Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
330/19.8T8VLN.G1
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: PREFERÊNCIA
EXECUÇÃO FISCAL
NULIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ENTREGA DO BEM
NOTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes, é nula a sentença que o faça.
II – Nada obsta, contudo, a que a defesa por excepção possa ser deduzida de forma tácita ou implícita, desde que a respectiva parte alegue os factos integradores do direito que invoca, evidenciando inequivocamente que dele pretende prevalecer-se.
III - Nos termos do disposto no art.º 662º, nº 1, do NCPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
IV - Todavia, a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida não tiver qualquer relevância jurídica, isto é, se for inócua para a decisão da causa, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei por força do disposto no art.º 130º do NCPC.
V - A discriminação dos factos provados na sentença deve ser feita de forma clara, inequívoca e completa, por forma a que seja possível uma correcta aplicação dos preceitos legais que se não compadece com uma matéria de facto insuficientemente completa e inteligível.
VI - Não satisfaz a aludida discriminação dos factos, a mera remessa para documentos, dados como reproduzidos e provados o que deles consta, se nada se explicitar quanto ao seu conteúdo, pois os documentos não são mais que um meio de prova destinado a demonstrar a realidade de certos factos, pelo que na matéria de facto provada só há que consignar os factos eventualmente provados por eles.
VII - O art.º 249º, nº 7 CPPT, alude à indicação e hora da entrega dos bens ao proponente para que aí o preferente possa exercer o seu direito no âmbito da execução fiscal.
VIII - São distintas as ocasiões processuais para o exercício do direito de opção no processo executivo civil e no processo executivo fiscal: o primeiro determina a notificação do preferente para a data da abertura de propostas, mas admite que este, não tendo estado presente, ainda possa exercer a preferência no prazo de cinco dias, após a notificação de que foi aceite uma determinada proposta; no processo fiscal, não está expressa esta segunda possibilidade mas a notificação para estar presente e preferir não é feita para o dia e hora da apresentação de propostas, mas para o acto da entrega dos bens ao proponente, o que é distinto do acto de aceitação das propostas.
IX - O momento de entrega dos bens ao proponente só pode acontecer em acto seguido ao leilão, se for paga imediatamente a totalidade do preço e as obrigações fiscais relativas à transmissão.
X - Não tendo o preferente sido notificado do dia e hora da entrega do bem ao arrematante em processo de execução fiscal, pelo preço arrematado, nem havendo sido assinalado na notificação que lhe foi dirigida que a sua ausência no momento da abertura de propostas ou no momento da entrega ao proponente determinaria a extinção do seu direito de preferência no processo executivo, mostra-se a mesma irregular, não se podendo concluir pelo exercício intempestivo do direito a preferir.
Decisão Texto Integral:
I. Relatório

AA
veio propor a presente acção declarativa de condenação contra
BB, CC, DD e EMP01..., Lda,
pedindo que:

- se declare que o autor é comproprietário, na quota-parte de 1/2 (metade) indivisa, das fracções autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial;
- seja reconhecido ao autor, enquanto comproprietário, o direito de preferência na venda ou alienação da quota-parte, correspondente a metade indivisa, das referidas fracções autónomas, e pelos preços por que as mesmas foram vendidas na execução fiscal a que se alude no artigo 16º da petição inicial, no âmbito das vendas e pelos preços referidos nos artigos 18º, 23º e 24º do mesmo articulado, ao abrigo das disposições legais pertinentes, designadamente, do disposto nos art.ºs 1409º, nº 1, e 1410º, nº 1, do CC, substituindo-se os adquirentes de tais metades indivisas nas aludidas fracções (réus) pelo autor, enquanto preferente na titularidade do direito de propriedade sobre tais metades, e consequentemente, condenar-se os réus a abrir mão dessas quotas-partes a favor do autor, a quem deverão entregar os bens e direitos que titulam, livres e desonerados, mediante o recebimento das importâncias mencionadas no artigo 33º da petição inicial, cabendo aos 1º, 2º, 3º e 4º réus, respectivamente, os montantes totais indicados aob as als. a) a d) desse mesmo artigo 33º, já depositadas por via dos depósitos autónomos juntos como documentos nºs ...1 a ...4 da petição inicial; e
- seja ordenado o cancelamento de quaisquer registos lavrados a favor dos réus, consequentemente à venda a que se faz referência nos artigos 18º, 23º e 24º da petição inicial, e feitos com base nela, ou de outros lavrados consequentemente a actos de oneração ou de disposição subsequentes àquele.
Alegou, em síntese, ser co-proprietário das aludidas fracções autónomas, na proporção de metade; as outras metades indivisas dos ditos imóveis foram penhoradas e depois vendidas aos 1º a 4ºs réus, no âmbito de uma execução fiscal, sem que lhe tenha sido regularmente facultado o exercício da preferência legalmente estabelecida a seu favor.
Procedeu ao depósito do preço de cada uma das alienações, nos termos do nº 1 do art.º 1410º do CC.
Regularmente citado, apresentou o réu BB requerimento no qual confessou o pedido deduzido.
Vieram ainda os réus DD e EMP01..., Lda apresentar contestação, invocando expressamente as excepções de incompetência absoluta do tribunal e de ilegitimidade passiva. Mais impugnaram parte da factualidade invocada pelo autor, acrescentando que este teve conhecimento prévio de todos os elementos essenciais das vendas para poder exercer atempadamente os seus direitos e nada fez, só manifestando a intenção de preferir volvido quase um mês (cfr. designadamente, os artigos 30º a 32º, do respectivo articulado).
No exercício do contraditório, o autor pugnou pela improcedência das aludidas excepções dilatórias e para, o caso de assim não se entender, requereu a admissão da intervenção principal provocada passiva do Serviço de Finanças ... e/ou a remessa do presente processo para o Tribunal Administrativo e Fiscal de ....  
Remetidos os autos ao Juízo Central Cível de ... por ser o competente em razão do valor, foi admitida a intervenção principal do Estado Português como associado dos réus.
Designada audiência prévia, foi proferido despacho a julgar procedente a excepção de incompetência material e, posteriormente, determinada a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., tribunal este que também se declarou incompetente em razão da matéria e suscitou a intervenção do Tribunal de Conflitos.
Na sequência, foi julgada a jurisdição comum materialmente competente para tramitar os autos e conhecer o pedido.
Remetidos novamente os autos ao Juízo Central Cível de ..., foi dispensada a realização de nova audiência prévia, tendo sido proferido despacho a considerar válida a instância, definido o objecto do processo e procedido à selecção dos temas de prova.
Realizada a audiência final, foi prolatada sentença que, no final, julgou procedente o pedido de declaração do direito de compropriedade do autor e improcedentes os demais pedidos formulados pelo autor.
Inconformado com tal sentença, dela apelou o autor, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
«1º- A sentença produzida pelo Tribunal “a quo” não traduz, data venia, um correto e assertório enquadramento dos factos, nem uma correta valoração da prova documental e da testemunhal produzida, tão pouco um criterioso e assertivo concatenar de tal prova com as regras da experiência e da lógica e as máximas da normalidade, e nem um acertado enquadramento técnico-jurídico das questões submetidas à apreciação jurisdicional.
2º- Uma tal decisão procede, no entendimento do Apelante, de erro de julgamento da matéria de facto e de desacertada aplicação da lei e do direito.
3º- O Réu BB apresentou requerimento nos autos no qual confessou o pedido deduzido, e o Réu CC não contestou a ação, pelo que ao menos quanto a tais Réus e às metades indivisas das frações por eles adquiridas (às quais se alude nas alíneas d) e e) dos “Factos Provados”) deveria a sentença da Primeira Instância ter julgada procedente a ação.
4º- Por meio deste recurso impugna-se, também, a decisão proferida sobre a matéria de facto, concretamente no que tange à resposta dada à matéria de facto alegada no ponto ou artigo “25º” da petição inicial, que obteve a resposta de “Não Provado”, defendendo-se que deveria ter merecido, antes, a de “Provado”. Na verdade,
5º- O Tribunal “a quo” reverte para a sentença em escrutínio o entendimento de que o Autor, porque notificado da data de 18/01/2019 para a realização da venda em execução fiscal, teria, obrigatoriamente, de acompanhar digital e eletronicamente o leilão, para que, aceite alguma proposta, pudesse ele exercer o seu direito de preferência no momento da adjudicação. Dizer, todavia, que,
6º- Um tal entendimento em nada conflitua com o que alegado foi naquele artigo “25º” da petição inicial (no qual se alude, antes, à apresentação e validação das propostas de compra quanto às frações de que o Apelante é comproprietário, respetivos proponentes e concretos valores). Ou seja,
7º- Trata-se de matérias e questões distintas, uma contendendo com o conhecimento que ao Autor foi dado da data e hora para a realização da venda, por leilão, e a outra que respeita às concretas propostas que nela foram apresentadas, identificação dos concretos proponentes, e valores ou preços oferecidos.
8º- Importa a este respeito ter presente o que provado foi dado sob a alínea “n)” dos “Factos provados”.
9º- Dos documentos aí referidos resulta claramente que somente por via do e-mail de 14 de fevereiro de 2019 é que o Serviço de Finanças ... deu conhecimento ao Autor/Apelante da existência de propostas na venda, dos concretos proponentes e dos preços oferecidos.
10º- Tais documentos, que, de resto, fazem parte do elenco dos “Factos Provados”, impunham que se desse como provada a matéria de facto alegado no referido artigo “25º” da petição inicial. Por outro lado,
11º- Acaso uma tal factualidade tivessem infirmado, seria sobre os Réus/contestantes que recairia o ónus da prova de que o Autor teve conhecimento dos elementos essenciais da venda em momento anterior ao por ele alegado, ou seja, o dia 14 de fevereiro de 2019.
12º- Na douta sentença em análise coligem-se vários preceitos legais, dos quais o M.mo Juíz parte depois para a asserção de que “Resulta das disposições supra citadas que o titular do direito de preferência necessita de acompanhar digital e eletronicamente o leilão para que, aceite alguma proposta, possa exercer o seu direito de preferência no momento da adjudicação – o dia e hora designados para o termo do leilão”;
13º- Prosseguindo depois que “… em face do regime exposto aplicável e da notificação recebida pelo Autor, consideramos que a exigência prevista no artigo 249º, nº 7, do CPPT, foi cumprida, não tendo o Autor exercido tempestivamente o invocado direito de preferência”.
14º- O entendimento vertido na douta sentença objeto deste recurso e que perpassa das passagens acabadas de transcrever não pode deixar de merecer a total discordância do Apelante. Efetivamente,
15º- Em momento algum os Réus/contestantes alegaram a exceção da caducidade, pela qual o Tribunal “a quo” acabou por concluir, considerando que o Autor/Apelante não exerceu tempestivamente o direito de preferência que invocou e decidindo em conformidade;
16º- Cumprindo relembrar que uma tal exceção não é de conhecimento oficioso;
17º- Pelo que a sentença objeto deste recurso é nula, por excesso de pronúncia (cfr. artigo 615º, nº 1, alínea d), do C. P. Civil). Depois,
18º- Relembrar, quanto ao acompanhamento digital e eletrónico do leilão, que o recorrente apresenta a (proveta) idade de 80 anos (pois que nasceu em ../../1943), nem sequer sabendo manejar um computador, tablet ou qualquer outro dispositivo eletrónico com acesso à Internet (sem que essa infoexclusão o possa prejudicar), pelo que impossível lhe seria tomar conhecimento da apresentação de propostas pela via da falada plataforma eletrónica.
19º- Atentar em que a venda das metades indivisas das frações de que o Apelante é comproprietário foi repetida por mais do que uma vez, mormente por inexistência de propostas nas vendas anteriores, pelo que o Apelante não podia saber, nem tinha qualquer garantia, de que na venda agendada para aquele dia 18/01/2019 viessem a ser apresentadas propostas, nem tão pouco que, havendo-as, as mesmas satisfariam os requisitos postos para a alienação (designadamente no que concerne ao preço).
20º- O Autor/Apelante também não tinha qualquer garantia ou certeza de que, existindo propostas, os proponentes viessem a depositar a totalidade do preço e/ou a cumprir com as obrigações fiscais inerentes ao ato de transmissão, em ordem a que a venda fosse dada como válida ou consolidada. Por outro lado,
21º- A adjudicação, contrariamente ao entendido pelo M.mo Juíz do Tribunal “a quo”, não ocorre no momento da realização da venda, até porque ao proponente é concedido um prazo de 15 dias para pagamento do preço, tendo ainda que demonstrar o cumprimento das obrigações fiscais, somente após tal se concretizando a adjudicação e se emitindo o correspondente auto de adjudicação.
22º- Note-se que no caso sub judice tendo a venda sido realizada no dia 18 de janeiro de 2019 os autos de adjudicação apenas foram passados, aos proponentes, em 29 de janeiro de 2019, 1 de fevereiro de 2019 e 13 de fevereiro de 2019, ou seja, respetivamente, 11 dias, 14 dias e 25 dias após;
23º- Cumprindo realçar que na última das referidas datas (autos de adjudicação de 13/02/2019) tal ocorreu já após ser o Serviço de Finanças que promoveu a venda conhecedor da intenção do Apelante em exercer o direito de preferência. Para além disso,
24º- Do preceituado pelo artigo 249º, nº 7, do CPPT resulta que o que poderia fazer precludir o direito de preferência é a notificação e não presença no dia e hora “da entrega dos bens ao proponente”, o que não é confundível, nem se pode confundir, com o dia e hora da abertura das propostas.
25º- Aliás, tal dispositivo postula a existência de um proponente (o que não se sabe se será uma realidade antes da data/hora da venda) e a entrega dos bens ao proponente (entrega essa que não se verifica pela simples existência de uma proposta, porquanto tal entrega implica o pagamento, prévio, e além do mais, do preço proposto).
26º- Não teria, de facto, qualquer sentido interpretação diversa, porquanto somente após a abertura das propostas, e conhecedores do preço oferecido, é que os titulares do direito (legal) de preferência se encontram em condições de poderem decidir se querem, ou não, exercê-lo.
27º- E não é, obviamente, o facto de não estarem presentes no ato de abertura das propostas que inibe o titular de tal direito do seu exercício.
28º- De resto, também não faz qualquer sentido falar-se no exercício do direito de preferência em momento prévio ao do depósito do preço por parte do proponente, pois que só com tal depósito, e o pagamento dos impostos, pressupondo uma adjudicação, é que o titular do direito de preferência o poderá exercer, depositando o preço oferecido, os impostos pagos e os encargos suportados pelo proponente, ao qual o preferente se substituirá na aquisição do bem ou direito sobre o bem indiviso, e com eficácia ex tunc.
29º- Importa sublinhar que ao Autor/Apelante nunca foi sequer enviada qualquer comunicação acerca da data (dia e hora) para a entrega dos bens ao proponente, como previsto no citado artigo 249º, nº 7, do CPPT.
30º- Importa, ainda, salientar que em todos os dispositivos enunciados na douta sentença do Tribunal de Primeira Instância, assim como na notificação informativa da data da realização da venda, se enuncia, no que respeita à presença do titular do direito de preferência no ato da venda, uma mera faculdade (e não uma obrigação ou mesmo uma contingência), o que ressuma do verbo e tempo verbal aí expressos. Finalmente,
31º- Em ordem a formar a sua vontade de preferir ou não, e a decidir em conformidade, o titular do direito de preferência tem de ser conhecedor de todos os elementos essenciais da venda, designadamente o preço, as condições de pagamento e outras cláusulas do negócio, e a identificação dos concretos proponentes (sem o que não se pode considerar estar o titular do direito de preferência habilitado a tomar essa decisão);
32º- O que decorre, designadamente, do disposto no artigo 416º do Código Civil.
33º- Também o prazo dos seis meses, a que se alude no artigo 1.410º do citado diploma legal (CC), se começa a contar apenas a partir do momento em que existe o conhecimento de todos os, referidos, elementos essenciais da venda;
34º- Como tal o entendendo, de forma pacífica, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
35º- Dúvidas não podem subsistir de que à data da introdução em juízo da ação se encontrava o Apelante dentro desse prazo de seis meses;
36º- Tendo, ainda, a seu favor, quanto ao conhecimento de uma tal venda, e, bem assim, dos elementos essenciais da alienação, a presunção decorrente do disposto no artigo 343º, nº 2, do Código Civil.
37º- Não o entendendo conforme explanado nestas conclusões, a douta sentença objeto deste recurso violou, além do mais, e designadamente por erro de previsão/interpretação, ou desadequada aplicação do direito, o disposto nos artigos 303º, 333º, 343º, nº 2, 416º, 1.409º e 1.410º do Código Civil, artigo 615º, nº 1, alínea d), do C. P. Civil, e artigos 249º, nº 7, e 253º, alínea a), do Código de Procedimento e Processo Tributário.».
Contra-alegou o Ministério Público, pugnando pela improcedência total do recurso e pela manutenção integral do julgado.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente e a sua precedência lógica, são as seguintes:

a) da nulidade da sentença por excesso de pronúncia [art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC];
b) do erro no julgamento da decisão de facto [quanto à factualidade inserta no artigo 25º, da petição inicial]; e
c) do erro de julgamento quanto à decisão de direito [nomeadamente, por incumprimento do dever de comunicação previsto no art.º 249º, nº 7, do CPPT].
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentação de facto

Em primeira instância, foram considerados provados os seguintes factos:
“a) Encontram-se descritas na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...04, ...2 fracções autónomas, designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., todas elas compostas por lugares de garagem, situadas ao nível da cave menos um e integrantes do prédio urbano, composto de cave menos um e cave menos dois e, a partir daí, com dois blocos, sito em ..., freguesia e concelho ..., conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 22 a 36 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) A aquisição de metade (1/2) do direito de propriedade das fracções designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ... e ... encontra-se inscrita a favor de DD, por adjudicação em processo de execução fiscal, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 22 a 36 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) A aquisição de metade (1/2) do direito de propriedade das fracções designadas pelas letras ..., ..., ... e ... encontra-se inscrita a favor de EMP01..., Lda., por adjudicação em processo de execução fiscal, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 22 a 36 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
d) A aquisição de metade (1/2) do direito de propriedade da fracção designada pela letra ... encontra-se inscrita a favor de BB, por adjudicação em processo de execução fiscal, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 22 a 36 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
e) A aquisição de metade (1/2) do direito de propriedade da fracção designada pela letra ... encontra-se inscrita a favor de CC, por compra em processo de execução, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 22 a 36 e do auto de adjudicação constante de fl. 37 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
f) A aquisição da outra metade das fracções supra referidas encontra-se inscrita a favor de AA, na referida Conservatória, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 22 a 36 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
g) A metade indivisa que pertencia a EE nas identificadas fracções foi-lhe penhorada, por dívidas fiscais, pela Autoridade Tributária;
h) Tal penhora foi lavrada nos autos da execução fiscal que, sob o processo nº ...00 e Apensos, correu termos pelo Serviço de Finanças ...;
i) No âmbito dessa execução fiscal foi determinada a venda da quota-parte que àquele Executado pertencia mediante a modalidade de leilão electrónico e, posteriormente, face à inexistência de proponentes, por propostas em carta fechada;
j) A tais vendas foram atribuídos os nºs ...07 (quanto à fracção ...), ...09 (quanto à fracção ...), ...13 (quanto à fracção ...), ...15 (quanto à fracção ...), ...17 (quanto à fracção ...), ...18 (quanto à fracção ...), ...10 (quanto à fracção ...), ...11 (quanto à fracção ...), ...14 (quanto à fracção ...), ...16 (quanto à fracção ...), ...12 (quanto à fracção ...) e ...08 (quanto à fracção ...);
k) Por inexistência de propostas em anteriores vendas, foi determinada nova venda para o dia 18 de Janeiro de 2019;
l) Data na qual foram apresentadas as seguintes propostas, dadas como as vencedoras: (i) pelo primeiro Réu, BB, no que se reporta à fracção identificada pela letra ..., no valor de € 334,00; (ii) pelo segundo Réu, CC, quanto à fracção ..., no valor de € 252,00; (iii) pelo terceiro Réu, DD, quanto às fracções designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ... e ..., nos valores de, respectivamente, € 425,00, € 260,00, € 275,00, € 425,00, € 555,00 e € 585,00, totalizando € 2.525,00; e (iv) pela quarta Ré, EMP01..., Lda., quanto às fracções identificadas pelas letras ..., ..., ... e ..., nos valores de, respectivamente, € 281,00, € 222,00, € 331,00 e € 465,00, somando € 1.299,00;
m) O Autor recebeu, em 24.12.2018, a carta, registada com aviso de recepção, cuja cópia se encontra aos autos a fls. 180 v e 181 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
n) Trocou ainda o Autor, através do seu advogado e por via electrónica, a correspondência que se encontra reproduzida nos autos de fls. 42 v a 44 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.”.
Como factos não provados foram elencados, pelo tribunal a quo, os alegados sob os artigos “3º” a “9º” e “25º” da petição inicial.
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3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia

O recorrente veio arguir a nulidade da sentença recorrida com fundamento na al. d) do nº 1 do art.º 615º do NCPC, defendendo que o tribunal a quo conheceu da excepção de caducidade, apesar desta não ter sido invocada pelos réus e de não ser de conhecimento oficioso [conclusões 14ª a 17ª].
O tribunal a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, nº 1 e 617º, nº 1 do NCPC.
A omissão de despacho do tribunal a quo sobre a nulidade arguida no recurso não determina necessariamente a remessa dos autos à 1ª instância para tal efeito (cfr. nº 5, do referido art.º 617º), cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cfr., neste sentido Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo Civil, p. 149.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, afigura-se-nos que não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
Vejamos, então.

Estabelece o nº 1 do aludido art.º 615º de forma taxativa as causas de nulidade da sentença:

“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

Começamos por precisar que as causas de nulidade taxativamente enumeradas neste preceito não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, sendo coisas distintas, mas muitas vezes confundidas pelas partes, a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação em desconformidade com a lei.
Não deve, por isso, confundir-se o erro de julgamento com os vícios que determinam as nulidades em causa.
De facto, as decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respectiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respectiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido art.º 615º.
No caso, como vimos, está em causa a nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art.º 615º do NCPC, a qual se prende com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) há-de assim resultar da violação do dever prescrito no nº 2 do referido art.º 608º do NCPC do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não se pode ocupar senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A situação ora em referência – excesso de pronúncia - verifica-se, pois, quando o tribunal conhece de questões que não foram invocadas pelas partes e de que não podia conhecer oficiosamente.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código Processo Civil Anotado, volume II, p. 737: “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.º 608-2) é nula a sentença que o faça.”.
Naturalmente, que tal conhecimento há-de importar consequências para a decisão da causa, ou seja, desse conhecimento hão-de ser extraídos efeitos jurídicos. Caso assim não suceda, caso o juiz conheça de uma questão que é desnecessária para a boa decisão da causa, no sentido em que o seu conhecimento se revela inconsequente para a decisão final, o juiz terá praticado um acto inútil (art.º 130º, do NCPC), mas não ocorre nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Posto isto, no caso presente, como vimos, o apelante entende que o tribunal recorrido ao considerar que o apelante exerceu intempestivamente o direito a preferir incorreu em excesso de pronúncia.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Importa começar por referir que não se nos suscitam dúvidas que a caducidade do exercício do direito a preferir, constituindo uma excepção de direito material com efeitos extintivos do predito direito, porque referente a matéria não excluída da disponibilidade das partes, carecia de ser arguida nos articulados da acção para poder ser conhecida (cfr. art.º 333º, do CC) – assim, entre outros, os acs. da RP de 27.11.2021, relatado por Fernanda Almeida e de 21.06.2022, relatado por João Ramos Lopes e acessíveis in www.dgsi.pt.
Na verdade, em relação aos factos que constituem excepções peremptórias, o réu encontra-se na mesma posição do autor, competindo-lhe o ónus da sua alegação e, ulteriormente, da sua prova, não podendo as mesmas ser atendidas, pelo Tribunal, quando, pelo respectivo interessado, não haja sido formulado pedido expresso ou, pelo menos, implícito, nesse sentido. Quer isto dizer que vigora, nesta matéria, o princípio do pedido, com assento nos art.ºs 3º, nº 1 e 609º, nº 1, do NCPC, que condiciona toda a actividade jurisdicional, não podendo o tribunal estender a sua actividade decisória, para além dele (ne eat iudex ultra petita partium), pois que o processo só se inicia, mediante o impulso das partes que, através do pedido e da defesa, circunscrevem o thema decidendum, e não, por iniciativa do tribunal, o qual não tem que saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa de pedir (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 371 a 373.).
Voltando novamente ao caso em apreço, e muito embora os réus contestantes não tenham (no respectivo articulado) afirmado expressamente a invocação da caducidade, não podemos concordar com o apelante quando afirma que em momento algum invocaram a dita excepção.
Na verdade, analisada a posição assumida pelos réus, rapidamente se conclui que para além de impugnarem parcialmente a factualidade alegada pelo autor, aqueles acabam por fazer referência ao exercício intempestivo do direito a preferir, mormente nos artigos 30º a 32º, da contestação.
Consideramos, pois, que, ainda que não tenham formulado expressamente o pedido de declaração de caducidade do direito a preferir, a invocação de que o autor teve conhecimento prévio e atempado das condições da venda e nada fez, traduz-se na arguição implícita da dita excepção de caducidade do direito a preferir.
Veja-se que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal (cfr. acs. de 27.04.2005, processo nº 05B810, e de 6.12.2012, processo nº 469/11, ambos disponíveis in www.dgsi.pt), nada obsta a que a defesa por excepção possa ser deduzida de forma tácita ou implícita, desde que a respectiva parte alegue os factos integradores do direito que invoca, evidenciando inequivocamente que dele pretende prevalecer-se.
No mesmo sentido, podemos ver ainda o ac. da RC de 5.05.2020, relatado por Fernando Monteiro e também disponível in www.dgsi.pt.
E, assim sendo, nada impedia, antes obrigava o tribunal recorrido a apreciar e decidir a excepção em causa. 
Ante todo o exposto, necessário é concluir ser manifesto que a sentença recorrida não padece de excesso de pronúncia.
Pelo que improcede neste segmento o recurso interposto.
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3.2.2. Da impugnação da decisão de facto

Conforme decorre do que deixamos acima exarado, o recorrente veio ainda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, propugnando que deveria ter sido dado como provado o teor do artigo 25º, da petição inicial que reza o seguinte:
“No que concerne à apresentação e validação das propostas referidas no antecedente artigo 24º, quanto às frações aí identificadas, respetivos proponentes e concretos valores, o Autor apenas teve conhecimento pela informação que, atinentemente, lhe foi prestada por via do e-mail resposta datado de 14 de fevereiro de 2019 – Doc. nº ...8.”.
Apreciando.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada no código de processo civil actualmente vigente, nomeadamente nos seus art.ºs 640º e 662º.
Nos termos do disposto no art.º 662º, nº 1, do NCPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Todavia, é jurisprudência pacífica que a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida não tiver qualquer relevância jurídica, isto é, se for inócua para a decisão da causa, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei (art.º 130º do NCPC).
Neste sentido, afirma-se o seguinte no ac. da RC, de 16.02.2017 (processo nº 52/12.0TBMBR.C1, disponível em www.dgsi.pt): “Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.”.
No mesmo sentido, afirma-se no ac. desta RG, de 11.11.2021 (processo nº 671/20.1T8BGC.G1 e acessível in www.dgsi.pt) que «[n]ão se deve proceder à reapreciação da matéria de facto quando a alteração nos termos pretendidos pelos Recorrentes, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa, não tenha qualquer relevância jurídica, sob pena de, assim não sendo, se estarem a praticar atos inúteis, que a lei não permite.».
Ainda no mesmo sentido se pronunciou o ac. da RL de 26.09.2019 (processo nº 144/15.4T8MTJ.L1-2 e também disponível in www.dgsi.pt).
Também o STJ sufraga esta jurisprudência, afirmando o seguinte no seu ac. de 14.07.2021 (processo nº 65/18.9T8EPS.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt): «Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação.».
É, precisamente, o que ocorre no caso vertente, pois, estando em causa a tempestividade do exercício do direito de preferência, não cabia ao autor demonstrar que apenas tomou conhecimento das propostas apresentadas no âmbito da venda na execução fiscal no dia 14.02.2019, mas aos réus que a comunicação da venda ao preferente foi regular e atempadamente efectuada.
Aliás, o próprio recorrente defende e reconhece que era sobre os réus que recaía o ónus da prova dos factos relativos à comunicação para preferir e ao exercício extemporâneo do direito de preferência (cfr., a este propósito, os acs. desta RG de 31.10.2018, relatado por Pedro Damião e Cunha e de 2.05.2019, relatado por Margarida de Almeida Fernandes, ambos consultáveis in www.dgsi.pt).
Como bem se salienta no aresto de 31.10.2018, já citado, “[m]esmo que o autor (na acção de preferência) tenha alegado, na petição inicial, o conhecimento daqueles elementos essenciais, em certa data, e não o tenha logrado provar, esse facto não poderá ter influência na decisão, uma vez que o ónus da prova da caducidade da acção recai sobre o Réu.”.
Neste conspecto, nenhuma utilidade se vê na alteração da matéria de facto propugnada pelo recorrente.
Não obstante o que deixamos dito, o tribunal de recurso não só pode, como deve sanar oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, os vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no art.º 662º, nº 2, al. c) do NCPC.
Com efeito, na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do art.º 662º do NCPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão, levando, para tanto, em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no art.º 607º, nº 4 do NCPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi art.º 663º do NCPC (norma que define as regras de elaboração do acórdão e que para o disposto nos art.ºs 607º a 612º do NCPC remete, na parte aplicável).
Na verdade, no caso e não obstante a redacção dada aos pontos k), m) e n) do elenco dos factos provados não tenha sido impugnada, ressuma dos elementos coligidos nos autos – mormente da prova documental - que aquela redacção não traduz fiel e inteiramente a factualidade apurada e com interesse para a boa decisão da causa.
Com efeito, a discriminação dos factos provados deve ser feita de forma clara, inequívoca e completa, por forma a que seja possível uma correcta aplicação dos preceitos legais que se não compadece com uma matéria de facto insuficientemente completa e inteligível.
Entendemos, nomeadamente, que não satisfaz a aludida discriminação dos factos, a mera remessa para documentos, dados como reproduzidos e provados o que deles consta, se nada se explicitar quanto ao seu conteúdo, pois os documentos não são mais que um meio de prova destinado a demonstrar a realidade de certos factos, pelo que na matéria de facto provada só há que consignar os factos eventualmente provados por eles (cfr. ac. desta Relação de Guimarães, de 2.07.2013, relatado por António Santos, acessível in www.dgsi.pt).
Deste modo e no que respeita ao ponto k), importa completar a factualidade ali descrita, acrescentando que a venda realizada na execução fiscal ocorreu através de leilão electrónico.
Por outro lado, e no que concerne os outros pontos de facto, importa igualmente completá-los com os factos provados através dos documentos ali referenciados.
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Destarte, decide-se alterar oficiosamente a redacção dos aludidos pontos k), m) e n) do elenco dos factos provados, passando a constar dos mesmos o seguinte: 

“k) Por inexistência de propostas em anteriores vendas, foi determinada nova venda, através de leilão electrónico para o dia 18 de Janeiro de 2019”.
“m) O autor recebeu, em 24.12.2018, a carta, registada com aviso de recepção, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 180v a 181, com o seguinte teor:
«Fica por este meio notificado, na qualidade de titular do direito de preferência, que na sequência da inexistência de propostas no dia e hora designados para abertura de propostas por carta fechada, foi designado o dia 18 de Janeiro de 2019 entre as 10:00 e as 10:22 H, neste Serviço de Finanças para se proceder à venda executiva do bem que foi penhorado no processo executivo supra referido
Fica ainda notificado, caso não tenha sido, nos termos e para os efeitos, no art.º 812º do Código Processo Civil(CPC) e de acordo com a alteração à redacção do art.º 248º do CPPT, feita pela Lei 64-B/2011, de 31 de Dezembro, foi determinado que a venda do bem penhorado seja realizada na modalidade de leilão electrónico, conforme estipulado no nº 4, do normativo supra mencionado, adjudicando-se o bem à proposta de valor mais elevado.
A abertura de propostas far-se-à no dia e hora acima designados. A venda pode estar sujeito ao pagamento dos impostos que se mostrem devidos, nomeadamente o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, o Imposto de Selo, o Imposto sobre o Valor Acrescentado ou outros.
Pelo exposto, poderá, se assim quiser, exercer o direito supra mencionado no acto de adjudicação, se alguma proposta for aceite. Caso opte pelo exercício desse direito, deverá fazer-se acompanhar dos elementos probatórios da vigência do mesmo (documentos autênticos).
(…)».”.
“n) Enviou o autor, através do seu advogado, no dia 12.02.2019, ao Serviço de Finanças uma mensagem electrónica a solicitar informação sobre a existência de propostas na data designada para a venda dos bens penhorados, tendo-lhe sido dada resposta, pela mesma via, a 14.02.2019, a identificar as propostas aceites e os respectivos proponentes, bem como a informar que estes já haviam feito o depósito do preço e dos impostos associados à aquisição e que tinham sido emitidos os correspondentes autos de adjudicação.”.
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3.2.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Em causa, como se sabe, está uma acção de preferência, numa alienação efectuada no âmbito de uma execução fiscal, importando aferir se foi devidamente assegurado ao autor, ora recorrente, o direito a proferir, nomeadamente, através do regime geral previsto no art.º 249º, nº 7, do CPPT, em que se estabelece que os titulares do direito de preferência na alienação dos bens são notificados do dia e hora da entrega dos bens ao proponente, para poderem exercer o seu direito no acto de adjudicação.
Demonstrou-se que o autor é proprietário de metade indivisa de várias fracções autónomas, tendo a outra metade indivisa dos mesmos imóveis sido penhorada, por dívidas fiscais, pela Autoridade Tributária, vindo a ser efectuada venda, por leilão eletrónico, no dia 18.01.2019.
Mais se provou que o autor foi notificado por carta por carta registada com aviso de recepção, na qualidade de titular de direito de preferência, da data do leilão, mas aparentemente não esteve presente, tendo sido apresentadas propostas de aquisição pelos ora 1º a 4ºs réus. Pago o preço e os impostos devidos os bens foram ser adjudicados aos referidos proponentes.
Intentada a presente acção de preferência, o tribunal recorrido julgou a acção improcedente por ter considerado que o ora apelante não exerceu tempestivamente o seu direito.
Todavia, para que assim se possa concluir seria necessário que a notificação para preferir tivesse cumprido as formalidades exigidas por lei.
Ora, o apelante invoca precisamente não ter sido efectuada correctamente a notificação para preferir, pois, só a 14.02.2019 teve conhecimento do valor da venda e da identidade do adquirente.
É, pois, a notificação para preferir e a sua regularidade que está em causa.
Como bem se alerta no ac. desta Relação de Guimarães de 28.03.2019, relatado por Alcides Rodrigues (aqui adjunto) e acessível in www.dgsi.pt:
A venda executiva não é incompatível, nem afasta o exercício dos direitos de preferência de terceiros na aquisição dos bens penhorados.”. Aliás, “d] ecorre do art. 422º do Código Civil (abreviadamente designado por CC) que, no processo executivo, são reconhecidos os direitos legais de preferência (…)”.
E, assim sendo, na venda em processo executivo, judicial ou administrativo, a lei refere qual o conteúdo que deve constar do acto de notificação a remeter ao preferente.
No âmbito do processo executivo fiscal, a notificação ao preferente encontra-se regulada, como vimos, no art.º 249º, nº 7 do CPPT, o qual alude à indicação e hora da entrega dos bens ao proponente, para que aí o preferente possa exercer o seu direito.
No caso, foi designado leilão eletrónico.
A modalidade de venda do leilão eletrónico encontra-se regulado na Portaria nº 219/2011, de 1.06, sendo designado como a “modalidade de venda que utiliza meios informáticos para a licitação, através da Internet”, conforme exposto no nº 2 da portaria mencionada.
A regulamentação da divulgação das vendas no processo de execução fiscal através da Internet encontra-se, por sua vez, regulada na Portaria nº 352/2002, de 3.04, conforme exposto no art.º 249º, nº 8, do CPPT.
Na publicitação deve constar os elementos enunciados no art.º 249º, nº 5, do CPPT, nomeadamente a designação do órgão de execução por onde corre o processo, nome ou firma do executado, identificação sumária dos bens, valor a venda, data, hora e limites para a recepção das propostas.
O leilão eletrónico decorre durante 15 dias, e compete ao órgão de execução fiscal fixar o dia e as horas de abertura e do encerramento, podendo as propostas serem apresentadas até ao dia e hora designados.
Importa referir que só deverão ser aceites aquelas de valor superior ao valor base de venda e ao de qualquer das propostas anteriormente apresentadas.
No dia e hora designados para o encerramento do leilão, o órgão de execução fiscal decide sobre a adjudicação dos bens e disponibiliza os resultados no portal da Autoridade Tributária a todos os proponentes.
Com efeito, nos termos do art.º 6º, nº 1, da Portaria nº 219/2011, de 1.06 “no dia e hora designados para o termo do leilão, o órgão de execução fiscal decide sobre a adjudicação dos bens”, podendo assistir ao acto de adjudicação o executado, os proponentes, os credores citados nos termos do artigo 239º do CPPT e os titulares dos direitos de preferência ou remição (nº 2, do mesmo preceito).
Estabelece ainda o nº 3, que “para o exercício de direitos ou deveres, o acto de adjudicação previsto no nº 1 é equiparado ao acto de adjudicação dos bens na venda por proposta em carta fechada, a que se refere no artigo 253º do CPPT”.
Importa, no entanto sublinhar que na jurisprudência fiscal é entendimento assente que “No art.º 6.º da Portaria n.º 219/2011, de 01 a palavra adjudicação é empregue com o sentido de acto onde se apura o resultado do leilão, como referido no art.º 7.º da mesma portaria e não no sentido utilizado pelo art.º 827.º do Código de Processo Civil dado que se refere exclusivamente ao acto de apuramento do resultado do leilão e não substancialmente ao acto de adjudicação dos bens vendidos que ocorre depois de integralmente pago o preço, satisfeitas as obrigações fiscais e exercido o direito de preferência.” (cfr. ac. do STA, de 24.07.2019, processo nº 0599/18.5BELLE e acessível in www.dgsi.pt).
Assim, findo o prazo para apresentação de propostas, ocorre a decisão de adjudicação dos bens que será efectuada à melhor proposta apresentada, sendo que deve o adquirente depositar a totalidade do preço no prazo de 15 dias. Caso o bem seja de valor superior a 500 vezes a unidade de conta, pode o adquirente requerer junto do órgão de execução fiscal a prorrogação do prazo até oito meses para depósito da restante parte do preço sendo que deverá efetuar pelo menos um terço do valor no prazo de cinco dias a contar da decisão da adjudicação, conforme previsto no art.º 256º, al. f), do CPPT.
Após a realização do pagamento integral do preço e o cumprimento das obrigações tributárias, o órgão de execução fiscal lavra o respectivo auto de adjudicação e só nesse momento é que ocorre a transmissão do bem.
Cabe ao adquirente do bem proceder ao pagamento das obrigações fiscais inerentes ao bem sendo que no caso de bem imóvel deverá efectuar o pagamento de IMT e de Imposto de Selo e no caso de ser um bem móvel, deverá proceder ao pagamento do IVA correspondente.
Perante este quadro legal, o tribunal recorrido entendeu que o titular do direito de preferência deve ser notificado da data designada para a abertura de propostas, devendo “acompanhar digital e electronicamente o leilão para que, aceite alguma proposta, possa exercer o seu direito de preferência no momento da adjudicação – o dia e hora designados para o termo do leilão” e que “à semelhança do regime que vigora em processo civil (…) o direito de preferência exerce-se no momentos antes da adjudicação e no acto desta.”.
Contudo, e salvo o devido respeito, não se nos afigura ser este o melhor entendimento.
Veja-se que no âmbito da execução fiscal, o titular do direito de preferência deve ser notificado para a exercer o seu direito a preferir no dia e hora de entrega dos bens ao proponente, o que não se confunde nem com o acto de abertura de propostas, nem sequer com o acto de adjudicação.
Na verdade, e como se diz no ac. de 27.11.2021, já acima citado e prolatado num caso com contornos idênticos ao presente:
«Tal como acontece para a notificação noutros casos de preferência legal ou convencional, nos termos do art. 416.º, n.º 1, CPC (o n.º 2 estabelece o prazo de 8 dias para o exercício do direito de preempção, sob pena de caducidade), a função da denunctiatio é a de dar a conhecer ao preferente que o sujeito passivo pretende celebrar o contrato objeto da prelação e comunicar-lhe as condições em que pode exercer o seu direito, indicando, designadamente, qual o preço da venda, pois só conhecendo qual o valor pelo qual o terceiro adquirente está disposto a adquirir poderá o preferente ponderar se o negócio lhe interessa ou não.
(…)
No caso da venda em ação executiva cível, o art. 819.º CPC estabelece que a notificação para preferir deve indicar o dia e hora da abertura das propostas, mais exigindo que à notificação se apliquem as regras da citação, razão por que Lebre de Freitas et alt. (CPC Anotado, vol. 3.º, 3.ª Ed., p. 780) explicam: “Esta notificação, sendo pessoal, há de ser feita segundo as regras da citação (art. 250.), sendo excluída a notificação edital (n.º 3). Cabe fazê-la ao agente da execução (art. 719-1), que, nos termos do art. 227-2, devidamente adaptado, dá conhecimento ao preferente de que pode exercer o seu direito no ato de abertura e aceitação das propostas e de que, não o fazendo, deixará de o poder exercer no processo executivo, salvo na situação do art. 825-3[5]”.
E continuam, “se o não fizer [se não arguir a nulidade da notificação na ação executiva] e se não se apresentar no ato de abertura de propostas, o preferente pode, na subsequente ação de preferência, alegar e provar que não teve conhecimento atempado da venda, por para ela não ter sido regularmente notificado ou não ter chegado ao seu conhecimento” (p. 781).
São assim distintas as ocasiões processuais para o exercício do direito de opção no processo executivo civil e no processo executivo fiscal: o primeiro determina a notificação do preferente para a data da abertura de propostas, mas admite que este, não tendo estado presente, ainda possa exercer a preferência no prazo de cinco dias, após a notificação de que foi aceite uma determinada proposta (o n.º 2 do art. 824.º CPC ordena que se lhe faça notificação com esse conteúdo); no processo fiscal, não está expressa esta segunda possibilidade mas a notificação para estar presente e preferir não é feita para o dia e hora da apresentação de propostas, mas para o ato da entrega dos bens ao proponente, o que é distinto do ato de aceitação das propostas.
Quanto ao ato da entrega dos bens ao proponente, em execução fiscal, o art. 6.º, n.º 1 da Portaria 219/11, de 11.6, dispõe que o órgão de execução fiscal decidirá sobre a adjudicação de bens.
Ora, o momento de entrega dos bens ao proponente só pode acontecer em ato seguido ao leilão, se for paga imediatamente a totalidade do preço e as obrigações fiscais relativas à transmissão.».
Assim, e voltando ao caso em apreço, constata-se que o apelante não foi notificado o dia e hora da entrega dos bens, pelo preço arrematado, aos proponentes, mas apenas da data da abertura de propostas.
Mais. Da notificação para a abertura de propostas não consta qualquer advertência ao preferente de que deveria acompanhar digital e electronicamente o leilão para exercer o seu direito até ao seu termo ou até à entrega dos bens ao proponente e que, caso não o fizesse, deixaria de poder exercer o seu direito no processo executivo.
Tudo isto para concluir que a notificação dirigida ao apelante foi irregular, não se podendo, pois, concluir que o mesmo exerceu o seu direito a preferir no aludido processo executivo fiscal de forma intempestiva, como entendeu o tribunal recorrido.
Concomitantemente, tem necessariamente que proceder o recurso interposto pelo autor, revogando-se (parcialmente) a sentença recorrida e reconhecendo-se ao autor o direito a preferir na venda efectuada no âmbito da acção executiva fiscal acima identificada.
As custas, quer da acção, quer do presente recurso, são da responsabilidade dos recorridos (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, reconhecendo ao autor o direito de preferência na venda da quota-parte, correspondente a metade indivisa, das fracções autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, e pelos preços por que as mesmas foram vendidas na execução fiscal a que se alude no artigo 16º da petição inicial, no âmbito das vendas e pelos preços referidos nos artigos 18º, 23º e 24º do mesmo articulado, substituindo-se os adquirentes de tais metades indivisas nas aludidas fracções (1º a 4ºs réus) pelo autor e, consequentemente, condena-se os referidos réus a abrir mão dessas quotas-partes a favor do autor; e ordena-se o cancelamento de quaisquer registos lavrados a favor dos réus, consequentemente à venda a que se faz referência nos artigos 18º, 23º e 24º da petição inicial, e feitos com base nela, ou de outros lavrados consequentemente a actos de oneração ou de disposição subsequentes àquele.
Custas da acção e do recurso a cargo dos recorridos.
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Guimarães, 9.05.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Afonso Cabral de Andrade
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues