Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6314/22.1T8VNG.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
INCIDENTE DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
CASO JULGADO
CONVOLAÇÃO PELA RELAÇÃO DO FUNDAMENTO DE INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- O caso julgado material e o formal pressupõem uma decisão judicial expressa que tenha transitado em julgado, por já não admitir recurso ordinário ou reclamação, posto que, apenas perante uma decisão judicial expressa se poderá determinar o que nela ficou em definitivo decidido e que, por isso, fica coberto pelo respetivo caso julgado, obstando o caso julgado material que a mesma relação processual controvertida nela decidida possa ser novamente submetida a julgamento numa ulterior ação (vertente negativa do caso julgado material) e impondo o decidido intra e extraprocessual a todos os tribunais, autoridades, partes e, inclusivamente, dentro de certos limites, aos terceiros (vertente positiva daquele); e obstando o caso julgado formal que a mesma questão processual decidida, por decisão judicial transitada em julgado, seja novamente apreciada dentro do mesmo processo em que essa decisão foi proferida (vertente negativa do caso julgado formal), e impondo o respeito pelo decidido quanto a essa questão processual dentro desse processo (vertente positiva do caso julgado formal).
2- A decisão que indeferiu liminarmente o incidente da exoneração do passivo restante com fundamente no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE não contradiz o caso julgado formal que cobre a decisão proferida no apenso de qualificação da insolvência, que julgou que a abertura desse incidente era extemporânea e que, consequentemente, determinou a extinção do incidente de qualificação, em nada contradizendo aquela primeira decisão esta última (já transitada em julgado), que não conheceu de mérito.
3- Diferentemente seria se no incidente de qualificação tivesse sido proferida decisão de mérito, transitada em julgado, que tivesse qualificado a insolvência do devedor como fortuita, posto que o caso julgado material que cobriria semelhante decisão de mérito, sob pena de ser contrariado, obstava a que posteriormente ao seu trânsito se pudesse proferir decisão de indeferimento liminar do incidente da exoneração com fundamento na al. e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE.
4- A circunstância de na decisão recorrida se ter indeferido liminarmente o incidente da exoneração com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE, não obsta a que o tribunal de recurso, nos termos do art. 5º, n.º 3 do CPC, indefira liminarmente esse incidente com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. d) do mesmo Código, quando verifique que a facticidade julgada provada no despacho recorrido não se subsume à al. g), do n.º 2, do art. 186º, mas antes à sua al. d), contanto que observe previamente o contraditório em relação ao recorrente e aos recorridos face a esse distinto enquadramento jurídico da facticidade julgada provada no despacho recorrido.
5- Preenche a presunção inilidível de insolvência culposa da al. d), do n.º 2, do art. 186º do CIRE, o devedor que, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência doou, mais a mulher, o único prédio de que eram proprietários aos filhos, reservando o direito de uso e habitação para si, quando o direito que o devedor detinha sobre aquele prédio era o único bem de valor que integrava o seu património, impondo-se, por isso, indeferir liminarmente o incidente da exoneração do passivo restante com fundamento na al. e), do n.º 1, do art. 238º, ex vi, art. 186º, n.º 1, al d), do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

Banco 1..., S.A. instaurou em 13/10/2022, ação especial de insolvência contra AA, residente na Praça ..., ... ..., pedindo que este fosse declarada insolvente.
O requerido não deduziu oposição, mas requereu que lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passiva restante.
Por sentença de 27/12/2022, transitada em julgado, declarou-se a insolvência do requerido.
Em 01/02/2023, o administrador da insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, no sentido de que o devedor se encontra em estado de insolvência efetiva e seja indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, requerendo que fosse determinada a abertura do incidente de qualificação, alegando, em síntese, que: o devedor e a mulher doaram aos filhos, com reserva do direito de uso e habitação, o único bem de valor de que eram proprietários, constituído por um apartamento do Tipo ..., o qual se encontrava totalmente desonerado de qualquer ónus à data da doação.
Os credores Banco 1..., S.A. e Banco 2..., S.A., pronunciaram-se contra o deferimento do pedido da exoneração.
Por requerimento de 04/03/2023, o devedor pronunciou-se quanto ao teor do parecer e à posição assumida pelos credores, alegando, em suma: não ter contraído de facto qualquer dívida em benefício particular, mas somente através de aval que prestou a favor da sociedade EMP01..., Lda.; nasceu em 1960, tem a quarta classe de escolaridade e iniciou o seu percurso profissional naquela sociedade aos dez anos de idade; em finais de 2003 passou a ser sócio e gerente desta, ainda que só de direito, já que nunca teve qualquer intervenção na sua gerência, onde era um simples trabalhador; em 12/04/2021, numa altura em que a sociedade não tinha por liquidar qualquer dívida, ficou irremediavelmente arredado do contacto com a mesma; desde então vive à custa dos filhos; apenas em janeiro de 2022 requereu que a sua renúncia à gerência da sociedade fosse inscrita no registo, face à passividade dos seus efetivos gerentes em fazê-lo, apesar das promessas destes de que iriam providenciar pelo registo de tal renúncia, tendo, para o efeito, de recorrer a dinheiro dos filhos; comprou a casa em 1987, a qual andou a pagar até data recente, não tendo conseguido comprar além de um veículo automóvel; a sua mulher debateu-se com quezílias familiares devido a partilhas, pelo que, esta e o devedor disseram aos filhos que iriam tratar da disposição do património ainda em vida, a fim de evitar disputas entre os mesmos, propósito esse que foi reforçado pelo eventos ocorridos pela covid-19, tendo sido nesse contexto que doaram a casa aos seus filhos, fazendo-o numa altura em que nada fazia prever o incumprimento da sociedade do débito que avalizou.
Concluiu, requerendo que fosse deferido o pedido de exoneração do passivo restante por si requerido ou, caso assim se não entendesse, fosse determinada a retificação ou reelaboração do relatório junto aos autos pelo administrador da insolvência.
Juntou aos autos vários documentos e arrolou testemunhas.
Em 13/03/2023, proferiu-se despacho determinando a abertura do incidente de qualificação e determinou-se que o administrador da insolvência se pronunciasse quanto ao requerimento apresentado pelo devedor, o qual manteve o teor do seu parecer inicial.

Por despacho de 09/05/2023, transitado em julgado, decidiu-se que:
A decisão relativa à abertura do incidente de exoneração do passivo restante será tomada após a conclusão do incidente de qualificação da insolvência, pois se afigura de caráter prejudicial em relação ao primeiro”.
Ordenou-se que fosse dado cumprimento ao disposto no art. 232º, n.º 2 do CIRE.

No âmbito do incidente de qualificação da insolvência (apenso B), o administrador da insolvência emitiu parecer no sentido de que a insolvência fosse qualificada como culposa.
Para tanto alegou, em suma, que: o passivo reclamado e reconhecido na lista definitiva de credores ascende a 857.185,07 euros, não tendo ainda sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos; o único bem apreendido para a massa e suscetível de liquidação, ainda que apenas em relação à meação do devedor, é um veículo automóvel de reduzido valor; o devedor e a mulher foram proprietários de um prédio, composto por fração autónoma, designada pela letra ..., do Tipo ..., destinada a habitação, sita na Praça ...., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...61/... (...), que doaram aos filhos, em 07 de abril de 2020, reservando para si o direito de uso e habitação, o que fizeram com o propósito de subtrair aquele prédio, o qual se encontrava totalmente desonerado de qualquer ónus, penhora e/ou apreensão e quando o devedor previa que iria ser declarado insolvente.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que a insolvência fosse qualificada como culposa, nos termos do disposto no art. 186º, n.º 2, als. a) e d) do CIRE, tendo em conta os fundamente de facto descritos no parecer apresentado pelo administrador da insolvência, ao qual declarou aderir.
O devedor deduziu oposição apresentando, no essencial, a defesa que acima já acima se sumariou (em relação ao exercício do contraditório quanto ao parecer a que alude o art. 155º do CIRE) e pedindo que a insolvência fosse declarada fortuita.
Realizou-se tentativa de conciliação, e após proferiu-se: saneador tabular, fixou-se o objeto do litígio, os temas da prova, conheceu-se dos requerimentos de prova e designou-se data para realização de audiência final.
O devedor interpôs recurso dos ditos despachos, em que, nas alegações de recurso, invocou a questão da intempestividade da abertura do incidente de qualificação e a impossibilidade da sua repetição.

Na sequência da interposição daquele recurso, em 21/11/2023, a 1ª Instância proferiu o seguinte despacho, que transitou em julgado:
Alegações de 23-10-23
Dispõe o artigo 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, na redação introduzida pela Lei 9/2022, de 11 de janeiro que:
“1- O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
2- O prazo de 15 dias previsto no número anterior pode ser prorrogado, quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não suspende o prazo em curso.
3- A prorrogação prevista no número anterior não pode, em caso algum, exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º”.
Tal norma é vinculativa e se aplica aos processos pendentes. (cfr. artigos 10º. nº 1 da Lei nº 9/2022, de 11/1 e 13º, nº do Código Civil.
Considerando que o parecer de qualificação da insolvência foi apresentado em juízo, em 11-05-23, verifica-se que tal prazo legal havia sido ultrapassado.
Cumpre, no entanto, expender o seguinte raciocínio – qual a natureza jurídica deste prazo.
Tal questão dividiu a jurisprudência. No entanto, e em virtude da alteração legal suprarreferida, a questão parece definitivamente ultrapassada.
Nas palavras de M.ª Rosário Epifânio, “A natureza perentória era justificada por razões de segurança jurídica e de proteção dos potenciais afetados; já a natureza meramente ordenadora encontrava respaldo na finalidade do incidente qualificador da insolvência – o reforço da tutela dos credores concursais, que não se basta com a mera responsabilização patrimonial do insolvente e a privação do seu poder de disposição.
Na minha opinião, o legislador consagrou uma solução que permite conciliar estes interesses antagónicos. Isto porque, a rigidez do prazo de 15 dias (imposta pela tutela dos potenciais afetados), expressamente qualificado como prazo perentório, é temperada pela possibilidade de prorrogação do mesmo, com o fundamento previsto no n.º 2 do artigo 188.º (agora em nome dos interesses sancionatórios e indemnizatórios dos credores concursais).”
Em suma, apesar de o tribunal entender que existem indícios mais que suficientes para a abertura e desenvolvimento do presente incidente, o certo é que está, em virtude da alteração legal, e da maior assertividade relativamente à definição da natureza do prazo para apresentação do parecer de qualificação de mãos atadas.
Impõe-se, portanto, determinar a extemporaneidade da abertura do presente incidente.
Notifique, devendo o recorrente informar se mantem interesse no recurso”.

O devedor pronunciou-se no sentido de ocorrer inutilidade superveniente do recurso que interpôs, a propósito do que não foi proferida qualquer decisão, tendo-se contado e arquivado o apenso de qualificação.
Por sentença proferida em 05/06/2023, nos autos principais, transitada em julgado, declarou-se encerrado o processo de insolvência, por insuficiência de massa insolvente, nos termos do disposto nos arts. 230º, n.º 1, al. d) e 232º, n.º 2 do CIRE.

Na mesma data proferiu-se despacho em que se indeferiu liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante formulado pelo devedor, constando esse despacho da seguinte parte dispositiva:

“Consequentemente, não se pode deixar de concluir se verificarem, no caso concreto pressupostos para indeferir in limine o pedido de exoneração do passivo restantes, ao abrigo do disposto na al. e) do n.º 1 do art. 238º do CIRE”.

Inconformado com o decidido quanto ao indeferimento liminar do incidente da exoneração que deduziu, o devedor, AA, interpôs recurso daquele despacho, em que formulou as conclusões que se seguem:

I- O recorrente não se conforma com o douto despacho datado de 19/12/2023 que indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante.
II- Além de constituir decisão surpresa (e, por conseguinte, nula), acresce que nenhuma prova foi produzida, mormente a requerida pelo insolvente.
III- Acresce que a insolvência não foi qualificada como culposa, o que adiciona e exponencia a antinomia em crise, e reforça ainda mais a surpresa por falta de contraditório (e, por conseguinte, nulidade), não tendo sequer sido produzida também qualquer da prova que a esse propósito (de qualificação da insolvência) foi oportunamente oferecida, tal como o Tribunal a quo bem sabia, mormente atendendo à posição aí exarado nesse apenso B, inclusive, e a final, sob forma de recurso (o qual se mostrou supervenientemente inútil perante a douta decisão ulterior, tomada a final, pelo Tribunal).
IV- Não será despiciendo referir ainda a influência que a presente matéria detém no apenso A (de reclamação de créditos), dela dependente conforme douto despacho de 17-07-2023, mormente no que concerne à relevância dos créditos aí impugnados.
V- Conforme alegado oportunamente, designadamente nos requerimentos do Insolvente datados de 03-03-2023 e 06-03-2023 (os quais, por razões de economia, se consideram aqui integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos), o apelante, propriamente dito, em toda a sua vida nunca contraiu uma única dívida que não tivesse pago pontual e integralmente.
VI-Sendo a presente insolvência unicamente um mero efeito da inesperada e surpreendente insolvência da sociedade EMP01..., LDA., NIPC ...83, da qual o mesmo foi garante, ademais ocorrendo a falência dessa empresa em período em que aquele há muito tempo que já não era seu gerente de direito ou de facto.
VII- De facto, é sabido que as aparências iludem, e, conforme resulta dos autos, o insolvente, propriamente dito, em toda a sua vida nunca contraiu uma única dívida que não tivesse pago pontual e integralmente, salientando-se que tal comportamento sempre foi seguido a título pessoal, bem como no desempenho de qualquer cargo ou função.
VIII- Conforme resulta dos autos, o insolvente não contraiu de facto qualquer dívida em seu benefício particular, mas somente através de aval que prestou a favor da sociedade EMP01..., LDA., à qual dedicou literalmente uma vida inteira de trabalho e sacrifício.
IX- Pelo que, ao aferir de qualquer dívida ou comportamento que se lhe quisesse imputar, seria importante não esquecer o seu percurso de vida e quem o insolvente realmente é, pois o insolvente não pertence a qualquer estereótipo falimentar e nunca agiu sequer de forma negligente ou predeterminada a causar prejuízo a quem quer que fosse, conforme exposto nas alegações supra e que – por razões de economia e outras determinadas por lei – se consideram aqui integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.
X- A verdade é que nem os lapsos identificados nos autos foram corrigidos; nem o contraditório exercido, mormente antes da decisão surpresa; e a prova indicada pelo insolvente nunca foi considerada ou produzida, seja a oferecida nos autos principais ou a feita constar no apenso de qualificação (B).
XI- De facto, a questão da insolvência culposa ficou arredada pela inadmissibilidade do respetivo apenso por douto despacho datado de 21-11-2023, devidamente transitado em julgado, pelo que – por imperiosa exclusão de partes – só poderá ser fortuita, conforme resulta do comando legal que impende sobre o Tribunal de assim proceder e decidir em conformidade, pelo que também deve ser declarado, o que se requer.
XII- Com efeito, “…A norma do artº 185º CIRE permite, a contrario, a interpretação de que, nas demais ações, a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação da insolvência, ainda que decidida nos termos do Art.º 188.º n.ºs 4 e 5 do CIRE…”.
XIII – E ainda que “…Como se referiu, o indeferimento liminar dos pedidos de exoneração do passivo restante formulados pelos insolventes, apenas se fundou na verificação da previsão da alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE. (…) Tem entendido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que as situações elencadas na dita norma constituem factos impeditivos do direito do insolvente a obter o benefício da exoneração do passivo restante, pelo que, de acordo com o art.º 342.º n.º 2 do Código Civil, é sobre os credores do insolvente e o administrador da insolvência, que impende o ónus de alegação e prova desses factos. Por outro lado, compete aos insolventes alegarem todos os factos que constituem matéria de exceção…” (sublinhado nosso).
XIV- Ora, além das notórias deficiências do relatório (e nunca debeladas), ao insolvente também não foi permitido produzir a sua prova, como se veio a produzir agora contradição insanável entre julgados acerca do caráter fortuito da insolvência.
XV- Pelo que, tal como no douto Acórdão suprarreferido, “Assim sendo esta decisão da qualificação da insolvência relativamente á decisão do pedido de exoneração faz caso julgado, que foi violado pela decisão do indeferimento da exoneração do passivo restante. Ou seja, as duas decisões são contraditórias, pois que, o fundamento do indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante radica na previsão da al. e) do nº1 do artº 238º CIRE, traduzindo uma insolvência culposa. Assim, como se refere no citado Acórdão da Relação do Porto de 28/01/2014 não parece razoável que se possam produzir decisões contraditórias no processo, ou seja, existe autoridade do caso julgado formado pela decisão da qualificação da insolvência no indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, à luz da norma do artº 238º nº1 al. e) CIRE. Deve, pois, proceder a apelação, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente da exoneração…” (sublinhado nosso).
XVI- Conforme resulta na quarta página do douto despacho em crise, conclui-se que “Quanto à tempestividade nada a apontar ao pedido formulado, não se preenchendo igualmente os insolventes nenhuma das circunstâncias a que se refere o disposto no al. b), c), d), f) e g) do art. 238º do CIRE…” (não obstante o eventual lapso da referência ao plural visto apenas haver um insolvente) (sublinhado nosso).
XVII- Contudo, seguidamente, o Tribunal a quo, após identificar que irá aferir do preenchimento da alínea e) do mencionado artigo, conclui, sem mais, que “…Regressando ao assunto em análise temos que a situação se integra no disposto no artº 186º, 2, al. g) do CIRE, uma vez que os insolventes, conhecendo a sua situação financeira gravosa, prosseguiram no mesmo comportamento, com prejuízo dos credores…” (com reiteração do eventual lapso da referência ao plural visto apenas haver um insolvente) (sublinhado nosso).
XVIII-Sucede que o insolvente, à data, e até à insolvência da sociedade, não conhecia, não estava, e nem previa, qualquer “situação financeira gravosa”, mas antes numa total estabilidade financeira presente e futura (seja pelas contas em dia nessa sociedade, seja porque auspiciava ainda muitos anos de trabalho e, longinquamente, uma reforma tranquila).
XIX- Nem tampouco prosseguiu com qualquer comportamento, e muito menos com prejuízo dos credores, seja porque está em causa alegado ato único, seja porque nunca previu qualquer prejuízo, muito menos de quaisquer credores que, no seu modesto entender, seriam da sociedade (a qual sempre honrou pontualmente os seus compromissos, nem de outra forma se teria mantido desde 1965, tratando-se os créditos em causa de atos correntes e normais em qualquer sociedade, sobretudo nesta aqui em causa).
XX- No que concerne à referida alínea g), do n.º 2, do artigo 186º, do CIRE, esta prevê como culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: “…g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;…” (sublinhado nosso).
XXI- Sucede que o insolvente, pessoa singular, não prosseguiu, no seu interesse pessoal ou de terceiro, qualquer exploração deficitária, nem sabia ou deveria saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
XXII- Acresce que, seguidamente se refere que “….da análise dos documentos juntos aos autos conclui-se que (…) foi na mesma data convenientemente reservado, a favor do ora insolvente da mulher, o direito de uso e habitação do imóvel…”.
XXIII- Ora, salvo o devido respeito, dos documentos poder-se-á extrair que foi reservado o dito uso e habitação do imóvel, mas já não o termo “convenientemente”, aliás originariamente empregue pelo Sr. Administrador.
XXIV- Nem o valor indicado (constante no relatório do Sr. Administrador, nos termos do artigo 155º, do CIRE, de 01/02/2023) está de acordo com o valor indicado no apenso de reclamação de créditos (em 07/02/2023), e que é inferior.
XXV- Ora, daqui, e para concluir pela decisão com que se abriram as alegações supra, o Tribunal a quo refere o seguinte: “…Ora, tal comportamento, contrário ao combate da situação financeira delicada em que se encontravam, apenas contribuiu para o piorar da mesma, como que tentando tapar o sol com a peneira. Essa atitude agravou substancialmente a situação patrimonial do insolvente, e demonstra uma avançar da situação deficitária, em que o caminho inevitável seria a insolvência. Trata-se de mero raciocínio matemático. O insolvente assumiu comportamento que aumentou a sua impossibilidade de cumprir com as suas dívidas, bem sabendo, e não podendo desconhecer, que a sua capacidade de gerar rendimentos era inferior ao valor dos débitos contraídos…” (sublinhado nosso).
XXVI- Sucede que o insolvente não se encontrava em qualquer situação financeira delicada (nem tal lhe passava pela cabeça), e tal ato nada teve que ver com a criação ou agravamento da insolvência que proveio única e exclusivamente da referida sociedade, na qual o exponente há muito tempo que nem sequer entrava, mas cujas contas tinha deixado em dia quando saiu por doença, sendo certo que de seguida ficou reformado.
XXVII- Pelo que inexiste qualquer “avançar da situação deficitária, em que o caminho inevitável seria a insolvência”, nem se tratando de qualquer “raciocínio matemático”, mas antes de ato único, isolado e muito distante, sem qualquer relação com a causa ou agravamento da insolvência original, sendo esta totalmente imprevisível.
XXVIII- Sendo notório que o insolvente nesse momento não assumiu ou imaginou qualquer comportamento que aumentasse a sua impossibilidade de cumprir com dívidas estritamente pessoais (porque não as tinha) ou com as dívidas da sociedade (que estavam, como sempre estiveram, em dia).
XXIX- E, do mesmo modo, também não poderia saber ou prever que a sua capacidade de gerar rendimentos era inferior ao valor de quaisquer débitos contraídos, nem o referido ato tem que ver com essa capacidade e gerar rendimentos visto tratar-se de uma habitação.
XXX- Pelo que deverá ser julgado procedente o presente recurso e, em conformidade, revogar-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, sob pena de manutenção de decisões contraditórias e violação das normas supra indicadas, mormente o artigo 342º, do CC; os artigos 185º a 191º (especialmente: o artigo 185º; a alínea g), do n.º 2, do artigo 186º; e o artigo 188º, os artigos 235º a 248º (especialmente a alínea e), do n.º 1, do art.º 238.º), todos do CIRE; o artigo 3º, e as alíneas b), c), d), do n.º 1, do artigo 615º, todos do CPC; e os artigos 18º, 20º, 202º, 204º e 205º, todos da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deverá proceder o presente recurso e, em conformidade, revogar-se a douta decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante. Pois só assim se fará JUSTIÇA!
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso interposto como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Em 11/04/2024, o aqui relator proferiu o seguinte despacho:

“No despacho recorrido, a 1ª Instância julgou provada a “facticidade” que se segue:
A- o insolvente e a esposa foram proprietários da fração autónoma designada pela letra ..., composta por ... andar, Tipo ..., destinado a habitação, sito em Praça ...., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...61 [... (...), conforme descrição predial do imóvel que se junta sob o n.º 1.
B- Este imóvel, único bem de valor propriedade do insolvente e totalmente desonerado, foi doado pelo insolvente e pela esposa a BB e a AA, ao que se apurou filhos do insolvente, na proporção de metade para cada uma, conforme se alcança da Ap. ...96 de 2020/04/07, registada sobre o dito imóvel.
C- O insolvente e a esposa reservaram para si o direito de uso e habitação sobre o imóvel, conforme Ap. ...97 de 2020/04/07, igualmente registada sobre o imóvel.
D- Na doação supra anunciada, foi na mesma data convenientemente reservado, a favor do ora insolvente da mulher, o direito de uso e habitação do imóvel, consabido que tal direito pela sua natureza jurídica não pode ser objeto de penhora, constituindo o ónus um fator de exponencial redução do valor do imóvel, mesmo que a doação venha a ser objeto de impugnação pauliana, que na procedência permita ao credor impugnante a execução do bem ou direito na esfera do adquirente.
D- À data da entrada em juízo dos presentes autos insolvenciais, já haviam decorrido mais de dois anos após a ante referida doação, pelo que não pôde a massa insolvente, por caducidade, acionar o mecanismo jurídico tendente à resolução do negócio, sendo que, como consabido às massas insolventes encontra-se vedada o recurso à ação de impugnação pauliana.
E- O insolvente é devedor aos credores elencados na lista provisória de credores anexa ao presente relatório, do valor global de 859.995,60 € (oitocentos e cinquenta e nove mil, novecentos e noventa e cinco euros e sessenta cêntimos).
E com base nela considerou encontrar-se preenchido o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo apelante, previsto no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE.
A doação, com reserva do direito de uso e habitação, feita pelo apelante (devedor) e mulher aos filhos do prédio composto por fração autónoma destinada a habitação, Tipo ..., sito na Praça ...., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...61/... (...), quando aquele, à data dessa doação, se encontrava desonerado de quaisquer ónus, a que se reportam as alíneas A) a C) da facticidade julgada provada pela 1ª Instância no despacho recorrido (abstraindo-se, pois, dos demais considerandos que estas alíneas encerram) encontra-se plenamente provada nos autos mediante documento autêntico que a eles se encontra junto, a saber: certidão da Conservatória do Registo Predial relativa a esse prédio.
Essa facticidade (doação feita pelo apelante da sua metade indivisa aos filhos naquele prédio) é suscetível de preencher de per se a presunção de insolvência culposa inilidível (segundo uma corrente doutrinária e jurisprudencial) ou a ficção legal de insolvência culposa (segundo outra) prevista na al. d), do n.º 2 do art. 186º do CIRE e de constituir, assim, nos termos do art. 238º, n.º 1, al. e) desse mesmo diploma, fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo apelante.
Atento o disposto no art. 5º, n.º 3 do CPC, salvo melhor opinião, não se encontra o tribunal ad quem impedido de efetuar o enquadramento jurídico acima referido daquela facticidade (distinto do que foi feita pela 1ª Instância no âmbito do despacho recorrido), já que a mesma já consta do elenco dos factos provados no despacho recorrido.
No entanto, sob pena de se incorrer em nulidade, por violação do princípio do contraditório, na sua dimensão positiva (art. 3º, n.º 4 do CPC), impõe-se, antes de mais, que se cumpra o contraditório em relação ao apelante, credores e o administrador da insolvência.

Nesta conformidade, decide-se:

a- retirar o processo da tabela;
b- ordenar a notificação do apelante, credores e administrador da insolvência para se pronunciarem, querendo, no prazo de dez dias, quanto ao enquadramento jurídico distinto acima propugnado da facticidade julgada provada no despacho recorrido”.

Apenas o recorrente AA se pronunciou, o que fez nos termos que se seguem:

I – Do caráter fortuito da insolvência
1 – Desde já penitenciando por qualquer eventual falta de clareza na explanação do seu recurso, importa salientar que, tal como exposto junto do Tribunal a quo, bem como no recurso interposto (cfr. alegações e respetivas conclusões, designadamente III, XI, e XII a XV);
2 – A questão da insolvência culposa ficou definitivamente arredada pela inadmissibilidade do respetivo apenso, conforme douto despacho datado de 21-11-2023, devidamente transitado em julgado, pelo que – por imperiosa exclusão de partes – só poderá a insolvência ser fortuita, conforme resulta do comando legal que impende sobre o Tribunal de assim proceder e decidir em conformidade, cuja declaração aliás se requereu apenas para afastar qualquer eventual dúvida;
3 – Com as alterações introduzidas no CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, o incidente de qualificação da insolvência passou a ser facultativo e, não sendo aberto aquando da declaração de insolvência, só poderá ser requerido por apenso e em prazo perentório (cfr. artigo 188º, n.º 1, do CIRE);
4 – E só nesse incidente de qualificação é que a insolvência pode ser reputada como culposa;
5 – Caso contrário (como é o destes autos), o carácter da insolvência é sempre fortuito (cfr. artigo 185º/3, e artigo 233º, n.º 6, ambos do CIRE);
6 – O que comporta diversas consequências, como seja a vinculação a tal qualificação fortuita que assim acabou por se impor.
7 – Com efeito, e do mesmo modo, “…A norma do artº 185º CIRE permite, a contrario, a interpretação de que, nas demais ações, a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação da insolvência, ainda que decidida nos termos do Art.º 188.º n.ºs 4 e 5 do CIRE…” (sublinhados nossos).
8 – E ainda que “…A dita norma do art.º 185.º visa evitar a existência de decisões que mutuamente se implicam pois que, o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, com o fundamento da al. e) do n.º1 do artº 238º CIRE, traduz uma insolvência culposa ou seja, existe autoridade do caso julgado formado pela decisão da qualificação da insolvência, que a decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo deve respeitar.
Sobre tal questão tem vindo a decidir-se que a qualificação da insolvência como fortuita vincula a decisão do pedido de exoneração mesmo quando a decisão foi tomada nos termos do art.º 188.º n.º 4 (na redação anterior), caso em que, de facto, não se conhecia de mérito, argumentando-se que, mesmo quando a atribuição da qualificação pelo juiz é vinculativa, tal decisão prevalece como caso julgado (cf. Acórdãos da Relação do Porto de: 28-01-2014, 4/03/2013, 3/12/2012 e da relação de Coimbra de: 24/4/2012 e de 29/2/2012 publicados em www.dgsi.pt).
(…)
Em nosso entender a alteração do art.º 188.º n.ºs 4 a 6, reforça a primeira posição.
No caso concreto, o que sucedeu foi que, quando se decidiu pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, nenhuma decisão tinha sido proferida sobre a qualificação da insolvência, que só posteriormente foi proferida, ou seja, inexistia qualquer decisão anterior transitada com força de caso julgado.
Não obstante, neste momento a decisão recorrida ainda não transitou em julgado e a decisão da qualificação da presente insolvência como fortuita, ao contrário, já transitou em julgado.
Assim sendo esta decisão da qualificação da insolvência relativamente á decisão do pedido de exoneração faz caso julgado, que foi violado pela decisão do indeferimento da exoneração do passivo restante.
Ou seja, as duas decisões são contraditórias, pois que, o fundamento do indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante radica na previsão da al. e) do n.º 1 do art.º 238º CIRE, traduzindo uma insolvência culposa.
Assim, como se refere no citado Acórdão da Relação do Porto de 28/01/2014 não parece razoável que se possam produzir decisões contraditórias no processo, ou seja, existe autoridade do caso julgado formado pela decisão da qualificação da insolvência no indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, à luz da norma do art.º 238º n.º 1 al. e) CIRE.
Deve, pois, proceder a apelação, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente da exoneração…”;
9 – Dito de outro modo, a insolvência tem de ser qualificada como culposa ou fortuita;
10 – Sendo inadmissível o incidente de qualificação por decisão transitada em julgado, e já não sendo possível a sua qualificação como culposa, a presente insolvência só poderá ser fortuita;
11 – O que vincula sempre a decisão do pedido de exoneração, a qual, em caso de indeferimento viola o caso julgado da inadmissibilidade do incidente de qualificação (por ser o único meio onde a insolvência poderia ser considerada culposa);
12 – Ou seja, as duas decisões são contraditórias, pois que, o fundamento do indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante radica sempre na previsão da al. e), do n.º 1, do artigo 238º, do CIRE, traduzindo uma insolvência culposa (cfr. ainda a remissão expressa “…nos termos do artigo 186º…” cuja epígrafe é exatamente “Insolvência culposa”);
13 – O que, como já se viu, é impossível;
14 – Não podendo a exoneração do passivo restante ser indeferido com fundamento nos termos propostos;

Sem prescindir,

II – Da referência a factos provados

15 – Quanto aos factos agora identificados como provados, e que inculcam a apontada culpa;
16 – A verdade é que, não havendo incidente de qualificação, também não existem factos provados acerca dessa culpa, desde logo porque nem sequer houve qualquer produção de prova, mormente a requerida;
17 – No entendimento do recorrente, os ditos factos não foram elencados como provados, mas apenas referenciados como conclusões focadas pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência no relatório a que alude o artigo 155º: “…Com efeito, e como bem é focado pelo Sr. Adm. de Insolvência, da análise dos documentos juntos aos autos conclui-se que…” (sublinhado nosso);
18 – Saliente-se que, aquilo que é agora identificado como factos provados, mereceu do Tribunal a quo o epíteto de conclusões quando refere expressamente “conclui-se que…”;
19 – Ora, acresce que em momento algum (incidente de qualificação, reclamação de créditos, exoneração do passivo restante ou outro), foi permitido ao insolvente produzir a sua prova, apesar de requerida, dificilmente se percebendo como poderiam ser considerados provados tais factos ou sequer admitida a sua subsistência;
20 – E, mesmo que de factos se tratassem (e não conclusões), teriam sido sempre extraídos de sede onde nunca foi permitida a produção de prova requerida, nem tendo havido lugar a qualquer audiência de discussão e julgamento, ou sequer aviso prévio em qualquer sentido, daí a alegada surpresa na decisão e consequente nulidade invocada;
21 – Contudo, na douta decisão em crise, aquilo que não ficou transcrito desse relatório do Exmo. Sr. AI é que, de seguida, aí consta o seguinte: “...releva para efeito de eventual qualificação como culposa da insolvência, que a ser como tal qualificada, inviabilizará o pedido de exoneração do passivo restante...” (sublinhado nosso);
22 – Acontecendo que, tal como se viu, a insolvência não foi qualificada como culposa, pelo que, a contrario, também não poderá o afirmado relevar para obstar à exoneração do passivo restante;
23 – S.m.o., é notório que os elementos extraídos do dito relatório do artigo 155º não podem ser considerados factos provados, desde logo a começar pelo valor agora indicado e também feito constar da douta decisão em crise: “859.995,60 €”;
24 – Pois, reitera-se, conforme alegações e conclusões do presente recurso “…XIV– Nem o valor indicado (pelo constante no Relatório do Sr. Administrador, nos termos do artigo 155º, do CIRE, de 01/02/2023) está de acordo com o valor indicado no apenso de reclamação de créditos (em 07/02/2023), e que é inferior…”;
25 – Mais se recordando que, conforme já referido, o dito apenso de reclamação de créditos não está findo e nem sequer está a tramitar;
26 – Por outro lado, além da prova que foi indicada e nunca foi produzida, mais se recorda que as deficiências do relatório a que alude o artigo 155º, bem como os lapsos e contradições identificados nos autos, também nunca foram debelados;
27 – Quanto ao documento autêntico (certidão da Conservatória do Registo Predial), em rigor, foi junto ao dito relatório do Sr. AI uma descrição de teor informativo;
28 – Pelo que, salvo lapso que se requer relevado, em rigor, não consta nos autos (principais e apensos, agora integralmente revistos) qualquer certidão;
29 – Por último, salvo o devido respeito – que é muito –, e melhor entendimento, não poderá preencher-se qualquer presunção inilidível de insolvência culposa, ou ficção legal de insolvência culposa, visto que, em consequência de tudo que já foi dito:
29.1 – Não existe facticidade ou factos provados;
29.2 – A insolvência não é, e não pode ser, de forma alguma, culposa;
29.3 – Não consta dos autos qualquer certidão da Conservatória do Registo Predial;
30 – Nunca é demais salientar e reiterar que, sendo a presente insolvência de pessoa singular, este homem, agora reformado, sempre trabalhou, desde criança, e sempre honrou todos os seus compromissos pessoais;
31 – Sendo todas as eventuais dívidas em causa unicamente provindas da sociedade onde trabalhou arduamente, e sempre como qualquer outro trabalhador;
32 – E, quando dela saiu, por doença, e muito antes da insolvência dessa sociedade, todas as contas estavam em dia, e ninguém poderia sequer prever a futura insolvência que, muito mais tarde, pelas mãos de outros, viria a ocorrer de forma inexplicável;
33 – Pelo que, da mesma forma que sempre se referiu em todas as peças, reitera-se que as aparências iludem, e, ao aferir de qualquer dívida ou comportamento que se quisesse imputar ao Sr. AA, seria importante não esquecer o seu percurso de vida e quem ele realmente é, pois não pertence certamente a qualquer estereótipo falimentar e nunca agiu sequer de forma negligente ou predeterminada a causar prejuízo a quem quer que fosse;
34 – O que (em rigor, e penitenciando-se pela assinalável franqueza) é por demais evidente, visto que, na hipótese contrária (dolosa e predeterminada), e atendendo aos concretos factos invocados, teria sido extremamente fácil procrastinar qualquer petição de insolvência junto dos credores da sociedade, mormente de modo a obstar ao curtíssimo remanescente do período temporal indicado no n.º 1, do artigo 186, do CIRE;
35 – Mas que, por constituírem tudo factos e intenções que nunca passaram pela cabeça do insolvente, nem sequer as equacionou, tal era o seu afastamento da sociedade há já muito tempo, como absoluta a sua boa-fé relativamente aos seus atos;
36 – E que, relativamente a isto e ao demais, por razões de economia e celeridade aqui não se repetirá porquanto já consta nas suas alegações e demais peças aí identificadas;

Sem prescindir,

III – Do conhecimento pelo Tribunal ad quem

37 – Nos termos do disposto nos artigos 608º, n.º 2, 609º, n.º 1, 635º, n.º 4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o Tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso;
38 – Pelo que, desde logo, e s.m.o., o recorrente restringiu colocando em causa o enquadramento jurídico feito pela 1ª Instância, sem qualquer facticidade passível de ingresso, além de ser matéria contraditória, e até sobre a qual nem sequer recaiu produção de prova (apesar de reiteradamente requerida em diferentes sedes12), sendo também um dos fundamentos do recurso a total surpresa da decisão;
39 – Aliás, recorda-se que até o próprio apenso de reclamação de créditos, impugnados, nem sequer está concluído, como nem sequer está a tramitar, sendo inegável a dependência e prejudicialidade aqui existente;
40 – Acresce que, pelo antes exposto, não se verificam os pressupostos referidos para efetuar o enquadramento jurídico referido como distinto do que foi feita pela 1ª Instância no âmbito do douto despacho recorrido;
41 – Desde logo por se discordar da existência de factos provados no douto despacho recorrido, mesmo abstraindo dos considerandos que as conclusões aí vertidas claramente encerram;
42 – Na falta de factos provados, bem como produção de prova acerca dos mesmos, sobretudo se requerida, fica prejudicada a possibilidade de sustentar qualquer decisão;
43 – A considerar ainda a questão prévia e transversal a toda a insolvência (apenas qualificável como fortuita), e que impossibilita outro entendimento diferente do propugnado pelo recorrente;
44 – Impõe-se ainda convocar as assinaladas desconformidades com a lei constitucional – pelo menos desde que se pronunciou acerca do relatório a que alude o artigo 155º, do CIRE, passando pela oposição apresentada no incidente de qualificação da insolvência, e reiteradas até esta instância superior –, mormente no que concerne à violação dos artigos 18º, 20º, 202º, 204º e 205º, todos da Constituição da República Portuguesa, e que, por razões de economia, aqui também se consideram integralmente reproduzidas;
45 – Pelo que, concluindo-se como no recurso em apreço, impõe-se a revogação da douta Decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente para exoneração do passivo restante, mormente atendendo ao aqui reiterado caráter fortuito da presente insolvência.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- Se o despacho recorrido (que indeferiu liminarmente o pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante com fundamento no disposto no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE) é nulo por violação do princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa;
b- Se ao proferir o dito despacho a 1ª Instância incorreu em violação do direito à prova que assiste ao recorrente e se tal determina a nulidade do despacho recorrido;
c- Se naquele despacho a 1ª Instância incorreu em erro de julgamento da matéria de facto ao julgar provado o segmento “convenientemente” da facticidade que julgou provada na alínea D, bem como quanto à facticidade que julgou provada na alínea E.
d- Se a decisão de mérito constante desse despacho viola o caso julgado que cobre o despacho proferido no apenso de qualificação da insolvência (apenso D), em 21/11/2023, transitado em julgado, e quais as consequências jurídicas que decorrem dessa eventual violação;
e) Se no dito despacho (que indeferiu liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante formulado pelo requerente com fundamento no disposto no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE), a 1ª Instância incorreu em erro de direito em virtude dos requisitos legais dessas disposições que selecionou não se encontrarem preenchidos e se, em consequência, se impõe revogar esse despacho e proferir despacho admitindo liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente;
f) Questão de conhecimento oficioso, face ao disposto no art. 5º, n.º 3 do CPC, e suscitada pelo tribunal ad quem face à facticidade julgada provada no despacho recorrido e em relação à qual observou o contraditório em relação ao recorrente e a todos os interessados: se o despacho recorrido ao considerar não se encontrarem preenchidos os pressupostos legais de indeferimento liminar do incidente de exoneração deduzido pelo recorrente do art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. d), do CIRE, padece de erro de direito e se, em consequência, face à facticidade julgada provada pela 1ª Instância nesse despacho recorrido e ao seu enquadramento jurídico se impõe indeferir liminarmente o incidente da exoneração deduzido pelo recorrente, confirmando-se o despacho recorrido embora com base neste distinto enquadramento fáctico-jurídico.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

No despacho recorrido a 1ª Instância julgou provada a “facticidade” que se segue, com relevância para a decisão a proferir de (in)deferimento do pedido da exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente:
A- O insolvente e a esposa foram proprietários da fração autónoma designada pela letra ..., composta por ... andar, Tipo ..., destinado a habitação, sito em Praça ...., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...61 [... (...), conforme descrição predial do imóvel que se junta sob o n.º 1.
B- Este imóvel, único bem de valor propriedade do insolvente e totalmente desonerado, foi doado pelo insolvente e pela esposa a BB e a AA, ao que se apurou filhos do insolvente, na proporção de metade para cada uma, conforme se alcança da Ap. ...96 de 2020/04/07, registada sobre o dito imóvel.
C- O insolvente e a esposa reservaram para si o direito de uso e habitação sobre o imóvel, conforme Ap. ...97 de 2020/04/07, igualmente registada sobre o imóvel.
D- Na doação supra anunciada, foi na mesma data convenientemente reservado, a favor do ora insolvente da mulher, o direito de uso e habitação do imóvel, consabido que tal direito pela sua natureza jurídica não pode ser objeto de penhora, constituindo o ónus um fator de exponencial redução do valor do imóvel, mesmo que a doação venha a ser objeto de impugnação pauliana, que na procedência permita ao credor impugnante a execução do bem ou direito na esfera do adquirente.
D1- À data da entrada em juízo dos presentes autos insolvenciais, já haviam decorrido mais de dois anos após a ante referida doação, pelo que não pôde a massa insolvente, por caducidade, acionar o mecanismo jurídico tendente à resolução do negócio, sendo que, como consabido às massas insolventes encontra-se vedada o recurso à ação de impugnação pauliana.
E- O insolvente é devedor aos credores elencados na lista provisória de credores anexa ao presente relatório, do valor global de 859.995,60 € (oitocentos e cinquenta e nove mil, novecentos e noventa e cinco euros e sessenta cêntimos).
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da nulidade do despacho recorrido por violação do princípio do contraditório.
O recorrente assaca ao despacho recorrido o vício da nulidade com fundamento que na sua prolação ocorreu violação do princípio do contraditório, configurando aquele uma decisão-surpresa, embora não adiante outras especificações a propósito dessa concreta nulidade.
O princípio do contraditório, a par do princípio do dispositivo constituem traves mestras do processo civil nacional estando subjacente ao primeiro a ideia de que repugna ao sistema processo civil nacional decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, pelo que, o sistema processual civil apenas comporta desvios a esse princípio em situações excecionalíssimas quando outros interesses se sobreponham à sua observância, como é o caso de certas providências cautelares, em que a sua observância é deferida para momento posterior ao decretamento e execução do procedimento cautelar[2].
O princípio do contraditório é, em si mesmo, uma decorrência do princípio da igualdade das partes consagrado no art. 4º do CPC (onde constam todas as disposições legais sem menção em contrário) e tem um conteúdo multifacetado.
Na sua dimensão tradicional, o princípio do contraditório significa que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses delineado subjetiva (quanto às partes) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) pelo demandante no requerimento inicial sem que a outra parte (demandada) seja devidamente chamada (isto é, citada) para deduzir a defesa que entenda pertinente.
Esta vertente encontra-se atualmente consagrada no n.º 1 do art. 3º e traduz a vertente negativa do princípio do contraditório.
Nessa conceção negativa e tradicional do princípio do contraditório o objetivo prosseguido pelo legislador com a sua consagração é o de garantir a defesa à pessoa demandada, possibilitando a sua audição prévia para que, querendo, responda à pretensão deduzida pelo demandante na petição inicial com fundamento na causa de pedir que aí delineou, apresente a sua própria versão dos factos, ofereça as suas provas, controle as provas do seu adversário e discorra sobre o valor e resultados de umas e outras[3].
Acontece que a conceção moderna do princípio do contraditório assume um conteúdo mais amplo do que o tradicional, ao consagrar-se, no n.º 4 do art. 3º, que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Consagra-se nesta disposição legal uma dimensão ampla do princípio do contraditório, em que se reconhece que, a par da sua vertente negativa, de audição da parte contrária (demanda), a fim de se garantir a sua defesa (n.º 1, do art. 3º), o princípio em causa também comporta uma vertente positiva (n.º 4 do art. 3º), que garante às partes a sua efetiva participação “no desenvolvimento de todo o litígio para que, em termos de plena igualdade, possam influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente para a decisão”[4] e ao, assim, proibir-se a indefesa e a prolação de decisões-surpresa.
Nesta dimensão positiva e moderna do princípio do contraditório já não se trata apenas de garantir a defesa do demandado, mas o de assegurar aos pleiteantes a possibilidade de influenciarem todos os aspetos que surjam como relevantes para a decisão final a proferir pelo tribunal quanto a pleito que aquelas lhe apresentaram à sua apreciação e decisão.
Revertendo ao caso dos autos, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não se descortina que, no âmbito do presente incidente da exoneração do passivo restante tenha ocorrido violação do seu direito ao contraditório em qualquer uma das suas vertentes negativa e/ou positiva.
Com efeito, tendo sido instaurada a presente ação especial de insolvência onde era requerido que o recorrente fosse declarado insolvente, este foi devidamente citado para os termos do presente processo, onde teve, portanto, a possibilidade de apresentar a defesa que lhe aprouve apresentar e onde requereu que lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante.
Elaborado pelo administrador da insolvência o parecer a que alude o art. 155º do CIRE, onde foi do parecer que o pedido da exoneração devia ser liminarmente indeferido pelos fundamentos fácticos que explanou naquele (a saber: o devedor e a mulher doaram aos filhos, com reserva do direito de uso e habitação, o único bem de valor de que eram proprietários, composto por um apartamento do Tipo ..., que à data dessa doação se encontrava desonerado de qualquer encargo), o recorrente e os demais interessados foram notificados desse parecer e tiveram possibilidade de exercer quanto ao mesmo o contraditório que lhes aprouve, direito esse que, aliás, o recorrente exercitou, por requerimento entrado em juízo em 04/03/2023.
Acresce que, tendo, em 13/03/2023, a 1ª Instância proferido despacho em que determinou a abertura do incidente de qualificação da insolvência do requerente, tendo, no respetivo apenso (apenso B), o administrador da insolvência emitido parecer em que requereu que a insolvência fosse qualificada como culposa, essencialmente com os mesmos argumentos que antes já se explanaram a propósito do parecer a que alude o art. 155º do CIRE, e tendo esse parecer sido secundado pelo Ministério Público, o recorrente foi notificado daqueles para deduzir, querendo, oposição, onde exerceu o seu direito ao contraditório e onde arrolou e requereu a prova que lhe aprouve, mas que não chegou a ser produzida, dado que, já após a realização de tentativa de conciliação, de prolação de saneador tabular, fixação do objeto do litígio, dos temas da prova, apreciação dos requerimentos probatórios que tinham sido apresentados e designação de data para a realização de audiência final, na sequência do recurso interposto pelo recorrente, em que alegou que o parecer emanado pelo administrador da insolvência, em que requeria que a insolvência fosse qualificada como culposa era extemporâneo e que, por isso, a abertura do incidente de qualificação padecia de igual vício, a 1ª Instância, por despacho proferido nesse apenso de qualificação (apenso B), em 21/11/2023, transitado em julgado, julgou extemporânea a abertura do incidente de qualificação em causa e, em consequência, julgou (implicitamente) extinta a instância deste, decisão essa que lhe foi igualmente notificada, bem como aos demais interessados, que não a impugnaram, e que, por isso, transitou em julgado, tudo conforme consta do “Relatório” que acima elaboramos.
Por outro lado, na sequência da pendência do incidente de qualificação, já nos presentes autos principiais, por despacho proferido em 09/05/2023, a 1ª Instância determinou que “a decisão relativa à abertura do incidente de exoneração do passivo restante”, ou seja, sobre o deferimento ou o indeferimento liminar do incidente da exoneração deduzido pela recorrente,  “será tomada após a conclusão do incidente de qualificação da insolvência, pois se afigura de caráter prejudicial em relação ao primeiro”. E essa decisão foi igualmente notificada ao recorrente e aos restantes interessados, que com ela se conformaram, tendo transitado em julgado.
Finalmente, com a notificação dessa decisão, o recorrente ficou bem ciente que, uma vez concluído o incidente de qualificação (o que aconteceu mediante o trânsito em julgado da decisão proferida no respetivo apenso B, em 05/06/2023, julgando extemporânea a sua abertura, com a consequente extinção da respetiva instância), seria proferido, nos autos principais, pela 1ª Instância despacho de deferimento ou de indeferimento liminar do incidente da exoneração do passivo restante que formulara, pelo que, neste conspecto, ao proferir o despacho sob sindicância também não ocorreu qualquer violação do princípio do contraditório que assiste ao recorrente, não configurando a decisão em causa manifestamente qualquer decisão-surpresa  para o último.
Em síntese, o princípio do contraditório, na sua dupla vertente negativa e positiva, foi integralmente observado em relação ao recorrente ao longo do presente processo de insolvência e seus apensos, não consubstanciando o despacho recorrido manifestamente qualquer decisão-surpresa para o mesmo.
Destarte, sem mais considerações, por desnecessárias, improcede o vício da nulidade do despacho recorrido, por pretensa violação do princípio do contraditório que vem invocado pelo recorrente.

B- Da nulidade do despacho recorrido por violação do direito à prova do recorrente.
Advoga o recorrente que, ao proferir o despacho recorrido, a 1ª Instância violou o seu direito à prova, posto que, não foi produzida nenhuma prova, mormente, a requerida pelo próprio nos autos principais e no apenso de qualificação da insolvência, o que determina a sua nulidade (ao que depreendemos da sua alegação).
Sendo a prova a atividade destinada à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos (art. 341º do CC), naturalmente que para que as partes possam obter a efetividade dos direitos e dos interesses que estão a ser discutidos no processo de forma justa e equitativa, tem de lhes ser assegurada a possibilidade de recorrerem aos meios de prova que a lei coloca ao seu dispor, a fim de demonstrarem a realidade dos factos com cuja prova se encontrem onerados ou para que a parte contrária faça a contraprova desses factos, isto é, abale a convicção do julgador quanto à sua verificação. Daí que se costume falar de um direito à prova que assiste às partes.
Esse direito das partes à prova apenas cede quando: a prova seja apresentada e/ou requerida fora dos prazos legalmente estabelecidos para o efeito; quando a prova junta e/ou requerida seja totalmente irrelevante para os factos que estão a ser discutidos no processo e que nele permaneçam controvertidos, sejam eles essenciais, complementares ou instrumentais; quanto se trate de prova materialmente lícita mas processualmente inadmissível (v.g., arrolamento de testemunhas em número superior ao legalmente estabelecido ou a utilização de prova testemunhal para a demonstração de um facto que já se encontra confessado, plenamente provado ou que apenas possa ser provado através de documento escrito, etc.); quando se trate de prova materialmente proibida; ou quando a sua produção contenda com direitos de terceiros que a lei considere deverem prevalecer sobre o direito das partes à prova (v.g. prova coberta por sigilo profissional, de confissão, etc. – art. 417º, n.º 3 do CPC)[5].  
No caso sobre que versam os autos, salvo melhor opinião, não ocorreu qualquer violação do direito à prova do requerente quanto à prova que arrolou e requereu no âmbito do incidente de qualificação (apenso B), pela singela razão de que, por despacho nele proferido, em 21/11/2023, transitado em julgado, julgou-se que a abertura desse incidente era extemporânea e, em consequência, julgou-se (implicitamente) extinto o mencionado incidente de qualificação, com o que ficou prejudicado o conhecimento do seu objeto (factos nele alegados pelo administrador da insolvência e pelo Ministério Público nos respetivos pareceres a fim de suportarem o pedido que neles formularam no sentido de que a insolvência do recorrente fosse qualificada como culposa; prova que arrolaram e requereram no âmbito do identificado incidente de qualificação para prova dessa facticidade essencial que alegaram nesses pareceres e, bem assim, para prova dos factos complementares e/ou dos instrumentais, que, ainda que não alegados em tais pareceres, viessem a ser provados nos condicionalismos legais previstos no art. 5º, n.º 2, als. a) e b) e que, na sequência da oposição que viesse a ser apresentada pelo recorrente, permanecesse controvertida; defesa apresentada pelo recorrente na oposição que apresentou no incidente de qualificação, mormente, a matéria fáctica essencial integrativa de eventuais exceções que aí tivesse alegado; prova que apresentou e/ou requereu com vista a fazer prova da facticidade integrativa dessas exceções e/ou para fazer a contraprova da facticidade alegada pelo administrador da insolvência e pelo Ministério Público).
Acresce dizer que, tendo a 1ª Instancia, no despacho recorrido, julgado provada a facticidade que aí se encontra vertida (e que acima se transcreveu), a pretensa violação do direito à prova do recorrente que por ele vem invocada reconduz-se em saber se a prova documental em que a 1ª Instância fundou a prova dessa facticidade era ou não suficiente para a julgar como provada, ou se essa prova documental podia ser contrariada por outros meios de prova que tivessem sido arrolados e/ou requeridos pelo recorrente em sede do presente incidente da exoneração do passivo restante, o que se reconduz, contrariamente ao que parece ser o entendimento do recorrente, não a qualquer causa determinativa de nulidade do despacho recorrido, mas a erro do julgamento da matéria de facto.
Especifique-se que esse erro de julgamento pode decorrer de a facticidade julgada provada no despacho recorrido se encontrar subtraída ao princípio geral da livre apreciação da prova, mas antes sujeita a prova tarifada, e ao tê-la julgado como provada a 1ª Instância ter incorrido em violação de regras de direito probatório material, ou pode decorrer daquela se encontrar submetida ao princípio geral da livre apreciação da prova, mas porque, na sequência da defesa apresentada pelo requerente à oposição do administrador da insolvência e dos credores no sentido de que lhe fosse indeferido liminarmente o beneficio da exoneração que requereu, a facticidade em causa permanecer controvertida e de ter sido arrolados e/ou requeridos pelo recorrente e/ou restantes interessados meios de prova, que não foram produzidos e que, por isso, determinou que o julgamento da matéria de facto realizado no despacho recorrido fosse prematuro, em virtude de não terem sido produzidos aqueles meios de prova arrolados e/ou requeridos pelo recorrente e/ou pelos demais interessados.
Em ambos os casos que se acabam de referir, trata-se de erro de julgamento em que incorreu a 1ª Instância no julgamento da matéria de facto que realizou no despacho recorrido, e não causa determinativa de nulidade desse despacho.
Quanto à primeira situação – violação de regras de direito probatório material pelo tribunal a quo -, esse erro de julgamento da matéria de facto em que possa ter incorrido a 1ª Instância no despacho recorrido, caso se verifique é de conhecimento oficioso do tribunal de recurso, que, no exercício do seu direito de substituição (art. 662º, n.º 1), deve alterar oficiosamente esse julgamento da matéria de facto constante do despacho recorrido em função das regras de direito probatório material que foram nele violadas, as quais, sem qualquer margem de subjetivismo, impõem ao julgador o julgamento da matéria de facto quanto à facticidade por elas abrangidas em determinado sentido[6].
Quanto à segunda situação acima enunciada – a facticidade julgada provada no despacho recorrido encontra-se submetida ao princípio regra vigente no processo civil nacional da livre apreciação e o tribunal a quo julgou-a como provada, quando o recorrente e/ou os restantes interessados tinha arrolado e/ou requerido que fosse produzida prova quanto à mesma, que acabou por não ser produzida. Mais uma vez situamo-nos exclusivamente no âmbito de erro de julgamento da matéria de facto, também ele de conhecimento oficioso do tribunal de recurso, impondo-lhe que, no caso desse vício se verificar que, no exercício dos seus poderes de cassação do art. 662º, n.º 2, al. c), que, com fundamento na violação do direito à prova que assiste ao recorrente e/ou àqueles interessados cuja prova não foi produzida, anule o julgamento da matéria de facto realizado no despacho recorrido quanto a essa concreta facticidade e, como consequência dessa anulação, anule igualmente o despacho recorrido, e ordene que a 1ª Instância, uma vez produzida aquela prova (antes não produzida) quanto a essa concreta facticidade, profira novo despacho de deferimento ou indeferimento do incidente de exoneração[7].
Finalmente, caso se verifique que o recorrente, no exercício do seu direito ao contraditório em relação ao relatório emanado pelo administrador da insolvência a que alude o art. 155º do CIRE (em que este último foi do parecer que o pedido de exoneração formulado pelo recorrente devia ser liminarmente indeferido pelos fundamentos fácticos e jurídicos que aí expôs) ou quanto à posição escrita ou assumida pelos seus credores na assembleia de credores para apreciação daquele relatório, requerendo que o pedido da exoneração fosse liminarmente indeferido (note-se que a assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE é o momento processual próprio para que os credores e o Ministério Público exerçam o seu  direito ao contraditório quanto ao pedido do recorrente para que lhe fosse concedido o benefício da exoneração[8]. E, bem assim, para que exerça o direito ao contraditório quanto à posição do administrador da insolvência, do Ministério Público e/ou dos credores no sentido de que o pedido da exoneração que formulou fosse liminarmente indeferido) tenha alegado facticidade integrativa de matéria de exceção que permaneça controvertida e em relação à qual arrolou e/ou requereu a produção de prova, e que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito aplicáveis aos pressupostos de indeferimento liminar do incidente em causa, taxativamente enunciados no art. 238º, n.º 1 do CIRE, fosse suscetível de afastar o pressuposto de indeferimento liminar que a 1ª Instância invocou (ou devia ter invocado em face da facticidade que julgou como provada) no despacho recorrido, levando ao deferimento liminar desse pedido, trata-se também de erro de julgamento, na vertente de deficiência[9].
Esse erro de julgamento, a verificar-se, também é de conhecimento oficioso do tribunal de recurso, que o terá de superar fazendo uso dos seus poderes de cassação (art. 662º, n.º 2, al. b)), ordenando a ampliação do julgamento da matéria de facto quanto a essa concreta facticidade (que não foi julgada provada nem não provada no despacho recorrido, apesar de consubstanciar facticidade essencial integrativa das eventuais exceções invocadas pelo recorrente),  mediante a produção da prova que por ele foi indicada a essa facticidade, com a consequente anulação do despacho recorrido, determinando à 1ª Instância que produza essa prova e após profira novo despacho, deferindo ou indeferindo, liminarmente o incidente da exoneração formulado pelo recorrente.
No entanto, cumpre desde já referir que toda a facticidade que foi alegada pelo recorrente em sede de exercício do direito ao contraditório quanto ao relatório apresentado pelo administrador da insolvência a que alude o art. 155º do CIRE, e que o mesmo identifica nas conclusões VII a IX das suas alegações de recurso como relevando para efeitos da decisão a proferir quanto ao deferimento ou indeferimento liminar do incidente da exoneração, mostra-se totalmente irrelevante para esses efeitos, pelo que, quanto a ela, é indiscutível não ocorrer o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância no despacho recorrido.
Com efeito, no âmbito do despacho recorrido o tribunal indeferiu liminarmente o incidente da exoneração com fundamento na al. e) do n.º 1 do art. 238º do CIRE, em que se lê: “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º”.
Por sua vez, prevê-se no art. 186º, n.º 2, als. a) a g) casos de presunções inilidíveis (iuris et de iure) de insolvência culposa, enquanto nas suas als. h) e i) estabelecem-se autênticas ficções legais de insolvência culposa, em que, uma vez alegados e provados os factos base da presunção ou da ficção legal previstas em cada uma dessas alíneas o tribunal tem de presumir inilidivelmente (sem admissão de prova em contrário) a culpa grave e o nexo de causalidade entre a conduta nelas descritas e o estado de insolvência do devedor (recorrente) ou do agravamento desse estado, tendo, por isso, de considerar a insolvência do devedor (recorrente) como culposa – veja-se que o n.º 2 desse art. 186º é expresso em estabelecer: “Considera-se sempre culposa a insolvência (…)”[10]
Destarte, caso a facticidade julgada provada pela 1ª Instância no despacho recorrido preencha uma dessas alíneas do n.º 2 do art. 186º, a insolvência do recorrente terá de ser qualificada sempre como culposa e, consequentemente, terá de ser indeferido liminarmente o pedido de concessão do benefício da exoneração, nos termos da al. e), n.º 1 do art. 238º, independentemente da prova da facticidade que tenha sido alegada pelo recorrente no exercício do contraditório ao parecer emanado pelo administrador da insolvência a que alude o art. 155º do CIRE.
Decorre do que se vem dizendo, improceder a nulidade assacada pelo apelante ao despacho recorrido, com fundamento na pretensa violação do seu direito à prova, posto que, nuns casos (facticidade alegada em sede de incidente de qualificação), a facticidade que por ele aí foi alegada não pode ser objeto da produção da prova que aquele aí apresentou e/ou requereu, uma vez que, por despacho proferido no âmbito do incidente de qualificação, em 21/11/2023, transitado em julgado, a abertura do referido incidente foi julgada extemporânea, com a consequente extinção do mesmo, sob pena de se violar o caso julgado formal que cobre esse despacho; noutros casos, a facticidade sobre a qual o recorrente pretende que seja determinada a produção da prova que arrolou e/ou requereu, mostra-se de todo irrelevante para a questão decidenda nos autos (caso da facticidade que o recorrente alegou em sede de contraditório quanto ao relatório a que alude o art. 155º do CIRE, junto aos presentes autos de insolvência pelo administrador da insolvência, e que o mesmo identifica nas conclusões VII a IX das suas alegações de recurso); e, finalmente, noutros casos, está-se perante erros de julgamento da matéria de facto em que terá incorrido o tribunal a quo no despacho recorrido (sendo nessa sede que esses pretensos erros de julgamento terão e serão apreciados), e não causas determinativas de nulidade do despacho recorrido, por pretensa violação do direito à prova que assiste ao recorrente.
Termos em que, improcede este fundamento de recurso.

C- Dos erros de julgamento que afetam o despacho recorrido
O recorrente impugna o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância no despacho recorrido quanto à facticidade que nele julgou provada na alínea D (exclusivamente quanto à expressão «convenientemente»), bem como na alínea E, alegando que, se dos documentos juntos autos se pode “extrair que foi reservado o dito uso e habitação” para si e para a mulher sobre o apartamento Tipo ... que doaram aos filhos, já não se pode extrair “o termo “convenientemente”, aliás, originariamente empregue pelo Sr. Administrador, nem o valor indicado (constante no relatório do Sr. Administrador, nos termos do artigo 155º do CIRE, de 01/02/2023) está de acordo com o valor indicado no apenso de reclamação de créditos (em 07/02/2023), que é inferior” (cfr. conclusões XXI a XXIV das alegações de recurso).
Adicionalmente, em sede de contraditório que exerceu em relação ao despacho proferido pelo aqui relator em 11/04/2024 (acima transcrito, em sede de “Relatório”), o recorrente insistiu que no despacho recorrido, contrariamente ao que se escreve nesse despacho, “não existem factos provados porque não houve qualquer produção de prova, mormente, a por si requerida, e também não houve incidente de qualificação, pelo que igualmente não existem factos provados” (art. 16º daquela reposta), a propósito do que já nos pronunciamos, no sentido da improcedência desses fundamentos.
Porém, o recorrente veio alegar, em sede do exercício desse contraditório, uma questão nova, que não tinha suscitado nas alegações de recurso que interpôs para esta Relação e que se traduz no seguinte: o documento autêntico a que alude o relator naquele despacho de 11/04/2024, isto é, a certidão da Conservatória do Registo Predial relativa ao prédio que o mesmo e a mulher doaram aos seus filhos, reservando para si o direito de uso e de habitação, não prova plenamente os factos que a 1ª Instância julgou provados, posto que o documento em causa não consubstancia qualquer “certidão” que tivesse sido emitida pela Conservatória do Registo Predial, mas uma mera “descrição de teor informativo” por esta emitida (cfr. arts. 26º a 18º da resposta).
Analisados os argumentos invocados pelos apelantes, o mesmo imputa erro de julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância no despacho recorrido quanto ao segmento «convenientemente» que nele julgou provado na alínea D e, bem assim, quanto ao valor que julgou provado na sua alínea E como tendo sido o indicado pelo administrador da insolvência.
Acontece que o termo «convenientemente» que consta da alínea D dos factos julgados provados no despacho recorrido não consubstancia qualquer matéria de facto mas uma adjetivação da conduta do recorrente e de sua mulher ao doaram aos filhos o prédio de que eram proprietário, constituído por um apartamento, tipo 3, reservando para si o direito de uso e de habitação.
Acresce que, a restante matéria que consta dessa mesma alínea D do elenco dos factos provados no despacho recorrido – “(…) o direito de uso e habitação do imóvel, consabido que tal direito, pela sua natureza jurídica não pode ser objeto de penhora, constituído o ónus um fator de exponencial redução do valor do imóvel, mesmo que a doação venha a ser objeto de impugnação pauliana, que na procedência permita ao credor impugnante a execução do bem ou direito na esfera do adquirente” - também não consubstancia matéria de facto, mas ilações puramente conclusivas e de direito, o mesmo se dizendo quanto a todo o teor da alínea D1 do elenco dos “factos” provados no despacho recorrido.
Ora,  já defendia Alberto dos Reis que “é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior”[11]; e já expendia que a atividade do juiz se deve circunscrever ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos”[12].
Na linha de que, ao elenco dos factos provados e não provados na sentença, acórdão ou despacho o juiz apenas deve levar factos materiais (aqui se incluindo as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas; neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior diretamente captáveis pelas perceções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo)[13], se tem pronunciado a jurisprudência nacional maioritária, designadamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26/06, que reviu o CPC, na sequência do que a sentença passou a incluir o julgamento da matéria de facto e de direito e que não contém  um dispositivo legal equivalente ao anterior art. 646º, n.º 4 do CPC.
Na verdade, tem-se continuado maioritariamente a considerar como não escritas as respostas do julgador sobre matéria qualificada como de direito; e a equiparar às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados (sem prejuízo de se dever equiparar a factos as expressões verbais, com um sentido técnico-jurídico determinado, que são utilizadas comummente pelas pessoas sem qualquer preparação jurídica, na sua linguagem do dia a dia, falada ou escrita, com um sentido idêntico, contanto que essas expressões não integrem o próprio objeto do processo, ou seja, que não invadam o domínio de uma questão de direito essencial, traduzindo uma resposta antecipada à questão de direito decidenda)[14].
Ora, conforme já referido, a expressão “convenientemente”, assim como todo o teor das alíneas D e D1 constante dos factos julgados provados no despacho recorrido não encerram quaisquer factos, mas matéria puramente conclusiva e de direito, consubstanciando aquela expressão uma mera adjetivação da conduta do recorrente e da mulher.
Por isso, essa matéria é insuscetível de ser levada ao elenco dos factos provados e não provados no despacho recorrido, impondo-se ordenar a sua eliminação.
Destarte, embora por fundamentos distintos dos invocados pelo recorrente, ordena-se a eliminação do elenco dos factos provados da totalidade da matéria que neles se encontra vertida nas alíneas D e D1.
Avançando…
No que respeita ao erro de julgamento da matéria de facto que o recorrente imputa ao valor – 859.995,60 euros – julgado provado na alínea E da facticidade julgada provada, incumbe precisar que, contrariamente ao sustentado pelo mesmo, na referida alínea o tribunal recorrido não se limita a julgar como provado que na lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo administrador da insolvência este reconheceu créditos no montante global de 859.995,60 euros, mas vai bastante mais além, posto que julgou como provado que o recorrente é efetivamente devedor dessa quantia.
Não tendo no presente processo de insolvência sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos que tivesse transitado em julgado por via de, por sentença proferida em 05/06/2023, transitada em julgado, ter sido declarado encerrado o processo de insolvência, por insuficiência de massa insolvente, a questão que se suscita é se no âmbito do presente incidente da exoneração foi produzida prova que permitisse ao tribunal recorrido julgar essa matéria como provada. Essa questão, salvo melhor opinião, tem de receber resposta negativa, uma vez que nele não foi produzida qualquer prova se o montante global dos créditos que foram reconhecidos pelo administrador da insolvência são (ou não) efetivamente devidos pelo recorrente. Daí que, em princípio, impunha-se que fosse ordenada a ampliação do julgamento de facto quanto a essa facticidade.
Acontece que, tendo a 1ª Instância indeferido liminarmente o incidente da exoneração formulado pelo recorrente com fundamento na al. e), do n.º 1, do art. 238º do CIRE, coloca-se a questão prévia de se saber da relevância dessa facticidade – valor global dos débitos do recorrente perante os seus credores - para efeitos de preenchimento dos factos base da presunção inilidível de insolvência culposa da al. g), do n.º 2, do art. 186º do CIRE (que aquela considerou estarem preenchidos no despacho sob sindicância e com base no que indeferiu liminarmente o incidente da exoneração), ou da al. d), do mesmo n.º 2, do art. 186º (cujos factos base o relator, no despacho de 11/04/2024, aventou estarem preenchidos em face da facticidade que foi julgada provada no despacho recorrido).
Ora, analisadas essas alíneas verifica-se que aquela facticidade mostra-se de todo irrelevante para efeitos de preenchimento (ou não) dos factos base de tais presunções,  não se justificando, por isso, ordenar a ampliação do julgamento da matéria de facto quanto a essa facticidade (montante global dos créditos efetivamente devidos pelo recorrente aos seus credores), sob pena de se estar a levar a cabo uma atividade processual que de antemão se sabe ser totalmente inútil para a decisão de mérito a proferir no presente incidente da exoneração e, como tal, proibida por lei (art. 130º do CPC)[15], impondo-se antes determinar a sua eliminação do elenco dos factos provados no despacho recorrido dada a sua irrelevância para a questão decidenda.
Destarte, embora por fundamentos distintos dos invocados pelo recorrente, ordena-se a eliminação do elenco dos factos provados no despacho recorrido da facticidade julgada provada na alínea E.
Resta apreciar a questão suscitada pelo recorrente no âmbito do contraditório que exerceu em relação ao despacho proferido pelo aqui relator, em que, apesar de, em sede de exercício do contraditório quanto ao relatório junto pelo administrador da insolvência a que alude o art. 155º do CIRE ter confessado ter, mais a mulher, doado aos filhos o prédio de que eram proprietários, composto por um apartamento Tipo ..., reservando para eles o direito de uso e de habitação sobre o mesmo; de ter confessado essa mesma facticidade em sede de oposição que deduziu no âmbito do incidente de qualificação e, bem assim de a ter novamente confessado nas alegações de recurso que interpôs para esta Relação (onde alegou que “comprou a casa em 1987, a qual andou a pagar recentemente, não tendo conseguido adquirir muito mais do que um automóvel. (…), pelo que, vários anos antes de 5 de março de 2020, o insolvente e a sua esposa já pretendiam fazer a referida doação aos filhos, reservando para si, claro está, o uso e habitação até à sua morte (cfr. doc. ..., junto com o requerimento de 03/03/2023)”) veio alegar, pela primeira vez, ao longo de todo o presente processo de insolvência, que a certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial que a eles se encontra junta não constitui uma certidão mas sim uma “mera descrição de teor informativo” emanada pela Conservatória do Registo Predial, com o que, salvo melhor opinião, o recorrente se colocou nos limites da litigância de má fé.
Ora, compulsado o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, junto pelo administrador da insolvência ao presente processo principal, em 01/02/2023, constata-se que o documento n.º ..., junto em anexo a esse relatório, constitui efetivamente uma certidão emanada pela 2ª Conservatória do Registo Predial relativamente ao prédio nela descrito sob o n.º ...5, da freguesia ... (...), isto é, ao prédio doado pelo recorrente e mulher aos filhos, com reserva do direito de uso e habitação, certidão essa que administrador da insolvência remeteu eletronicamente ao presente processo de insolvência.
Nos termos do art. 2º, n.º 1, al. a) do Cód. Reg. Predial, aprovado pelo D.L. n.º 224/84, de 06/04, e sucessivas alterações, estão sujeitos a registo os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão.
O art. 110º, n.º 1 do mesmo Código estabelece que o registo prova-se por meio de certidões.
As certidões emanadas pela Conservatória do Registo Predial constituem documentos autênticos que, salvo quando tenha sido arguida a sua falsidade (o que não foi o caso em relação à certidão junta pelo administrador da insolvência aos autos em anexo àquele relatório do art. 155º do CIRE), fazem prova plena dos factos que referem como tendo sido praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas suas perceções (arts. 362º, 363º, n.ºs 1 e 2, 369, 370º, n.º 1 e 371º, n.º 1 do CC).
Por sua vez, nos termos do art. 7º do Cód. Reg. Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
 Finalmente, o art. 4º da Portaria n.º 280/2013, de 26/08, que regulamenta a tramitação eletrónica dos processos nos tribunais judiciais, estabelece que a apresentação de peças processuais e documentos por tramitação eletrónica de dados dispensa a remessa dos respetivos originais (sem prejuízo do previsto no seu n.º 2).
Resulta do regime jurídico que se acaba de identificar que, tendo o administrador da insolvência remetido por correio eletrónico a certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial, onde consta descrito o prédio doado pelo recorrente e mulher aos filhos, com reserva do direito de uso e habitação, e estando essa transmissão e ónus nela inscritos, estando o administrador dispensado de juntar aos presente processo de insolvência o original daquela certidão, e não tendo o recorrente arguido a falsidade desta, os factos constantes da descrição e das inscrição que nela constam têm-se como plenamente provados e presumem-se como existentes e pertencem ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Assim, não tendo o recorrido ilidido a dita presunção do art. 7º do Cód. Reg. Predial, a facticidade que a 1ª Instância julgou provada nas alíneas A, B e C do despacho recorrido encontra-se efetivamente provada por documento autêntico.
Acresce dizer que, aquando do exercício do contraditório em relação ao relatório a que alude o art. 155º do CIRE que foi junto aos autos pelo administrador da insolvência, o próprio recorrente juntou ao presente processo de insolvência, em 04/03/2023, como doc. n.º ..., a escritura de doação em análise, onde se vê que esta foi celebrada em 05/03/2020, também ela não arguida de falsa, pelos que, nos termos do disposto no art. 371º, n.º 1 do CC, a data da celebração da mesma tem-se por plenamente provada.
Destarte, sem maiores considerações, improcede a questão suscitada pelo recorrente em sede de contraditório ao despacho proferido pelo relator de que a certidão relativa ao prédio doado não estaria junta aos autos, impondo-se, ao abrigo do disposto no art. 661º, n.º 1 do CPC, aditar à alínea B da facticidade julgada provada no despacho recorrido a data da celebração da escritura pública de doação, pelo que esta alínea passa a constar da seguinte facticidade, que se julga provada:
“B – Por escritura pública de 05/03/2020, o prédio identificado em A), único bem de valor propriedade do insolvente e totalmente desonerado, foi doado pelo insolvente e mulher a BB e a AA, filhos do insolvente, na proporção de metade para cada um”.
 
D- Do Mérito
D.1- Violação do caso julgado que cobre o despacho proferido em 21/11/2023.
Advoga o recorrente que o despacho recorrido (que indeferiu liminarmente o incidente da exoneração do passivo restante que formulou, com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE), viola o caso julgado que cobre o despacho proferido em 21/11/2023, no apenso de qualificação (em que se julgou que a abertura daquele incidente de qualificação era extemporânea e, em consequência, julgou-se implicitamente extinta a respetiva instância), sustentando que, ao indeferir liminarmente o incidente da exoneração a decisão recorrida contradiz aquela anterior decisão.
Em abono desta sua tese jurídica o recorrente identifica diversos acórdãos que alegadamente a sufragarão, mas sem razão, conforme se passa a demonstrar.
Nos termos do art. 619º, n.º 6 do CPC, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”.
Por sua vez, dispõe o art. 621º do mesmo diploma que: “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.
As disposições legais que se acabam de transcrever reportam-se e delimitam o caso julgado material, ou seja, aquele que cobre as decisões judiciais que “versam sobre o fundo da causa e, portanto, sobre os bens discutidos no processo; as que definem a relação ou situação jurídica deduzida em juízo; as que estatuem sobre a pretensão do autor”, e determinando que essas decisões têm força obrigatória dentro e fora do processo em que foram proferidas, dentro dos limites estabelecidos nos arts. 580º e 581º (sujeitos, pedido e causa de pedir), e que a definição nelas dada à relação jurídica controvertida, dentro desses limites, se impõe “a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades), quando lhe seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (ação destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”[16].
Para Manuel de Andrade a força obrigatória reconhecida ao caso julgado material assenta em dois fundamentos: o prestígio dos tribunais, que “seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente”; e, mais importante, uma razão de certeza ou segurança jurídica, já que “sem o caso julgado material estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa, fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas, em que ninguém podia confiar em nada, nem nos direitos que uma sentença lhes reconheceu”[17].
O mesmo autor adianta que o caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade, mas numa “fundamental exigência de segurança”, que leva a lei a atribuir “força vinculante infrangível ao ato de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica e, portanto, os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado, fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei. O bem reconhecido ou negado pela pronuntatio judicis torna-se incontestável. A finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objetivo ou a atuação dos direitos subjetivos correspondentes. É também a segurança – a paz social”[18].
Por sua vez, dispõe o art. 620º do CPC que a sentença e o despacho que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Por conseguinte, a lei processual distingue, quanto à sua eficácia, o caso julgado material do caso julgado formal.
O caso julgado material é apenas aquele que cobre as decisões que decidam de mérito e atua numa dupla vertente: na sua vertente negativa, de exceção dilatória, onde atua como obstáculo a que a mesma relação jurídica material controvertida já decidida, por decisão de mérito, transitada em julgado, seja novamente submetida à apreciação e decisão do tribunal, com o risco de a vir novamente a repetir, ou de,  a contradizer; na sua vertente positiva, em que impõe o que ficou decidido por decisão de mérito, transitada em julgado, intra e extra processualmente, ou seja, a todos os tribunais, autoridades, às partes e, inclusivamente, dentro de certos limites, aos terceiros.
Por sua vez, o caso julgado formal apenas vale em relação às sentenças e aos despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual e relaciona-se com o fenómeno da preclusão.
Com efeito, sendo o processo judicial um encadeamento de atos processuais que tendem a culminar com a prolação da sentença que decida de mérito, à medida que esses atos processuais vão sendo praticados ao longo do iter processual e na medida em que sobre as questões processuais que nele vão sendo suscitadas pelas partes ou oficiosamente pelo tribunal, venham a ser decididas, essas decisões logo que transitem em julgado (por já não admitirem recurso ordinário ou reclamação – art. 628º do CPC), solucionam em definitivo a questão mas apenas dentro do processo em que a decisão foi proferida.
Essa questão processual não pode ser novamente suscitada pelas partes ou pelo tribunal e o que ficou decidido quanto àquela na decisão judicial transitada em julgado adquire força vinculativa para as partes e para o tribunal dentro do processo em que a decisão foi proferida, mas não impede que essa mesma questão seja diversamente apreciada em novo processo, pelo mesmo ou por outro tribunal.
Em suma, por via do caso julgado formal que cobre a decisão que recaiu sobre determinada questão processual essa questão não só não pode ser novamente suscitada, como o nela decidido torna-se imodificável e obrigatório dentro do processo em que a decisão foi proferida.
Conforme resulta do que se vem dizendo, no caso julgado formal apenas intervém uma razão de disciplina ou ordem no desenvolvimento do processo. Cobrindo aquele apenas as decisões que versam sobre a relação processual, “não provendo elas sobre os bens litigados, pensou-se não haver inconveniente de maior na possibilidade de serem desrespeitadas noutro processo”[19].
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, revertendo ao caso dos autos, o despacho proferido no apenso de qualificação, em 21/11/2023, transitado em julgado, não versou sobre o mérito da relação jurídica material controvertida em apreciação nesse incidente, na medida em que nele não se apreciou se, face à facticidade que nele foi alegada pelo administrador da insolvência e pelo Ministério Público nos respetivos pareceres, em que requeriam que a insolvência do aqui recorrente fosse qualificada como culposa, e da que nele foi alegada pelo recorrente em sede de oposição, e que nele, após a produção da prova que aí foi requerida,  viesse a ser julgada provada e não provada, uma vez submetida essa facticidade (provada e não provada) ao quadro legal que lhe era aplicável, se a insolvência do recorrente devia (ou não) ser qualificada como culposa, mas limitou-se a julgar que a abertura do incidente de qualificação foi extemporâneo e, nessa sequência, a julgar (implicitamente) extinta a instância desse incidente, pelo que o caso julgado que cobre essa concreta decisão é o formal.
O significado do caso julgado formal que cobre a mencionada decisão é que o que nela foi decidido não pode ser novamente colocado à apreciação e decisão do tribunal dentro do presente processo de insolvência, ou seja, nele jamais pode ser aberto incidente de qualificação da insolvência do ora recorrente, impondo-se o nela decidido dentro do presente processo.
No entanto, pressupondo o caso julgado material e o formal a prolação de uma decisão judicial expressa, que tenha transitado em julgado, na medida em que só assim existe o risco de a decisão posterior puder contrariar a anterior, já transitada em julgado, contrariamente ao entendimento sufragado pelo recorrente, a circunstância de o despacho recorrido ter indeferido liminarmente o incidente da exoneração com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e) do CIRE, isto é, “a existência de elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º”, o qual, por sua vez, versa sobre os pressupostos legais para que a insolvência possa ser qualificada culposa, em nada contraria a decisão proferida em 21/11/2023, no apenso de qualificação, transitada em julgado.
Na verdade, nessa decisão de 25/11/2023, o tribunal limitou-se a decidir que o incidente de qualificação foi aberto para lá dos prazos legalmente estabelecidos para a sua abertura e a ordenar a consequente extinção da respetiva instância, sem que tivesse conhecido do mérito desse incidente, ou seja, se a insolvência do aqui recorrente era (ou não) culposa.
Diferentemente seria se, nessa decisão, transitada em julgado, se tivesse conhecido de mérito, e se tivesse proferido sentença (de fundo) em que se tivesse julgado que a insolvência do aqui recorrente era fortuita e esta tivesse transitado em julgado, que é a concreta situação que é tratada nos acórdãos identificados pelo recorrente na defesa do seu ponto de vista, mas que, como acabado de referir, nada tem a ver com a situação sobre que versam os presentes autos, em que nenhuma decisão de mérito foi proferida que tivesse julgado a insolvência do recorrente como fortuita.
Nesse caso, estando, em definitivo, decidido, por sentença de mérito, transitada em julgado, que a insolvência do aqui recorrente era fortuita, naturalmente que, sob pena de se contrariar o caso julgado material que cobriria aquela decisão judicial que conheceu de mérito, antes proferida e transitada em julgado, não se podia posteriormente a esse trânsito indeferir-se liminarmente o incidente da exoneração com fundamento na al. e), do n.º 1, do art 238º do CIRE.
Resulta do que se acaba de expender, improceder este fundamento de recurso, posto que o indeferimento liminar do benefício da exoneração, com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e) do CIRE, não viola o caso julgado formal que cobre o despacho proferido em 21/11/2023, transitado em julgado, no âmbito do incidente de qualificação, em que se julgou que a abertura desse incidente foi extemporânea e, em consequência, se julgou (implicitamente) extinta a respetiva instância.

D.2- Do indeferimento liminar do incidente da exoneração com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, al. g), do n.º 2, do art. 186º do CIRE     
No despacho recorrido a 1ª Instância, subsumindo a facticidade que julgou nele provada, considerou encontrarem-se preenchidos os factos base da presunção inilidível de insolvência culposa da al. g), do n.º 2 do art. 186º do CIRE e, em consequência, com fundamento na al. e), do n.º 1, do art. 238º do mesmo Código indeferiu liminarmente o incidente da exoneração instaurado pelo recorrente, o qual imputa ao assim decidido erro de direito e, salvo melhor opinião, com inteira razão.
Lê-se no art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE (aplicável às pessoas singulares, com as necessárias adaptações, onde a isso não se opuser a diversidade das situações, por via do seu n.º 4) que: “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”.
Conforme resulta da norma que se acaba de transcrever, para que se encontre preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa nela prevista é necessário que se provem os seguintes requisitos legais cumulativos: a) que nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência do devedor, os seus administradores, de direito ou de facto, prossigam uma exploração deficitária daquele, ou seja, que essa atividade apenas seja geradora de prejuízos económicos para o devedor; b) que esses seus administradores prossigam com essa atividade deficitária do devedor com o intuito de satisfazerem o seu próprio interesse ou o de terceiro (intenção específica); e c) que os mesmos soubessem ou tivessem a obrigação de saber que essa gestão deficitária do devedor o levaria, com elevado grau de probabilidade, a uma situação de insolvência ou ao agravamento da situação de insolvência em que já se encontrava.
Dito por outras palavras, o preenchimento da fattispecie normativa da al. g) do n.º 2 do art. 186º do CIRE pressupõe um comportamento do administrador que afronte os deveres de fidelidade/lealdade a que se encontra adstrito (por mor, v.g., do disposto nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 64º do Cód. Soc. Com.) para com o devedor, seu representado, por envolver, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o património deste, geradores ou agravantes da sua situação de insolvência, exigindo-se, no entanto, uma intenção específica na atuação daquele administrador, a saber: que o mesmo prossiga essa atividade deficitária da sua administrada no seu próprio interesse ou de terceiro[20].
No sentido acabado de referir expende-se no acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014, que “o que está em causa na al. g) da norma acima citada não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza, sendo que o preenchimento dessa previsão legal pressupõe o prosseguimento de uma determinada atividade cuja exploração se revele deficitária, e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiros”[21], e que adicionalmente se prove facticidade de onde decorra que o administrador sabia ou devia saber (atento o padrão de diligência de um administrador mediante sagaz e diligente que se encontrasse nas concretas circunstâncias em que aquele se encontrava – logo, um padrão  objetivo) que, em consequência dessa atividade deficitária que estava a levar a cabo do devedor, seu representado, em benefício próprio ou de terceiro, este iria com grande probabilidade ficar  numa situação de insolvência ou iria ver agravada essa sua situação[22].
Ora, conforme é bom de ver, a facticidade que a 1ª Instância julgou provada no despacho recorrido não permite concluir pelo preenchimento de nenhum dos factos base da presunção da al. g), na medida em não evidencia que, nos três anos anteriores ao início, do presente processo de insolvência, o recorrente tivesse levado a cabo uma gestão deficitária do seu património, mas antes o que evidencia é que o mesmo dispôs do seu património gratuitamente a favor dos filhos, para quem, mais a mulher, transferiram, por doação, a propriedade do prédio de que eram proprietários, reservando para si o direito de uso e de habitação sobre aquele.
Decorre do que se vem dizendo, proceder este fundamento de recurso e, em consequência, impõe-se revogar o segmento do despacho recorrido em que se indeferiu liminarmente o incidente de exoneração formulado pelo recorrente com fundamento no disposto no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 1, al. g) do CIRE.

D.3- Convolação oficiosa da facticidade julgada provada no despacho recorrido para um enquadramento jurídico distinto -  indeferimento liminar do incidente da exoneração com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. d), ex vi, al. g), do n.º 2, do art. 186º do CIRE.
No despacho recorrido a 1ª Instância julgou provado que o devedor (recorrente) e a mulher foram proprietários da fração autónoma designada pela letra ..., composta por ... andar, Tipo ..., destinado a habitação, sito na Praça ...., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...61, da freguesia ... (...), o qual era o único bem de valor propriedade do recorrente, e que os mesmos doaram esse prédio aos filhos, reservando para si o direito de uso e habitação (alíneas A, B e C dos factos apurados).
Apesar de no elenco dos factos apurados não constar a data concreta em que essa doação teve lugar, foi o próprio recorrente que, no exercício do contraditório quanto ao parecer a que alude o art. 155º do CIRE, confessou que essa doação teve lugar em 05/03/2020.
Acresce que o recorrente juntou em anexo a esse contraditório a escritura de doação daquele prédio, que não foi arguida de falsa.
Deste modo, a data da celebração daquela escritura de doação encontra-se plenamente provada no presente processo de insolvência por confissão do recorrente e por prova documental autêntica, pelo que, nos termos do disposto no art. 661º, n.º 1 do CPC, impõe-se, ainda que oficiosamente, o aditamento dessa facticidade ao elenco dos factos provados no despacho recorrido, conforme supra se decidiu e determinou.
Por outro lado, nos termos do art. 5º, n.º 3 do CPC, este tribunal da Relação não se encontra sujeito à alegação das partes (nem da 1ª Instância) no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, contanto que observe o contraditório em relação ao recorrente e os restantes interessados, contraditório esse que foi escrupulosamente cumprido.
Posto isto, nos termos do disposto no art. 186º, n.º 1, al. d) do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor quando este, nos três anos anteriores ao início do presente processo de insolvência, tiver disposto dos seus bens em proveito de terceiros, o que é o caso dos autos, na medida em que, atenta a facticidade julgada provada no despacho recorrido, o recorrente e a mulher, nos três anos anteriores ao início do presente processo insolvência, doaram o prédio de que eram proprietários e que constituía o único bem de valor do  recorrente, aos filhos, com o que o último (recorrente) preencheu os factos base da presunção absoluta (inilidível) de insolvência culposa daquela al. d)[23] e, consequentemente, preencheu o fundamento de indeferimento liminar do incidente da exoneração da al. e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE.
Conforme antedito, ao que se acaba de referir não obsta a decisão, transitada em julgado, que julgou extinto o incidente de qualificação, por a abertura desse incidente ter sido extemporânea e que não se pronunciou quanto ao mérito, ou seja, se a insolvência do recorrente deve (ou não) ser qualificada como culposa.
Decorre do que se acaba de expor que, com base neste distinto enquadramento jurídico da facticidade julgada provada no despacho recorrido, impõe-se confirmar a decisão de indeferimento liminar do benefício de exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente constante da sua parte dispositiva.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- O caso julgado material e o formal pressupõem uma decisão judicial expressa que tenha transitado em julgado, por já não admitir recurso ordinário ou reclamação, posto que, apenas perante uma decisão judicial expressa se poderá determinar o que nela ficou em definitivo decidido e que, por isso, fica coberto pelo respetivo caso julgado, obstando o caso julgado material que a mesma relação processual controvertida nela decidida possa ser novamente submetida a julgamento numa ulterior ação (vertente negativa do caso julgado material) e impondo o decidido intra e extraprocessual a todos os tribunais, autoridades, partes e, inclusivamente, dentro de certos limites, aos terceiros (vertente positiva daquele); e obstando o caso julgado formal que a mesma questão processual decidida, por decisão judicial transitada em julgado, seja novamente apreciada dentro do mesmo processo em que essa decisão foi proferida (vertente negativa do caso julgado formal), e impondo o respeito pelo decidido quanto a essa questão processual dentro desse processo (vertente positiva do caso julgado formal).
2- A decisão que indeferiu liminarmente o incidente da exoneração do passivo restante com fundamente no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE não contradiz o caso julgado formal que cobre a decisão proferida no apenso de qualificação da insolvência, que julgou que a abertura desse incidente era extemporânea e que, consequentemente, determinou a extinção do incidente de qualificação, em nada contradizendo aquela primeira decisão esta última (já transitada em julgado), que não conheceu de mérito.
3- Diferentemente seria se no incidente de qualificação tivesse sido proferida decisão de mérito, transitada em julgado, que tivesse qualificado a insolvência do devedor como fortuita, posto que o caso julgado material que cobriria semelhante decisão de mérito, sob pena de ser contrariado, obstava a que posteriormente ao seu trânsito se pudesse proferir decisão de indeferimento liminar do incidente da exoneração com fundamento na al. e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE.
4- A circunstância de na decisão recorrida se ter indeferido liminarmente o incidente da exoneração com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. g) do CIRE, não obsta a que o tribunal de recurso, nos termos do art. 5º, n.º 3 do CPC, indefira liminarmente esse incidente com fundamento no art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 2, al. d) do mesmo Código, quando verifique que a facticidade julgada provada no despacho recorrido não se subsume à al. g), do n.º 2, do art. 186º, mas antes à sua al. d), contanto que observe previamente o contraditório em relação ao recorrente e aos recorridos face a esse distinto enquadramento jurídico da facticidade julgada provada no despacho recorrido.
5- Preenche a presunção inilidível de insolvência culposa da al. d), do n.º 2, do art. 186º do CIRE, o devedor que, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência doou, mais a mulher, o único prédio de que eram proprietários aos filhos, reservando o direito de uso e habitação para si, quando o direito que o devedor detinha sobre aquele prédio era o único bem de valor que integrava o seu património, impondo-se, por isso, indeferir liminarmente o incidente da exoneração do passivo restante com fundamento na al. e), do n.º 1, do art. 238º, ex vi, art. 186º, n.º 1, al d), do CIRE.  
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação parcialmente procedente e, em consequência:
I- Alteram a facticidade julgada provada no despacho recorrido nos termos supra identificados;
II- Revogam o despacho recorrido no segmento em que nele se julgou encontrar-se preenchido o fundamento de indeferimento liminar do incidente da exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente, AA, do art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 1, al. g) do CIRE;
III- Convolam a facticidade julgada provada no despacho recorrido para um enquadramento jurídico distinto (art. 5º, n.º 3 do CPC), após observância prévia do contraditório quanto ao recorrente e restantes interessados, e julgam encontrar-se preenchido o fundamento de indeferimento liminar do incidente da exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente, AA, do art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 1, al. d) do CIRE e, em consequência, confirmam a parte dispositiva do despacho recorrido de indeferimento liminar daquele incidente da exoneração.
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Custas da apelação pelo recorrente, AA, posto que, apesar do recurso ter parcialmente procedido, manteve-se a decisão de indeferimento liminar do incidente da exoneração, pelo que ficou “vencido” (arts. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 29 de maio de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes – 1ª Adjunta
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade – 2ª Adjunta



[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 20.
[3] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 379.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pág. 29.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa 1997, págs. 56 a 58.
[6] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 275, em que expende que a modificação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância continua a justificar-se “quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, o que ocorre quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371º, n.º 1, e 376º, n.º 1 do CC), o considere não provado, relevando para o efeito prova testemunhal produzida ou presunções judiciais. O mesmo deve acontecer quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, n.º 1, 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, n.º 2, do CPC), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial). Ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts. 351º e 393º do CC), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra e direito material (art. 364º, n.º 1 do CC). Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1ª Instância considerou não provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo, neste caso, da sua sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte” (destacado nosso). 
[7] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 293 a 295.
[8] Ac. R.G., de 24/07/2021, Proc. 451/12.8TBBRG.G1, em que se consigna que: “O princípio do contraditório relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante cumpre-se dando ao administrador e aos credores que estiverem presentes na assembleia, e que sejam titulares dos créditos abrangidos pela exoneração, a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento apresentado pelo devedor insolvente. Ainda que, estando o Ministério Público presente na assembleia, o juiz lhe deva dar também a possibilidade de se pronunciar, querendo, sobre aquele requerimento do devedor insolvente, não estando o Ministério Público presente, o juiz não está obrigado a, previamente à prolação do despacho inicial a que alude o n.º 2 do art. 293º do CIRE, fazer-lhe apresentar o processo para que emita o parecer”.
[9] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 293; Abrantes dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra Editora, 1987, que, no âmbito do CPC anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 41/2013 de 26/03, já expendia ocorrer o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto “quando o tribunal deixou de decidir algum facto sobre que se formulara quesito”.
[10] Acs. RG., de 18/01/2024, Proc. 7920/19.7T8VNF-A.G1; de 02/05/2024, Proc. 215/23.5T8VCT-D.G1, ambos relatados pelo aqui relator, e múltipla jurisprudência e doutrina que neles se citou.
[11] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, págs. 206 e 207.
[12] Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 212.
[13] Ac. STJ. de 09/03/2003, Proc. 03B1816.
[14] Acs. STJ. de 01/10/2019, Proc. 109/17.1T8ACB.C1.S1; de 07/05/2014, Proc. 39/12.3T4AGD.C1.S1; de 11/07/2012, Proc. 3360/14.0TTLSB.L1.S1; e de 14/11/2006, Proc. 06A2992.
[15]Acs. STJ., de 17/05/2017, Proc. 4111/13.4TBBRG; RG., de 09/04/2015, Proc. 4649/11.8TBRG.G1; 18/12/2017, Proc. 3892/16.8TBRG.G1, em que fomos 2º adjunto; RL., de 10/1072017, Proc. 23656/15.5T8SNT.L1-7; RC., de 27/5/2014, Proc. 104/12.0T2AVR.C1; e de 24/04/2012, Proc. 219/10.6T2VGS.C1.
[16] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 305.
[17] Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 306.
[18] Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 306 e 307.
[19] Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 304.
[20] Ac. R.P., de 23/04/2018, Proc. 523/15.7T8AMT-A.P1.
[21] Ac. R.C., de 14/01/2014, Proc. 785/11.9TBLR-A.C1
[22] Ac. R.G., de 11/05/2023, Proc. 2411/20.6T8VCT-D.G1, em que se defende que: Para o preenchimento da presunção inilidível de insolvência culposa  da al. g) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, não é suficiente que o administrador da futura insolvente haja prosseguido uma gestão deficitária nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sabendo, ou devendo saber, que a mesma adviria, exigindo-se ainda que a dita gestão deficitária tenha sido levada a cabo em benefício do próprio administrador, ou de terceiro”.
[23] Ac. R.P., de 26/01/2012, Proc. 3476/10.4TBFAR-B.E1, no qual se decidiu que: “Tendo os insolventes doado, algum tempo antes de se apresentarem à insolvência, à única filhe que, entretanto, atingira a maioridade, os dois bens imóveis e o veículo automóvel de que eram proprietários, a insolvência considera-se culposa, por força do disposto no art. 186º, n.º 2, al. d) do CIRE, que estabelece uma presunção iuris ed de iure”.