do condenado ao Estabelecimento Prisional competente para cumprimento da pena» de prisão, definindo-se, assim, incontornavelmente, o modo de execução da mesma como carcerária.
Se o condenado não concordava com o decidido, mormente quanto aos moldes de execução da prisão determinada na sequência da revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, impunha-se-lhe que reagisse de imediato pela via processual idónea, ou seja, a do recurso. Sucede que, tendo interposto recurso do despacho de 14.09.2021, o condenado não suscitou essa questão, vindo aquele despacho a ser confirmado na íntegra pelo tribunal superior mediante acórdão prolatado em 09.05.2022.
Ainda que se admitisse a possibilidade de o condenado vir requerer o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação mediante requerimento posterior, como fez, afigura-se incontornável que o aludido despacho que determinou o cumprimento da pena no estabelecimento prisional transitou em julgado nos seus precisos termos, formando caso julgado, que impede que o Tribunal de condenação (re)aprecie a questão da modalidade de execução da pena de prisão, no sentido plasmado no despacho recorrido ou noutro. Isto, naturalmente, sem prejuízo da eventual apreciação pelo Tribunal de Execução de Penas quando o condenado tiver iniciado o cumprimento da pena de prisão no estabelecimento prisional, nos sobreditos moldes.
Ante o exposto, ainda que por razões diversas das aduzidas no despacho recorrido, conclui-se pela improcedência da pretensão do recorrente e pelo não provimento do recurso.
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III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo condenado AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].
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(Elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias, sendo assinado eletronicamente, conforme certificação constante do canto superior esquerdo da 1.ª página – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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, 03 de outubro 2023

Isabel Gaio Ferreira de Castro
Ana Teixeira
Maria de Fátima Furtado



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos e, nalguns casos, a alteração da formatação do texto e/ou da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora.
[2][2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3][3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061.
[4] Cfr., acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12/09/2018, Proc. n.° 12/17.5GCGVA.CI, no primeiro sentido; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06/02/2019, Proc, n.° 19/18.5SFPRT.PI, no segundo sentido, e acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14/05/2019, Proc. n.° 2895/11.3TXLSB-E.LI-5, no sentido restante, todos disponíveis para consulta in dgsi.pt.
[5] Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 18.02.2020 e 14.07.2020, disponíveis no mesmo sítio.
[6] Vide, neste sentido, Maria João Antunes, “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2017, pág. 93
[7] Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2020, disponível www.dgsi.pt
[8] Neste sentido, vejam-se os citados acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 18.02.2020 e 14.07.2020 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 24.01.2022, todos acessíveis em www.dgsi.pt