Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5532/22.7T8GMR-A.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MARTINS MOREIRA DIAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE INFORTUNÍSTICA DO EMPREGADOR
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR FACTOS ILÍCITOS E PELO RISCO
INDEMNIZAÇÕES COMPLEMENTARES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A incompetência, em razão da matéria, do tribunal, sendo uma exceção dilatória, tem de ser aferida pela relação jurídica material controvertida delineada, subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir), pelo autor na petição inicial.
2- O mesmo evento naturalístico (sinistro) pode ter ressonâncias jurídicas distintas, dando lugar a distintas fontes de responsabilidades, com distintos sujeitos passivos, medidas reparatórias distintas e prosseguindo essas reparações finalidades também distintas, podendo o mesmo sinistro configurar, em simultâneo, acidente de trabalho e acidente de viação.
3- Quando tal suceda, o sinistrado fica investido em dois direitos à reparação, cada um com a sua própria causa: a responsabilidade do empregador por acidente de trabalho assenta em responsabilidade objetiva, no risco económico e de autoridade do empregador; e a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco pelo acidente de viação assenta na culpa pelo acidente ou no risco decorrente da utilização do veículo nele interveniente. Cada um dos direitos indemnizatórios que emergem dessas duas fontes de responsabilidade têm medidas distintas: a responsabilidade infortunística do empregador apenas confere ao sinistrado e seus familiares a receberem as concretas reparações em espécie e em dinheiro previstas na Lei n.º 98/2009, de 09/04 (acidente ocorrido em 30/10/2017), estando, em princípio, excluída a indemnização por danos não patrimoniais; na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco emergente do acidente de viação a medida da indemnização é determinada de acordo com os arts. 496º, 508º e 562º a 570º do CC. Essas indemnizações têm sujeitos passivos distintos: no acidente de trabalho é responsável a entidade empregadora e/ou a sua seguradora; no acidente de viação, o responsável civil pelo acidente de viação.
4- As indemnizações decorrentes dessas duas fontes de responsabilidade não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística que impende sobre a entidade empregadora e/ou a sua seguradora caráter subsidiário.
5- A responsabilidade infortunística da entidade empregadora por acidente de trabalho não obsta a que o sinistrado intente ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e pelo risco contra a entidade empregadora e a seguradora com quem celebrou seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, alegando que o sinistro é, em simultâneo, acidente de trabalho e de viação e que este, enquanto acidente de viação, eclodiu por culpa exclusiva, efetiva e/ou presumida, da entidade empregadora, ou é de imputar ao risco do veículo interveniente no acidente de que a entidade empregadora era então detentora, sendo os tribunais cíveis os materialmente competentes para conhecerem desta relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial (isto é, enquanto acidente de viação).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I- RELATÓRIO

AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., ... ..., ..., instauraram ação declarativa, com processo comum, contra EMP01..., S.A., com sede no Largo ..., ... Lisboa, e EMP02..., Lda., com sede na Rua ..., ..., pedindo que se condenasse:

I- a Ré EMP01..., S.A. a pagar:
a- ao Autor CC:
a.1- a quantia de 803.942,42 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
a.2- uma indemnização a acrescer à anterior, a liquidar em incidente de liquidação, por danos patrimoniais e não patrimoniais futuros;
b- à Autora BB a quantia de 100,00 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
c- aos Autores juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso sobre os montantes indemnizatórios que lhes vierem a ser fixados, pela não apresentação em sede extrajudicial de uma proposta razoável, desde 28/12/2017 ou desde 10/9/2022 ou, ainda, desde a data da citação da Ré até efetivo e integral pagamento;
d- aos Autores juros de mora vencidos e vincendos a incidir sobre as referidas indemnizações, calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;
Subsidiariamente:
II- a Ré EMP02..., Lda. a pagar:
a- ao Autor CC:
a.1- a quantia de 803.942,42 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
a.2- uma indemnização a acrescer à anterior, a liquidar em incidente de liquidação, por danos patrimoniais e não patrimoniais futuros;
b- à Autora BB a quantia de 100,00 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
c- aos Autores juros de mora vencidos e vincendos a incidir sobre as referidas indemnizações, calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;
Subsidiariamente:
I- as Rés EMP01... e EMP02..., Lda. solidariamente a pagarem:
a- ao Autor CC:
a.1- a quantia de 803.942,42 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
a.2- uma indemnização a acrescer à anterior, a liquidar em incidente de liquidação, por danos patrimoniais e não patrimoniais futuros;
b- à Autora BB a quantia de 100,00 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
c- aos Autores juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso sobre os montantes indemnizatórios que lhes vierem a ser fixados, pela não apresentação em sede extrajudicial de uma proposta razoável, desde 28/12/2017 ou desde 10/9/2022 ou, ainda, desde a data da citação da Ré até efetivo e integral pagamento;
d- aos Autores juros de mora vencidos e vincendos a incidir sobre as referidas indemnizações, calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Como fundamento dessas suas pretensões alegarem, em síntese, que, no dia 30/10/2017, cerca das 10h30m, nas instalações da 2ª Ré, sitas na Rua ..., ..., ..., no exterior, em recinto descoberto, junto ao edifício da fábrica e próximo à zona de lavagem de veículos, ocorreu um acidente, no qual foram intervenientes o Autor  AA e o veículo semirreboque de matrícula L-......, que se encontrava acoplado ao trator de matrícula ..-..-IP, ambos propriedade da 2ª Ré, que estavam estacionados e a serem utilizados sob as ordens, orientações, instruções e sob a fiscalização da 2ª Ré.
O acidente ocorreu quando o Autor AA passava nas traseiras do semirreboque e uma das rampas traseiras deste tombou e atingiu aquele, causando-lhes lesões físicas (que discriminam), que lhe determinaram, mais à Autora BB, sua mulher, danos patrimoniais e não patrimoniais (que igualmente discriminam).
O acidente só ocorreu por culpa grave da 2ª Ré, na medida em que não cumpriu com as regras de segurança que lhe eram impostas enquanto entidade empregadora do Autor AA e enquanto proprietária e detentora dos identificados veículos (concretizando essas violações).
 O acidente foi, em simultâneo, acidente de viação e de trabalho e, na sequência deste, correm termos autos de processo especial de acidente de trabalho, no Juízo de Trabalho ..., sob o n.º 7356/16...., em que figuram como sinistrado o Autor AA e como entidades responsáveis a Companhia de EMP03..., S.A e a aqui 2ª Ré, EMP02..., Lda., no âmbito dos quais ao Autor AA já foram pagas as quantias indemnizatórias e  as prestações que discriminam no art. 78º da petição inicial.
Deduziram incidente de intervenção principal provocada de:
a- Companhia de EMP03..., S.A., com sede na Rua ..., ... Lisboa; e
b- EMP02..., Lda., com sede na Rua ..., ....
A Ré EMP02..., Lda. contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Suscitou a exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos Autores na petição inicial, advogando que, sendo o acidente descrito nesse articulado, um acidente de trabalho, correram termos os autos de processo especial de acidente de trabalho que os Autores identificam na petição inicial, onde o Autor e os aí Réus Companhia de EMP03..., S.A. e a aqui Ré EMP02..., Lda., transigiram quanto ao objeto dessa ação, onde se obrigaram a pagar àquele as indemnizações e prestações que a contestante identifica, tendo essa transação sido homologada por sentença transitada em julgado, pelo que, sendo o acidente dos autos um acidente de trabalho, falece competência material ao Juízo Cível para “apreciar as questões suscitadas pelos Autores relativamente à entidade patronal do Autor”;
Suscitou a exceção dilatória do caso julgado e da violação do caso julgado advogando que, tendo o acidente de trabalho objeto dos autos já sido definitivamente julgado, por sentença homologatória de transação que foi celebrada no âmbito daquele processo especial de acidente de trabalho,  que transitou em julgado,  os Autores não podem mais discutir esse acidente e as responsabilidades que dele emergem, como acontece na presente ação, onde “mais não querem do que a descaracterização do acidente em causa como de trabalho por alegada violação das normas de segurança, entrando assim em total contradição com a posição/confissão por si assumida anteriormente no âmbito do Processo n.º 7356/17.... e das decisões/sentenças judiciais nele proferidas, pondo-as em causa de modo totalmente abusivo”.
Suscitou a exceção perentória da prescrição dos direitos indemnizatórios que os Autores exercem na presente ação, advogando que o acidente ocorreu em 30/10/2017, data em que estes tiverem conhecimento do direito que lhes competia, pelo que, à data em que intentaram a presente ação já se encontrava decorrido o prazo de prescrição de três anos para exercerem as suas pretensões indemnizatórias.
Suscitou a exceção dilatória de ilegitimidade passiva da própria contestante, EMP02..., Lda. para os termos da presente ação, alegando que, à data do acidente, tinha transferido a sua responsabilidade civil pelos danos causados pela circulação dos veículos intervenientes no sinistro para a Ré EMP01..., pelo que, cingindo-se a pretensão indemnizatória exercida pelos Autores nos autos aos limites fixados para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a mesma carece de legitimidade para ser demandada na presente ação.
Impugnou parte da facticidade alegada pelos Autores.
Concluiu pedindo que se julgassem procedentes as exceções que suscitou e, subsidiariamente, se julgasse a ação improcedente e se absolvesse aquela de todos os pedidos formulados pelos Autores.
A Ré EMP01..., S.A. contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocou a exceção perentória da prescrição, alegando que entre a data de verificação do sinistro descrito pelos Autores e a data em que foi citada para os termos da presente ação decorreu um período de quase cinco anos, pelo que, o direito indemnizatório que os Autores exercem nos autos se encontra prescrito.
Invocou a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Autora BB, alegando que, enquanto cônjuge do Autor AA, aquela não tem direito a qualquer indemnização, em particular, por pretensos danos não patrimoniais sofridos, uma vez que não foi interveniente no alegado acidente, não sendo lesada.
Invocou a exceção dilatória de ilegitimidade passiva da própria contestante, EMP01..., S.A., advogando que, atenta a relação jurídica material controvertida descrita pelos Autores na petição inicial, esse acidente não configura qualquer acidente de viação, mas apenas um acidente de trabalho.
Invocou a exceção perentória da exclusão de garantia conferida pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que celebrou com a Ré EMP02..., Lda., alegando que o acidente em análise ocorreu em consequência de uma operação de carga e descarga, pelo que a regularização do mesmo se encontra excluída do âmbito de cobertura conferido por aquele contrato de seguro.
Invocou a exceção perentória do enriquecimento sem causa, alegando que o Autor AA já foi indemnizado pelos prejuízos que sofreu em consequência do sinistro no âmbito do processo especial de acidente de trabalhos e que as indemnizações que recebeu não são cumuláveis com as hipotéticas indemnizações que lhe sejam devidas no âmbito da presente ação.
Impugnou parte da facticidade alegada pelos Autores na petição inicial.
Concluiu pedindo que se julgassem procedentes as exceções que suscitou e, em consequência, se absolvesse aquela dos pedidos formulados pelos Autores e, subsidiariamente, se julgasse a ação totalmente improcedente e se absolvesse a mesma de todos esses pedidos.
Por despacho proferido em 31/01/2023, admitiu-se o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelos Autores quanto à Companhia de EMP03..., S.A. e indeferiu-se, por redundante, o incidente de intervenção principal provocada que suscitaram quanto a EMP02..., Lda.
A interveniente Companhia de EMP03..., S.A. deduziu pedido de reembolso das prestações que satisfez ao Autor AA no âmbito do processo especial de acidente de trabalho, pedindo a condenação das Rés a pagar-lhe a quantia de 228.043,02 euros, acrescida de juros de mora, desde a data de interpelação até efetivo e integral pagamento.
A Ré EMP01... contestou o pedido de reembolso, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Suscitou em relação ao pedido de reembolso formulado pela interveniente EMP04... todas as exceções que já tinha invocado na contestação em relação à petição inicial e, bem assim, adicionalmente, a exceção de ineptidão da petição inicial apresentada pela interveniente EMP04..., por falta de alegação de causa de pedir, sustentando que esta se limitou a fazer uma identificação genérica de montantes, não discriminando estes, não indicando a que título fez os alegados pagamentos dessas quantias, a quem, por que meio, nem em que datas.
Impugnou a facticidade alegada pela interveniente.
Concluiu pedindo que se julgasse procedente as exceções e se absolvesse aquela do pedido de reembolso e que, em todo o caso, se julgasse esse pedido improcedente.
Também a Ré EMP02..., Lda. contestou o pedido de reembolso deduzido pela interveniente EMP04..., defendendo-se por exceção e por impugnação, nos precisos termos em que se defendera na contestação que apresentou em relação à petição inicial com que os Autores intentaram a presente ação.
Por despacho de 17/05/2023 notificou-se a interveniente EMP04... para, em quinze dias, exercer o seu direito ao contraditório quanto à matéria de exceção invocada nas respostas ao pedido de reembolso.
Na sequência do cumprimento do despacho que antecede a interveniente EMP04... nada disse.
Em 28/05/2023, proferiu-se despacho, em que se dispensou a realização de audiência prévia, fixou-se o valor da ação em 903.942,42 euros e proferiu-se despacho saneador.
Em sede de despacho saneador conheceu-se da exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Juízo Central Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos Autores na petição inicial, julgando essa exceção improcedente.
Conheceu-se da exceção dilatória de ineptidão do pedido de reembolso formulado pela interveniente EMP04..., por falta de causa de pedir, julgando essa exceção improcedente.
Conheceu-se da exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Autora BB, julgando essa exceção improcedente.
Conheceu-se da exceção dilatória de ilegitimidade passiva da Ré EMP01..., a qual foi igualmente julgada improcedente.
Conheceu-se da exceção dilatória de ilegitimidade passiva da Ré EMP02..., Lda., que também foi julgada improcedente.
E conheceu-se da exceção dilatória do caso julgado/preclusão, que também foi julgada improcedente.
Finalmente, relegou-se o conhecimento da exceção perentória da prescrição para sentença final, com fundamento que a decisão a proferir quanto a essa concreta exceção está dependente do apuramento de facticidade que, de momento, permanece controvertida.
Fixou-se o objeto do litígio, os temas da prova e conheceu-se dos requerimentos probatórios apresentados pelas partes.
Inconformada com o despacho saneador, nos segmentos em que a 1ª Instância julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Juízo Central Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos Autores na petição inicial, da exceção dilatória do caso julgado/preclusão e da exceção de ilegitimidade passiva da Ré EMP02..., Lda., esta interpôs recurso dessas decisões, tendo formulado as seguintes conclusões:     
1. Da exceção de incompetência, em razão da matéria, do Juízo Central Cível ..., da Comarca ... no que se refere à aqui Recorrente/Ré:
A- Como o próprio despacho saneador reconhece (“No caso vertente, apesar da matéria de facto alegada na p.i. pelos Autores constituir, inequivocamente, um acidente de trabalho…”), o acidente em causa nestes autos ocorre no quadro de uma relação criada por um contrato de trabalho, sendo partes neste contrato o sinistrado aqui Autora e a Recorrente/Ré EMP02..., Lda. Com efeito, o acidente descrito na p.i. corresponde ao acidente de trabalho descrito na contestação da Ré, tendo ocorrido quando o Autor trabalhava por conta, sob as ordens, direção e fiscalização da Ré EMP02..., Lda., no respetivo local de trabalho sito na sede desta e dentro do seu horário normal de trabalho.
B- Ora, ocorrendo um acidente de trabalho, a responsabilidade da entidade empregadora tem de ser apurada no Tribunal de Trabalho por força do art. 126º, nº 1- c) da LOSJ. Deste modo, o Juízo Central Cível ..., Comarca ..., é absolutamente incompetente para apreciar as questões suscitadas relativamente às relações entre a entidade patronal, aqui Recorrente/Ré EMP02..., e o seu trabalhador, aqui Autor. 
C- Já quanto aos restantes Réus, tal não ocorre uma vez que estes são terceiros relativamente à relação criada pelo contrato de trabalho. 
D- A competência do tribunal civil para apuramento da responsabilidade do causador-terceiro, decorre do disposto no n.º 1 do Art.º 17.º do Dec. Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), que dispõe: “Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais”. 
E- Deve entender-se por terceiros todos aqueles que não sejam companheiros ou a entidade patronal por si e nas pessoas de quem a represente na direção do trabalho. (Ac. de 8/5/06 do T. R. P. publicado na pág. do Tribunal da Relação do Porto). 
G- Assim, apesar do Juízo Central Cível ..., Comarca ..., ser competente para conhecer do pedido relativamente aos restantes Réus, não o pode ser relativamente à aqui Recorrente/Ré, entidade patronal do Autor. Deste modo, o Juízo Central Cível é absolutamente incompetente para apreciar as questões suscitadas relativamente à entidade patronal do Autor, a aqui Ré EMP02..., Lda. (Carnes ...).
H- A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (cfr. art. 96º CPC), é do conhecimento oficioso (art. 97º CPC) e a absolvição da Ré EMP02..., Lda. da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (art. 99º/1 CPC), exceção essa que aqui expressamente se invoca. 
I- Deve, pois, o presente Tribunal comum ser declarado incompetente em razão da matéria para conhecer da presente ação, absolvendo-se a Ré EMP02..., Lda. da instância, o que desde já se requer. Por esse motivo, o douto despacho saneador decidiu incorretamente quando declarou o Juízo Central Cível ..., Comarca ..., como sendo o tribunal competente em razão da matéria para conhecer do pedido quanto à Recorrente/Ré EMP02..., Lda.

2. Da exceção do caso julgado/preclusão no que se refere à aqui Recorrente/Ré:
J- Com efeito, como se referiu na contestação, o acidente em causa nos presentes autos já foi definitivamente julgado no âmbito do processo especial emergente de acidente de trabalho que correu termos sob o n.º 7356/17...., pelo Juízo do Trabalho ..., Tribunal Judicial da Comarca .... 
K- Ora, com a presente ação e no que se refere à aqui Recorrente/Ré, os Autores mais não querem do que a descaracterização do acidente em causa como de trabalho por alegada violação das normas de segurança, entrando assim em total contradição quer com a posição/confissão por si assumida anteriormente no âmbito do Processo 7356/17.... e das decisões/sentenças judiciais neles proferidas, pondo-as em causa de modo totalmente abusivo.
L- A reapreciação da presente questão, no que diz respeito à Ré EMP02..., Lda., apenas pode ser obtida mediante a competente ação anulatória, a tal não obstando o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, desde que entretanto não tenha caducado o direito, o que entretanto também já ocorreu (cfr. artigo 291º do CPC).
M- Consequentemente, quer em sede de fase conciliatória, quer na fase contenciosa daquele processo de trabalho, a sinistrado aqui Autor e a entidade patronal aqui Ré EMP02... Lda. aceitaram e acordaram na caracterização do acidente "como de trabalho", o nexo de causalidade entre as lesões que o sinistrado apresentava e o acidente a que os autos se reportam e a transferência da responsabilidade da entidade patronal para a dita seguradora, tendo essa posição sido homologada pelas referidas decisões judiciais proferidas no âmbito do Processo 7356/17...., as quais transitaram definitivamente em julgado e não podem ser suscetíveis de ser alteradas e desrespeitadas por uma nova decisão/sentença judicial a proferir no âmbito dos presentes autos.
N- A verificação do caso julgado depende do preenchimento da tríplice identidade, ou seja, quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo que, há à identidade dos sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, conf. art. 581 n° 2 do C.P.C., importando apenas atender à qualidade jurídica das partes, não sendo exigível uma correspondência física nas duas ações. Ora, no caso presente estão cumpridos todos os requisitos previstos no art. 581º do CPC. 
O- Os factos que consubstanciam e estão na origem dos dois processos são os mesmos e a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, conf. art. 581 n°4 do C.P.C, ou seja, do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado aqui Autor, então trabalhador da Ré.
P- Os Autores estão a receber, na sequência dessa ação especial de acidente de trabalho, quer da seguradora de acidentes de trabalho, quer da Ré EMP02..., Lda., todos os montantes previstos na respetiva transação, homologada por sentença transitada em julgado.
Q- Os Autores não obtiveram a anulação judicial desses acordos/confissões homologados no Tribunal de Trabalho, nem alegaram qualquer vício, designadamente de formação de vontade, suscetível de impugnar os mesmos, pelo que a sua pretensão não pode ter colhimento, nem proceder, sob pena de violação da força e autoridade do caso julgado da sentença proferida no âmbito do referido Processo n.º 7356/17.....
R- O caso julgado constitui uma exceção dilatória (cfr. art. 577º, al. i do CPC), que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, é do conhecimento oficioso (art. 578º CPC) e implica a absolvição da Ré EMP02..., Lda. da instância, exceção essa que aqui expressamente se invoca, devendo a mesma ser julgada procedente. (cfr. arts. 576º, n.º 1 e 2, 577º e 578º, todos do CPC). Por esse motivo, o douto despacho saneador decidiu incorretamente quando, relativamente à aqui Recorrente/Ré EMP02..., Lda., julgou improcedente a invocada exceção de caso julgado.

3. Da exceção da ilegitimidade passiva da aqui Recorrente/Ré:
S- Salvo o devido respeito, a decisão é incompreensível e manifestamente ilegal. O Tribunal deve atentar ao valor real do pedido efetuado e não fundamentar a sua decisão com base em meras possibilidades teóricas, caso contrário todos os tomadores de seguro teriam de ser partes nas ações de acidente de viação, pois em todas elas, pelo menos em tese/teoria, será possível liquidar valores que excedam os limites legais. Isso não faz qualquer sentido, parecendo uma tentativa de punição da entidade patronal, obrigando-a ser Ré nos presentes autos… apesar de a lei impor o contrário…
T- O  Dec. Lei n.º 291/2007, de 21/08, aprovou o atual regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que alterou as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis. Conforme resulta do seu art. 64º/1, se o pedido formulado não ultrapassar o valor do capital mínimo obrigatório, o civilmente responsável é parte ilegítima, só podendo intervir na demanda através da figura da intervenção principal provocada, da iniciativa da seguradora. Sendo demandado diretamente o tomador de seguro ou ambos (tomador e seguradora) existe ilegitimidade do tomador.
U- Só quando o pedido formulado ultrapassar o montante do capital mínimo obrigatório é que a ação deve ser proposta contra a seguradora e o civilmente responsável (cfr. al. b) do citado dispositivo legal), verificando-se, então, um litisconsórcio necessário passivo, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 30º, 33º, 35º e 577º, al. e) do CPC.
V- Com o regime instituído pela al. a) do n.º 1 do art. 64º do Dec. Lei n.º 291/2007 (15) visou-se evitar que o responsável civil esteja sujeito a ter de suportar os encargos e incómodos de uma ação quando exista, por virtude do contrato de seguro, uma entidade contratualmente responsável pela indemnização (16). Isto porque a dedução da ação, na prática, não trará consequências diretas ao lesante, na medida em que será a seguradora quem vai satisfazer a pretensão do lesado. Em suma, o regime estabelece a legitimidade processual passiva da seguradora, em prejuízo da legitimidade do próprio lesante, tomador do seguro, ou segurado. No âmbito dos acidentes de viação, não temos a possibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora, temos antes uma obrigatoriedade. Todavia, no plano do direito adjetivo, se o pedido de indemnização se mantiver dentro dos limites do seguro obrigatório, como sucede no presente caso, só a seguradora pode ser demandada.
W- Conforme resulta do disposto no art. 12º do Dec. Lei n.º 291/2007, a partir de 1 de junho de 2012 o capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório é de € 5.000.000 por acidente para os danos corporais e de € 1.000.000 por acidente para os danos materiais. Ora, no caso em apreço, os valores peticionados contêm-se naqueles montantes mínimos.
Y- Assim decidiu designadamente o Acórdão do Tribunal dessa Relação de Guimarães de 13/07/2021,
Relator Alcides Rodrigues, Processo 1557/20.5T8GMR-B.G1, segundo o qual: “(…)
I…
II. A demanda de representante e representados, todos em simultâneo e a título principal, não se afigura admissível, posto inexistir qualquer situação litisconsorcial entre tais sujeitos processuais.
III- No âmbito do seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, não há responsabilidade solidária, senão quando o pedido indemnizatório ultrapasse o valor do capital mínimo obrigatório.(…)”.
X- Logo, atenta a existência de seguro obrigatório e os valores dos pedidos, é manifesta a ilegitimidade passiva da Ré EMP02..., Lda., exceção essa que aqui a mesma expressamente invoca em sua defesa. Por esse motivo, o douto despacho saneador decidiu incorretamente quando julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva da Recorrente/Ré EMP02..., Lda.
TERMOS em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho saneador recorrido, substituindo-a por outro que, julgando as invocadas exceções procedentes, absolva a Recorrente/Ré EMP02..., Lda. da instância, tudo com as consequências legais, assim se fazendo a devida, JUSTIÇA.
 
Os Autores contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as conclusões que se seguem:
(…).  
 
*
A 1ª Instância não admitiu o recurso interposto pela recorrente quanto ao segmento do despacho saneador em que julgou improcedente as exceções dilatórias de ilegitimidade passiva da recorrente EMP02..., Lda. e do caso julgado/preclusão, nos termos que se seguem:
“Uma vez que os despachos proferidos no saneador, julgando improcedentes as exceções dilatórias de ilegitimidade passiva da Ré “EMP02...” e do caso julgado/preclusão suscitada pela Ré “EMP02...” e Interveniente “EMP05...”, não se incluem no elenco dos autonomamente recorríveis, descritos sob os números ... e ... do artigo 644º do CPC, não admito a correspondente parte do recurso interposto (sobre a irrecorribilidade autónoma do despacho que declara a legitimidade da parte, atente-se, entre outros, no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2018, relatado pela Juíza Conselheira Rosa Tching no processo n.º 305/11.5TBCHV.G1.S1, in www.dgsi.pt).
Custas do incidente pela Ré / recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida no mínimo legal”.

E admitiu o recurso interposto pela recorrente EMP02..., Lda., apenas quanto ao segmento do despacho saneador em que conheceu da exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Juízo Local Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelados (Autores) na petição inicial, julgando essa exceção improcedente, pelo que o campo de cognição desta Relação, no âmbito do presente recurso, se cinge ao erro de direito que a recorrente imputa a essa decisão.
A 1ª Instância qualificou o recurso (admitido) como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito meramente devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido nelas apreciadas, visando obter a anulação de tais decisões quando padeçam de vício determinativo da sua nulidade, ou a sua revogação ou alteração quando padeçam de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito, nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação, cumpre ao tribunal ad quem apreciar uma única questão, que consiste em saber se, ao julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Juízo Central Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelados na petição inicial quanto à apelante EMP02..., Lda., a 1ª Instância incorreu em erro de direito e se, em consequência, se impõe revogar o segmento do despacho saneador em que assim se decidiu e julgar procedente essa exceção e absolver a apelante da instância.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para o conhecimento do objeto da presente apelação são os que constam do relatório acima elaborado, que aqui se dão por reproduzidos.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A 1ª Instância julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Juízo Local Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelados na petição inicial com os seguintes fundamentos: “A violação das regras de competência em razão de matéria, constantes do art.º 64º do CPC, determina, nos termos dos artºs. 96º e 99º do mesmo diploma, a incompetência absoluta do tribunal onde a ação foi proposta e a absolvição do réu da instância.  Esta situação constitui, assim, exceção dilatória por obstar ao conhecimento do mérito da causa pelo tribunal (cfr. arts. 576º, n.º 2 e 577º, al.ª a), do CPC). São da competência dos Tribunais de Trabalho em matéria cível, entre outras, as questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (cfr. alínea e) do artigo 126º da Lei n.º 62/2013 de 26.08. No caso vertente, apesar da matéria de facto alegada na p.i. pelos Autores constituir, inequivocamente, um acidente de trabalho, constitui simultaneamente, na tese aventada pelos Autores, um acidente passível de qualificação como acidente de viação, caso em que as respetivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário (neste sentido, entre outros, o douto acórdão do STJ de 11.07.2019, relatado pelo Juiz Desembargador Henrique Araújo no processo n.º 1456/15.2T8FNC.L1.S1, in www.dgsi.pt). Deste modo, assiste inequivocamente aos Autores direito propor a presente ação nos tribunais comuns, pois que fundada em responsabilidade civil extracontratual, na qual a avaliação do dano tem por base as tabelas vigentes em direito civil, distintas das aplicáveis relativamente à responsabilidade infortunística laboral”.
A apelante imputa ao assim decidido erro de direito, argumentando que:
“(…) como o próprio despacho saneador reconhece (“No caso vertente, apesar da matéria de facto alegada na p.i. pelos Autores constituir, inequivocamente, um acidente de trabalho…”), o acidente em causa nestes autos ocorre no quadro de uma relação criada por um contrato de trabalho, sendo partes neste contrato o sinistrado aqui Autor e a Recorrente/Ré EMP02..., Lda. 
Ora, ocorrendo um acidente de trabalho, a responsabilidade da entidade empregadora tem de ser apurada no Tribunal de Trabalho (v. art. 126º, nº 1- c) da LOSJ). 
Deste modo, este Tribunal é absolutamente incompetente para apreciar as questões suscitadas relativamente à Recorrente/Ré EMP02.... 
Já quanto aos restantes Réus, tal não ocorre uma vez que estes são terceiros relativamente à relação criada pelo contrato de trabalho. 
A competência do tribunal civil para apuramento da responsabilidade do causador-terceiro, decorre do disposto no n.º 1 do art.º 17.º do Dec. Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), que dispõe: “Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais”. 
Deve entender-se por terceiros todos aqueles que não sejam companheiros ou a entidade patronal por si e nas pessoas de quem a represente na direção do trabalho. (Ac. de 8/5/06 do T. R. P. publicado na pág. do Tribunal da Relação do Porto). 
Assim, apesar do Juízo Central Cível ..., Comarca ..., ser competente para conhecer do pedido relativamente aos restantes Réus, não o pode ser relativamente à aqui Recorrente/Ré, entidade patronal do Autor. 
Deste modo, o acidente descrito na p.i. corresponde ao acidente de trabalho descrito nos arts., tendo ocorrido quando o Autor trabalhava por conta, sob as ordens, direção e fiscalização da Ré EMP02..., Lda., no respetivo local de trabalho sito na sede desta e dentro do seu horário normal de trabalho.
Neste particular preceitua o artigo 126º da Lei 62/2013, de 26 de Agostos (LOSJ), no que respeita à competência cível dos tribunais de trabalho:
«1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;».
Face ao exposto supra, é indubitável que o acidente em causa nestes autos ocorreu no quadro de uma relação criada por um contrato de trabalho, sendo partes neste contrato o sinistrado aqui Autor, na qualidade de trabalhador, e a Ré EMP02..., Lda. (Carnes ...), na qualidade de entidade patronal.
Ora, como se referiu supra, ocorrendo um acidente de trabalho, a responsabilidade da entidade empregadora tem de ser apurada no Tribunal de Trabalho (v. art. 126º, nº 1- c) da LOSJ), como aliás ocorreu, estando essa questão definitivamente resolvida pelo Juízo do Trabalho .... 
Deste modo, este Tribunal (Juízo Central Cível) é absolutamente incompetente para apreciar as questões suscitadas relativamente à Entidade Patronal do Autor, a aqui Ré EMP02..., Lda. (Carnes ...)”.
Vejamos se assiste razão à apelante para as críticas que assaca à decisão recorrida.
Os pressupostos processuais são “os elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida. Trata-se das condições mínimas para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa”[2], pelo que, a falta de pressupostos processuais configura exceção dilatória, que obsta a que o tribunal possa conhecer do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou, se esse for o caso, à remessa do processo para o tribunal materialmente competente (arts. 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º do CPC).
Um dos pressupostos processuais é o da competência do tribunal e esse pressuposto prende-se com o facto de nos litígios plurilocalizados, isto é, que apresentem pontos de conexão com mais do que uma ordem jurídica, se impor determinar qual o tribunal que, no âmbito das várias ordens jurídicas envolvidas, tem competência para dele conhecer, questão essa que é solucionada pelas normas sobre competência internacional, bem como pelo facto de, ao nível interno de cada Estado, o poder jurisdicional se encontrar repartido de acordo com vários critérios, por inúmeros tribunais de acordo com as regras de competência interna desse estado.
Assim, sendo a jurisdição “o poder de julgar genericamente atribuído, dentro da organização do Estado, ao conjunto dos tribunais”[3] (art. 202º da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP), as regras de competência interna de cada Estado definem os critérios que devem presidir à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais, processando-se, no caso português, essa divisão em função dos critérios da matéria (arts. 64º e 65º do CPC), do valor (art. 66º do CPC), da hierarquia (arts. 67º a 69º) e do território (arts. 70º a 90º do mesmo Código).
Cingindo-nos às regras de competência interna, em razão da matéria, estas distribuem o poder jurisdicional por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem que exista entre eles qualquer relação de hierarquia, de acordo com o princípio da especialização, reconhecendo-se por força deste princípio que da distribuição do poder jurisdicional por tribunais especializados para conhecerem de certos setores do Direito, atenta a vastidão e especificidades das normas que integram cada um desses setores, decorrem vantagens inegáveis para a boa administração da justiça e para a celeridade e a economia processual[4].
Em sede de competência interna, em razão da matéria, a CRP, sob a epígrafe “Organização dos Tribunais”, prevê a existência de tribunais judiciais (art. 211º, n.º 1), tribunais administrativos e fiscais (art. 212º) e a possibilidade de existirem tribunais marítimos, de tribunais arbitrais e de julgados de paz (art. 209º, n.º 2) e, bem assim, de tribunais militares durante a vigência do estado de guerra (art. 213º).
Quanto aos tribunais judiciais, nos termos do n.º 1, do art. 211º da CRP, estes são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, estabelecendo-se no n.º 2 da mesma norma que, na primeira instância podem haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de determinadas matérias.
Em consonância com os comandos constitucionais que se acabam de enunciar, estabelece o art. 64º do CPC, que: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, e o art. 65º que: “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada”, o que significa que é a Lei n.º 62/2013, de 26/08, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciária (LOSJ), e sucessivas alterações, que se terá de recorrer para determinar a competência interna, em razão da matéria, que cabe aos diversos tribunais judiciais existentes no território nacional à data da propositura da presente ação.
A LOSJ, em consonância com o disposto nos arts. 211º, n.º 1 da CRP e 64º do CPC, estabelece que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Densificando aqueles comandos constitucionais que acima se descreveram a LOSJ prevê que os tribunais de 1ª Instância incluem os tribunais de competência alargada e os tribunais de comarca, dividindo-se o território nacional em 23 comarcas, nos termos do anexo II (art. 33º, n.º 1 e 2), e adianta, no n.º 2 do seu art. 4º, que: “A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada”.
Por sua vez, prevê que os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca (art. 79º), a quem compete preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais (art. 80º, n.º 1), podendo os tribunais de comarca ser de competência genérica e de competência especializada (80º, n.º 2).
Nos termos do art. 81º, n.º 1 da mesma Lei, os tribunais de comarca desdobram-se em juízos, a criar por decreto-lei, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade.
Nos tribunais de comarca, segundo o n.º 3 do mesmo art. 81º, podem ser criados os seguintes juízos de competência especializada: a) Central Cível; b) Local Cível; c) Central Criminal; d) Local Criminal; e) Local de Pequena Criminalidade; f) Instrução Criminal; g) Família e Menores, h) Trabalho; i) Comércio; e j) Execução.
Nas comarcas em que forem criados Juízos Centrais Cíveis, nos termos do art. 117º da LOSJ, compete-lhes: a) A preparação e julgamento das ações declarativas de natureza cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00 euros; b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a 50.000,00 euros, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal; c) Preparar e julgar procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência; e d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
Por sua vez, nas comarcas em que forem criados Juízos do Trabalho, nos termos do n.º 1, do art. 126º, entre outras competências que não relevam para o caso dos autos, compete-lhes conhecer, em matéria cível: c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais; d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuadas ou pagos em benefício de vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais.
Finalmente, nas comarcas em que forem criados Juízos Locais Cíveis, nos termos do art. 130º, n.º 1, da LOSJ, estes possuem competência na respetiva área territorial quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada, o que significa que a competência destes é determinada residualmente, ou seja, a competência jurisdicional dos Juízos Locais Cíveis, dentro da área territorial da Comarca em que inserem, estende-se a todas as ações e atos jurisdicionais que não se encontrem atribuídos a outros Juízos ou tribunais de competência territorial alargada.
Posto isto, os apelados instauraram, na Comarca ..., no Juízo Central Cível ..., a presente ação declarativa, de condenação, com processo comum, contra EMP01..., S.A., e EMP02..., Lda., pedindo, a título principal, que a  Ré EMP01... fosse condenada a indemnizá-los pelas quantias que já liquidaram na petição inicial (803.942,42 euros para o apelado AA, e 100.000,00 euros para a apelada BB), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, bem como a quantia que se vier a liquidar em incidente de liquidação, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais futuros que vierem a sofrer, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, formulando iguais pedidos, a título subsidiário, quando à apelante (também Ré) EMP02..., Lda. e, ainda, subsidiariamente, pedindo a condenação desta solidariamente com a EMP01... a satisfazer-lhe essas  mesmas indemnizações.
Os apelados fundamentam essas pretensões indemnizatórias, num sinistro ocorrido no dia 30/10/2017, cerca das 10h30m, nas instalações da apelante EMP02..., Lda., sitas na Rua ..., ..., ..., no exterior, em recinto descoberto, junto ao edifício da fábrica e próximo à zona de lavagem de veículos, onde foram intervenientes o apelado AA e o veículo semirreboque de matrícula L-......, que se encontrava acoplado ao trator de matrícula ..-..-IP, ambos propriedade da apelante e que, na altura, se encontravam estacionados, estando a ser utilizados sob as ordens, orientações, instruções e sob a fiscalização desta e cuja responsabilidade civil emergente da circulação desses veículos se encontrava transferida para a Ré EMP01..., por contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado entre ambas, ocorrendo o acidente quando o apelado AA passava nas traseiras daquele semirreboque e uma das rampas traseiras tombou e o atingiu, causando-lhe as concretas lesões físicas que discriminam naquele articulado inicial e que lhe determinaram, mais à apelada BB, sua mulher, os danos patrimoniais e não patrimoniais que também discriminam naquele articulado inicial.
Os apelantes imputam a eclosão desse sinistro à culpa exclusiva da apelante, por via dos factos que alegam nos pontos 27º a 76º  da petição inicial (O semirreboque não possuía marcação CE, não possuía declaração de conformidade e não possuía manual de instruções em português (art. 27º) -; à data do sinistro existiam sinais de rotura nos elementos de ligação mecânica entre o cilindro e o mecanismo de acionamento mecânico das rampas do semirreboque (art. 41º), que levaram que o fenómeno de rotura viesse a decorrer no tempo na extremidade do corte existente no parafuso sinalizado com seta a preto do lado direito (art. 45º); essa folga mudou o paradigma de funcionamento dos parafusos, criando-lhes solicitações para os quais não foram dimensionados, ou seja, cria-lhes tensões de corte ao invés de tração (art. 51º); os cabos tensores que prendem as rampas do semirreboque ao próprio semirreboque estavam desprendidos das rampas (art. 61º); os sistemas de rampas do semirreboque têm uma aplicação com um cilindro telescópio e um sistema de amarração entre este e o sistema mecânico das rampas (art. 63º); este sistema de rampas sofreu uma de duas ou mesmo as duas circunstância circunstâncias em simultâneo: a) fixação/amarração mecânica e a ligação com o cilindro hidráulico, que não foi absorvido pela abertura de uma válvula de máxima pressão do cilindro hidráulico, e/ou b) existência de folga na fixação das barras do mecanismo levaram à existência de espaço sobre os parafusos para os quais estes não foram dimensionados (art. 64º); o sinistro teve causa direta e necessária na fratura dos elementos de ligação (parafusos e outras) das rampas do semirreboque, a qual se deveu ao desgaste do material ou folga pelo uso do decurso de tempo, bem como ainda por uma intervenção mal feita ao nível dos mesmos (art. 67), bem como ainda por uma perda de óleo ou avaria no sistema hidráulico do semirreboque (art. 68º); o sistema das rampas do semirreboque deveria ser testado periodicamente, especialmente após viagens longas, semanalmente ao nível de fugas e apertos e substituído o óleo hidráulico uma vez por ano, o que não foi feito pela Ré EMP02..., Lda. (arts. 71º e 72º); o que originou a queda das rampas do semirreboque que vitimou o Autor foi a fratura dos elementos de ligação (parafusos e outras) das rampas do semirreboque e a perda de óleo ou avaria no sistema hidráulico das rampas (art. 74º); se a Ré EMP02..., Lda. tivesse efetuado as inspeções semanais e mensais ao semirreboque ter-se-ia apercebido do desgaste do material pelo uso e decurso do tempo porque eram percetíveis e visíveis (art. 75º); se aquela tivesse feito aquelas inspeções semanais  e mensais ao sistema hidráulico das rampas e substituído o óleo hidráulico uma vez por ano o acidente não se teria verificado (art. 76º)).
Acresce que, logo no articulado inicial, os apelados alegam que o sinistro que nele narram é, em simultâneo, acidente de trabalho e acidente de viação, e que, na vertente dessa realidade ontológica única, na vertente de acidente de trabalho, encontra-se a correr termos ação especial de acidente de trabalho, no Juízo de Trabalho ..., sob o n.º 7356/16...., em que figuram como sinistrado o apelado AA e como entidades responsáveis a Companhia de EMP03..., S.A, e a aqui apelante (Ré) EMP02..., Lda., no âmbito dos quais foram pagas ao apelado AA as quantias e prestações indemnizatórias que discriminam no art. 78º da petição inicial.
Sustenta a apelante EMP02..., Lda., que, sendo o sinistro descrito pelos apelados no articulado inicial um acidente de trabalho, falece competência material ao Juízo Central Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelados naquele articulado  inicial quanto às questões que os mesmos aí suscitam quanto àquela, por ser entidade empregadora do apelado  AA quando este sofreu aquele acidente, no seu local e tempo de trabalho, e exercia a sua prestação de trabalho, sob ordens, direção e fiscalização daquela, concluindo que a sua responsabilidade pelo dito acidente e consequências que dele emergiram para o apelado AA e para o seu agregado familiar “tem de ser apurada no Tribunal do Trabalho”, contrariamente ao que acontece com os restantes Réus, dado que sendo “terceiros relativamente à relação criada pelo contrato de trabalho”, respondem nos termos gerais, pelo direito à reparação que assiste aos apelados, em ação a ser instaurada junto dos tribunais comuns, conforme dispõe o art. 17º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro.
Ou seja, segundo a apelante, nos termos desse dispositivo legal, qualquer vertente em que se consubstancie juridicamente a realidade ontológica (o sinistro), mormente como acidente de trabalho e, em simultâneo, como acidente de viação, a mesma apenas podia ser responsabilizada por esse evento naturalístico enquanto acidente de trabalho, a ser efetivada a sua responsabilidade no Juízo do Trabalho, contrariamente ao que acontece com os “terceiros”, como é o caso da Ré EMP01..., que respondendo, nos termos daquele art. 17º, n.º 1, nos termos gerais por aquele sinistro, pode ser demandada, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelas consequências danosas que dele decorreram para os apelados, enquanto acidente de viação junto dos tribunais comuns.
Em abono dessa sua tese a apelante invoca o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/5/2006, proferido no Proc. 0516742,  sustentando que, segundo esse aresto,  deve entender-se por terceiro, para efeitos do enunciado art. 17º, n.º 1, “ todos aqueles que não sejam companheiros ou a entidade empregadora por si e nas pessoas de quem a represente na direção do tribunal”, pelo que aquela, enquanto entidade empregadora do apelado AA, na sua perspetiva, nunca podia ser responsabilizada, nos termos gerais, designadamente, a título de responsabilidade civil por factos ilícitos ou pelo risco, pelos prejuízos sofridos pelos apelantes em consequência daquele evento enquanto acidente de viação.
Acontece que, analisada essa argumentação, antecipe-se, desde já, que a mencionada posição  jurídica que vem sustentada pela apelante, salvo o devido respeito por entendimento contrário, não encontra arrimo jurídico no quadro legal aplicável, posto que desconsidera que o mesmo evento naturalístico, ou seja, o mesmo sinistro, pode assumir um enquadramento jurídico distinto, designadamente, enquanto acidente de trabalho e, simultaneamente, como acidente de viação, assentando ambas essas realidades jurídicas em fontes de responsabilidades distintas, com medidas indemnizatórias que também elas são distintas e que prosseguem objetivos também eles distintos, conforme, aliás, resulta do regime jurídico daquele art. 17º que a apelante invoca em abono da sua tese jurídica, mas que, longe de a sustentar, abona antes no sentido que acabamos de dizer.
Vejamos:
É pacífico o entendimento que, configurando a competência material do tribunal um pressuposto processual, em que a incompetência, em razão da matéria, do tribunal determina a impossibilidade deste de entrar na apreciação do mérito da causa, consubstanciando uma exceção dilatória, que esse pressuposto, à semelhança do que acontece com todos os demais pressupostos processuais, tem de ser aferido pela relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (atento o pedido e a causa de pedir) pelo autor na petição inicial[5].
Também é pacífico que o mesmo evento naturalístico pode ter ressonâncias e enquadramentos jurídicos distintos, ou seja, por exemplo, o mesmo sinistro (esse evento naturalístico único) pode consubstanciar, em simultâneo, um acidente de trabalho e um acidente de viação, facto, aliás, que é evidenciado pelo regime jurídico explanado no art. 17º da Lei n.º 98/2009, de 09/04, que sob a epígrafe “Acidente causado por outro trabalhador ou por terceiro”, consta da redação que se segue:
1- Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais.
2- Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respetiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3- (…).
4- O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode subrogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5- O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo”.
Na verdade, ao prever-se que, quando o acidente de trabalho for causado por outro trabalhador ou por terceiro, a responsabilidade infortunística que recai sobre o empregador do sinistrado não prejudica o direito de ação do sinistrado contra aqueles, nos termos gerais, reconhece expressamente o legislador que o mesmo evento naturalístico (sinistro) pode configurar juridicamente um acidente de trabalho e, em simultâneo, uma outra realidade jurídica, mormente, um acidente de viação que, nos termos gerais, nomeadamente, as regras da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (art. 483º e ss. do CC), ou pelo risco (arts. 499º e 500º do CC), faça incorrer os responsáveis civis por esse tipo de responsabilidade na obrigação de indemnizar o sinistrado de acordo com as regras gerais indemnizatórias previstas nos arts. 562º a 572º e 496º do CC.
Contudo, quando assim suceda, porque a finalidade da indemnização é reparar o prejuízo causado ao lesado e não atribuir-lhe um lucro, o que necessariamente aconteceria caso aquele pudesse cumular ambas as indemnizações que lhe são devidas em função daquela diversidade de fontes de responsabilidade, compreende-se que, quando um acidente de trabalho configure juridicamente uma outra realidade jurídica, nomeadamente, um acidente de viação, as respetivas indemnizações não sejam cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística do empregador caráter subsidiário, conforme decorre do disposto nos enunciados n.ºs 2, 4 e 5, do art. 17º, onde se vê que este responde sempre pela responsabilidade pelo acidente de trabalho nos termos estabelecidos nas leis laborais,  independentemente de o sinistrado ter (ou não) direito a ser indemnizado pelos terceiros responsáveis pelo acidente, nos termos gerais, e de receber destes uma indemnização de acordo com essas regras gerais.
Contudo, o empregador (e a sua seguradora) fica desonerado da obrigação de indemnizar o sinistrado por responsabilidade infortunística quando este vier a receber desses responsáveis pelo sinistro uma indemnização superior à que lhe é devida pelo empregador (segundo as leis laborais) e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que já lhe tiver pago ou despendido com o mesmo. Além de que o empregador e a seguradora, nos casos em que o sinistrado não exerça os seus direitos, nos termos gerais, contra o terceiro responsável pelo sinistro, ficam subrogados no direito deste em relação a esse terceiro, quanto às quantias que pagaram ao sinistrado e que com ele despenderam por via da responsabilidade infortunística, podendo demandar esse responsável civil pelo sinistro, nos termos gerais, exigindo-lhe o reembolso das quantias pagas e despendidas com o sinistrado, o que, aliás, bem se compreende.
Na data de 30/10/2017, em que os apelados alegam, em sede de petição inicial, ter ocorrido o acidente que vitimou o apelado AA, encontrava-se em vigor a Lei n.º 98/2009, de 04/09, na sua versão original, que Regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e que, por isso, é o aplicável ao concreto sinistro sobre que versam os autos enquanto acidente de trabalho.
O art. 2º da Lei n.º 98/2009, estatui que o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação por danos causados emergentes de acidente de trabalho e doenças profissionais, nos termos previstos na presente lei, e acrescenta, no seu art. 7º, ser responsável pela reparação e demais encargos decorrentes de acidente de trabalho a entidade empregadora, não obstante esta, nos termos do n.º 1, do art. 79º, se encontrar obrigada a transferir a sua responsabilidade para uma seguradora.
Logo, a responsabilidade por acidente de trabalho e por doenças profissionais que se encontra regulada e fixada na Lei n.º 98/2009, de 04/09, recai sobre a entidade empregadora do sinistrado, ou seja, sobre a sua seguradora, no caso de existência de seguro, conforme é imposto pelo art. 79º, n.º 1 desse diploma, sendo certo que, em caso de inexistência de seguro, ou de seguro que não cubra toda a responsabilidade infortunística, porque o empregador não declarou à seguradora a totalidade da  remuneração do trabalhador que era por ele auferida à data do acidente de trabalho, essa responsabilidade recai sobre o empregador na sua totalidade (inexistência de seguro) ou na parte não coberta pelo seguro.
O art. 8º, n.º 1 desse diploma, define “acidente de trabalho” como aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade trabalho ou de ganho ou a morte, e no seu n.º 2 estabelece  o que se entende por «local de trabalho» (al. a)) e por «tempo de trabalho além do período normal de trabalho» (al. b)), e estende, no seu art. 9º, o conceito de acidente de trabalho a outras realidades em que, embora o trabalhador esteja fora do seu local de trabalho ou do seu tempo de trabalho, se deve considerar que o sinistro, ainda assim, deve ser qualificado como acidente de trabalho, por a respetiva causa ter  a sua origem na atividade desenvolvida pelo trabalhador ou por essa causa ter uma conexão com o normal desenvolvimento da relação laboral, estando em causa infortúnios relacionados com o cumprimento de deveres ou o exercício de direitos decorrentes do contrato de trabalho[6].
O acidente de trabalho pressupõe, assim, um evento naturalístico ocorrido no local e tempo de trabalho (entendidos em sentido amplo) e um nexo causal, sendo necessário a verificação de uma cadeia de factos interligados por um nexo causal. Assim o evento naturalístico há-de resultar de uma relação de trabalho; a lesão corporal, perturbação funcional ou doença têm que resultar daquele evento; a morte ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho devem ser causadas pela lesão corporal, perturbação funcional ou doença.
Em caso de acidente de trabalho, nos termos do art. 23º da Lei n.º 98/2009, o direito reparatório que assiste ao sinistrado e aos seus familiares compreende: a) reparação em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida ativa; b) reparação em dinheiro: indemnizações, pensões, prestações e subsídios previstos na presente lei.
As prestações em dinheiro devidas ao trabalhador e seus familiares encontram-se concretizadas no art. 47º e o cálculo das mesmas processa-se de acordo com as normas dos arts. 48º a 50º, 53º, 54º, 56º a 62º e 65º a 69º, normas essas que estabelecem critérios objetivos para o cálculo dessas prestações e que não deixam qualquer margem de subjetivismo ao julgador na sua fixação.
Com exceção do que infra se dirá, o trabalhador vítima de acidente de trabalho e seus familiares não têm direito a ser compensados por eventuais danos não patrimoniais que sofram em consequência do acidente do trabalho.
A responsabilidade infortunística que recai sobre o empregador de proceder à indemnização do sinistrado, vítima de acidente de trabalho, e seus familiares, nos termos previstos na Lei n.º 98/2009, de 04/09, é uma responsabilidade objetiva ou assente no risco económico ou de autoridade da entidade empregadora, não estando, portanto, essa responsabilidade dependente de qualquer comportamento culposo da entidade empregadora, em relação à qual recai essa responsabilidade infortunística, mesmo nos casos em que o acidente de trabalho seja de imputar à conduta ilícita e culposa  de outro trabalhador ou a terceiros (situação em que vigoram as regras já enunciadas do art. 17º) e ainda que o acidente se deva à própria conduta ilícita e culposa do sinistrado, contanto que, neste último caso, essa sua conduta ilícita e culposa não vá ao ponto de, nos termos do art. 14º daquele  diploma, levar à descaracterização do sinistro como acidente de trabalho.
  De resto, nos casos em que o acidente de trabalho ocorra em consequência de uma conduta ilícita e culposa da entidade empregadora, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão de obra, ou resultar de falta de observação por aquelas de regras sobre segurança e saúde no trabalho, nos termos do art. 18º daquela Lei, esse facto não leva à descaracterização do acidente como de trabalho, mas apenas a um agravamento da responsabilidade infortunística que recai sobre a entidade empregadora, que passa a responder pela totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais, sem prejuízo de ser devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, a ser fixada de acordo com os critérios específicos previstos no nº 4 desse art. 18º e, bem assim de, nos termos do art. 79º, n.º 3, ficar conferido à seguradora da entidade empregadora direito de regresso sobre esta quanto às prestações reparatórias que satisfez ao sinistrado, isto é, as prestações que lhe são devidas nos termos da LAT, caso não houvesse atuação culposa do empregador e pelas quais a seguradora é solidariamente responsável com o empregador pela respetiva satisfação ao sinistrado.
Como escreve Pedro Romano Martinez: “A figura dos acidentes de trabalho tem algo que ver com a ideia de Estado-Providência inserida no seio empresarial. Tal como o Estado deve assegurar que não sejam causados prejuízos aos cidadãos, também o empregador terá de providenciar quanto à inexistência de danos aos seus trabalhadores no desenvolvimento da atividade de que estão incumbidos”, e adianta que a responsabilidade do empregador assenta numa responsabilidade objetiva, que, “não obstante assentar no risco profissional, em certos casos tem sido alargada com base na ideia de risco empresarial, também designado de risco de autoridade. Trata-se do risco de ter trabalhadores, que não só deriva da atividade desenvolvida. Por último, apesar de os acidentes de trabalho serem ressarcidos no âmbito do direito privado, o seu alargamento também se fica a dever a uma específica socialização do risco. (…). A responsabilidade civil objetiva por acidentes de trabalho, não obstante constituir um ius singulare, continua a assentar nos pressupostos básicos da responsabilidade civil aquiliana (ius commune), cujas regras, quando não sejam afastadas, encontram aplicação. Trata-se de um tipo de responsabilidade em que a culpa não faz parte dos seus requisitos, mantendo-se, com as necessárias adaptações, o esquema geral da responsabilidade aquiliana. É esta a conclusão que se retira do disposto no Código Civil, em particular no art. 499º”. Contudo, adverte: “Com o estabelecimento das regras da responsabilidade civil objetiva não se pretende afastar a aplicação das regras da responsabilidade civil subjetiva, sempre que haja culpa do responsável. O legislador, na Lei dos Acidentes de Trabalho, apesar de só fazer alusão à responsabilidade civil subjetiva no art. 18º da LAT, não afasta a sua aplicação nos termos gerais se houver culpa do empregador. A responsabilidade civil objetiva do empregador foi estabelecida na lei de forma limitada, de certo modo à imagem do que ocorre em sede de responsabilidade civil objetiva no Código Civil, onde, em certos casos, se estabeleceram limites máximos no montante indemnizatório, por exemplo, com respeito aos acidentes de viação no art. 508º do CC. Só que a responsabilidade objetiva por acidentes de trabalho assenta numa conceção diferente: a responsabilidade não é ilimitada, mas o limite é fixado com base em dois aspetos. Primeiro, a noção legal de acidente de trabalho, que é delimitada pelo legislador. Segundo, a reparação só abrange as despesas respeitantes ao restabelecimento do estado de saúde, à recuperação da capacidade de trabalho e de ganho e, em caso de incapacidade ou de morte, indemnizações correspondentes à redução da capacidade, subsídios de readaptação, pensões aos familiares e despesas de funeral. Na Lei dos Acidentes de Trabalho, em vez de se estabelecer um montante máximo de indemnização por morte, delimitou-se o conceito de acidente de trabalho e fixaram-se os danos ressarcíveis. Não estão, assim, cobertos outros danos patrimoniais para além dos indicados no art. 23º da LAT, por exemplo, se o relógio do trabalhador se estragou por causa do acidente. Não são igualmente indemnizáveis os danos não patrimoniais, pois tais prejuízos não fazem parte do elenco do art. 23º da LAT. Neste ponto também o regime desta lei difere do que foi estabelecido no Código Civil, onde a responsabilidade objetiva cobre os danos não patrimoniais”[7].
Flui do que se vem dizendo que o mesmo evento naturalístico (sinistro) pode dar lugar a fontes de responsabilidades distintas, mormente, por acidente de trabalho e, em simultâneo, por acidente de viação, em que os pressupostos dessas responsabilidades, as reparações e as finalidades por elas prosseguidas são distintas.
Neste sentido escreve-se, aliás, impressivamente no acórdão da Relação de Lisboa de 15/11/20005, que: “Quando um acidente for simultaneamente de trabalho e de viação, isto é, quando um trabalhador for vítima de um acidente desta natureza e o evento for determinado por culpa de terceiro, aquele fica titular de dois direitos à reparação, cada um com a sua própria causa: um baseado na responsabilidade objetiva ou no risco económico ou de autoridade patronal, e  o outro baseado na responsabilidade subjetiva de terceiro, ou seja, em facto ilícito de terceiro. E cada um desses direitos tem a sua própria medida: a do primeiro calculada nos termos das Bases …, e a do segundo decorrente dos termos gerais de direito civil – arts. 483º, 494º, 496º, 562º, 563º, 564º, 566º e 570º do CC. Além disso, apesar do acidente ser o mesmo, são diferentes os titulares passivos das referidas obrigações: no acidente de trabalho é responsável a entidade empregadora ou a sua seguradora; no acidente de viação, o terceiro ou a sua seguradora”[8].
Mais decorre que, contrariamente a entendimento sufragado pela apelante, a responsabilidade  infortunística que para aquela emerge do acidente de trabalho sofrido pelo apelado AA, não exclui as outras fontes de responsabilidade que nos termos gerais recaia sobre a mesma, outros trabalhadores ou terceiros quando deram causa, ilícita e culposamente, ao evento (sinistro), designadamente, a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco quando o sinistro é, em simultâneo, acidente de trabalho e de viação.
Note-se que mesmo nos casos de responsabilidade agravada do art. 18º da Lei n.º 98/2009, apesar de nesses casos a responsabilidade abranger a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais – responsabilidade agravada essa que, nesse caso, tem de ser efetivamente alegada e apurada em sede de processo de acidente de trabalho, por ser o materialmente competente para o efeito –, tal não exclui o direito do sinistrado e seus familiares de poderem instaurar, nos termos gerais, ação destinada a efetivar a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco, nos termos do disposto nos arts. 483º, n.º 1, 499º, 500º e 503º do CC, com vista a serem indemnizados por danos patrimoniais e não patrimoniais cuja indemnização não reclamaram na ação de acidente de trabalho, contra quem consideram ter dado causa, ilícita e culposamente, ao acidente de viação, quer seja o empregador, outro trabalhador ou terceiro, porquanto, trata-se de causas de pedir distintas – o acidente de trabalho, que tem em vista o apuramento da responsabilidade infortunística, e a ação destinada a efetivar a responsabilidade civil por factos ilícitos ou pelo risco, em caso de acidente de viação.
Na verdade, em nenhum lugar do Código do Trabalho ou da Lei n.º 98/2009 se prevê que a responsabilidade infortunística do empregador exclua a responsabilidade deste, de outros trabalhadores ou de terceiros, nos termos gerais, quando estes, ilícita e culposamente, tenham causado o sinistro, mas, antes pelo contrário, reafirma-se, com o estabelecimento da responsabilidade civil objetiva decorrente de acidente de trabalho não pretendeu o legislador afastar a aplicação das regras da responsabilidade civil subjetiva, sempre que haja culpa do responsável.
Ao que se acaba de dizer não obsta o art. 17º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, posto que, destinando-se esse preceito a regular a situação do empregador e da sua seguradora que respondam nos termos daquela Lei perante o sinistrado e seus familiares em caso de acidente de trabalho, por responsabilidade infortunística,  nas situações em que o sinistro tiver sido causado, ilícita e culposamente, por outro trabalhador ou por terceiro, naturalmente que, atento o objetivo nele prosseguido pelo legislador, para efeitos desse preceito, a desoneração do empregador e da sua seguradora por responsabilidade infortunística, o direito de reembolso e a sub-rogação previstas nos seus n.ºs 2 a 5, só fazem sentido em relação ao outro trabalhador ou ao terceiro que, ilícita e culposamente, provocaram o acidente – não em relação à própria entidade empregadora, que naturalmente não iria pedir o reembolso das quantias que satisfez ao sinistrado a título de responsabilidade infortunística dela própria, nem em relação à sua seguradora, que não iria pedir o reembolso das quantias que pagou ao sinistrado
à entidade empregadora, uma vez que esta transferiu para si (seguradora) a responsabilidade infortunística em que pudesse vir a incorrer e no caso de acidente ocorrido por culpa da entidade empregadora, o art. 79º, n.º 3 reconhece à seguradora direito de regresso sobre a última.

Pelo contrário, ao estabelecer-se no n.º 1 do art. 17º que quando o acidente de trabalho for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais, este comando evidencia precisamente que o legislador, com a responsabilidade que impõe sobre o empregador de ter de responder pelas consequências emergentes do acidente de trabalho nos termos previstos na Lei n.º 98/2009, que assenta numa responsabilidade objetiva deste, não afastou a aplicação das regras da responsabilidade civil, nos termos gerais, sempre que haja culpa de pessoa pelo eclodir do acidente, quer essa pessoa seja a própria entidade empregadora, um outro trabalhador ou um terceiro, até porque não faria sentido impor essa responsabilidade fundada na culpa a estas últimas (outro trabalhador e terceiro) e não ao próprio empregador.
Note-se que, contrariamente ao pretendido pela apelante, o que se acaba de dizer em nada é contrariado pelo acórdão da Relação do Porto de 08/05/2006, antes pelo contrário.
Na verdade, nesse acórdão escreve-se que: “Ocorrendo um acidente de trabalho, a responsabilidade dos companheiros ou outros trabalhadores, ou de terceiros, é apurada em ação a propor nos termos da lei geral, sendo competente o tribunal comum”[9], o que se subscreve integralmente.
Nesse processo estava em causa uma situação em que a companhia de seguros da empresa de trabalho temporário de trabalhador que sofreu acidente de trabalho quando se encontrava a exercer a sua atividade profissional para uma empresa utilizadora de mão-de-obra, tendo sido condenada a satisfazer as prestações reparatórias devidas ao trabalhador em consequência desse acidente de trabalho, intentou junto do Tribunal do Trabalho ação para efetivação de direitos de terceiros conexos com acidente de trabalho contra a empresa utilizadora, com vista a reaver desta as quantias indemnizatórias que satisfez ao trabalhador (sinistrado) e que com ele despendeu por via do acidente de trabalho, tendo, nesse acórdão, a Relação concluído que a aí Ré (empresa utilizadora) não é terceira em relação ao acidente de trabalho que vitimou o trabalhador, porquanto este encontrava-se a ser utilizado por esta quando sofreu o acidente de trabalho e, inclusivamente, a seguradora autora dessa ação imputou a responsabilidade pela eclosão daquele concreto acidente à aí Ré, ou seja, à empresa utilizadora, o que se subscreve, situação essa que, contudo, nada tem a ver com a problemática que se suscita nos presentes autos.
Nos presentes autos está em causa um evento (sinistro) que, conforme antedito, os apelados logo alegam, na petição inicial, ser, em simultâneo, acidente de trabalho e de viação.
Enquanto acidente de trabalho, sem dúvida alguma, que a competência material para apreciar aquele evento, incluindo, de uma eventual responsabilidade agravada que pudesse decorrer para a apelante EMP02..., Lda., enquanto entidade empregadora do apelado AA, por via do acidente de trabalho que o vitimou ter ocorrido numa das circunstâncias enunciadas na previsão do art. 18º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, compete ao Juízo do Trabalho, por força do disposto no art. 126º, n.º 1, al. c) da LOSJ.
Contudo, conforme antedito, podendo o mesmo evento naturalístico (sinistro) ter diversas fontes de responsabilidades, para se aferir dessa fonte de responsabilidade que o autor elegeu na ação que intentou e, por conseguinte, da competência, em razão da matéria, do tribunal onde foi proposta essa ação, há que atender à relação jurídica material controvertida tal como esta foi estruturada, em termos subjetivos (quanto às partes) e objetivos (quanto ao pedido e à causa de pedir), pelo autor na petição inicial, isto é, a qualificação de um acidente sofrido pelo autor como apenas  laboral ou, simultaneamente, de trabalho e de viação resulta do modo como o evento ocorreu e como este o descreve na petição inicial em termos de causa de pedir e da pretensão que pretende que o tribunal lhe reconheça, não relevando a caracterização que este faz desse evento naquele articulado[10].
Ora, basta a mera leitura da petição inicial para se verificar que os apelados, em termos de pedido, pretendem ser indemnizados pelos demandados (a entidade empregadora do sinistrado e apelado AA – a apelante EMP02..., Lda. -, e a seguradora desta, para quem tinha, à data do sinistro, transferido a responsabilidade emergente da circulação dos veículos automóveis intervenientes no acidente, por contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreram e que venham a sofrer (futuros), por via do acidente que vitimou o apelado AA no dia 30/10/2017, cerca das 10h30m., quando se encontrava nas instalações da apelante EMP02..., Lda., e foi atingido pela rampa traseira do semirreboque, que se encontrava acoplado a um trator, ambos alegadamente propriedade da apelante, quando esses veículos se encontravam estacionados, a serem utilizados no interesse, sob as ordens e a fiscalização da apelante e essa rampa traseira do semirreboque tombou sobre o apelado, por via dos vícios que aquele padecia e que os apelados alegaram naquele articulado inicial e que acima já se transcreveram e com base nos quais imputam a culpa exclusiva pela eclosão deste concreto acidente à apelante.
É pacífico o entendimento que no conceito de “acidente de viação” está abrangida qualquer utilização de veículos de circulação terrestre a motor, em conformidade com a sua função habitual[11].
Esse entendimento mostra-se em consonância com o regime do n.º 1 do art. 503º do CC que, em sede de responsabilidade objetiva, estabelece que, aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
Com efeito, conforme adverte Antunes Varela, dentro da “fórmula legal cabem, tanto os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação (…), como os causados pelo veículo estacionado (…)”, tanto fazendo que o veículo “circule em via pública, aberta ao trânsito e geral, como em qualquer recinto privado (…) e pouco importa mesmo que o veículo circule fora de qualquer via, como o jeep que caminha sobre terrenos que outras viaturas não podem percorrer. O espírito da lei cobre manifestamente todas essas situações (…)”. E, parafraseando Dário M de Almeida, acrescenta: “no risco compreende-se tudo o que se relaciona com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento, com os excessos ou desequilíbrios da carga do veículo, com o seu maior ou menor peso ou sobrelotação, como maior ou menor desgaste das suas peças, ou seja, com a sua conservação (…). É o pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga de eixo ou a barra de direção que pode partir, a abertura imprevista de uma porta em andamento (…), a pedra ou gravilha ocasionalmente projetadas pela roda do veículo …”, cabendo dentro dessa fórmula, ainda “… os ligados ao termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor). Também o perigo de síncope, de congestão, de colapso cardíaco ou qualquer outra doença súbita de quem conduz faz realmente parte dos riscos próprios do veículo (…). Fora do círculo (…)” ficam apenas “os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre”[12].
Ora, atenta a enunciada noção de acidente de viação, conforme decorre da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelados na petição inicial, a facticidade que estes nela alegaram é suscetível de consubstanciar um acidente de viação, pretendendo estes, mediante a instauração da presente ação, efetivar a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com base na culpa efetiva e presumida da apelante EMP02..., Lda. e, bem assim no risco,  contra esta e a EMP01..., Lda., para quem aquela tinha transferido a responsabilidade civil decorrente da circulação daqueles veículos, por contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (não efetivar a responsabilidade infortunística da apelante decorrente daquele evento naturalístico – o sinistro – enquanto acidente de trabalho).
Por conseguinte, conforme acertadamente decidiu a 1ª Instância, a competência, em razão da matéria, para conhecer da relação jurídica material controvertida nos presentes autos, tal como esta vem estruturada e delineada pelos apelados na petição inicial, compete, nos termos do disposto no art. 117º, al. a) da LOSJ, ao Juízo Central Cível.
Decorre do exposto que, ao assim decidir, a 1ª Instância não incorreu no erro de direito que a apelante assaca ao despacho saneador em que se julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Juízo Central Cível para conhecer da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelados no articulado inicial, impondo-se julgar improcedente a presente apelação e confirmar a decisão recorrida.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).
1- A incompetência, em razão da matéria, do tribunal, sendo uma exceção dilatória, tem de ser aferida pela relação jurídica material controvertida delineada, subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir), pelo autor na petição inicial.
2- O mesmo evento naturalístico (sinistro) pode ter ressonâncias jurídicas distintas, dando lugar a distintas fontes de responsabilidades, com distintos sujeitos passivos, medidas reparatórias distintas e prosseguindo essas reparações finalidades também distintas, podendo o mesmo sinistro configurar, em simultâneo, acidente de trabalho e acidente de viação.
3- Quando tal suceda, o sinistrado fica investido em dois direitos à reparação, cada um com a sua própria causa: a responsabilidade do empregador por acidente de trabalho assenta em responsabilidade objetiva, no risco económico e de autoridade do empregador; e a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco pelo acidente de viação assenta na culpa pelo acidente ou no risco decorrente da utilização do veículo nele interveniente. Cada um dos direitos indemnizatórios que emergem dessas duas fontes de responsabilidade têm medidas distintas: a responsabilidade infortunística do empregador apenas confere ao sinistrado e seus familiares a receberem as concretas reparações em espécie e em dinheiro previstas na Lei n.º 98/2009, de 09/04 (acidente ocorrido em 30/10/2017), estando, em princípio, excluída a indemnização por danos não patrimoniais; na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco emergente do acidente de viação a medida da indemnização é determinada de acordo com os arts. 496º, 508º e 562º a 570º do CC. Essas indemnizações têm sujeitos passivos distintos: no acidente de trabalho é responsável a entidade empregadora e/ou a sua seguradora; no acidente de viação, o responsável civil pelo acidente de viação.
4- As indemnizações decorrentes dessas duas fontes de responsabilidade não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística que impende sobre a entidade empregadora e/ou a sua seguradora caráter subsidiário.
5- A responsabilidade infortunística da entidade empregadora por acidente de trabalho não obsta a que o sinistrado intente ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e pelo risco contra a entidade empregadora e a seguradora com quem celebrou seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, alegando que o sinistro é, em simultâneo, acidente de trabalho e de viação e que este, enquanto acidente de viação, eclodiu por culpa exclusiva, efetiva e/ou presumida, da entidade empregadora, ou é de imputar ao risco do veículo interveniente no acidente de que a entidade empregadora era então detentora, sendo os tribunais cíveis os materialmente competentes para conhecerem desta relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial (isto é, enquanto acidente de viação).
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IV- Decisão

Nesta Conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 23 de novembro de 2023

José Alberto Moreira Dias – Relator
Rosália Cunha – 1ª Adjunta
Lígia Paula Santos Venade – 2ª Adjunta.



[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”. Vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 104.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 196.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 207.
No mesmo sentido, Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 94 e 95, onde expende que a competência interna em razão da matéria: “É a competência das diversas espécies de tribunais: diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre eles uma relação de supra ordenação e subordinação” e adianta que: “Na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se pois duma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies e a demarcação da respetiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes”.
[5] Acs. RL., de 12/03/2009, Proc. 573/09.2YRLSB-4; de 28/05/2009, Proc. 587/08.0TVLSB.L1-6; RC., de 15/12/2021, Proc. 401/21.0T8LRA.C1, todos in base de dados da DGSI, onde constam os acórdãos que se venha a identificar, sem menção em contrário.
[6] Pedro Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, 2013, 6ª ed., Almedina, pág. 798.
[7] Pedro Romano Martinez, ob. cit., págs. 777 e 780 a 782.
[8] Ac. R.L., de 15/11/2005, Proc. 8784/2005-4
[9] Ac. R.P., de 08/05/2006, Proc. 0516742
[10] Ac. STJ., de 21/06/2022, Proc. 1154/20.5T8VIS.C1.S1
[11] Ac. R.L. de 02/06/2016, Proc. 758-11.1TBAGH.L1-8
[12] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, págs. 690 a 693.
Ac. R.G., de 15/02/2018, Proc. 535/14.8TBPTL.G1, relatado pelo aqui relator.