Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
540/14.4JABRG.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REVOGAÇÃO
VIOLAÇÃO GROSSEIRA DE DEVERES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – A revogação da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto no Artº 56º do Código Penal, só deve ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências previstas no Artº 55º do mesmo diploma legal.
II - Qualquer alteração à suspensão da execução da pena, por violação dos deveres e das regras de conduta ou do plano de reinserção impostos na sentença, pressupõe a culpa por banda do condenado no não cumprimento da obrigação, sendo também claro que a hipótese de revogação apenas pode colocar-se nas situações em que a culpa se revele grosseira.
III – A violação grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos, a que se alude no citado Artº 56º, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Singular 540/14...., do Juízo de Competência Genérica de Esposende, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o Mmº Juiz a quo proferiu nos autos, em 19/06/2024, o despacho que consta de fls. 1086/1088, que ora se transcreve [1]:

“A arguida AA foi condenada nos presentes autos, por sentença datada de 10-07-2017, transitada em julgado em 25-09-2017, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art.ºs 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 do Cód. Penal, na pena de três anos de prisão, de crime de extorsão qualificada, p. e p. pelo art.º 223.º n.º 1 e n.º 3 al. a), por referência ao art.º 204.º n.º 2, al. a) e 202.º al. b) do Código Penal, na pena de 4 meses e seis meses de prisão e, em cúmulo jurídico das das referidas penas, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período sujeita a regime de prova e ao dever de, no decurso da suspensão, proceder à entrega à assistente da quantia de €87.766,66 (oitenta e sete mil, setecentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos).
Juntos os relatórios de execução aos autos, dos mesmos decorre que a condenada esteve pontualmente integrada no mercado de trabalho, não exercendo, na maior parte do tempo, actividade laboral remunerada, recebendo ajuda de familiares, designadamente da sua mãe - com quem residia com o seu filho, de 16 anos de idade - e que entretanto a falecer em final de 2021.
Ao longo dos quase 5 anos de suspensão da execução da pena, não efectuou qualquer pagamento à assistente, tendo-se procedido à sua audição a 28 de Fevereiro de 2023.
Na referida audição, a arguida declarou que tinha intenção de dar o produto da venda de um imóvel de partilhas que iria vender, o que iria suceder no espaço de 2,3 semanas.
Referiu ter tido um problema de depressão desde 2017, motivo pelo qual não tinha desempenhado actividade profissional.
De início não quis aceitar tratamento desse seu problema mas, actualmente, está a ser seguida no Hospital ....
Por requerimento junto aos autos a 4 de Maio de 2023, a arguida informou os autos  que se encontrava em vias de vender um imóvel que lhe adveio por herança de sua mãe e que a escritura de compra e venda desse imóvel seria outorgada no mês de Junho de 2023.
Efectuou um pagamento no valor de €500,00, por conta da quantia condição da suspensão da execução da pena de prisão.
Não efectuou qualquer outro pagamento.
Não apresentou qualquer informação/justificação nos autos, apesar de ter sido pessoalmente notificada para comprovar esse pagamento.
Apenas após se determinar a notificação da arguida para se pronunciar quanto à promoção do Ministério Público, de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, disse, além do mais que “recebeu um valor irrisório pela venda da casa que herdou da mãe”, e que “é intenção da arguida fazer pagar o valor a que foi condenada”.
Sendo certo que a arguida havia sido anteriormente notificada para, até ao dia ../../2023, comprovar o cumprimento da condição da suspensão da pena de prisão, e para juntar, no mesmo prazo, cópia da escritura de compra e venda a que fez referência, o que a arguida nunca fez.

Cumpre decidir.

O art. 55º do Código Penal dispõe quanto à “Falta de cumprimento das condições da suspensão”, nos seguintes termos:

“Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal:
a) Fazer uma solene advertência;
b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;
c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção;
d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no nº 5 do artigo 50º”.

O artº 56º, sob a epígrafe “Revogação da suspensão” dispõe o seguinte:
“1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.”.

Do vertido no art. 56º, do Código Penal decorre que os fundamentos da revogação são o incumprimento grosseiro ou repetido dos deveres ou regras impostos ou do plano de reinserção social; ou o cometimento de crime e respectiva condenação.

Conforme refere Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in “Código Penal Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Rei dos Livros, 2014, pág. 823, “As causas de revogação não devem ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena” e que a revogação “só deverá ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as providências que este preceito [o actual Artº 55º] contém”.
Quanto à violação grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos, a que se alude no citado artº 56º, Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, anotação ao mesmo preceito, refere que a infracção grosseira dos deveres e regras de conduta não tem de ser dolosa, «sendo bastante a infracção que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade» e a infracção repetida dos deveres e regras de conduta «é aquela que resulta de uma atitude de descuido e leviandade prolongada no tempo», revelando «uma postura de menosprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória.»
É o que dos autos quanto ao comportamento do arguido durante o período de suspensão de execução da pena decorrido até ao presente momento.

No Acórdão da Relação de Coimbra de 10-05-2023, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Paulo Guerra, in www.dgsi.pt, escreveu-se a propósito da revogação da suspensão da execução da pena de prisão o seguinte:

“V - Violação grosseira é toda e qualquer violação que possa evidenciar-se como qualificada, qualitativamente denotativa da dimensão do incumprimento do dever ou obrigação impostos, no sentido de se considerar que tal violação se assume como grave na própria amplitude e determinação com que, na sua essência, deixou de ser cumprida a obrigação imposta, não o sendo quando se traduz num mero incumprimento parcial de uma obrigação ou quando, tratando-se de uma obrigação de execução continuada, o incumprimento se verificou apenas em algumas vezes contadas, em comparação com outras em que a mesma foi sendo cumprida.
VI – A culpa há-de revestir intensidade relevante, seja pela natureza (violação grosseira), seja pela reiteração (atitude geral de descuido e leviandade prolongada no tempo), de molde a constituir uma actuação especialmente censurável, que o cidadão médio pressuposto pela ordem jurídica repudiaria e que, por consequência, não admite tolerância ou desculpa.
VII – Para a suspensão da execução da pena de prisão ser revogada é necessário que a infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos se deva à vontade do condenado e que se conclua que nenhuma outra medida, para além da revogação, é viável para alcançar as finalidades da punição (artigos 50.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, do Código Penal).

No caso concreto, a condenada não procedeu a qualquer pagamento que fosse à assistente durante o período de 5 anos, apenas tendo procedido à entrega de uma quantia de €500,00, após a sua audição em tribunal.
E recebeu, pelo menos, um bem imóvel como herança, cujo produto da respectiva venda asseverou que seria destinado ao pagamento da condição da suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenada.
Apesar disso, não procedeu a qualquer outro pagamento e, apesar de notificada, persistiu em tal conduta, não prestando qualquer justificação.
Apenas após se determinar a notificação da arguida para se pronunciar quanto à promoção do Ministério Público, de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, referiu ter recebido um valor irrisório pela venda da casa que herdou da mãe, não referindo qual, nem justificando a falta de qualquer outro pagamento.
Desta forma, o aludido comportamento da condenada demonstra que a arguida, para além do valor de que se apropriou no âmbito dos presentes autos, e do qual nada destinou ao pagamento da condição imposta, optou por não fazer qualquer tipo de sacrifício, mesmo após ter declarado ter meios para satisfazer pelo menos em parte o pagamento devido, escondendo, inclusivamente, o valor de que dispôs para satisfazer o pagamento, no que se reconduz numa atitude de particular censurabilidade, de leviandade e desinteresse pela condição imposta nestes autos.
Destarte, as necessidades de prevenção especial positiva sentidas no caso concreto, a que igualmente não são alheias também as de prevenção geral, impõem a revogação da suspensão, por infração grosseira dos deveres impostos, e o cumprimento pela condenada da pena de prisão fixada na sentença proferida nestes autos.

Pelo exposto, determino a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à condenada AA, bem como se determina o cumprimento pela arguida da pena de 5 (cinco) anos de prisão em que foi condenada.
Notifique.
Após trânsito, comunique ao TEP o presente despacho, tendo em vista o cumprimento da pena de prisão, e remeta boletim à DSIC.
(...)”.
*
2. Inconformada com tal decisão, dela veio a arguida AA interpor o presente recurso, que consta de fls. 1094 / 1098 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

1. In casu à Arguida, aqui Recorrente, foi determinada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão imposta à mesma.
2. A revogação teve como pressuposto o incumprimento da condição imposta à
Recorrente.
3. Tal condição mostrou-se impossível de cumprir atento as condições económicas da Recorrente e o valor que esta estava obrigada a pagar.
4. A Recorrente tem estado desempregada, não dispondo dos meios económicos necessários ao cumprimento da obrigação.
5. Ainda assim, depositou à ordem do processo o montante de EUR 5.000,00 (cinco mil euros).
6. A Recorrente não tinha condições financeiras para cumprir as condições impostas, atento aos montantes em causa.
7. E não se diga que a Recorrente demonstrou desprezo pela condenação sofrida nos presentes autos, pois sempre foi sua intenção proceder aos respetivos pagamentos.
8. Verificou-se as necessidades de prevenção, uma vez que a Recorrente “sacrificou-se” para pagar o montante de EUR 5.000,00 (cinco mil euros).
9. E não consta qualquer condenação no certificado de registo criminal pela prática de crimes no período da suspensão.
10. Demonstrando que interiorizou as condenações sofridas.
11. A intenção da Recorrente sempre foi pagar.
12. Necessitando apenas de mais tempo para o conseguir fazer.
13. A Recorrente não infrigiu grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos, cfr. disposto no artigo 56º do C.P.
14. A condição que lhe foi imposta era impossivel cumprir mesmo que estivese a trabalhar.
15. Fazendo um simples cálculo aritmético, distribuindo o montante de € 82.766,66 + € 2.500,00, (mesmo não contabilizando os juros) pelos 5 anos (60 meses), perfazia o montante de EUR 1.421,11 mensais.
16. Duas vezes o ordenado mínimo atual.
17. Impossivel para qualquer pessoa cumprir.
18. Muito mais tendo ultrapassado vários meses de pandemia.
19. Entende a Recorrente que não agiu com culpa, nem se colocou voluntariamente na sutuação de não poder cumprir com a condição.
20. Não devendo ser, pois, revogada a suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenada.
21. O Tribunal a quo ao fazê-lo violou o disposto no artigo artigo 56º, nºs 1 e 2 do Código Penal.

Confiando ainda no douto suprimento de V. Exas, decidindo-se nos termos expostos, se fará melhor
JUSTIÇA.”.
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2.1. Previamente à apresentação desse recurso, no dia 01/10/2024 dirigiu a arguida aos autos o requerimento que consta de fls. 1091/1093, solicitando a junção do comprovativo do pagamento efectuado nesse mesmo dia, mediante depósito autónomo, no valor de € 4.500,00, “por conta do valor a que foi condenada”.
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3. Na 1ª instância apresentaram-se a responder o Ministério Público [a fls. 1101/ 1104 Vº] e a assistente BB [a fls. 1105/1106], pugnando ambos pela sua improcedência, com a consequente manutenção do despacho recorrido.
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4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal da Relação pronunciou-se, também, pela improcedência do recurso, acompanhando as respostas que o Ministério Público e a assistente apresentaram na 1ª instância, e acrescentando pertinentes considerações acerca da questão suscitada [cfr. fls. 1109 / 1111 Vº].
*
5. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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6. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal  [2].

Assim sendo, no caso vertente, a única questão que a recorrente coloca a este tribunal, e que importa decidir, é a de saber se se verificam ou não os pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.
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2. Porém, antes de mais, para a uma correcta apreciação do recurso, há que atentar nas principais incidências processuais que os autos revelam:
a) Pela sentença de 10/07/2017, constante de fls. 945 / 957 Vº, foi a arguida AA condenada pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos Artºs. 217º, nº 1, e 218º, nº 2. do Código Penal, na pena de três anos de prisão, e de um crime de extorsão qualificada, p. e p. pelos Artºs. 223º, nº 1, e nº 3, al. a), por referência ao Artº 204º, nº 2, al. a) e 202º, al. b), do Código Penal, na pena de 4 meses e seis meses de prisão e, em cúmulo jurídico de tais penas, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e ao dever de, no decurso da suspensão, proceder à entrega à assistente da quantia de € 87.766,66 (oitenta e sete mil, setecentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos).
b) Tal sentença transitou em julgado em 25/09/2017 (cfr. fls. 971);
c) Em 26/10/2017 a DGRSP remeteu aos autos o plano de reinserção social da arguida, nos termos que contam de fls. 980/ 981 Vº, o qual foi homologado pelo despacho de 07/11/2017, exarado a fls. 983, e devidamente notificado à arguida;
d) Na sequência da promoção do Ministério Público, de 16/11/2022, constante de fls. 1037, pelo despacho de 18/11/2022, exarado a fls. 1038, foi determinada a notificação da arguida para, no prazo de 10 dias, comprovar nos autos o cumprimento da condição que lhe foi imposta na sentença proferida nos autos – entrega à assistente da quantia de € 82.766,66 – no âmbito da suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão;
e) Pessoalmente notificada, no dia 28/11/2022, como se certificou a fls. 1040, a arguida remeteu-se ao silêncio;
f) Em face desse silêncio da arguida, promoveu o Ministério Público a sua audição, diligência que veio a ocorrer no dia 28/02/2023, conforme auto que consta de fls. 1051 / 1051 Vº;
g) Nas declarações então prestadas [cuja gravação tivemos o cuidado de ouvir integralmente] resulta, em síntese, ter a arguida afirmado não lhe ter sido possível entregar qualquer quantia à ofendida, já que ficou doente, com problemas depressivos, não tendo desempenhado actividade profissional regular. Mas que estava a pensar pagar a quantia em causa através da venda de um imóvel que recebeu em herança por morte da sua mãe, o que seria concretizado no espaço de 2 / 3 semanas;
h) Na sequência da promoção do Ministério Público, de 09/03/2023, de fls. 1052, pelo despacho de 15/03/2023, exarado a fls. 1053, foi determinado que os autos aguardassem por dias 20, findos os quais deveria a arguida ser notificada para, no prazo de 10 dias, comprovar o cumprimento da condição imposta na sentença, devendo ainda juntar no mesmo prazo cópia da escritura de compra e venda do imóvel a que fez alusão aquando da sua audição;
i) Pelo requerimento de 04/05/2023, que se mostra junto a fls. 1055/1058, veio a arguida informar que ainda não havia sido efectuada a escritura de compra e venda do imóvel em causa em virtude de não ter na sua posse todos documentos necessários para o efeito, mas que estimava que a mesma fosse outorgada no próximo mês de Junho; mais adiantando que, logo que fosse efectuada a escritura, e recebesse o valor do preço que lhe coubesse, faria a entrega da mesma nos autos; e informando que, naquele momento, dispunha apenas da quantia de € 500,00, a qual depositou; e requerendo, a final, que lhe fosse concedido prazo até à outorga da escritura para cumprimento da condição na sua totalidade;
j) Pelo despacho de 16/05/2023, exarado a fls. 1060, o Mmº Juiz deferiu ao requerido, tendo determinado a notificação da arguida para, até ao dia 5 de Julho, comprovar o cumprimento da condição [da suspensão da execução da pena de prisão], mais devendo a mesma, até à referida data, juntar cópia da escritura de compra e venda a que faz referência;
k) Por requerimento de 06/07/2023, constante de fls. 1062/ 1067 Vº, veio a arguida juntar aos autos cópia da escrita da compra e venda do imóvel, outorgada naquele mesmo dia, e solicitar a prorrogação do prazo para fazer o pagamento da indemnização, dado que preço havia sido pago através de cheque, não estando disponível de imediato;
l) Nessa sequência, pelo despacho de 05/09/2023, exarado a fls. 1069, o Mmº Juiz determinou a notificação da arguida para, até ao dia ../../...., impreterivelmente, comprovar nos autos o cumprimento da condição da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenada;
m) Notificada, por via postal simples, em 07/09/2023 (cfr. fls. 1070), e por contacto pessoal, em 07/11/2023 (cfr. fls. 1074), a arguida remeteu-se ao silêncio.
n) Dada vista nos autos ao Ministério Público, em 15/01/2024 a Exma. Procuradora da República, em face do comportamento adoptado pela arguida, de violação grosseira e culposa dos deveres que lhe haviam sido impostos, como condição para a suspensão da pena de prisão, promoveu a revogação da decretada suspensão da execução da pena de prisão – cfr. fls. 1079 / 1080 Vº;
o) Notificada para, em 10 dias, exercer, querendo, o contraditório quanto a essa promoção do Ministério Público, veio a arguida, através do requerimento de 22/02/2024, aduzir, em síntese, que a condição que lhe foi imposta foi de todo impossível de cumprir, que recebeu um valor irrisório pela venda da casa que herdou da mãe, e que é sua intenção “fazer pagar o valor a que foi condenada”; e
p) Nessa sequência, em 19/06/2024 foi proferido o despacho que consta de fls. 1086/1088, supra transcrito, alvo do presente recurso por banda da arguida.
*
3. Isto posto

Tendo em conta este enquadramento fáctico/processual, há que perscrutar, então, se estão ou não verificados os pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida no despacho recorrido, por ela impugnado.
E adiantando a nossa posição, cremos que se impõe uma resposta afirmativa.
Vejamos.
Como se viu, pela sentença proferida nos presentes autos no dia 10/07/2017, e transitada em julgado em 25/09/2017, foi a arguida AA condenada na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos Artºs. 217º, nº 1, e 218º, nº 2. do Código Penal, e de um crime de extorsão qualificada, p. e p. pelos Artºs. 223º, nº 1, e nº 3, al. a), por referência ao Artº 204º, nº 2, al. a) e 202º, al. b), do Código Penal.
Suspensão essa que ficou sujeita a regime de prova e ao dever de, no decurso da suspensão, a arguida proceder à entrega à assistente da quantia de € 87.766,66 (oitenta e sete mil, setecentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos).
Ora, como se sabe, a suspensão da execução da pena é uma pena de substituição que assenta na formulação de um juízo de prognose favorável por banda do tribunal quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes.
Tal instituto tem um regime próprio, com pressupostos formais e materiais e duração legalmente definidos, revestindo modalidades diversas – a simples suspensão na execução, a suspensão sujeita a condições e a suspensão com regime de prova – podendo ser alterada (na duração ou nas condições) e/ou revogada – cfr. Artºs 50º a 57º, do Código Penal.
No que tange às consequências jurídicas do incumprimento das condições da suspensão há que atentar no que prescrevem os Artºs. 55º e 56º do mesmo diploma legal.
Na verdade, sob a epígrafe “Falta de cumprimento das condições da suspensão”, prescreve o Artº 55º do Código Penal:
“Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal:
a) Fazer uma solene advertência;
b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;
c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção;
d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no nº 5 do artigo 50º”.
Estatuindo, por seu turno, o Artº 56º, sob a epígrafe “Revogação da suspensão”:
“1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.”.
Da simples análise do transcrito Artº 56º, do Código Penal, extrai-se claramente serem dois os fundamentos da revogação: o incumprimento grosseiro ou repetido dos deveres ou regras impostos ou do plano de reinserção social ou; o cometimento de crime e respectiva condenação.
Em qualquer um deles, como se menciona no acórdão da Relação de Coimbra de 30/1/2019, proferido no processo 127/17.0GAMGR-A, in www.dgsi.pt, “estamos perante situações limite, onde o condenado, através da intensidade do grau de culpa posto na sua conduta, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou”.
Como refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica, 2011, pág. 345, “O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado. Com efeito, a condição prevista na parte final da al.ª b) do n.º 1 («e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas») refere-se a ambas as causas de revogação da suspensão previstas nas duas alíneas”.
Também os Exmos. Conselheiros Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in “Código Penal Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Rei dos Livros, 2014, pág. 823, elucidam que “As causas de revogação não devem ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena” e que a revogação “só deverá ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as providências que este preceito [o actual Artº 55º] contém”.
Ora, da conjugação dos transcritos preceitos legais extrai-se claramente que qualquer alteração à suspensão da execução da pena, por violação dos deveres e das regras de conduta ou do plano de reinserção impostos na sentença, pressupõe a culpa por banda do condenado no não cumprimento da obrigação, sendo também claro que a hipótese de revogação apenas pode colocar-se nas situações em que a culpa se revele grosseira.
E a violação grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos, a que se alude no citado Artº 56º “há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação.
Importando “no entanto salientar que a infracção grosseira dos deveres que são impostos ao arguido não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infracção que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade” - cfr., neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/10/2012, proferido no âmbito do Proc. nº 91/07.3IDCBR.C1, in www.dgsi.pt.
Ora, no caso vertente, como emerge do despacho recorrido, está em causa o primeiro dos aludidos fundamentos, ou seja, o incumprimento grosseiro ou repetido dos deveres ou regras impostos por banda da arguida.
E, na verdade, na senda do entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, também se nos afigura que se verifica claramente a previsão do citado Artº 56º, nº 1, al. a), do Código Penal.
Para tanto bastando relembrar as extensas incidências processuais a que já fizemos alusão anteriormente, por si só demonstrativas de que a arguida AA não revelou o mínimo esforço por corresponder positivamente à oportunidade que o tribunal da 1ª instância lhe facultou quando, na sentença condenatória oportunamente proferida nos autos, decidiu pela suspensão da execução da pena de única de 5 anos de prisão que lhe foi cominada, não tendo feito qualquer esforço sério no sentido de cumprir uma das obrigações que sobre ela impendia, e que passava pelo pagamento à assistente BB,  no decurso da suspensão, da quantia de € 87.766,66 (oitenta e sete mil, setecentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos).
Com efeito, o quadro circunstancial supra descrito, e que não vamos aqui repetir, sob pena de nos tornarmos fastidiosos, é bem revelador de que as finalidades que estiveram na base da suspensão da execução da pena de prisão não foram minimamente alcançadas pela arguida, ora recorrente.
Sendo manifesto o total desprezo da mesma arguida pelas várias decisões do tribunal, e pelo seu estatuto de condenada.
Pois, não obstante estar ciente das consequências que daí lhe poderiam advir, e das sucessivas oportunidades que o tribunal a quo lhe deu, designadamente após o termo dos cinco anos fixados na sentença condenatória para cumprir a sua obrigação, a arguida, ora recorrente, assumiu uma postura de reiterado desinteresse e inadimplemento.
Na verdade,  ficou bem patente que a arguida, ao longo dos cinco anos do período da suspensão, e mesmo já após o seu decurso, não fez qualquer esforço por cumprir a obrigação que sobre ele impendia, apenas tendo entregue a quantia de € 500,00 no dia 04/05/2023, após a sua adição ocorrida no dia 28/02/2023.
Nem tampouco se esforçou a arguida ao longo do período da suspensão em propor qualquer solução alternativa, designadamente, um pagamento parcial e faseado da quantia em causa, isso sim já evidenciador de alguma boa vontade em cumprir a condição que lhe foi imposta.
Concordando-se inteiramente com o Mmº Juiz a quo quando afirmou, no despacho recorrido, que a arguida “(...) recebeu, pelo menos, um bem imóvel como herança, cujo produto da respectiva venda asseverou que seria destinado ao pagamento da condição da suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenada.”.
Que, “Apesar disso, não procedeu a qualquer outro pagamento e, apesar de notificada, persistiu em tal conduta, não prestando qualquer justificação.”.
Que, “Apenas após se determinar a notificação da arguida para se pronunciar quanto à promoção do Ministério Público, de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, referiu ter recebido um valor irrisório pela venda da casa que herdou da mãe, não referindo qual, nem justificando a falta de qualquer outro pagamento.”
Que, “Desta forma, o aludido comportamento da condenada demonstra que a arguida, para além do valor de que se apropriou no âmbito dos presentes autos, e do qual nada destinou ao pagamento da condição imposta, optou por não fazer qualquer tipo de sacrifício, mesmo após ter declarado ter meios para satisfazer pelo menos em parte o pagamento devido, escondendo, inclusivamente, o valor de que dispôs para satisfazer o pagamento, no que se reconduz numa atitude de particular censurabilidade, de leviandade e desinteresse pela condição imposta nestes autos.”.
E que, “Destarte, as necessidades de prevenção especial positiva sentidas no caso concreto, a que igualmente não são alheias também as de prevenção geral, impõem a revogação da suspensão, por infração grosseira dos deveres impostos, e o cumprimento pela condenada da pena de prisão fixada na sentença proferida nestes autos.”.
Em suma, a atitude assumida pela arguida, ora recorrente, apreciada globalmente,  denota a violação grosseira e repetida da obrigação que lhe foi imposta, e da  impossibilidade de alcançar, por via da  suspensão da execução da  pena  de  prisão, as  finalidades subjacentes à pena aplicada, pelo que  nenhuma outra decisão se  impunha que não a que a mesma visse revogada a decretada suspensão da execução da pena.
Na verdade, nenhum obstáculo, que não o seu próprio comportamento, se afigura ter existido para que a arguida pudesse ter cumprido, ainda que parcialmente [note-se que não se tratava propriamente do pagamento de qualquer prestação “anómala”, mas tão somente da devolução à assistente da quantia com que ilicitamente se locupletou na sequência do “esquema de crendice e bruxaria” que junto daquela criou, como foi dado como provado na sentença condenatória], a obrigação que lhe foi imposta para a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenada.
Não assumindo particular significado, como bem nota a Exma. PGA no seu douto parecer, o pagamento da quantia de € 4.500,00 efectuado após o despacho de revogação da pena de prisão, dois dias antes da apresentação do recurso, sendo certo que “(...) tal atitude não revela interiorização relativamente ao cumprimento da condição, muito menos destinada a reparar o mal do crime”, mas “(...) tão só, a pretensão de evitar as consequências do seu reiterado incumprimento”, tratando-se, de “(...) todo o modo (...) de uma “caricatura” de cumprimento da condição, atendendo ao montante que ficou obrigada a pagar e ao facto de, entretanto, ter recebido uma herança.”.
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Assim, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, não tendo sido violada a norma legal invocada pela arguida, nem qualquer outra, nenhuma censura nos merece o despacho recorrido, que se confirma, improcedendo totalmente o presente recurso.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.

Custas pela arguida/recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
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Guimarães, 11 de Fevereiro de 2025

Os Juízes Desembargadores:          
António Teixeira (Relator)
Carlos da Cunha Coutinho (1º Adjunto)
Paulo Almeida Cunha (2º Adjunto)


[1] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[2] Cfr., neste sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.