Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
398/21.7T8CBT.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MÁQUINA ESCAVADORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Ainda que resulte da matéria de facto provada que, na altura do acidente, o trabalhador da ré R... (ora 2.º réu) encontrava-se, no exercício das suas funções, a manobrar a pá escavadora Caterpillar, regressando, para fazer novo transporte, à unidade de triagem de materiais recicláveis - após ter despejado no aterro resíduos rejeitados por essa unidade de triagem -, também resulta evidente que no exato momento em que o acidente ocorreu, a máquina em questão não desempenhava a sua função específica enquanto máquina escavadora, encontrando-se a ser utilizada na sua função de circulação, ou de transporte, pois se provou que foi quando o condutor da pá escavadora se encontrava a circular no sentido descendente, na via oposta àquela em que se encontrava o veículo estacionado, ao pretender virar à direita, com o sol, não viu o veículo ligeiro estacionado, embatendo com a pá da máquina na traseira daquele veículo ligeiro.
II - Perante tal circunstancialismo temporal, espacial e funcional, deve considerar-se que o acidente em apreciação resultou exclusivamente dos riscos próprios de circulação da máquina escavadora, na sua função de veículo automóvel, e não com dos riscos inerentes ao seu funcionamento enquanto máquina industrial, independentemente do tipo de atividade a que estava destinada e de tal embate ter ocorrido em arruamento de acesso condicionado e nas instalações da ré R....
III - Em consequência, nenhuma responsabilidade pode ser assacada à recorrente/ré F... - Companhia de Seguros, S.A., demandada nos autos com fundamento no contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração/laboração celebrado com ré R..., uma vez que o acidente em apreciação não tem relação direta com os riscos específicos que decorrem da titularidade da exploração de estabelecimento industrial, incluindo o que resulte da utilização das respetivas instalações e do exercício das inerentes atividades desenvolvidas pela 1.ª ré, estando ao invés abrangido pelo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
IV - Trata-se de solução que está em consonância com os critérios legais aplicáveis, à luz da orientação amplamente consensual na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, apoiada na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, segundo a qual o que releva para efeitos interpretativos no sentido da inclusão no regime do seguro obrigatório não apenas dos acidentes com intervenção dos veículos automóveis a que é dada a comum utilização rodoviária, mas ainda de outros veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, designadamente tratores agrícolas ou industriais, retroescavadoras, bulldozers, cilindros de compactação, empilhadores, dumpers ou outras máquinas, é que o acidente tenha relação direta com os perigos derivados da utilização de veículos automóveis na sua função habitual, ou seja, como meios de transporte ou de locomoção autónomos, independentemente do sinistro ter ocorrido na via pública, ou equiparada, ou mesmo numa via ou espaço particulares.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

E... Company intentou ação declarativa com processo comum contra R... - Valor e Tratamento de Resíduos, S.A.; AA; F... - Companhia de Seguros, S.A.; pedindo a condenação dos réus no pagamento à autora da quantia de 8.351,60€, acrescida de juros de mora, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito alega, em síntese, que se encontra sub-rogada na posição da sua segurada, a tomadora do seguro do veículo ..-XZ-.., podendo reclamar dos réus os valores atinentes à indemnização que pagou à sua segurada pelos prejuízos sofridos no referido veículo, por força do contrato de seguro que abrange a responsabilidade por danos próprios e a que aquela tinha direito a título de compensação pelos danos patrimoniais decorrentes do sinistro ocorrido no dia 11 de agosto de 2021, nas instalações da 1.ª ré, nas circunstâncias alegadas, e que causou danos no veículo no valor de 7.302,53€ e de 1.049,07€ pelo aluguer de viatura de substituição durante o tempo de imobilização.
Citados, os réus R... e AA apresentaram contestação, invocando, além da incompetência material do tribunal; que o sinistro está abrangido no âmbito do contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual, celebrado pela 1.ª ré com a ré F... - Companhia de Seguros. Mais alegaram que o acidente ocorreu dentro das instalações da 1.ª ré, que são de acesso condicionado, não tendo o 2.º réu, apesar de conduzir com a máxima atenção e cuidado, previsto a presença do veículo ligeiro naquele local, que se tratava de uma zona de circulação e não de estacionamento. Terminam, pugnando pela improcedência da ação quanto ao 1.º e 2.º réus.
A 3.ª ré - F... - Companhia de Seguros, S.A., -  também apresentou contestação, alegando que o acidente ocorreu numa via destinada ao trânsito de veículos e aberta ao trânsito público, quando a máquina, obrigada a matricular, se encontrava em circulação, recaindo sobre a 1.ª ré a obrigação de segurar a máquina industrial no seguro automóvel obrigatório, âmbito que está excluído do contrato de seguro celebrado. Além disso, sempre há que descontar o valor correspondente à franquia, da responsabilidade do segurado, e ainda os danos indiretos, causados, como seja, o dano resultante do aluguer de viatura de substituição.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, julgada improcedente a exceção de incompetência material do tribunal e proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e seleção dos temas da prova.

Realizou-se a audiência final, após o foi proferida sentença (de 26-10-2022) julgando a ação procedente, a qual se transcreve na parte dispositiva:

«(…)
Pelo exposto, julga-se a ação procedente, por provada, e, em consequência:
- Condena-se a Ré F... -  S.A. no pagamento, à Autora E... Company, da quantia 7.516,44€ (sete mil, quinhentos e dezasseis euros e quarenta e quatro cêntimos), a que acrescem juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento;
- Condena-se a Ré R..., S.A. e o Réu AA, solidariamente, no pagamento, à Autora E... Company, da quantia de 835,16€ (oitocentos e trinta e cinco euros e dezasseis cêntimos), a que acrescem juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Custas pelos Réus, por terem ficado vencidos, na proporção do decaimento, o qual se fixa em 90% para a Ré F... - Companhia de Seguros e 10% para os Réus R... e AA (art. 527º, nº 1 e 2 do CPC).
(…)».
Inconformada, veio a 3.ª ré - F... - Companhia de Seguros, S.A. - interpor recurso da sentença proferida, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1) A Ré, ora apelante, não pode aceitar a douta sentença recorrida, uma vez que entende que os danos reclamados pela Autora não estão cobertos pelo contrato de seguro invocado.
2) Nos termos do disposto nos arts. 1.º e 32.º da Lei do Contrato de Seguro, Decreto-Lei nº 72/2008, para sabermos qual o risco que o segurador sobre temos necessariamente de recorrer ao que consta da apólice.
3) Analisado o contrato de seguro invocado, verificamos que o mesmo não garante os danos “Decorrentes de acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório automóvel, quando ocorram em circunstâncias abrangidas pela respetiva obrigação de segurar”, estando excluídos da cobertura do contrato “quaisquer danos relacionados e/ou derivados de «Responsabilidade Civil Automóvel»”.
4) Conforme resulta da matéria de facto provada, o acidente objeto dos presentes autos ocorreu quando a máquina retroescavadora da segurada da apelante, circulava por uma via destinada ao trânsito de veículos existente nas instalações daquela, em ..., acabando por embater, nessas circunstâncias, num veículo automóvel que ali se encontrava estacionado.
5) Pese embora se tratar de uma máquina retroescavadora, o sinistro descrito ocorreu quando essa máquina se encontrava em circulação, com funções de transporte, num arruamento que, sendo privado, permite a presença de pessoas estranhas à organização da proprietária da máquina, ainda que devidamente autorizadas.
6) A máquina não se encontrava a carregar e a despejar resíduos, nem o embate ocorreu quando a máquina se encontrava a movimentar-se para recolher resíduos do solo, mas sim quando os transportava para outro local, o que traduz necessariamente que o acidente ocorreu quando a máquina exercia as funções de autolocomoção e de transporte.
7) Assim, impendia sobre a segurada da apelante, nos termos do disposto no 4.º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, celebrar um seguro de responsabilidade civil através do qual transferisse a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros em consequência da circulação daquela máquina.
8) O facto de se tratar de uma máquina destinada a circular numa via privada também não afasta, por si só, essa obrigação, uma vez que a mesma se destina precisamente ao trânsito de pessoas e veículos, sendo frequentada por outras pessoas e veículos, nomeadamente, outros trabalhadores da co-Ré e fornecedores.
9) A máquina industrial da co-Ré interveniente no sinistro é um veículo a motor, atento o disposto no art. 109.º, nº 2, do C. Estrada, sujeito à obrigação de matricular por parte da sua proprietária, nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 107/2006 que prevê o Regulamento de Atribuição de Matrícula a Máquinas Industriais.
10) Deste modo, deve ser proferido acórdão que revogue a douta sentença recorrida e que, relativamente à ora apelante, julgue a ação totalmente improcedente.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e proferindo-se acórdão que, relativamente à ora apelante, julgue a ação totalmente improcedente e a absolva do pedido, como é de JUSTIÇA».
Os réus R... - Valor e Tratamento de Resíduos, S.A., e AA, apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação e consequente manutenção da sentença recorrida, o mesmo sucedendo com a autora.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto da presente apelação circunscreve-se a aferir se a sentença recorrida incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito ao considerar verificadas as condições contratuais de acionamento da cobertura do risco no âmbito do contrato de seguro celebrado entre as rés F... - Companhia de Seguros e R... e titulado pela apólice n.º ...37, em detrimento da exceção invocada pela 3.ª ré a propósito da exclusão contratual prevista no art.º 6.º, n.º 1, al. l) das respetivas Condições Gerais.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na sentença recorrida:
1. A L... - Comércio e Aluguer de Automóveis e Equipamentos Unipessoal Lda. celebrou com a E..., S.A. um contrato de locação do veículo ligeiro de passageiros, com marca e modelo ..., de matrícula ..-XZ-.., através do qual cedeu à E..., S.A. o gozo temporário desse veículo.
2. A E..., S.A. celebrou com a Autora E... , seguradora do grupo L..., um contrato de Seguro do Ramo Automóvel, titulado pela Apólice n.º ...58, relativo ao veículo ligeiro de passageiros ..., de matrícula ..-XZ-.., através do qual transferiu para a Autora a responsabilidade civil pelos danos emergentes da sua circulação perante terceiros, bem como dos danos próprios sofridos.
3. A Ré R..., no âmbito do contrato de concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal de tratamento e recolha seletiva de resíduos urbanos, contratou um seguro de responsabilidade civil com a Ré F... - Companhia de Seguros S.A., aqui 3.ª Ré, titulado pela apólice n.º ...37, através do qual esta “garante o pagamento das indemnizações que, de acordo com a legislação em vigor, possam ser exigidas ao Segurado, a título de responsabilidade civil extracontratual, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, resultantes de lesões materiais e/ou corporais causadas acidentalmente a terceiros no decurso da exploração da atividade da empresa segurada”, na qual se inclui “todos os trabalhos realizados dentro ou fora das instalações da empresa, desde que relacionados com a laboração da mesma”.
4. O capital seguro da responsabilidade, em Agosto de 2020, era de 20.000.000,00€.
5. O contrato de seguro referido em 3 prevê ainda que fica a cargo do segurado uma franquia de 10% do valor dos prejuízos indemnizáveis, com o mínimo de €500,00 e máximo de €2.000,00, por sinistro.
6. De acordo com o artigo 6º, nº 1 das Condições Gerais, o contrato não garante os danos: “l) Decorrentes de acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório automóvel, quando ocorram em circunstâncias abrangidas pela respetiva obrigação de segurar”; t) “Indiretos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e direta do ato ou omissão do Segurado”.
7. Nos termos do disposto no ponto 2, al. l), da Secção “Âmbito de Garantia” das Condições Particulares, excluem-se quaisquer danos relacionados e/ou derivados de “Responsabilidade Civil Automóvel”.
8. A Ré R... é proprietária de uma máquina industrial, pá escavadora, da marca ..., modelo ...36, com peso bruto de 12.295kg.
9. A máquina industrial pá escavadora não tem matrícula e está afeta apenas a trabalhos industriais no interior das instalações da Ré R..., não sendo utilizada na via pública.
10. As instalações da Ré R... são constituídas por um aterro sanitário, uma unidade de triagem de materiais recicláveis, edifício administrativo, edifícios de manutenção, parque de estacionamento de visitas, parque de estacionamento de funcionários e diversos arruamentos destinados à circulação das viaturas da Ré R....
11. As instalações da Ré R... são de acesso condicionado, com uma portaria com segurança permanente e barreira limitadora de acessos, sendo apenas admitida a entrada de veículos pertencentes à Ré, funcionários e fornecedores ou outras pessoas devidamente identificadas e autorizadas.
12. Os funcionários e fornecedores têm de imobilizar os veículos nos espaços de estacionamento existentes para o efeito.
13. Os arruamentos são utilizados pelas diversas máquinas/viaturas da Ré R... para transportarem os resíduos para o aterro sanitário e/ou para a unidade de triagem de materiais recicláveis e entre ambos.
 14. No dia 11 de Agosto de 2020, pelas 12h00m, a condutora do veículo ligeiro, com a matrícula ..-XZ-.., BB, encontrava-se nas instalações da Ré R..., sitas na Estrada Nacional n.º ...10, ..., ... em ..., com vista a realizar uma visita ao local, mais precisamente ao pavilhão de tratamentos de resíduos.
15. BB estacionou o veículo com a matrícula ..-XZ-.., nas instalações da Ré R..., no arruamento junto à berma, fora da zona de estacionamento definida para veículos estranhos à Ré R..., após indicação de trabalhador da Ré R....
16. Por sua vez, o trabalhador da Ré R..., o Réu AA encontrava-se, no exercício das suas funções, a manobrar a pá escavadora Caterpillar, regressando, para fazer novo transporte, à unidade de Triagem de materiais recicláveis, após ter despejado no aterro resíduos rejeitados por essa unidade de Triagem.
17. Quando o condutor da pá escavadora se encontrava a circular no sentido descendente, na via oposta àquela em que se encontrava o veículo estacionado, ao pretender virar à direita, com o sol, não viu o veículo ligeiro estacionado e embateu com a pá da máquina na traseira daquele veículo ligeiro.
18. O condutor da máquina pá escavadora, ao ouvir o ruído, apercebeu-se que tinha embatido contra o veículo ligeiro.
19. O condutor da máquina pá escavadora conduzia de forma desatenta e sem cuidado, não tendo verificado que o veículo ligeiro se encontrava ali estacionado.
20. A faixa de rodagem, de piso betuminoso, com a largura de 6,60 metros e sem qualquer linha divisória assinalada no seu pavimento, encontra-se afeta a dois sentidos.
21. O arruamento, na parte mais à frente do local onde o veículo ligeiro estava estacionado, encontrava-se em obras de manutenção.
22. No local onde o veículo ligeiro se encontrava estacionado, próximo do edifício de Triagem, não havia obras, encontrando-se em bom estado de conservação.
23. Não existe sinalização vertical ou horizontal a proibir o estacionamento onde se encontrava o veículo ligeiro.
24. O local é uma reta, com inclinação descendente, que apresenta boa visibilidade de cerca de 100 metros, podendo, em certas alturas do dia, haver encadeamento com o sol.
25. Na sequência do embate, o veículo ligeiro sofreu estragos, nomeadamente no farolim direito, na dobradiça direita, no vidro da mala, no guarda lamas direito, entre outros, cuja reparação foi orçamentada em 7.302,53€.
26. O veículo ligeiro com a matrícula ..-XZ-.. ficou imobilizado durante trinta dias, o que implicou o aluguer de um veículo de substituição durante esse período de paralisação, pelo valor unitário de 28,43€, e global de 1.049,07€, com IVA.
27. Antes da ocorrência do acidente, o veículo ligeiro com a matrícula ..-XZ-.. apresentava-se em bom estado de conservação.
28. A Autora, por força do contrato de seguro celebrado com a E..., S.A procedeu ao pagamento dessas quantias.
29. A Ré R... foi interpelada, pela ora Autora, com vista a solucionar, de forma extrajudicial, a presente situação.
1.2. Factos considerados não provados pela 1.ª instância na sentença recorrida:
a) A L... - Comércio e Aluguer de Automóveis e Equipamentos Unipessoal Lda. é uma sociedade comercial que tem por objeto o exercício da atividade de compra, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis.
b) O acidente descrito ocorreu no ano de 2021.
c) Os trabalhos de manutenção eram de colocação de alcatrão.
d) No arruamento, paralelo ao edifício de triagem, encontravam-se estacionados dois camiões de transporte de alcatrão e uma viatura de colocação de alcatrão.
e) A presença das aludidas viaturas, ocupando a parte direita do arruamento, obrigaram a escavadora Caterpillar a transitar junto à berma esquerda do aludido arruamento.
f) O condutor da escavadora dirigia-se para o pavilhão de tratamentos de resíduos para imobilizar a referida máquina numa zona existente para o efeito.
g) O 2º Réu, dirigia a pá escavadora Caterpillar, com o máximo de cuidado e atenção.
h) O Réu AA não previa a existência naquele local do veículo estacionado, por o arruamento estar destinado, em exclusivo, à circulação dos veículos da Ré R... em laboração.
i) A existência de fumos, provenientes da colocação do alcatrão, não permitiram ao Réu AA aperceber-se do veículo ligeiro estacionado.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

Na sentença recorrida o tribunal a quo começou por enquadrar a pretensão formulada pelo autor no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos, tal como consagrada no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil (CC), norma que impõe a quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Neste domínio, a sentença recorrida considerou verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, com a obrigação de indemnizar a cargo do réu AA, manobrador da máquina Caterpillar, e da ré R..., esta nos termos do artigo 500.º, n.º 1 do CC, por se ter demonstrado que o condutor da máquina pá escavadora é trabalhador da ré R... e encontrava-se a exercer a sua atividade, ao serviço daquela e nas suas instalações.
A apelante não vem questionar no recurso a verificação dos referidos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, igualmente não pondo em causa a existência de danos, nem a sua ressarcibilidade.
Também não vem posto em causa, como decidido, que, por força do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...37, outorgado com a 1.ª ré R... -, enquanto proprietária de uma máquina industrial, pá escavadora, da marca ..., modelo ...36, com peso bruto de 12.295kg -, a 3.ª ré F... - Companhia de Seguros obrigou-se a garantir “o pagamento das indemnizações que, de acordo com a legislação em vigor, possam ser exigidas ao Segurado, a título de responsabilidade civil extracontratual, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, resultantes de lesões materiais e/ou corporais causadas acidentalmente a terceiros no decurso da exploração da atividade da empresa segurada”, na qual se inclui “todos os trabalhos realizados dentro ou fora das instalações da empresa, desde que relacionados com a laboração da mesma”, do que decorre que a ré F... - Companhia de Seguros assumiu a responsabilidade pelos danos patrimoniais causados a terceiros, por trabalhos realizados dentro das instalações da ré R..., desde que tais trabalhos se relacionem com a sua laboração.
Trata-se de um seguro de responsabilidade civil de exploração, a que se refere o artigo 4.º do Sistema da Indústria Responsável, aprovado em anexo do Dec. Lei n.º 169/2012, de 01-08, cujo regime está regulado na Portaria n.º 307/2015, de 24-09, aí se prevendo que o  industrial deve contratar um seguro de responsabilidade civil extracontratual que cubra o risco decorrente da titularidade da exploração de estabelecimento industrial, incluindo o que resulte da utilização das respetivas instalações e do exercício das inerentes atividades (artigo 4.º, n.º 1 da referida Portaria)[1].
Por sua vez, o artigo 5.º, n.º 2 da Portaria n.º 307/2015, de 24-09 prevê que, salvo convenção em contrário, estão excluídas do âmbito da cobertura do contrato de seguro obrigatório a que se refere o aludido artigo 4.º (seguro que garante o risco decorrente da titularidade da exploração de estabelecimento industrial) diversas situações, entre as quais enuncia os danos resultantes de uso de veículo que devam ser garantidos por seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (artigo 5.º, n.º 2 al. d).
Em harmonia com as exclusões consagradas no regime legal do seguro obrigatório que garante o risco decorrente da titularidade da exploração de estabelecimento industrial, o contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre a ré R... e a ré F... - Companhia de Seguros S.A., aqui 3.ª ré, titulado pela apólice n.º ...37, prevê expressamente que o contrato não garante os danos «l) Decorrentes de acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório automóvel, quando ocorram em circunstâncias abrangidas pela respetiva obrigação de segurar», nos termos do artigo 6.º, n.º 1 das condições gerais da respetiva apólice (cf. o ponto 6 dos Factos provados).
A referida cláusula de exclusão mostra-se estabelecida no quadro contratual aplicável, pois está prevista nas condições gerais da apólice, devendo, além do mais, atender-se ao disposto na respetiva apólice para fixação do conteúdo do contrato de seguro.
Importa, assim, aferir se o acidente em causa nos autos está englobado na cobertura do seguro de responsabilidade civil de exploração/laboração celebrado com a 3.ª ré ou, ao invés, está excluído do âmbito de tal cobertura por se tratar de veículo sujeito a seguro obrigatório de responsabilidade civil, quando exista obrigação de segurar, nos termos da exclusão contratual prevista no art.º 6.º, n.º 1, al. l) das condições gerais da apólice.
Tal como decorre da fundamentação da decisão recorrida a resposta a esta questão passa desde logo pela ponderação do regime previsto no artigo 4.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21-08[2], nos termos do qual, e por forma a garantir a proteção dos lesados por acidentes de viação, «[t]oda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei» (n.º 1).
 Contudo, o n.º 4 do mesmo preceito, exclui expressamente do âmbito da obrigação prevista no n.º 1 as situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.
O tribunal recorrido, não obstante ter integrado - e bem - a máquina industrial em questão no conceito de veículo, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 109.º, n.º 2 do Código da Estrada e artigo 3.º, al. d) do Dec. Lei n.º 107/2006, de 08-06, entendeu que o citado artigo 4.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21-08, aponta para a ideia de que só há obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil automóvel quando o veículo se encontre em circulação, sendo que tal obrigação só existe para a circulação de veículos nas vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, ou nas vias do domínio privado quando abertas ao trânsito público, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 e 2 do Código da Estrada, em relação às quais se aplicam os deveres consagrados no Código da Estrada. E mesmo aduzindo que só podem circular na via pública ou equiparada, os veículos a motor e seus reboques se estiverem matriculados, como decorre do artigo 117.º, n.º 1 do Código da Estrada, com as exceções previstas no n.º 2 e 3, considerou que tal obrigatoriedade pressupõe que os veículos circulem na via pública ou vias equiparadas, podendo a matrícula de um veículo ser cancelada quando o mesmo deixe de ser utilizado na via pública, passando a ter utilização exclusiva em provas desportivas ou em recintos privados não abertos à circulação [artigo 119.º, n.º 1, al. e) do Código da Estrada].
O tribunal a quo considerou, então, que face às caraterísticas e função da máquina[3] em causa, bem como às circunstâncias em que ocorreu o embate em apreciação, não existia obrigação de a segurar no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por entender que se está perante um acidente que ocorreu numa via privada, com um veículo que não circula na via pública/equiparada, nem pode circular, por não estar matriculado, e que é utilizada exclusivamente para funções industriais. E mesmo aludindo à jurisprudência do TJUE, quando interpreta o conceito de circulação de veículos como abrangendo qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual do mesmo, ou seja, quando o acidente derivar da sua função de transporte ou de locomoção, veio a concluir que o acidente em causa está coberto pelo seguro de exploração/laboração celebrado entre a ré R... e a ré F... - Companhia de Seguros, pois entendeu que o mesmo ocorreu quando o condutor da máquina, trabalhador da R..., se encontrava na realização de um trabalho relacionado com a atividade de exploração da R... - regresso ao pavilhão da Triagem para efetuar novo transporte de materiais recicláveis após ter despejado no aterro resíduos rejeitados por essa unidade.
Em suma, de acordo com a conclusão vertida na sentença recorrida: «[n]ão pode considerar-se que se está perante uma circulação de veículos para efeitos do preenchimento do artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007 (com a consequente obrigação de segurar) quando uma máquina, para o desempenho da sua função industrial, tem de movimentar-se, em vias privadas. A função de movimentação não tem autonomia em relação à função de laboração; a circulação é parte fundamental para o desempenho da função essencial da máquina.
E não pode essa exigência de segurar ser realizada por haver o risco de a máquina poder ser utilizada na via pública e de aí causar um acidente.
Se for esse o caso, nunca o lesado ficaria desprotegido, acautelando a lei o direito à indemnização nas situações em que um veículo não tem seguro, devendo-o ter (artigo 47º do DL 291/2007).
(…)».

Contra tal decisão insurge-se a recorrente/ré - F... - Companhia de Seguros,  S.A. -, discordando da responsabilidade que lhe foi assacada de garantir o pagamento da indemnização à autora, nos moldes decididos, por entender que os danos reclamados pela autora não estão cobertos pelo contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado com a 1.ª ré - R... - titulado pela apólice n.º ...37 (que, como vimos, garante a responsabilidade por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, resultantes de lesões materiais e/ou corporais causadas acidentalmente a terceiros no decurso da exploração da atividade da empresa segurada, na qual se inclui todos os trabalhos realizados dentro ou fora das instalações da empresa, desde que relacionados com a laboração da mesma).
Como tal, a apelante retoma em sede de apelação a exceção já invocada nos articulados da ação em referência, defendendo que a situação dos autos tem enquadramento na cláusula de exclusão contratual prevista no artigo 6.º, n.º 1, al. l) das Condições Gerais da respetiva apólice.
A este propósito, alega, no essencial, que a máquina da 1.ª ré não se encontrava a carregar e a despejar resíduos, nem o embate ocorreu quando a máquina se encontrava a movimentar-se para recolher resíduos do solo, mas sim quando os transportava para outro local, o que traduz necessariamente que o acidente ocorreu quando a máquina exercia as funções de autolocomoção e de transporte, num arruamento que, sendo privado, permite a presença de pessoas estranhas à organização da proprietária da máquina, ainda que devidamente autorizadas. Conforme resulta da matéria de facto provada, o acidente objeto dos presentes autos ocorreu quando a máquina retroescavadora da segurada da apelante circulava por uma via destinada ao trânsito de veículos existente nas instalações daquela, em ..., acabando por embater, nessas circunstâncias, num veículo automóvel que ali se encontrava estacionado. O facto de se tratar de uma máquina destinada a circular numa via privada também não afasta, por si só, essa obrigação, uma vez que a mesma se destina precisamente ao trânsito de pessoas e veículos, sendo frequentada por outras pessoas e veículos, nomeadamente, outros trabalhadores da co-ré e fornecedores.
Conclui que impendia sobre a 1.ª ré (segurada da apelante) a obrigação de celebrar um seguro de responsabilidade civil através do qual transferisse a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros em consequência da circulação da máquina interveniente no acidente, mais sustentando que o acidente descrito ocorreu no âmbito de circunstâncias abrangidas pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, nos termos do disposto no citado artigo 4.º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21-08, invocando para o efeito, entre outros, o decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no seu Acórdão de 04-09-2014[4], ao considerar que “o art. 3.º n.º 1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um trator com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar”.
Analisada a matéria de facto provada que permanece inalterada entendemos que a solução defendida pela apelante está em consonância com os critérios legais aplicáveis, à luz da orientação que julgamos amplamente consensual na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, apoiada na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, segundo a qual o que releva para efeitos interpretativos no sentido da inclusão no regime do seguro obrigatório não apenas dos acidentes com intervenção dos veículos automóveis a que é dada a comum utilização rodoviária, mas ainda de outros veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, designadamente tratores agrícolas ou industriais, retroescavadoras, bulldozers, cilindros de compactação, empilhadores, dumpers ou outras máquinas, é que o acidente tenha relação direta com os perigos derivados da utilização de veículos automóveis na sua função habitual, ou seja, como meios de transporte ou de locomoção autónomos[5].

A este respeito, refere o aludido Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2015: «(…) Portugal, à semelhança do que ocorreu noutros Estados, embora tenha cumprido a obrigação de proceder à transposição das Directivas, não alcançou a desejável uniformização terminológica ou conceptual quer internamente, quer por referência a outros ordenamentos jurídicos, abrindo o campo a uma certa diferenciação do conteúdo formal que é susceptível de se repercutir na resolução de litígios.
(…) Para enfrentar este risco potenciador do tratamento desigual de situações idênticas tem sido afirmado pelo TJUE, em jurisprudência constante, que a diversidade linguística porventura verificada nos diplomas de transposição de Directivas (ou mesmo nas traduções) não pode servir para legitimar resultados diversos dentro da União Europeia ou mesmo em cada Estado integrante que contrariem, por um lado, a livre circulação de pessoas e de bens e, por outro lado, o princípio da igualdade cuja violação seria potenciada por interpretações casuísticas em função das idiossincrasias de cada Estado Membro.
Para evitar esse resultado, propugna-se no citado acórdão do TJUE, de 4-9-2014, que, “em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto da União, a disposição em questão deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui elemento”.
O mesmo aresto aponta ainda para a prevalência de um sentido que cumpra, para além do objectivo inicial das Directivas de liberalização da circulação de pessoas e bens, aquele que vem ganhando terreno na área de protecção das vítimas de acidentes causados por um veículo automóvel, contribuindo para que seja garantido que “as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido”.
É, aliás, este último objectivo que vem assumindo maior relevo nas Directivas do seguro automóvel mais recentes (neste sentido cfr. Maria José Rangel Mesquita, no comentário ao Ac. do STJ, de 13-3-07, nos Cadernos de Direito Privado, nº 25, págs. 24 e segs.), o que permite concluir - como concluiu o TJUE - que o conceito de “acidentes de circulação” também abarca os sinistros decorrentes da “utilização de veículos”.
Foi basicamente a partir de tais premissas que o TJUE concluiu no mencionado acórdão que o conceito de “circulação de veículos” adoptado nas Directivas (maxime no art. 3º, nº 1, da Primeira Directiva) “abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo”, podendo, assim, “ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro”».
Ademais, importa ainda considerar o Acórdão Rodrigues de Andrade, de 28-11-2017[6], proferido na sequência de reenvio prejudicial do Tribunal da Relação de Guimarães, no qual o TJUE considerou que “[o] artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos EstadosMembros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», referido nesta disposição, uma situação em que um trator agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para acionar a bomba de um pulverizador de herbicida”, e no qual o TJUE reafirmou que “o conceito de «circulação de veículos» nele previsto não está limitado às situações de circulação rodoviária, ou seja, à circulação na via pública, mas que este conceito abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual deste último”, mais  sublinhando que “o alcance do conceito de «circulação de veículos» não depende das características do terreno em que o veículo automóvel é utilizado”, aliás, “[n]enhuma disposição das diretivas relativas ao seguro obrigatório limita, aliás, o âmbito da obrigação do seguro e da proteção que esta obrigação pretende conferir às vítimas de acidentes causados por veículos automóveis aos casos de utilização de tais veículos em certos terrenos ou em certas vias”. Em seguida, o TJUE salientou que “os veículos automóveis referidos no artigo 1.º, n.º 1, da Primeira Diretiva, independentemente das suas características, se destinam a servir habitualmente de meio de transporte”, do que decorre que “está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.º, n.º 1, desta diretiva, qualquer utilização de um veículo como meio de transporte”. Mais concluiu o TJUE: “no que se refere a veículos que, como o trator em causa, se destinam, além da sua utilização habitual como meio de transporte, a ser utilizados, em certas circunstâncias, como máquinas de trabalho, importa determinar se, quando ocorreu o acidente no qual tal veículo esteve envolvido, esse veículo estava a ser usado principalmente como meio de transporte, caso em que esta utilização é suscetível de estar abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.º, n.º 1, da Primeira Diretiva, ou como máquina de trabalho, caso em que a utilização em causa não é suscetível de estar abrangida por este mesmo conceito”.
De resto, e como se viu, tal entendimento já anteriormente vinha sendo adotado na jurisprudência nacional, de que é exemplo o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2006[7], no qual se salienta: « A exigência de circulação tem se ser entendida logo em termos hábeis porque não pode traduzir a ideia de que o veículo sinistrado tenha que estar em "circulação". Um veículo parado em certas circunstâncias pode constituir um risco enorme para a segurança de pessoas e bens. 
Seria, por isso, incompreensível que se considerasse o não movimento do veículo como preclusor da indemnização emergente do seguro obrigatório.
Assim, se se entendesse que a máquina em questão no presente caso não "circulava", porque se limitava a andar para trás e para a frente em actos de terraplanagem, não era por aqui que se excluía a situação, do contrato havido.
(…) Mais delicada é a questão do escopo com que a máquina se movimentava. Não visava ela a deslocação em si, mas antes a dita terraplanagem.
Não se trata aqui da distinção entre actividade viária e actividade laboral. Muitas actividades são, concomitantemente, laborais e viárias, de sorte que a lei expressamente prevê essa situação.
O que assume foros de discutibilidade é antes a afectação exclusiva a um movimento que, primacialmente, não é viário. O condutor da máquina não queria deslocar esta dum ponto para o outro. Queria terraplanar e, por via disso, tinha que efectuar os movimentos para trás e para a frente.
Ora, neste tipo de situações, cremos dever distinguir:
Os danos derivados de actividade que não esteja relacionada com os riscos da actividade viária;
Os danos, ainda que emergentes do desempenho funcional da própria máquina, mas que derivam também dos riscos dela relativamente à segurança viária.
Àqueles pertencem os casos como os que são ventilados pelos acórdãos deste Tribunal de 3.5.2001 (CJ STJ, IX, II, 43) (em que ocorreu a amputação duma mão por uma máquina agrícola) e da Relação de Lisboa de 12.12.1996 (CJ XXI, V, 139) (…), em que uma retroescavadora, na sua função de escavação, corta cabos subterrâneos condutores de electricidade).
Mas, se o acidente ocorreu porque a máquina se movimentava, mal se compreenderia a isenção de seguro, só porque o fazia em movimentos próprios da sua funcionalidade.
É que, nestes casos, vem ao de cima, tanto como em circulação normal, o risco especial causado por veículos de que fala Vaz Serra no local citado, em palavras que nos parecem actuais. Para os demais utentes da via, potenciais sinistrados, tanto importa que a máquina se desloque porque o condutor pretende seguir para outro local, como que se desloque porque o condutor apenas quer terraplanar a zona. Só vista pelo prisma destes, a medida traduzida pelo seguro obrigatório atinge os fins de alcance social e de tutela dos interesses dos lesados a que supra se aludiu».
Em síntese, a propósito do regime jurídico que releva para o caso em apreciação, podemos assentar nas seguintes conclusões, tal como enunciadas no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-02-2018[8]: « a exclusão a que alude o n.º 4 do art. 4º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, quanto ao seguro obrigatório automóvel, apenas abrange os veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, que sejam exclusivamente utilizados para fins industriais ou agrícolas e que não apresentem qualquer margem de sobreposição com utilizações próprias da circulação de viaturas que gerem a obrigação de segurar no domínio do seguro obrigatório, isto é, que sejam insuscetíveis de desempenharem uma função de circulação/transporte.
Quanto às máquinas industriais e agrícolas que aliam à sua utilização industrial ou agrícola a função de circulação/transporte, as mesmas encontram-se sujeitas à celebração de seguro automóvel obrigatório e, bem assim a seguro obrigatório de laboração.
A delimitação da garantia conferida por cada um dos enunciados contratos de seguro obrigatórios passa pela distinção sobre se, no momento do acidente, a máquina se encontrava a desempenhar exclusivamente a atividade funcional que lhe é inerente enquanto máquina ou se, ao invés, os danos por ela provocados estão relacionados com os riscos da atividade viária, atividade essa que “é delimitada pelos casos em que algum veículo circula ou é usado na sua função de locomoção-transporte». 
Deste modo, o que é determinante, nestes casos, é o uso ou função da viatura e não propriamente o local do sinistro, se na via pública ou equiparada, se numa via ou espaço particulares, porquanto o seguro obrigatório de responsabilidade civil visa tutelar os riscos inerentes à circulação das viaturas enquanto geradoras de perigos nesta função[9].
Revertendo ao caso dos autos, e ainda que resulte da matéria de facto provada que, na altura do acidente, o trabalhador da ré R... (ora réu AA) encontrava-se, no exercício das suas funções, a manobrar a pá escavadora Caterpillar, regressando, para fazer novo transporte, à unidade de triagem de materiais recicláveis - após ter despejado no aterro resíduos rejeitados por essa unidade de triagem -, também resulta evidente que no exato momento em que o acidente ocorreu, a máquina em questão não desempenhava a sua função específica enquanto máquina escavadora, encontrando-se  a ser utilizada na sua função de circulação, ou de transporte, pois se provou que foi quando o condutor da pá escavadora se encontrava a circular no sentido descendente, na via oposta àquela em que se encontrava o veículo estacionado, ao pretender virar à direita, com o sol, não viu o veículo ligeiro estacionado, embatendo com a pá da máquina na traseira daquele veículo ligeiro.
 Considerando, pois, o concreto circunstancialismo temporal, espacial e funcional do acidente em apreciação, consideramos que este teve exclusivamente a ver com os riscos próprios de circulação da máquina escavadora, na sua função de veículo automóvel, e não com os riscos inerentes ao seu funcionamento enquanto máquina industrial, independentemente do tipo de atividade a que estava destinada e de tal embate ter ocorrido em arruamento de acesso condicionado e nas instalações da ré R....
Deste modo, não podemos sufragar o entendimento vertido na sentença recorrida quando nela se qualifica o concreto evento objeto dos autos como estritamente decorrente dos riscos próprios de laboração relacionados com a atividade de exploração e gestão dos sistemas de tratamento de resíduos sólidos urbanos desenvolvida pela 1.ª ré.
Em consequência, nenhuma responsabilidade poderá ser assacada à recorrente/ré F... - Companhia de Seguros,  S.A., uma vez que o acidente em apreciação não tem relação direta com os riscos específicos que decorrem da titularidade da exploração de estabelecimento industrial, incluindo o que resulte da utilização das respetivas instalações e do exercício das inerentes atividades desenvolvidas pela 1.ª ré, antes derivando exclusivamente dos riscos próprios da circulação da referida máquina, estando como tal abrangido pelo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Conclui-se, assim, pela procedência da exceção relativa à exclusão contratual prevista no artigo 6.º, n.º 1, al. l) das condições gerais da apólice n.º ...37 pelo que o concreto evento objeto dos presentes autos não se mostra abrangido pela garantia conferida pelo referido contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração/laboração celebrado entre a apelante seguradora e a ré R... - Valor e Tratamento de Resíduos, S.A.
Nestes termos, procede integralmente o recurso interposto pela ré F... - Companhia de Seguros,  S.A., impondo-se a sua absolvição do pedido.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada totalmente procedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade dos recorridos, atento o seu decaimento.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pela ré F... - Companhia de Seguros,  S.A., e em consequência, revogam a sentença recorrida no correspondente segmento do dispositivo em que condenou a «Ré F... - Companhia de Seguros, S.A. no pagamento, à Autora E... Company, da quantia 7.516,44€ (sete mil, quinhentos e dezasseis euros e quarenta e quatro cêntimos), a que acrescem juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento», absolvendo a ré/apelante do pedido formulado na ação e confirmando, no mais a sentença recorrida.
Custas da apelação pelos recorridos, sendo as da ação da responsabilidade da autora/apelada e dos réus/apelados R... e AA, na proporção do decaimento que se fixa em 90% para a autora e 10% para estes réus.

Guimarães, 09 de fevereiro de 2023

(Acórdão assinado digitalmente)
Paulo Reis
(Juiz Desembargador - relator)
Luísa Duarte Ramos
(Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Eva Almeida
(Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)



[1] Trata-se de seguro obrigatório que, de acordo com o estipulado no artigo 4.º da Portaria n.º 307/2015, de 24-09, garante o pagamento das indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais derivadas do exercício da atividade e da exploração do estabelecimento a que o seguro se refira, nomeadamente, as que decorram de (n.º 2):
a) Incêndio ou explosão com origem no estabelecimento industrial ou a que o segurado, ou pessoa por quem seja civilmente responsável, dê causa, no desempenho de trabalhos ou na prestação de serviços no âmbito da atividade industrial a que se dedique, ainda que fora do respetivo estabelecimento industrial;
b) Acidente ocorrido em reservatórios de matérias ou produtos inflamáveis, explosivos, corrosivos ou tóxicos, existentes no estabelecimento industrial do segurado ou que este esteja a utilizar;
c) Utilização de gruas, cabrestantes ou outras instalações mecânicas, assim como de outros veículos industriais utilizados pelo segurado no exercício da sua atividade industrial;
d) Operações de carga, descarga, manipulação e armazenamento de mercadorias ou bens.
3 - As indemnizações devidas por danos a propriedades de terceiros contíguas à instalação industrial, decorrentes de poluição ou contaminação da água ou do solo, apenas ficam garantidas, desde que:
a) A poluição ou contaminação seja resultado direto de evento súbito e imprevisto, específico e identificado, com origem nas instalações do segurado e ocorrido no período de cobertura previsto no contrato de seguro;
b) A poluição ou contaminação seja detetada nos quinze dias posteriores ao momento em que teve início, considerando-se que este ocorre aquando da primeira libertação, ou série de libertações, resultantes de uma mesma causa.
[2] Diploma que transpõe parcialmente para ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel»).
[3] Máquina industrial, pá escavadora, da marca ..., modelo ...36, com peso bruto de 12.295kg.
[4] Proc. C-162/13, ECLI:EU:C:2014:2146, disponível in curia.europa.eu
[5] Neste sentido, cf., por todos, o Ac. do STJ de 17-12-2015 (relator: Abrantes Geraldes), p. 312/11.8TBRGR.L1. S1 disponível em www.dgsi.pt., onde se referencia vasta jurisprudência com relevo sobre esta questão.
[6] Proc. C-514/16, disponível in curia.europa.eu
[7] Relator João Bernardo, p. 06B3445, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Relator José Alberto Moreira Dias, p. 535/14.8TBPTL.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cf. o Ac. TRG de 17-01-2019 (relator: Espinheira Baltar), p. 1341/16.0T8VRL.G1, disponível em www.dgsi.pt.