Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5313/22.8T8VNF-G.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: CRÉDITOS SOBRE A MASSA INSOLVENTE
CRÉDITOS SOBRE A INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS POR INCUMPRIMENTO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Distinguem-se no CIRE os créditos sobre a massa insolvente (cuja constituição resulta, grosso modo, do próprio processo de insolvência), pagos precipuamente, sem necessidade de reclamação e logo que se vençam, e os créditos sobre a insolvência (cuja constituição ocorre em momento anterior à insolvência), pagos depois daqueles primeiros, e apenas se tiverem sido reclamados e reconhecidos por sentença transitada em julgado.

II. Os créditos por incumprimento de contrato de locação vencidos entre a data da declaração da insolvência e a data em que o contrato haja cessado a produção dos seus efeitos, por denúncia do administrador da insolvência, consubstanciam créditos sobre a massa insolvente (e não créditos sobre a insolvência).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1.  EMP01..., S.A., com sede na Avenida ..., em Lisboa, propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Massa Insolvente de EMP02..., Limitada (representada pelo respetivo Administrador da Insolvência - AA, com domicílio profissional na Rua ..., ... A, Bairro ..., em ...), pedindo que:

· a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 17.357,92 (a título de alugueres vencidos, de juros de mora vencidos até 26 de Abril de 2023 - calculadas à taxa convencionada, sobre o vencimento de cada uma das rendas -, e de indemnização por mora na restituição dos bens objecto da locação), e respectivos juros de mora (calculados à mesma taxa convencionada e sobre as quantias reclamadas a título de capital).

Alegou para o efeito, em síntese, que no exercício da sua actividade social celebrou com EMP02..., Limitada, dois contratos de locação, tendo por objecto bens móveis (equipamentos informáticos e de energia); e que os ditos acordos ainda se encontravam em vigor em Setembro de 2022, quando aquela se apresentou à insolvência.
Mais alegou que, tendo reclamado o crédito aqui em causa, então de € 17.382,59, como comum, foi o mesmo reconhecido tal como o reclamara.
Alegou ainda que, tendo o Administrador da Insolvência denunciado ambos os contatos de locação em 04 de Outubro de 2022, pretendeu reportar os efeitos da dita denúncia à data da declaração de insolvência (12 de Setembro de 2022), o que não lhe seria permitido por lei; e tendo ela própria exigido o pagamento do crédito reclamado e reconhecido de € 17.382,59, não o fez, não lhe tendo igualmente entregue os bens antes locados.
Por fim alegou que os montantes correspondentes aos alugueres e às demais facturas vencidas após a declaração de insolvência e até à data de produção dos efeitos jurídicos da denúncia (de Outubro a Dezembro de 2022), e respectivos juros de mora, calculados à taxa legal em vigor, constituiriam dívida da massa insolvente.

1.1.2. Regularmente citada, a Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) veio contestar, pedindo para ser absolvida do pedido.
Alegou para o efeito, em síntese, consubstanciarem os dois contratos de locação de bens móveis invocados nos autos contratos de adesão, cujas cláusulas contratuais gerais não teriam sido comunicadas à Sociedade depois insolvente (nomeadamente, a que fixa a taxa diária devida pelo incumprimento da obrigação de restituição dos bens deles objecto); e, por isso, ter-se-iam que se considerar excluídas de tais acordos.
Mais alegou só não ter ocorrido a restituição dos bens locados à Autora (EMP01..., S.A.) por esta não ter realizado as diligências necessárias para o efeito, nunca tendo sido impedida de o fazer por ela própria.
Por fim, defendeu que qualquer valor que fosse devido pela agora Insolvente (EMP02..., Limitada) teria de ser qualificado como crédito sobre a insolvência, nos termos do art. 108.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [1], e não sobre ela própria.
A Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) impugnou parte da matéria de facto alegada pela Autora (EMP01..., S.A.), constitutiva do direito de crédito por ela reclamado nos autos (nomeadamente, que a mesma haja pago a terceiros os bens que lhe locou e que ela própria se haja obrigado a contactar a Autora para lhe restituir os ditos bens).

1.1.3. A Autora (EMP01..., S.A.) respondeu, pedindo que as excepções deduzidas pela Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) fossem julgadas improcedentes, por não provadas.
Alegou para o efeito, sempre em síntese, ser ela própria e a Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) empresas, e não consumidores, pelo que não lhe seria aplicável o regime legal das cláusulas contratuais gerais, sem prejuízo de lhe ter proporcionado e assegurado a possibilidade do real conhecimento do conteúdo de ambos os contratos firmados, não lhe tendo a mesma manifestado qualquer dúvida quanto a ele.
Mais alegou pertencer à Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) a obrigação de restituição do equipamento locado, e não a ela própria a obrigação do seu levantamento.
Alegou ainda não ter a declaração de insolvência suspendido os contratos de locação em causa, não produzir a posterior denúncia respectiva (operada pelo Administrador da Insolvência) efeitos retroactivos, tendo ainda a mesma que respeitar o período de pré-aviso legal de 60 dias, tendo, por isso, permanecido em vigor até 4 de Dezembro de 2022. Reiterou, por isso, serem os alugueres vencidos e não pagos, bem como a indemnização devida pela falta de restituição dos equipamentos, e respectivos juros de mora, créditos sobre a massa insolvente (e não créditos sobre a insolvência).

1.1.4. Foi proferido saneador-sentença, julgando procedente «excepção dilatória inominada» e absolvendo a Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) da instância, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
Da invocada exceção inominada
A R veio invocar que se o tribunal entender ser devida alguma quantia pela R, tal deverá ser considerado, nos termos do artigo 108º, nº3 do CIRE, como crédito sobre a insolvência, pedindo se decida pela imediata absolvição da instância.
Notificada a A, pugnou pela improcedência da exceção.
(…)
Assim, pedindo a A, EMP01..., SA, nos presentes autos a condenação da R Massa Insolvente de EMP02..., Lda, a pagar-lhe o montante de € 1.202, 04, correspondente aos alugueres vencidos de outubro a dezembro de 2022 e € 4.356,27 correspondente aos alugueres vencidos de outubro a dezembro de 2022 referentes ao outro contrato de locação celebrado entre a A e a insolvente, bem como os juros de mora vencidos desde a data de vencimento das referidas faturas e respetivos alugueres mensais até ../../2023, em ambos os contratos de locação, e ainda as quantias de € 2.497,49 e € 9.044,75, respetivamente, a título de indemnização pela mora na restituição dos bens contabilizada até ../../2023, tais quantias, se forem devidas, são da responsabilidade da insolvência e não da massa insolvente. 
Na verdade, o artigo 51º CIRE, que elenca as dívidas da massa, identifica dívidas resultantes de contrato bilateral, mas cujo cumprimento não possa ser ou não tenha sido recusado pelo AI, ou tenha mesmo sido exigido por este. 
Não é este o caso das dívidas resultantes da denúncia pelo AI da locação de móveis, que exige um período para ser efetiva a denúncia, e é a própria lei que não deixa margem a dúvidas ao estabelecer no artigo 108º, nº3, expressamente, que estamos perante dívidas da insolvência (e respetivos juros de mora se aos mesmos houver lugar). 
E se a insolvente estiver contratualmente obrigada a entregar o bem locado no termo do contrato de locação, não o fazendo, a indemnização a que a locadora terá direito pelo prejuízo que tal lhe cause constitui igualmente uma dívida sobre a insolvência.
Catarina Vasconcelos entende ser assim porque a massa não beneficiou do uso daqueles bens, mas a insolvente sim.
Assim, estamos perante dívidas da insolvência, que têm que ser reclamadas no processo de insolvência em ação de verificação ulterior de créditos se o prazo para reclamação de créditos já tiver decorrido, mas o seu pagamento não pode ser pedido à massa insolvente.
Parece-nos esta a melhor e mais congruente interpretação das normas legais em confronto.
Também assim entendem Luís A Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, QJ, Quid Juris, Sociedade Editorial, p. 478: “Assim, continuamos a entender que o regime do nº1 se dirige aos casos de locação que, sendo o insolvente locatário, mantêm ligações com a insolvência.  Daí resulta, por força do âmbito de aplicação do art. 108º, alargado, em relação à lei anterior, à locação em geral, que a questão antes colocada quanto ao arrendamento para habitação faz hoje sentido quanto a outras hipóteses. 5. Da denúncia do arrendamento pelo administrador da insolvência, nos casos a que é aplicável o nº1, resulta a obrigação de pagamento de certas retribuições locativas, a que corresponde um crédito sobre a insolvência”.
Pelo exposto, declaro procedente a exceção dilatória inominada invocada nos termos do artigo 278º, nº1, e) do CPC ex vi artigo 17º CIRE e, em consequência, absolvo a Ré, Massa Insolvente da EMP02..., Lda, da instância.
Custas pela A, nos termos do artigo 527º, nº2 CPC ex vi artigo 17º CIRE.
Registe e Notifique.
(…)»
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1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada com esta decisão, a Autora (EMP01..., S.A.) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e revogada a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

I. A Recorrente instaurou por apenso ao processo de insolvência ação para cobrança da dívida da massa insolvente, ao abrigo do artigo 89.º do CIRE, e para efeitos do artigo 172.º do CIRE;
 
II. Para tal, e em sentido oposto de toda prova produzida nos autos, a sentença recorrida entendeu que as mensalidades que se venceram após a declaração de insolvência só constituem dívidas da massa se o administrador não denunciar o contrato de locação, de harmonia com o disposto no n.º 3, do artigo 108.º do CIRE. 
 
III. A sentença recorrida fez uma incorreta e redutora aplicação do n.º 3, do artigo 108.º, do CIRE. 
 
IV. O n.º 3, do artigo 108.º do CIRE aplica-se não aos alugueres vencidos entre a data da declaração de insolvência e a produção dos efeitos jurídicos da denúncia, mas sim às quantias vincendas, após a denúncia, que podem ser exigidas como crédito sobre a insolvência e que correspondem ao período intercedente entre a data da produção dos efeitos jurídicos da denúncia e a data do fim do contrato. 
 
V. O n.º 1, do artigo 108.º do CIRE prevê a manutenção do contrato de locação após a declaração de insolvência, facultando ao Administrador da Insolvência a possibilidade de denunciá-lo desde que cumprido um pré-aviso de 60 dias. 
 
VI. Decretada a insolvência da sociedade e optando o respetivo administrador da insolvência pela denúncia do contrato de locação, os alugueres vencidos e não pagos, entre a data da declaração de insolvência e o momento em que a denúncia operou efeitos, devem ser reclamados como créditos sobre a massa insolvente e não como créditos sobre a insolvência.
 
VII. Tendo o Sr. Administrador da Insolvência optado pela denúncia dos contratos, a obrigação de proceder ao pagamento dos alugueres vencidos até à produção dos efeitos jurídicos da denúncia mantém-se, não sendo de excluir a aplicação da al. f), do n.º 1, do artigo 51.º e do artigo 172.º, ambos do CIRE, considerando que o que está em causa é o período de tempo decorrido após a declaração de insolvência.
 
VIII. A lei não veda a possibilidade de incluir o período de tempo que intercedeu entre a declaração de insolvência e a produção dos efeitos jurídicos da denúncia, nas hipóteses que contemplam as alíneas e) e f) do artigo 51.º do CIRE, até mesmo porque o contrato de locação não suspende os seus efeitos com a declaração de insolvência até ser proferida deliberação pelo Administrador da Insolvência.
 
IX. O Tribunal recorrido fez, deste modo, uma incorreta interpretação e aplicação do n.º 3, do artigo 108.º, do CIRE. 
 
X. No caso sub judice tem aplicação o n.º 1, do artigo 108.º, do CIRE, o que obriga ao pagamento, pelo Sr. Administrador da Insolvência, das quantias vencidas após a declaração de insolvência e até à produção dos efeitos jurídicos da denúncia, de harmonia com o disposto al. f), do n.º 1, do artigo 51.º e do artigo 172.º, ambos do CIRE. 
 
XI. Assim, além do supra exposto, a sentença violou os artigos 51.º, n.º 1, al. f), 108.º e 172.º do CIRE, devendo ser alterada por acórdão que julgue a ação procedente e condene a Massa Insolvente nos pedidos.
*
1.2.2. Contra-alegações
A Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) contra-alegou, pedindo que se mantivesse a decisão recorrida.

Concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

1. Porque o recurso interposto pela recorrente, o qual incide unicamente sobre matéria de direito, versa sobre a douta Sentença proferida nos presentes autos, pela qual o Tribunal a quo declarou procedente a exceção dilatória inominada invocada nos termos do artigo 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE e, em consequência, absolveu a recorrida da instância.

2. Porque a recorrida entende que o Tribunal a quo decidiu corretamente ao julgar procedente a exceção dilatória inominada na presente ação.

3. Porque as dívidas ora reclamadas, pela recorrente, caso o Tribunal ad quem entenda serem devidas, deverão ser consideradas, nos termos do artigo 108.º, n.º 3, do CIRE, como crédito sobre a insolvência.

4. Porque in casu a massa não beneficiou do uso daqueles bens, objetos do contrato de locação, mas a insolvente sim.

5. Porque se tratando de crédito sobre a insolvência, as dívidas ora reclamadas, deveriam ser reclamadas no processo de insolvência.

6. Porque a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, não merece qualquer censura por parte do Tribunal ad quem, devendo manter-se incólume.

7. Deverá o Tribunal ad quem indeferir a pretensão da recorrente, vazadas nas suas conclusões, mantendo-se, in totum, o decidido doutamente pelo Tribunal a quo
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [2].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [3], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pela Autora (EMP01..., S.A.), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão única - Qual a natureza dos créditos (alugueres vencidos durante a vigência do contrato de locação e indemnização por mora na restituição dos bens deles objecto) aqui invocados pela Autora (EMP01..., S.A.), isto é, são qualificáveis como créditos sobre a massa insolvente (como pretende ela própria) ou como créditos sobre a insolvência (como pretende a Ré) ?
*
Precisa-se, porém, que a alegação, da Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada), de não ser ela a devedora das quantias reclamadas nos autos pela Autora (EMP01..., S.A.), mas sim a insolvência (face à selecção e interpretação que faz da lei que considera aplicável à pretensão da Autora), não consubstancia qualquer excepção dilatória inominada, que contenda com os pressupostos da instância, mas sim uma excepção peremptória inominada, que contende com o mérito da acção [4].
Com efeito, não está aqui em causa qualquer requisito (relativo ao tribunal, às partes ou à própria acção) a reunir necessariamente para que o Tribunal possa conhecer do mérito da causa, como é próprio das excepções dilatórias; e que, por isso, na respectiva ausência, importa a absolvição do réu da instância (art.ºs 576.º, n.º 1 e n.º 2 e 577.º, do CPC).
A alegação de que, face ao regime jurídico pretensamente aplicável, os créditos reclamados nos autos consubstanciam dívidas sobre a insolvência, e não dívidas sobre a massa insolvente, contende com a apreciação do mérito da causa, isto é, com o saber se, face aos factos alegados, a lei confere, ou não, ao autor o direito de que o mesmo se arroga; e, por isso, concluindo-se pela negativa, importa a absolvição do réu do pedido (art.º 576.º, n.º 1 e n.º 3 do CPC).
Dessa forma o terão entendido inicialmente (e correctamente) as próprias partes, a Ré (Massa Insolvente de EMP02..., Limitada) quando não concluiu a sua contestação pedindo a absolvição respectiva da instância, e a Autora (EMP01..., S.A.) quando respondeu à mesma (a convite do Tribunal a quo), desconsiderando nessa resposta a matéria aqui em causa.
Só depois do Tribunal a quo exarar outro e distinto juízo nos autos (no despacho em que voltou a convidar a Autora a pronunciar-se sobre as excepções invocadas na contestação, porque «nada referiu sobre a alegada exceção dilatória inominada de que o direito às rendas vencidas no período de pré-aviso e a eventual indemnização constituem dívidas da insolvência»), e conformando-se com ele, aderiram ao mesmo.
 
Logo, conhecer-se-á do objecto do recurso, sem prejuízo de, a final, e no que tange às consequências do juízo que dele se faça, serem as mesmas extraídas de forma conforme com a lei (isto é, repercutidas no mérito da causa, e não na validade da instância).
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão única enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Com efeito, saber se o crédito reclamado pela Autora (EMP01..., S.A.) nos autos consubstancia uma dívida sobre a massa insolvente, ou uma dívida sobre a insolvência, pode ser apurado atendendo apenas ao pedido que a mesma formulou e à causa de pedir que alegou para o efeito, bem como à lei aplicável.
Pode, assim, nesta fase dos autos (repete-se, no que se encontra exclusivamente submetido à apreciação deste Tribunal ad quem), abstrair-se da efectiva realidade da sua alegação, tanto mais que foi (em parte relevante) objecto de oportuna impugnação pela Ré (na contestação que apresentou).
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Diferente natureza dos créditos em processo de insolvência
4.1.1. Em geral - Créditos sobre a Insolvência versus Créditos sobre a Massa Insolvente
4.1.1.1. Créditos sobre a Insolvência

Lê-se no art.º 47.º do CIRE que, declarada «a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio» (n.º ...); e tais créditos, «bem como os que lhes sejam equiparados, (…) são neste Código denominados (…) créditos sobre a insolvência» (n.º 2).
Trata-se, como desde logo decorre da expressão «cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração», de dívidas que têm um fundamento anterior à data da declaração da insolvência.

Estas «dívidas sobre a insolvência», e de acordo com o art.º 173.º do CIRE, virão a ser pagas desde que estejam verificadas «por sentença transitada em julgado»; e o seu pagamento ocorrerá por força dos bens do insolvente, previamente apreendidos e/ou liquidados, consoante a natureza dos respectivos créditos, isto é, garantidos, privilegiados, comuns ou subordinados [5] (art.ºs 46.º, n.º 4, 174.º, 175.º, 176.º e 177.º, todos do CIRE) [6].
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4.1.1.2. Créditos sobre a Massa Insolvente
Lê-se no art.º 46.º, n.º 1, do CIRE, que a «massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo».
A propósito do que sejam «as suas próprias dívidas», lê-se no art.º 51.º, do CIRE, sob a epígrafe «Dívidas da massa insolvente», no seu n.º 1, que, salvo «preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código: a) As custas do processo de insolvência; b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores; c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente; d) As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções; e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência; f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração; g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório; h) As dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes; i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente; j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93.º».
Trata-se, como desde logo decorre da expressão «além de outras como tal qualificadas neste Código», de uma enumeração exemplificativa [7]; e todas as dívidas sobre a massa insolvente têm como fundamento a própria situação de insolvência, isto é, são originadas com o processo ou por causa dele, assumindo ainda um carácter marcadamente excepcional, justificado pelo regime de que beneficiam [8].  

Estas «dívidas sobre a massa insolvente», e de acordo com o art.º 172.º, do CIRE, virão a ser pagas antes de se «proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência», cabendo ao administrador da insolvência deduzir «da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo» (n.º 1); e tal pagamento «tem lugar nas datas dos respectivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo» (n.º 2).
Logo, além de serem pagas de forma precípua, não estão sujeitas ao processo de verificação e graduação de créditos, não tendo que ser reclamadas, podendo os respectivos credores exigir directamente o seu pagamento do administrador da insolvência; e fazê-lo logo que se vençam, falando-se a propósito do princípio da pontualidade [9]. Será, inclusivamente, este regime privilegiado (de vencimento, de reclamação e reconhecimento, e de termos de pagamento) que justificará o carácter excepcional das dívidas sobre a massa insolvente [10].
Compreende-se, por isso, que se afirme que a «massa insolvente destina-se primordialmente à satisfação das suas próprias dívidas (os créditos sobre a massa, referidas no art.º 51º) e apenas depois aos créditos sobre a insolvência (as restantes dívidas de natureza patrimonial do insolvente ou garantidas por bens deste, referidas no art. 47º)» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015 - 8.ª edição, Almedina, págs. 113). Logo, aquelas (dívidas sobre a massa insolvente) são pagas com precipuidade, e estes (créditos sobre insolvência), independentemente da sua categoria, são preteridos no confronto com elas.
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4.1.2. Em particular - Créditos resultantes de contrato de locação
4.1.2.1. Contrato de locação

Lê-se no art.º 1022.º do CC que contrato de locação, é aquele «pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição»; e «diz-se “arrendamento” quando versa sobre coia imóvel, “aluguer” quando incide sobre coisa móvel» (art.º 1023.º do CC).
Constituem, assim, obrigações principais das partes: do locador, de entregar «ao locatário a coisa locada» e de lhe assegurar «o gozo desta para os fins a que a coisa se destina» (art.º 1031.º do CC); e do locatário, de pagar «a renda ou aluguer» e de restituir «a coisa locada findo o contrato» (art.º 1038.º do CC).
Incumprindo o locatário esta última obrigação, «é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado», «elevada ao dobro» logo «que o locatário se constitua em mora» (art.º 1045.º, n.º 1 e n.º 2, do CC).
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4.1.2.2. Efeito da declaração de insolvência sobre o contrato de locação
Lê-se no art.º 108.º, n.º 1, do CIRE, que a «declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior».
Logo, a declaração da insolvência não afecta, em si mesma, o contrato de locação em que o insolvente é locatário, que continua a produzir de forma inalterada os seus efeitos normais [11]; mas confere-se ao administrador da insolvência a faculdade de lhe pôr termo, por denúncia. 

Precisando, e quanto à não suspensão do contrato de locação com a declaração da insolvência, presumiu a lei que, em regra, essa será a solução mais favorável aos interesses da massa [12]. Por isso, caberá precisamente ao administrador da insolvência decidir denunciá-lo, pondo-lhe fim, se os interesses dos credores, no caso concreto, impuserem uma solução diferente da presumida pela lei [13].
Precisando novamente, dir-se-á que a denúncia constitui um modo de cessação de vínculos obrigacionais, existente nos contratos com prestações cuja execução se protela no tempo, sendo um modo da parte se desvincular, unilateral e potestativamente (não exige o acordo da sua contraparte, podendo mesmo ser realizada contra a vontade dela) do contrato.
Opera, assim, mediante mera declaração de um contraente (o que pretende fazer cessar a relação contratual ou obrigacional em sentido amplo a que está vinculado, emergente de um contrato bilateral ou plurilateral, renovável, ou fixado por tempo indeterminado); e, como declaração receptícia que é, uma vez chegada ao conhecimento do respectivo destinatário, extingue a relação obrigacional complexa derivada do contrato cuja renovação ou continuação impede.
 Estando-se face a contratos de execução duradoura, é elemento natural da denúncia que a mesma seja realizada com uma antecedência razoável sobre o termo do período negocial em curso (pré-aviso ou aviso prévio): a boa-fé, e o correlativo princípio da confiança, impede a realização de denúncias intempestivas (com a eficácia imediata, ou de tal modo próxima que se converta em causa de dificuldades ou de danos inaceitáveis); e, pela sua própria natureza, não tem eficácia retroactiva.
Não tem, ainda, de se fundar em qualquer justa causa ou motivo particular (denúncia ad nutum ou ad libitum), mas apenas em razões de oportunidade ou de interesse do contraente que a opera,  simplesmente por o Direito não ser favorável a vinculações contratuais eternas [14].

Não sendo o contrato de locação denunciado, ou enquanto não o for, as rendas ou alugueres que se forem vencendo consubstanciam um dívida da massa insolvente, nos termos do art.º 51.º, n.º 1, al f), do CIRE [15].
Recorda-se que se lê no mesmo que «são dívidas da massa insolvente» qualquer «dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração».
Justifica-se que assim seja, «em ordem a evitar que à outra parte seja exigido o cumprimento da sua obrigação quando ela não tem quaisquer perspectivas de receber a sua contraprestação», face à declaração da insolvência já ocorrida (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015 - 8.ª edição, Almedina, pág. 119) [16].
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Mais se lê, no art.º 108.º, n.º 3, do CIRE, que a «denúncia do contrato pelo administrador da insolvência facultada pelo n.º 1 obriga ao pagamento, como crédito sobre a insolvência, das retribuições correspondentes ao período intercedente entre a data de produção dos seus efeitos e a do fim do prazo contratual estipulado, ou a data para a qual de outro modo teria sido possível a denúncia pelo insolvente, deduzidas dos custos inerentes à prestação do locador por esse período, bem como dos ganhos obtidos através de uma aplicação alternativa do locado, desde que imputáveis à antecipação do fim do contrato, com actualização de todas as quantias, nos termos do n.º 2 do artigo 91.º, para a data de produção dos efeitos da denúncia».
Logo, da denúncia do contrato de locação (que se mantinha em vigor após a declaração de insolvência) resulta a obrigação de pagamento de certas retribuições locativas (grosso modo, uma indemnização pelos prejuízos que lhe causou a antecipação do fim do contrato).
Assim, devem ser pagas as retribuições devidas (rendas ou alugueres, consoante o caso) relativas ao período que decorra entre a data em que a denúncia produzirá os seus efeitos e (i) o fim do prazo contratual estipulado, ou (ii) a data para a qual de outro modo teria sido possível a denúncia pelo insolvente.
Ao valor apurado como sendo devido ao locador serão, porém, deduzidos os custos inerentes à sua prestação no período em causa (porque terá deixado de os suportar após a produção de efeitos da denúncia) e os ganhos auferidos com a aplicação alternativa do bem locado (desde que sejam decorrentes da antecipação do fim do contrato).
Já este outro crédito (face ao prévio, vencido até ao termo do contrato, por denúncia) é, por força de lei expressa, um crédito sobre a insolvência.
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.2.1. Contrato de locação
Concretizando, alegou a Autora (EMP01..., S.A.) ter celebrado com a depois Insolvente (EMP02..., Limitada) dois contatos de locação, mediante os quais lhe cedeu o gozo dos bens deles objecto, por meio do pagamento mensal de alugueres, vigorando o primeiro por 12 meses e o segundo por 72 meses, e sendo ambos renováveis por sucessivos períodos de 6 meses.
Mais alegou que, no termo dos mesmos contratos, deveriam ser-lhe devolvidos os equipamentos locados, sob pena de pagamento de uma quantia sobre o valor dos alugueres antes devidos.
Não tendo assim, sempre segundo a sua alegação, ficado acordada a possibilidade de aquisição dos ditos equipamentos pela locatária, não podem os contratos em causa ser qualificados como contratos de locação financeira (que precisamente, nos termos dos art.ºs 1.º, 7.º, 9.º, n.º 1, al. c), 10.º, n.º 1, al. k) e n.º 2, al. f)do  DL n.º 149/95, de 24 de Junho, preveem essa possibilidade), devendo antes ser qualificados como contratos de locação simples.
Precisando, «deve ser qualificado como (…) contrato de locação simples, aquele em que para além de não estar prevista a transmissão da propriedade do objecto locado para a locatária, que permanece como propriedade exclusiva da locadora, nele ainda se impõe à locatária a obrigação da respectiva devolução, após a respectiva cessação, sob pena de a locadora proceder ao respectivo levantamento a expensas da locatária, mantendo-se a obrigação desta pagar a renda periódica conforme acordado» (Ac. da RL, de 25.01.2024, Nuno Teixeira, Processo n.º 122/22.7T8BRR-D.L1-1).
Dir-se-á mesmo que o «facto da A., como locadora, adquirir os bens locados escolhidos pela locatária, ora insolvente, e esta se obrigar a pagar os alugueres previstos no contrato que amortizem integralmente o preço de aquisição, as despesas de execução do contrato e a margem de lucro estimada, podendo ser renovado por sucessivos períodos de seis meses, não constitui qualquer obstáculo à qualificação do contrato como típico contrato de locação ou aluguer de bens móveis, nos termos do estipulado no artigo 1022.º do Código Civil» (Ac. da RE, de 29.09.2022, Rui Machado e Moura, Processo n.º 300/21.6T8STR-D.E1).

Nesta pressuposta alegação da Autora (EMP01..., S.A.), deverá ser aplicado aos contratos de locação dos autos o regime consagrado no art.º 108.º do CIRE (como, de resto, o entenderam inicialmente as partes e, depois, o Tribunal a quo).
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4.2.2. Créditos resultantes do contrato de locação mantido em vigor
Concretizando novamente, e continuando a seguir a alegação vertida nos autos, verifica-se que, em 12 de Setembro de 2022, quando foi declarada a insolvência de EMP02..., Limitada, os dois contratos de locação referidos se encontravam ainda em vigor; e assim permaneceram, por expressa imposição da lei.
Mais se verifica que, em 04 de Outubro de 2002, por comunicação escrita chegada nessa data ao conhecimento da Autora (EMP01..., S.A.), o Administrador da Insolvência denunciou os dois contratos. Ora, a sua pretensão de eficácia retroactiva dessa denúncia não é legalmente admissível, antes tendo de se lhe aplicar o pré-aviso legal de 60; e, por isso, os contratos de locação em causa cessaram a produção dos seus efeitos em 04 de Dezembro de 2022.
Ora, e conforme se justificou supra, os alugueres vencidos entre a declaração de insolvência (12 de Setembro de 2022) e a data de cessação da produção de efeitos dos dois contrato de locação referidos (04 de Dezembro de 2022) e não pagos, quando devidos, constituem dívidas da massa insolvente, e não da insolvência (ao contrário daqueles outros que se tenham vencido antes de declarada a insolvência, indiscutivelmente dívidas da insolvência).
A mesma qualificação (de dívidas sobre a massa insolvente) deverá ser conferida à indemnização pela mora na restituição dos equipamentos que eventualmente seja devida, uma vez que resulta do incumprimento de obrigação que onerava a massa insolvente; e se excluiu claramente da natureza e do âmbito daquela outra indemnização que o n.º 3 do art.º 108.º confere ao locador e comete à insolvência.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, reconhecendo que, vindo a provarem-se os créditos por incumprimento dos dois contratos de locação invocados nestes autos pela Autora (alugueres vencidos entre a data da declaração da insolvência e a data em que se tornou eficaz a denúncia de que foram depois objecto e indemnização pela mora na restituição dos bens locados), consubstanciam os mesmos créditos sobre a massa insolvente.
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Importa, pois, decidir pela procedência do recurso de apelação interposto pela Autora (EMP01..., S.A.).
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Autora (EMP01..., S.A.), e, em consequência, em

· Revogar a decisão recorrida, ordenando o normal prosseguimento dos autos, para apreciação do pedido de condenação deduzido pela Autora (nomeadamente, com a instrução e o julgamento dos factos controvertidos necessários para o efeito).
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Custas da apelação pela Ré (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
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Guimarães, 29 de Maio de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - José Carlos Pereira Duarte.



[1] O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - doravante aqui CIRE - foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
[2] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[3] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[4] Neste sentido, em hipótese distinta mas justificando o mesmo juízo, Ac. da RL, de 30.05.2023, José Capacete, Processo n.º 5226/20.8T8VNG-A.L1-7.
[5] Precisa-se, a propósito e nos termos do art.º 47.º, n.º 4, do CIRE, que são créditos:
. «garantidos» e «privilegiados», «os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes»;
. «subordinados», os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência» (sendo nomeadamente esse o caso dos «créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência», dos «créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes», dos «créditos que tenham por objecto prestações do devedor a título gratuito», ou dos «créditos por suprimentos );
. e «comuns», «os demais créditos».
[6] Logo, e de acordo com o reconhecimento obtido em prévia sentença transitada em julgado, o pagamento dos créditos: garantidos, é efectuado com o produto da liquidação dos bens onerados com garantia real, respeitando a prioridade que lhes caiba (art.º 174.º, do CIRE); privilegiados, é efectuado com base nos bens não afectos a garantias reais prevalecentes, respeitando a prioridade que lhes caiba e os seus montantes (art.º 175.º, do CIRE); comuns, é efectuado com base no produto da liquidação dos demais bens do insolvente, e na proporção dos seus créditos, se aquele for insuficiente para o efeito (art.º 176.º, do CIRE); e subordinados, é efectuado se existir saldo remanescente, e com ele (art.º 177.º, do CIRE). 
[7] Neste sentido: Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, págs. 292 e 308; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015 - 8.ª edição, Almedina, págs. 118; Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016 - 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, pág. 274; e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2016 - 6.ª edição, Almedina, pág.  237.
[8] Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 64, onde se lê que, agrupando «os casos [da enumeração de dívidas sobre a massa insolvente, do art.º 51.º, n.º 1, do CIRE] atendendo ao seu denominador comum, é possível concluir, em primeiro lugar, que a classificação como dívidas da massa assenta na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) entre as dívidas e o processo de insolvência. Sendo previsíveis e naturais ao processo de insolvência, tendo por finalidade assegurar a abertura e o curso de um processo de insolvência (como as resultantes das custas), ou sendo meramente eventuais (como as que derivam da actividade dos órgãos e, em particular, do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções), a verdade é que todas são consequência do processo de insolvência.
Olhando para as restrições inerentes à classificação como dívidas da massa (em particular para os casos dispersos), é possível concluir, em segundo lugar, que a classificação como dívidas da massa assume um carácter marcadamente excepcional».
[9] Neste sentido, Ac. da RG, de 07.10.2021, José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 1/08.0TJVNF-ET.G1, onde se lê, e quanto «ao momento do pagamento dos créditos que incidem sobre a massa insolvente, nos termos do n.º 3 do art.º 175º, vigora quanto a eles o princípio da pontualidade, em função do qual impende sobre o administrador de insolvência a obrigação de proceder ao pagamento das dívidas da massa insolvente mal estas se vençam, não obedecendo, portanto, o pagamento das dívidas da massa insolvente às mesmas regras que presidem ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, que se encontram enunciadas nos arts. 173º e ss. do CIRE». 
[10] Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 64, onde se lê que, olhando «para as restrições inerentes à classificação como dívidas da massa (em particular para os casos dispersos), é possível concluir, em segundo lugar, que a classificação como dívidas da massa assume um carácter marcadamente excepcional», sendo que bem «se compreende que assim seja, uma vez que as dívidas da massa desfrutam de um tratamento especial (privilegiado)».
[11] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 478.
José de Oliveira Ascenção, a propósito da «consequência imediata que pode resultar da declaração de insolvência», fala mesmo da «manutenção (automática) do vínculo» (in «Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso», ROA, Set.-2005, disponível no sítio https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/jose-de-oliveira-ascensao-insolvencia-efeitos-sobre-os-negocios-em-curso-star/)
[12] Comentando o art.º 169º do anterior CPEREF, quanto à falência do arrendatário (regime este agora alargado à locação em geral), Maria Rosário Epifânio (in Os Efeitos Substantivos da Falência, Publicações Universidade Católica, Porto 2000, págs. 355-356) defendia (em argumentação que se mantem actual): «A consagração deste regime de continuidade do arrendamento deve-se à natureza do contrato: uma vez que se trata de um contrato duradouro, enquanto o liquidatário judicial não optar pela extinção do contrato, ao arrendatário continua a ser necessariamente a proporcionado o gozo da coisa e, correspondentemente, ao senhorio deve continuar a ser reconhecido o direito ao pagamento das rendas na íntegra. Isto significa, por outras palavras, que a solução de manutenção do contrato (sem qualquer suspensão da sua execução), se e enquanto o liquidatário não optar pela extinção do contrato, não apresenta a sua razão de ser directa ou imediata na tutela do senhorio in bonis (maxime do pagamento integral das rendas após a declaração de insolvência): pelo contrário, ela fundamenta-se antes na necessidade de proteção do interesse da massa falida, id quod plerumque accidit – ou seja, da necessidade de permitir à massa falida a manutenção do gozo dos bens integrantes da massa falida».
[13] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 480.
[14] A propósito da definição e caracterização da denúncia, com citação de doutrina conforme: Ac. da RL, 08.10.2019, José Capacete, Processo n.º 94104/17.3YIPRT.L1-7; Ac. da RG, de 18.06.2020, Ramos Lopes, Processo n.º 350/07.7T8CMN.G1; ou Ac. da RC, de 07.09.2021, Maria João Areias, Processo n.º 4278/15.7T8CBR-F.1.C2.
[15] Neste sentido, na doutrina:
. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 480 - onde se lê, a propósito a possibilidade de denúncia do contrato de locação pelo administrador da insolvência, que, aliás, «dificilmente se justificaria conferir ao senhorio, enquanto credor do insolvente, uma situação mais favorável do que a dos demais»).
. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2016 - 6.ª edição, Almedina, pág.  190 – onde se lê, de «facto, uma vez que o locatário continua a usufruir do gozo do bem, deverá continuar a agar a respetiva renda ou aluguer, como crédito sobre a massa (art. 51.º, n.º 1, als. e) e f)).
. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016 - 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, pág.  202 – onde se lê que o «direito às rendas que se vençam após a sentença de declaração de insolvência constitui crédito sobre a massa ou sobre a insolvência ? Pelas mesmas razões atrás apontadas e ainda porque se pode dizer que o administrador da insolvência no denunciou o contrato, parece-nos tratar-se de crédito sobre a massa».t
. Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Outubro de 2023, pág. 358 - onde se lê que, «se o contrato não for denunciado, as rendas que forem devidas no âmbito desse contrato de locação consubstanciarão uma dívida da massa insolvente, nos termos do art. 51.º, n.º 1, al. f)».
Na jurisprudência: Ac. da RP, de 28.03.2012, Soares de Oliveira, Processo n.º 1483/10.6TBBGC-H.P1; Ac. da RC, de 08.11.2016, Fernando Monteiro, Processo n.º 1622/10.7TBACB-H.C2; Ac. da RC, de 07.09.2021, Maria João Areias, Processo n.º 4278/15.7T8CBR-F.1.C2; Ac. do STJ, de 17.11.2021, Luís Espírito Santo, Processo n.º 1920/18.1T8LRA-H.C1.S1; Ac. da RE, de 29.09.2022, Rui Machado e Moura, Processo n.º 300/21.6T8STR-D.E1; Ac. da RL, de 06.07.2023, Ana Paula Nunes Duarte Olivença, Processo n.º 431/23.8T8LSB.L1-8; ou Ac. da RL, de 25.01.2024, Nuno Teixeira, Processo n.º 122/22.7T8BRR-D.L1-1.
[16] No mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 310, onde se lê que entendeu «o legislador ser excessivamente oneroso para a contraparte do insolvente exigir-lhe o cumprimento do contrato nos termos acordados, mas sujeitando os créditos para ele advenientes ao regime geral da insolvência.
E compreende-se que assim tenha sido. Com efeito, se o administrador judicial está impedido de recusar o cumprimento, estamos claramente em presença de um dispositivo de proteção da contraparte a que só pode razoavelmente corresponder um crédito sobre a massa.
Por outro lado, se há o direito a optar entre o cumprimento e a resolução - e nesta eventualidade apenas poderia haver lugar a indemnização da contraparte como crédito sobre a insolvência -, é de crer que se o administrador seguiu o primeiro caminho é porque isso é útil para a generalidade dos credores, o que significa comportar algum ganho para a massa ou evitar-lhe alguma perda, visto o negócio em causa na sua globalidade.
Mas, se assim é, então parece justo que a massa cumpra, também, pronta e prioritariamente, as obrigações que são, afinal de contas, a contrapartida da prestação do terceiro».