Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
75/20.6GCGMR-K.G1
Relator: FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA
Descritores: PERDÃO DE PENA
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
A norma prevista no n.º2 do artigo 8.º da Lei nº 38-A/2023, segundo a qual o perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado, não enferma de inconstitucionalidade por violação do principio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito de Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo, que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Central Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 75/20...., na sequência da entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023 de 02-08 (Lei de Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude), foi proferida decisão em 11-09-2023, com a refª ...00, relativamente ao arguido AA (e outro) através da qual se determinou o seguinte (transcrição)[1]:

 “I. LEI 38-A/2023 II. Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto:
1.A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (a que se referirão os demais normativos citados, sem distinta indicação), que estabelece perdão de penas e amnistia de infracções, é aplicável a sanções penais por ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19.06.2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cf. arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1).
Nos termos do art.º 3º, nº 1 é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única - art.º 3º, nº 4.
Constituem circunstâncias que excluem a aplicação do perdão as enunciadas no art.º 7º.
O perdão é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada - art.º 8º, nº 1.
O perdão é ainda concedido sob a condição resolutiva do pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado - art.º 8º, nº 2.
2.Por acórdão proferido nos presentes autos em 8.11.2021, transitado em julgado, foram condenados:
AA, nascido .../.../1995, pela prática de:
a) um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. d), todos do Código Penal, cometido em 29.02.2020, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
b) um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. d), todos do Código Penal, cometido em 29.02.2020, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
c) um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. d), cometido no período entre 2.01.2020 e 3.01.2021, na pena de 2 (dois) anos e (dois) meses de prisão;
d) o crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. d), cometido no período entre 2.01.2020 e 3.01.202, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
e) um crime de furto qualificado, na forma tentada p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), 202.º al. d), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, cometido em 28.08.2020, na pena de 8 (oito) meses de prisão;
f) um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do Código Penal, cometido em 16.01.2020, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
g) um crime de furto qualificado, na forma tentada p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), 202.º al. d), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, cometido em 27.01.2021, na pena de 8 (oito) meses de prisão.
i) um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. d), cometido no período entre na pena de 2 (dois) anos e 1 (um) mês de prisão;
j) um crime de furto (desqualificado), p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.ºs 2, al. e) e 4 e 202.º, al. d), cometido no período entre 27.01.2021 e 28.01.2021,, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
k) um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. d), cometido no período compreendido entre 7.02.2021 e 8.02.2021, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;
l) um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), 202.º, al. d), cometido no período compreendido entre 16.01.2021 e 17.01.2021, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
m) um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), 202.º, al. d), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, cometido no período compreendido entre 16.01.2021 e 17.01.2021, na pena de 10 (dez) meses de prisão.
ii. em cúmulo jurídico, foi AA condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Foi, ainda, no mesmo Acórdão AA condenado:
- no pagamento da importância global de € 500 (quinhentos euros), acrescida e juros legais a contar desde a notificação até integral pagamento à lesada “Fábrica Paroquial de ...”:
- no pagamento (solidariamente com o co-arguido) da importância global de 490€ (quatrocentos e noventa euros), acrescida e juros legais a contar desde a notificação até integral pagamento, à lesada “EMP01... Unipessoal, Ld.ª.
Em 9.11.2022, foi nestes autos proferido Acórdão de Cúmulo Jurídico de penas, transitado, que englobou as penas parcelares aplicadas nestes autos, atrás referidas, e a pena parcelar aplicada no processo 676/20.... do Juízo Local Criminal ... - J ... (pela prática, em 30.11.2020 de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artºs 203º, nº 1 e 204º, nº 2, al. e) do CP) e condenado AA na pena única de 6 anos e 4 meses de prisão.
O condenado está em cumprimento de pena única à ordem destes autos, prevendo-se o termo da pena em 02.07.2027.
Posto isto.
O condenado AA tinha, à data da prática dos ilícitos englobados no cúmulo jurídico efectuado nestes autos, ocorridos em data anterior às 00h do dia 19.07.23, idade não superior a 30 anos, verificando-se o pressuposto previsto no art.º 2º, nº 1.
A pena única de prisão aplicada é inferior a 8 anos, verificando-se o requisito previsto no artº 3º, nº 1, da Lei referida.
Não se verificam qualquer das circunstâncias que excluem o perdão, previstas no art.º 7º.
Assim sendo, à pena única de prisão de 6 anos e 4 meses de prisão é perdoado um ano de prisão.
O perdão é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor e ainda concedido sob a condição resolutiva do pagamento da indemnização a que foi condenado - art.º 8º, nº 2.
Pelo exposto, ao abrigo das supra citadas disposições legais:
Declaro perdoado um ano de prisão à pena única de prisão de 6 anos e 4 meses aplicada a AA, sob as seguintes condições resolutivas:
- não praticar infração dolosa até 1.09.23, inclusive, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da parte da pena perdoada.
- proceder, no prazo de noventa dias ao pagamento das seguintes indemnizações a que nos autos foi condenado, a saber:
a) - pagamento da importância global de € 500 (quinhentos euros), acrescida e juros legais a contar desde a notificação até integral pagamento, à lesada “Fábrica Paroquial de ...”:
- pagamento da importância global de 490€ (quatrocentos e noventa euros), acrescida e juros legais a contar desde a notificação até integral pagamento, à lesada “EMP01... Unipessoal, Ld.ª.
Notifique, sendo o condenado, pessoalmente, e na pessoa do seu(sua) Exmo (a) Defensor(a), deste despacho e para, no prazo de noventa dias subsequente à notificação deste despacho, proceder ao pagamento das indemnizações acima referidas sob pena de, não o fazendo, o perdão ora concedido ser revogado.
Comunique, desde já, ao TEP, ao EP, e à DGRSP.
Remeta boletim (cf. art.º 6.º, al. f), da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio).
Oportunamente, abra vista ao MP para reformulação da liquidação da pena. (…)”

II. Inconformado com o referido despacho na parte em que condiciona o perdão ao pagamento de uma indemnização, veio o arguido interpor recurso em 10-10-2023, com a refª ...94 através do qual veio oferecer as seguintes conclusões:
           
“1ª Vem o presente recurso interposto do douto despacho, proferido nestes autos a 14 de setembro de 2023
2ª Não pode o arguido, ora recorrente, concordar na medida em que a Lei faz depender o perdão de um ano de prisão, do pagamento das indemnizações a que nos autos foi condenado.
3ª Versa, por isso, o presente recurso sobre a inconstitucionalidade da Lei nº38-A/2023, de 2 de Agosto, em especial sobre o seu artigo 8º.
4ª O direito à igualdade é um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa, Lei Fundamental do país, no seu artigo 13º nº1, que prevê que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”
5ª Acrescenta o nº2 do mesmo artigo que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” – sublinhado nosso.
6ª Assim sendo existe, in casu, uma colisão de direitos, figura prevista no artigo 8º da Lei 38-A/2023, onde se refere que, “o perdão é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor e ainda concedido sob condição resolutiva do pagamento da indemnização a que foi condenado” com o artigo 13º nº2 da CRP.
7ª A interpretação perfilhada pelo despacho recorrido, segundo a qual há uma aplicação directa da referida lei, nomeadamente do artigo 8º, deve ceder perante a aplicação das normas da Constituição, sendo a primeira materialmente inconstitucional por violação do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
8ª O arguido não dispõe de recursos próprios, tem vivido na dependência do apoio dos familiares, que, apesar de tudo, continuam disponíveis para o apoiar.
9ª À data o arguido encontra-se a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional ..., onde procura integrar-se.
10ª Apesar da sua vontade em arcar com as responsabilidades dos seus actos, o arguido não consegue proceder ao pagamento das indemnizações, nem recorrer a ajuda de familiares dada a precária condição financeira dos mesmos.
11ª Ora, não nos parece justo que o condenado com possibilidades financeiras tenha um perdão de um ano na sua pena de prisão e os arguidos em situação precária e que não conseguem fazer face às indemnizações a que foram condenados, vejam o perdão concedido revogado dado o incumprimento da condição resolutiva resultante do artigo 8º da Lei 38-A/2023.
12ª Trata-se, pois, de uma norma inconstitucional, que desde já se argui, em extremo conflito com o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da nossa Constituição, na medida em que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua situação económica.
13ª Sempre se dirá que a referida norma, quando interpretada no sentido de que a condição resolutiva é aplicável automaticamente sem atender à condição económica ou financeira do arguido, nomeadamente, sem se fazer um juízo quanto a possibilidade ou manifesta impossibilidade de o arguido cumprir a condenação em indemnização civil, então essa interpretação é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igual ínsito no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, decidindo pela revogação do despacho recorrido e pelo perdão de um ano de prisão sem sujeição a condição resolutiva do pagamento das indemnizações civis fixada na decisão condenatória, farão V. Exas. JUSTIÇA!”

III. O recurso foi admitido por despacho de 17-10-2023, com a refª ...36, que lhe fixou efeito devolutivo.

IV. Respondeu o Ministério Público nos termos que constam das contra-alegações juntas em 19-11-2023 com a refª ...87 através das quais pugna pela improcedência do recurso, não tendo oferecido conclusões.

 V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido douto parecer, em 27-11-2023, com a refª ...07, através do qual também pugna pela improcedência do recurso interposto pelo arguido, acompanhando os argumentos do MºPº de 1ª instância.

VI. Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi oferecida.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, quando está em causa uma sentença ou um acórdão, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP, bem como as nulidades previstas no artº 379º do mesmo Código de Processo Penal, que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[2]
            O arguido suscita a inconstitucionalidade do artº 8º da Lei nº 38-A/2023 de 02-08 – doravante designada como Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude – LAJMJ – pois entende que a condição resolutiva prevista no tocante ao pagamento, no prazo de 90 dias, da indemnização arbitrada viola o princípio da igualdade, ínsito no artº 13º da CRP, uma vez que não permite distinguir os arguidos de fraca condição económica daqueles que possuem plena capacidade de pagar a indemnização arbitrada, levando, assim, a que, na prática, um arguido pobre não possa beneficiar em pé de igual de perdão parcial da pena como um arguido com plena capacidade financeira.
Vejamos.

O artº 8º da LAJMJ subordinado à epígrafe “condições resolutivas” diz o seguinte:
           
“1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.
3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.
4 - Considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado.
5 - Quando o titular do direito de indemnização ou da reparação for desconhecido, não for encontrado ou ocorrer outro motivo justificado, considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 se a reparação consistir no pagamento de quantia determinada e o respetivo montante for depositado à ordem do tribunal.” – sublinhado nosso

Antes de mais, e antes mesmo de entrarmos na análise da constitucionalidade da norma em apreço, convém esclarecer que as Leis de Amnistia são leis excepcionais, que integram o que em tempos idos se chamava de Direito de Graça, e por isso, a sua interpretação não está sujeita a analogias, nem a exercícios que visam extender ou restringir o respectivo significado.

Tal como se afirma no Acórdão do STJ de 2/2023 de 01-02-2023[3] (que se pronunciou acerca do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril que estabeleceu o Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19):
“Os atos de graça abrangem, assim, a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação[4]. A distinção entre as várias medidas de graça efetua -se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente.
(…)
O direito de graça assume uma natureza excecional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam «ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas»[5]. Nesta medida, «insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir -se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo -se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe -se uma interpretação declarativa [...]»[6].
Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei[7], adotando-se uma interpretação declarativa em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo»[8].
Vale aqui, plenamente, o brocardo e princípio exceptio strictissimae interpretationis. E não se afigura como sendo um escolho nesta senda hermenêutica a expressa determinação do artigo 11.º do Código Civil, proscrevendo a analogia mas permitindo a interpretação extensiva[9].”

Assim, em nosso entendimento e salvo o devido respeito, não é possível interpretar-se o artº 8º da LAJMJ nos termos propostos pelo arguido uma vez que a lei não prevê que se proceda a uma prévia avaliação da condição económica do recluso a fim de apurar se a condição resolutiva é operacional.

E, adiantando desde já a nossa convicção, a falta dessa análise da condição económica do recluso não leva a qualquer inconstitucionalidade da respectiva lei, como de seguida veremos, mormente, não resulta do artº 8º qualquer violação do princípio da igualdade consagrada no artº 13º da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos porquê.

Antes de mais, é de notar que esta Lei de Amnistia de 2023 não é a primeira lei deste género, bem como a condição resolutiva prevista nos nºs 2 e 3 no seu artº 8º também não é uma condição resolutiva inédita, antes, constando das outras Leis de Amnistia a saber:

- a Lei 23/91 de 04-07 que no seu artº 3º estabelece que:
“1 - A amnistia decretada nas alíneas f), g) e h) do artigo 1.º é concedida sob condição suspensiva de prévia reparação aos lesados conhecidos, devendo as restituições e indemnizações a que haja lugar mostrar-se prestadas no prazo de 90 dias seguidos, contados a partir da entrada em vigor da presente lei ou da notificação ao arguido do despacho de pronúncia ou do que designe dia para a audiência de julgamento, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 5. (…)”

- a Lei nº 29/99 de 12-05, que no seu artº 5º se estabelece que:
“1 - Sempre que o condenado o tenha sido também em indemnização o perdão é concedido sob condição resolutiva de reparação ao lesado ou, nos casos de crime de emissão de cheque sem provisão, ao portador do cheque.
2 - A condição referida no número anterior deve ser satisfeita nos 90 dias imediatos à notificação que para o efeito será feita ao condenado. (…)”

Assim, a questão de inconstitucionalidade ora suscitada pelo arguido, que não é nova, já foi alvo de análise a nível do Tribunal Constitucional.

Ora, tem sido jurisprudência uniforme por parte do Tribunal Constitucional[10] no que tange ao princípio da igualdade que:
           
“É sabido que a igualdade, em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamen­to igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferen­te, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (por exemplo no Acórdão nº. 231/94, publicado no DR-I-A de 28/4/94) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária «quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da nature­za das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente com­preensível», para essa diferenciação.” 

E, no Acórdão nº 809/2021, proferido no Processo nº ...0, de 26 de outubro[11], o Tribunal Constitucional entendeu, sobre uma eventual violação do princípio da igualdade:

“7. O princípio da igualdade constitui um verdadeiro princípio estruturante da ordem jurídica constitucional, sendo mesmo uma exigência do princípio do Estado de Direito.
Trata-se de um princípio que vincula diretamente todos os poderes públicos – particularmente o legislador –, que estão assim obrigados a tratar de modo igual situações de facto essencialmente iguais e de modo desigual situações intrinsecamente desiguais, na exata medida dessa desigualdade, desde que esse tratamento desigual tenha uma justificação razoável, racional e objetivamente fundada.
O âmbito de proteção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional portuguesa, diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 339).
Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, sem fundamento material bastante, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º (veja-se, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 39/88, 157/88, 86/90, 187/90, 1186/96, 353/98, 409/99, 245/2000, 319/2000, 187/2001 e 232/2003).
Assim, constitui jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material. A este respeito e em particular sobre o sentido da igualdade jurídica, pode ler-se no Acórdão n.º 565/2018:
«15. Numa perspetiva material ou substantiva, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da diferença.
Com efeito, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes.
Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Na sua mais recente orientação em matéria de controlo da liberdade de conformação do legislador à luz do princípio da igualdade, tem este Tribunal separado dois níveis de análise e graus diferenciados quanto à intensidade do escrutínio. Segundo a síntese do Acórdão n.º 157/2018:
«No primeiro nível, o princípio da igualdade surge convocado como condição da possibilidade de estabelecer a distinção introduzida pela norma questionada, decorrendo a sua violação da ausência de um «fundamento racional» suficientemente justificativo da própria opção de diferenciar […].
No segundo nível, resultante da integração na estrutura do princípio da igualdade de dimensões típicas do princípio da proibição do excesso, tem-se especialmente em vista o escrutínio da medida ou da extensão em que a diferenciação estatutária entre [as] duas categorias [em causa] surge concretizada [no regime diferenciador: assumindo a respetiva ratio, importará verificar se o legislador não demonstra] que a prossecução de tal desiderato tornasse necessário o afastamento integral [do regime comum]. [A configurar-se] uma medida menos diferenciadora, propiciadora de um tratamento mais igualitário entre as duas categorias […] sob comparação, e suscetível de alcançar o mesmo desiderato, a extensão em que a diferenciação surge concretizada no [regime em análise] será, em vista dos próprios fins que lhe subjazem, desnecessária, tornando-se, nesta aceção, incompatível com o “princípio da proporcionalidade, enquanto decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição)».
10. Na base do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, e comum a todos os corolários, mais ou menos exigentes, que dele se podem retirar, encontra-se a ideia de igualdade enquanto proibição do arbítrio.
Fornecendo o patamar mínimo do controlo jurisdicional proporcionado pelo princípio da igualdade e acentuando-lhe a função de limite externo da liberdade de conformação do legislador ordinário, a conceção da igualdade como proibição do arbítrio vem sendo desde há muito perfilhada na jurisprudência deste Tribunal. [Na síntese do Acórdão n.º 750/95, o «princípio da igualdade reconduz-se (…) a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais». […]
Segundo se extrai ainda da jurisprudência constitucional, a ausência de fundamento material bastante em que se baseia o juízo de censura por violação do princípio da igualdade tanto pode dizer respeito à própria opção de estabelecer um tratamento diferenciado, como à medida em que tal diferenciação surge em concreto concretizada.
[…]
[O]perando essencialmente enquanto proibição do arbítrio, [o princípio da igualdade] enseja um controle externo das opções do legislador ordinário baseado num escrutínio de baixa intensidade. Partindo do reconhecimento de que é ao legislador democraticamente legitimado que cabe ponderar, dentro da ampla margem de valoração e conformação de que dispõe, «os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica» (Acórdão n.º 231/94) – definindo ou qualificando «as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente» (Acórdão n.º 369/97) –, assinala-se ao princípio da igualdade a função de invalidar as escolhas do poder legislativo quando a desigualdade de tratamento que nelas se contém for, quanto ao seu fundamento ou quanto à medida, extensão ou grau em que surge concretizada, à evidência irrazoável.” – sublinhado nosso

Assim, e num primeiro momento, podemos afirmar que uma lei da amnistia, seja ela qual for, só poderá ser considerada inconstitucional por violação do artº 13º da CRP se o perdão ou amnistia previstos assentarem em situações arbitrárias ou que levem a distinção do universo de presos abrangidos por motivos arbitrários ou irracionais.

Por exemplo, uma lei de amnistia que permita o perdão de um ano de prisão a todos os presos de olhos castanhos, deixando de fora os presos de olhos azuis é claramente atentatória do princípio da igualdade pois a cor dos olhos é um factor completamente desligado dos fins da política criminal, é, até, irracional, e portanto, sem motivação objectiva, bem como a respectiva escolha da cor dos olhos é completamente arbitrária e sem fundamento lógico.

Todavia, uma lei de amnistia que condiciona o perdão ao pagamento da indemnização em que o arguido já havia sido condenar a pagar dentro de certo período de tempo não viola a nosso ver – e como infra veremos também no entendimento do Tribunal Constitucional – o princípio da igualdade porquanto a norma em causa visa um universo de arguidos nas mesmas condições (terem sido condenados também no pagamento de uma indemnização) e visa salvaguardar os legítimos e concorrentes interesses das vítimas.

Afirma, contudo, o arguido que dentro desse universo de condenados, nem todos têm a mesma capacidade económica e, portanto, sujeitar todos os condenados a efectuar um pagamento dentro de tão curto espaço de tempo – 90 dias – é na prática discriminar os arguidos de fraca condição económica.

Salvo o devido respeito, não concordamos com esta leitura pelo simples facto de que as leis de amnistia e perdão, bem como de indulto, são, como vimos supra, leis excepcionais que se inserem numa prerrogativa do Estado, as chamadas leis de graça.

Como leis excepcionais que são, podem ser condicionadas pelo legislador que, procurando prosseguir em determinado momento, por ocasião, por exemplo, da vinda de um Papa a Portugal, ou em virtude das Jornadas Mundiais de Juventude, aliviar certos condenados, contudo não pode esquecer-se dos fins das penas e dos princípios do sistema penal implementado.

Ora, essa prorrogativa traduz uma benesse – uma graça – concedida ao condenado que não pode ser concretizada a qualquer custo, mas, antes, deve ser mitigada com os interesses das vítimas, bem como da política criminal vigente, mormente no que tange às exigências de prevenção especial pois, se o perdão levar a que, no futuro, o arguido entenda ser possível continuar numa vida dedicada ao crime porque, na prática, “o crime compensa” pois nem sequer teve de ressarcir o ofendido para poder beneficiar do perdão, então esse perdão não está conforme com os princípios basilares e estruturantes do sistema penal português.

Conforme se esclarece no Parecer do MP dada em relação à Proposta de Lei nº 97/XV/1.ª que viria a criar Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto[12]:

“A matéria (violação do princípio da igualdade) foi objeto de uma relevante e aprofundada reflexão no Acórdão nº 444/97, proferido no Processo nº 784/96, de 25 de junho de 1997[13], jurisprudência de referência e de citação em vários arestos posteriores deste Tribunal Superior, que se debruçou sobre a Lei nº 9/96, de 23 de março.
Circunscrevemo-nos, em razão do objeto da presente análise, à fundamentação tida por relevante quanto à eventual violação do princípio da igualdade.
Considerou então o Tribunal Constitucional que a causa do acto amnistiante explica a oportunidade do diploma no seu conjunto.
Citando o Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerfGE, 10, 234 [246]; cf. BVerfGE, 2, 213 [224-5]; 10, 340 [354]):
- "Ao decretar uma lei de amnistia o legislador não está obrigado, do ponto de vista do artº 3º, secção 1ª, da Lei Fundamental, a conceder amnistia a todas as acções puníveis e em medida igual. Não só pode excluir inteiramente da lei de amnistia certos tipos de crime, como pode também sujeitar tipos determinados num regime especial. Só a ele cabe decidir em relação a que infracções se verifica em especial medida um interesse geral de pacificação. Também é uma questão da sua liberdade de conformação legislativa em que âmbito e a que crimes quer conceder amnistia. O Tribunal Constitucional Federal não pode controlar uma lei de amnistia quanto à questão de saber se as regras que nela se consagram são necessárias ou convenientes, e só pode, em vez disso, verificar se o legislador ultrapassou o extremo limite do largo campo de discricionariedade que se lhe abre.
E nessa lei de amnistia só há uma violação do princípio da igualdade quando a regulamentação que o legislador deu a certos factos típicos não está manifestamente orientada por princípios de justiça, ou seja, quando não se encontram para ela quaisquer considerações racionais, que derivem da natureza das coisas ou sejam de qualquer outro modo evidentes”. – sublinhado e negrito nossos

Ora, no que tange especificamente à questão da sujeição do perdão à condição resolutiva de pagar a indemnização, em que o respectivo arguido fora condenado, no prazo de 90 dias, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de não considerar essa condição inconstitucional.

Como vimos, a condição resolutiva de pagamento da indemnização prevista no artigo 8º em discussão já havia sido utilizada em outras Leis de Amnistia não sendo uma condição inédita.

Assim, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 488/2008 de 07-10-2008[14] pode ver-se a mesmíssima questão ora suscitada pelo arguido tratada da seguinte maneira.

“Ora, a imposição da analisada condição resolutiva não se afigura destituída de fundamento material ou racional bastante, de modo algum podendo ser tida como medida irrazoável ou arbitrária.
A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido.
Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime, tal como o é a condenação na pena criminal.
É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende “reparar um dano” provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (cf. art.ºs 483.º e 562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos.
Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado.
Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime. Essa relação intrínseca entre a prática do crime e o dever de reparar o dano provocado é, de resto, assumida, expressamente, pelo Código Penal quando determina, no art.º 71.º, que se relevem as consequências do crime e a conduta destinada a repará-las para efeitos de determinação da medida da pena, e, quando prevê, nos art.ºs 50.º, n.ºs 1 e 2, e 52.º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de, nas condições aí definidas, a pena aplicada ser suspensa, mediante o pagamento da indemnização ou a garantia do mesmo por meio de caução idónea, sendo que o Tribunal Constitucional, apreciando esta última norma, considerou que ela não é inconstitucional (cf. Acórdão n.º 596/99 e Acórdão n.º 440/87, este relativamente ao correspondente preceito do C. Penal de 1982; cf., ainda, referindo-se ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais, os Acórdãos n.ºs 256/03, 335/03, 500/05 e 29/07, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Aquela conexão intrínseca era, aliás, a razão pela qual já o art.º 34.º do Código de Processo Penal, de 1929, consagrando o princípio da oficiosidade do arbitramento da indemnização, estabelecia que «o juiz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que não tenha sido requerida».
E não obstante o legislador do actual Código de Processo Penal ter optado pelo princípio da adesão da acção cível à acção penal, obrigando à dedução do respectivo pedido de indemnização, ao dispor no art. 71.º que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”, não deixa tal opção de se basear na conexão íntima da relação de indemnização com a relação penal.
Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do “ius puniendi” – o Estado – possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.
Existe, pois, razão material bastante para justificar a irrelevação, na concessão da graça do perdão genérico, da situação económica em que se encontra o seu beneficiário.
Não se verifica, por isso, a violação do princípio da igualdade.
(…)      
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que foi condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo sentenciado seja titular que caiba na previsão dos referidos preceitos.
Mas independentemente disso, acresce que o condicionamento se mostra feito de forma geral e abstracta, aplicando-se a todos os abrangidos pelo perdão que tenham sido também condenados no pagamento de indemnização ao lesado, e que o mesmo tem fundamento material.” – sublinhado e negrito nossos

Afigura-se-nos, por desnecessárias, quaisquer considerações adicionais estando demonstrado à saciedade que o atrº 8º da Lei nº 38-A/2023 de 02-08 não viola o princípio da igualdade consagrado no artº 13º da CRP, motivo pelo qual, não se determina essa inconstitucionalidade, tendo, consequentemente, que improceder o recurso do arguido.

DECISÃO:

Em face do exposto, decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo do arguido recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC's: (artºs 513º nº 1 CPP e 8º e 9º do Regulamento das Custas Processuais conjugando este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).
Guimarães, 09 de Janeiro de 2024.
                                                              
Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Ana Teixeira (1ª Adjunta)
Isilda Maria Correia de Pinho (2ª Adjunta)


[1] Os sublinhados são da própria decisão.
[2] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[3] Publicado no DR 1ª Série, nº 23, localizável em:
https://files.dre.pt/1s/2023/02/02300/0002200041.pdf
[4] GONÇALVES, Maia, As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Aequitas/Editorial Notícias, Ano 4, Fasc. 1, janeiro -março 1994, p. 7.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 1977, in “Boletim do Ministério da Justiça”, n.º 272, citado no Assento n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo n.º 3209/00 -3.
[6] Assento n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo n.º 3209/00 -3.
[7] AGUILAR, Francisco, Amnistia e Constituição, Coimbra, Almedina, 2004, p. 119, n. 557
[8] FERRARA, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, Arménio Amado, 3.ª edição, 1978, p. 147.
[9] FERREIRA DA CUNHA, Paulo, Teoria Geral do Direito. Uma Síntese Crítica, Oeiras, A Causa das Regras, 2018, p. 367
[10] Do qual se cita a título meramente exemplificativo o Acórdão do TC nº 152/95 de 15-03-1995 localizável em:
https://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_main.php?ficha=11097&pagina=370&nid=7679

[11] Localizável em:
https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c32566c596d59774e5746694c544d3559324d744e4755774d6930355a4441794c54466d4e6a68694e47497a597a466b596935775a47593d&fich=eebf05ab-39cc-4e02-9d02-1f68b4b3c1db.pdf&Inline=true
[12] Localizável em:
https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c32566c596d59774e5746694c544d3559324d744e4755774d6930355a4441794c54466d4e6a68694e47497a597a466b596935775a47593d&fich=eebf05ab-39cc-4e02-9d02-1f68b4b3c1db.pdf&Inline=true
[13] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970444.html?impressao=1
[14] localizável em:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080488.html