Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOAQUIM BOAVIDA | ||
Descritores: | INVENTÁRIO RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS COMINAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/23/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | 1 – Num caso em que tanto o cabeça de casal como o reclamante, requerente do inventário, são patrocinados por mandatário judicial e em que a apresentação da relação de bens foi notificada nos termos do artigo 221º, nº 1, do CPC, ou seja, segundo o prescrito para as notificações entre mandatários judiciais, o cabeça de casal considera-se devidamente notificado se a notificação da reclamação contra a relação de bens foi efetuada pelo mandatário judicial do reclamante ao mandatário judicial do cabeça de casal através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais. 2 – Da atuação oficiosa da secretaria estão excluídas as notificações que, nos termos do artigo 221º, nº 1, do CPC, devam ser realizadas pelos mandatários judiciais. Quando o artigo 1105º, nº 1, do CPC refere que da reclamação «são notificados os interessados», não está a excluir a aplicação do artigo 221º, nº 1, do CPC, ou seja, o regime prescrito para as notificações entre mandatários judiciais. 3 – Relativamente à relação de bens, o efeito cominatório da falta de reclamação contra a mesma ou da apresentação de uma reclamação restrita (o interessado só impugna algumas verbas daquela relação ou alega a existência de bens ou dívidas não relacionados) é o que decorre do regime contido, para o processo declarativo comum, nos artigos 566º e 567º, nº 1, do CPC, para a situação de revelia, e no artigo 574º, nº 1, para o incumprimento do ónus de impugnação, sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 1106º quanto ao reconhecimento do passivo. É um efeito cominatório semipleno: no caso de revelia, consideram-se confessados os factos alegados na relação de bens (art. 567º, nº 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574º, nº 1), com as exceções à produção de tal efeito estabelecidas nos artigos 568º e 574º, nºs 2 a 4. 4 – A falta de resposta à reclamação contra a relação de bens produz o efeito estabelecido no artigo 574º, por aplicação do disposto no artigo 587º, nº 1, ambos do CPC. Há um ónus de resposta à reclamação (art. 1105º, nº 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta, a aceitação dos termos dessa reclamação, sempre com a ressalva relativa ao reconhecimento do passivo (art. 1106º, nº 1, do CPC) e das exceções previstas nos artigos 568º e 574º, nºs 2 a 4. 5 – Embora a falta de resposta à reclamação contra a relação de bens por parte do cabeça de casal tenha um efeito cominatório semipleno, não se pode considerar produzido tal efeito se dois dos interessados não foram notificados da reclamação à relação de bens e, por isso, não tiveram oportunidade de manifestar a sua posição sobre questões que respeitam à delimitação do património hereditário. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I – Relatório 1.1. No inventário instaurado por óbito de AA, no qual BB desempenha funções de cabeça de casal, e são ainda interessados CC, DD e EE, a interessada CC apresentou reclamação à relação de bens. Notificada da reclamação contra a relação de bens nos termos do artigo 221º, nº 1, do CPC (notificação pelo mandatário da interessada reclamante à mandatária da cabeça de casal), a cabeça de casal não apresentou resposta. * 1.2. Sem que a reclamação contra a relação de bens tenha sido notificada aos interessados DD e EE, em 26.10.2022, sob a referência ...18, foi proferido despacho com o seguinte teor:«Req. de 09.02.2022 (reclamação à relação de bens) Veio por requerimento de 09.02.2022, a interessada CC, apresentar reclamação à relação de bens apresentada pela cabeça de casal. Notificada em 10.0.2022, a cabeça de casal da referida reclamação, esta nada veio dizer aos autos. Assim, notifique a cabeça de casal, para no prazo de 15 dias, retificar a relação de bens apresentada, designadamente adicionando à relação de bens os bens e direitos em falta, em conformidade com o requerido no requerimento supra identificado, pois não respondeu à reclamação em causa nos autos – arts. 1105º, nº1, 574º por aplicação do disposto no art. 587º, nº 1, todos do CPC.» Por requerimento de 28.10.2022, com a referência ...18, a cabeça de casal requereu à Sra. Juiz que «se digne revogar o teor do despacho que antecede e em consequência se digne ordenar se proceda de imediato à notificação judicial da cabeça-de-casal para querendo se pronunciar no prazo de 30 dias nos termos do disposto no artigo 1105º do CPC da oposição/impugnação/reclamação apresentada, remetendo cópia da mesma.» Em 24.11.2022, foi proferido o despacho com a referência ...57, cujo teor se transcreve: «Req. de 28.10.2022 Veio a Ilustre Mandatária da cabeça de casal requerer que fosse ordenada a revogação do despacho que antecede e ordenada a sua notificação para os efeitos do disposto no art. 1105º do CPC, conforme decorre do requerimento supra identificado. O artigo 1105º, nº1 do CPC estabelece que: “1. Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada”. A este propósito vide o Ac. do TRG de 02.06.2022, in www.dgsi.pt, que se transcreve: “1-As partes são notificadas dos atos praticados em juízo (arts. 3º e 219º, nº2 do CPC), em regra na pessoa do respetivo mandatário (art. 247º, nº1, do CPC), pelo que, no caso da reclamação à relação de bens e para os efeitos do art. 1105º, nº1 do CPC, considera-se devidamente notificado o cabeça de casal, com advogado constituído, quando a notificação teve lugar na pessoa do mandatário”. Assim, em regra as partes são notificadas dos atos praticados em juízo, na pessoa do respetivo mandatário – arts. 3º, 219º, nº2 e 247º, nº1, todos do CPC. Por sua vez, o art. 221º do CPC estabelece como se processam as notificações entre os mandatários das partes, e os termos a que devem obedecer as referidas notificações, encontram-se definidos pelo art. 26º da Portaria 280/13, de 26.08. Acresce que o art. 255º do CPC, contém uma presunção de recebimento, dado que o sistema informático assegura a certificação da data da elaboração da notificação, presumindo-se feita a expedição no terceiro dia posterior ao do seu envio ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o final do prazo termine em dia não útil. Assim, tendo sido notificada a Ilustre Mandatária da cabeça de casal pelo Ilustre Mandatário da Requerente, no dia 09.02.2022, da reclamação que a Requerente efetuou à relação de bens apresentada pela cabeça de casal, considera-se notificada a cabeça de casal nessa data para responder nos termos do disposto no art. 1105º do CPC. A Ilustre Mandatária da cabeça de casal foi notificada em 09.02.2022, pelo Ilustre Mandatário da Requerente, da reclamação apresentada em 09.02.2022, à relação de bens e desde então, tinha 30 dias para responder, a contar da notificação do requerimento da Requerente ou de cada um dos requerimentos apresentados no caso de haver várias reclamações de diferentes interessados, prazo esse perentório. Tinha assim, desde a notificação feita pelo Ilustre Mandatário da Requerente, em 09.02.2022, o prazo de 30 dias para a cabeça de casal responder à referida reclamação, o que não fez. Caso assim não fosse e se fosse deferido o requerido pela cabeça de casal pelo requerimento de 28.10.2022, teria tido esta um prazo para responder de mais de 10 meses, pois desde 10.02.2022 que conhece o teor da reclamação, o que viola o princípio da igualdade das partes, previsto no art. 5º do CPC. Mas se havia dúvidas se a seção iria repetir a notificação já feita em 09.02.2022, praticando um ato repetido, deveria a Ilustre Mandatária ainda dentro do referido prazo de 30 dias se esclarecer junto da seção se a mesma a iria notificar, e não depois de decorridos mais de 10 meses e de ter sido proferido o despacho que antecede. Atento todo o supra exposto, indefere-se o requerido.» * 1.3. Inconformada, a cabeça de casal BB interpôs recurso de apelação daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:«1- Salvo o devido respeito por mais douto entendimento, o tribunal a quo não andou bem na sua interpretação quanto ao artigo 1105º do Código Processo Civil, quando considerou notificada a mandatária da cabeça de casal da reclamação à relação de bens com a notificação eletrónica que lhe foi dirigida pelo ilustre mandatário da requerente nos termos do artigo 221º do CPC. 2- Na verdade, da leitura e análise do artigo 1105º do Código Processo Civil depreende-se que os interessados têm de ser notificados da oposição/impugnação/reclamação que tenha sido deduzida, devendo tal notificação ser levada a cabo pela secretaria de forma oficiosa. 3- Até porque, a resposta à reclamação deve ocorrer sob a cominação, conteúdo e advertências previstas no artigo 1105º nº 1 e 2 do C.P. Civil, efeito que só resulta da dita notificação oficiosa ou em cumprimento de despachos judiciais e não são prerrogativas das partes e, portanto, não consta das notificações realizadas entre mandatários. 4- Além disso, se o espírito do legislador, fosse nesta situação em concreto de ser de aplicar o artigo 221º do C.P. Civil, jamais o legislador escreveria e, portanto, resultaria da própria letra da lei “são notificados os interessados”, pois bastava-se com a indicação do direito de resposta, à semelhança do que fez o legislador em tantas outras normais processuais. 5- Acresce ainda que, o artigo 220º nº2 do Código Processo Civil dispõem sob a epigrafe “Notificações Oficiosas: “cumpre ainda à secretaria notificar oficiosamente as partes quando, por virtude da disposição legal, possam responder a requerimentos, oferecer provas, ou, de um modo geral, exercer algum direito processual que não dependa de prazo a fixar pelo juiz nem prévia citação”, pelo que, a secretaria em face da reclamação apresentada tinha e tem de oficiosamente notificar a mandataria da cabeça de casal nos termos e para os efeitos dos artigos 1105º CP Civil, o que não fez, omitindo assim um ato previsto na lei. 6- Acresce ainda que, as notificações entre mandatários estão previstas no processo declarativo comum para os atos que se pratiquem posteriormente à notificação da contestação (Cfr. artigo 221º nº1 do Código de Processo Civil), o que não é o casu nos presentes autos. E mesmo que assim se entendesse, o que não se concede, sempre se diga que, a resposta à reclamação de bens equivale a uma contestação. 7- Vejamos: a reclamação à relação de bens, como incidente que é, corresponderia a uma petição inicial e a resposta a esta reclamação a uma contestação, pelo que o artigo 221º do CPC, só a partir daqui é que teria aplicação e portanto mesmo que o mandatário do requerente tenha notificado a mandataria da cabeça de casal da reclamação à relação de bens, sempre a secretaria teria de proceder à notificação dessa reclamação à mandataria da cabeça de casal, já que notificação realizada nos termos do artigo 221º do CPC era inócua, o que também não sucedeu in casu. 8- Por fim, diga-se ainda, que o procedimento adotado pelo Tribunal Judicial ..., para a questão agora em causa nos presentes autos, sempre foi a de ser a própria secretaria a proceder à notificação dos ilustres mandatários nos termos dos artigos 1105º CPC independentemente de os mesmos já terem sido ou não notificados pelo mandatário que reclamou da relação de bens nos termos do artigo 221º do CPC. 9- Demonstrativo desse facto foi entre outras a notificação realizada pelo tribunal a quo à aqui mandataria no âmbito do processo de inventario ...1..., em que apesar da notificação eletrónica efectuada pelo mandatário da parte contraria precisamente da reclamação à relação de bens apresentada mediante requerimento com a referencia ...97 de 16/12/2021 desses autos, o tribunal a quo notificou a mandataria do cabeça de casal em 23/12/2021 para o cumprimento do 1105º do CPC com a referencia ...05 desses autos e cuja certidão se requererá afinal afim de instruir os presentes autos. 10- Pelo que, o vertido na parte final do douto despacho datado de 24-11-2022. “Mas se havia dúvidas se a secção iria repetir a notificação já feita em 09-02-2022, praticando um ato repetido, deveria a ilustre mandatária ainda dentro do referido prazo de 30 dias se esclarecer junto da secção se a mesma iria notificar.”, foi na realidade cumprido pela ilustre mandatária da cabeça de casal, já que a mesma sempre foi em todos os seus processos que correram e correm ainda termos no Tribunal Judicial ... notificada pela secretaria nos termos e para os efeitos do artigo 1105º do C.P. Civil, como aliás o são todos os advogados. 11- Ora a omissão da secretaria de um ato que vem desde sempre praticando, e que está previsto na lei – artigo 1105º C.P.Civil- violou o princípio da certeza e segurança jurídica e ainda o principio de igualdade de armas previsto no artigo 4º do C.P. Civil, sendo que é jurisprudência unânime dos tribunais de primeira instância que a notificação aqui em causa no presente recurso seja levada a cabo pela secretaria. 12- Os doutos despachos violam, ao absorverem a omissão de um ato legalmente devido, o disposto nos artigos 1105º nº1 e 220 nº2 do CPC, e constituem excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º nº1al. d) in fine do C.P.Civil que desde já se invoca. 13- Na verdade, quer se entenda como uma omissão, quer se entenda que lhe incumbe receber primeiramente a reclamação contra a relação de bens, ao decidir considerar-se notificado o mandatário do cabeça de casal nos termos do artigo 221º e 255ºCPC o Meritíssimo Juiz a quo incorreu em erro de julgamento, aplicando erradamente o direito, designadamente o tramite legal. 14- Assim e face ao supra exposto devem ser revogados e, portanto, anular-se os doutos despachos ora postos em crise, e ser ordenada a notificação da mandataria da cabeça de casal nos termos do artigo 1105ºdo C.P. Civil, ato este a realizar pela secretaria. 15- Mas mesmo que assim não se entenda o que por mera hipótese académica se admite sem conceder, sempre se diga que é inconstitucional o artigo 1105º, n.º 1 do CPC na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal de 1ª Instância ao entender que a notificação à/às contraparte(s) da reclamação contra a relação de bens não é uma acto oficioso da secretaria, e viola o disposto nos artigos 2º, 13º e 20º da C.R.P., sendo, por isso materialmente inconstitucional, e fere o disposto em Convenções Internacionais a que Portugal aderiu, maxime o artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. 16- A única interpretação compatível com a Constituição da República Portuguesa é aquela segundo a qual a notificação à e/ou às contraparte(s) da reclamação contra a relação de bens é uma acto oficioso da secretaria. 17- O tribunal a quo considerou ainda confessados/admitidos os factos constantes da reclamação à relação de bens, por apenas faltar resposta à reclamação por parte do cabeça de casal. 18- Ora, como já supra se deixou exposto, a resposta à reclamação deve ocorrer sob cominação, conteúdo e advertências previstas no artigo 1105º nº1 e 2 do CPC: efeito que só resulta da notificação oficiosa (entenda-se da secretaria) ou em cumprimento de despachos judiciais e não são prerrogativas das partes, o que não sucedeu in casu. 19- Pelo que não tendo a notificação cumprido as formalidades legais, jamais a não resposta à reclamação da relação de bens pode ter o efeito cominatório da confissão. 20- Acresce ainda que, nos termos do artigo 1105º nº 3 do CPC “a questão só é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados e determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092º e 1093º.” 21- Assim o tribunal perante a relação de bens apresentada e a reclamação à mesma tem de realizar as diligencias probatórias conforme prevê o artigo 1105º nº3 do C.P.Civil, o que também não sucedeu in casu. 22- Ou seja, a reclamação contra a relação de bens tem natureza impugnatória, pelo que nunca poderiam ser considerados assentes aquela matéria sem a necessária produção de prova e ainda a consideração e pronuncia sobre a prova documental aí apresentada que aí se consigna. 23- Ao não assim considerar incorreu-se no douto despacho em erro de julgamento que desde já se reclama. 24- Pelo que devem ser revogados os doutos despachos e substituindo-os por um que ordene a produção de prova que foi requerida na reclamação à relação de bens e não dê como provados/admitidos/assente a matéria/factos constantes da referida reclamação. Requer-se que o presente recurso seja instruído, nos termos do artigo 646º nº1 do CPC aplicável ex vis artigo 1123º nº1 do C.P. Civil com as seguintes peças processuais, das quais deve ser extraída certidão: relação de bens, reclamação da relação de bens, notificação ocorrida a 10-02-2022, douto despacho notificado à mandataria da cabeça de casal em 26-10-2022, requerimento apresentado pela mandataria da cabeça de casal em 28-10- 2022 e douto despacho notificado à mandataria da cabeça de casal em 26-11-2022. Mais se requer seja extraída certidão do processo de Inventario da aqui mandataria com o n.º 390/21.... das seguintes peças: Relação de bens com a referencia ...48 de 05-11-2021, Reclamação da relação de bens com a referência ...97 de 16-12-2021 (onde consta notificação eletrónica a parte contraria) e notificação judicial para cumprimento do 1105º do CPC com a referência ...05 de 23-12-2021 Nestes termos e nos demais de Direito que V.(s) Ex.ª(s) sabiamente suprirão deverão ser julgadas procedentes as presentes conclusões, dando-se provimento à apelação, revogando-se os doutos despachos e ordenada a notificação da cabeça de casal para se pronunciar quanto à reclamação contra a relação de bens, ou ainda, revogar os doutos despachos substituindo-os por um que ordene a produção de prova nos termos supra referidos e não dê como assente a matéria peticionada na reclamação à relação de bens, com as demais consequências legais.» * Não foram apresentadas contra-alegações.O recurso foi admitido. Procedeu-se à audição prévia sobre a questão de a reclamação contra a relação de bens não ter sido notificada aos interessados DD e EE. ** 1.4. Questões a decidir Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a Recorrente suscita as seguintes questões: a) Se a reclamação contra a relação de bens tem de ser efetuada oficiosamente pela secretaria, independentemente de os interessados terem ou não constituído advogado, não o podendo ser pelo mandatário do interessado reclamante ao mandatário do cabeça de casal; b) Se a falta de resposta do cabeça de casal à reclamação apresentada contra a relação de bens não tem efeito cominatório (admissão dos factos alegados na reclamação); c) Se «é inconstitucional o artigo 1105º, n.º 1 do CPC na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal de 1ª Instância ao entender que a notificação à/às contraparte(s) da reclamação contra a relação de bens não é um acto oficioso da secretaria», por violar «o disposto nos artigos 2º, 13º e 20º da C.R.P.» e «fer[ir] o disposto em Convenções Internacionais a que Portugal aderiu, maxime o artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem». Porém, suscita-se oficiosamente a questão de a reclamação contra a relação de bens não ter sido notificada aos interessados DD e EE. *** II – Fundamentos2.1. Fundamentação de Facto Os factos que relevam para a decisão das apontadas questões são os que resultam do precedente relatório. ** 2.2. Do objeto do recurso2.2.1. Da notificação referida no art. 1105º/1 do CPC A primeira questão decidenda, atenta a forma como é suscitada pela Recorrente nas conclusões do seu recurso, consiste em saber se a notificação da reclamação contra a relação de bens é sempre notificada ao cabeça de casal pela secretaria, quando tanto este como o reclamante são patrocinados no processo de inventário por mandatário judicial. Os interessados diretos na partilha podem deduzir reclamação contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal – artigo 1104º, nº 1, al. d), do CPC. Apresentada reclamação à relação de bens, dispõe o nº 1 do artigo 1105º do CPC que «são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada». O preceito não refere como e por quem é feita a notificação. Não estando essa matéria especificamente regulada nas disposições relativas ao processo de inventário, são aplicáveis as disposições gerais do Código de Processo Civil que definem o regime das notificações nos processos pendentes, em conformidade com o disposto no artigo 549º, nº 1, do CPC. Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1], «do atributo da generalidade resulta a sua aplicação automática a qualquer forma de processo (incluindo o próprio processo comum!), na medida em que para ela não seja estabelecido um regime especial». Por isso, resta apurar qual é o regime que resulta das normas gerais do CPC. Sobre essa matéria, versando sobre uma questão em tudo idêntica à ora suscitada pela Recorrente, esta Relação já se pronunciou por acórdão de 02.06.2022 (relatora Anizabel Sousa Pereira), proferido no processo 374/20.7T8PTB-B.G1[2]: «no atual sistema de notificações eletrónicas, não há que fazer qualquer distinção entre notificações da secretaria e notificações entre os mandatários, nos processos em que há advogado constituído, pois todos os atos processuais escritos das partes devem ser notificados entre os advogados por via eletrónica (salvo justo impedimento (art. 144º, nº 8). Conclui-se, portanto, que tendo sido notificado o mandatário, considera-se validamente notificado o cabeça de casal». Tal acórdão, na parte relevante, foi assim sumariado: «1-As partes são notificadas dos atos praticados em juízo (arts. 3º e 219º, nº2 do CPC), em regra na pessoa do respetivo mandatário (art. 247º, nº1, do CPC), pelo que, no caso da reclamação à relação de bens e para os efeitos do art. 1105º, nº1 do CPC, considera-se devidamente notificado o cabeça de casal, com advogado constituído, quando a notificação teve lugar na pessoa do mandatário». Não existem razões substanciais para alterar o apontado entendimento jurisprudencial, o qual merece a nossa inteira adesão. Aliás, já na vigência do CPC de 1961, no âmbito do regime do inventário então vigente, desde que o Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de agosto, introduziu os artigos 229º-A e 260º-A, se entendia que a reclamação contra a relação de bens estava sujeita ao regime das notificações entre mandatários judiciais reguladas no referido artigo 229º-A. Exemplificativamente, assim se entendeu no acórdão da Relação de Coimbra de 14.02.2012 (Carvalho Martins), proferido no processo 112/05.4TBTND-B.C1, cujo sumário a seguir se transcreve: «1. O inventário é um processo complexo, de natureza mista, tanto graciosa como contenciosa. Quanto às questões nele decididas, o processo de inventário assume o aspecto contencioso, funciona como uma acção, é uma verdadeira causa. Deste modo, o requerimento em que um interessado deduz incidente de falta de relacionação de determinados bens no inventário, reconduz-se a uma verdadeira reivindicação. 2. Com as alterações efectuadas nos arts. 229.º-A, n.º 1, e 260º-A, ambos do CPC, pelo DL n.º 183/2000, de 10-8, quebrou-se uma prática processual secular, em que até então o mandatário judicial remetia todas as peças que entendesse para o processo, competindo depois ao tribunal dar conhecimento das mesmas à parte contrária, assim se libertando os tribunais de tarefas que podem ser desempenhadas pelas próprias partes. Qualquer peça (entendida esta em sentido amplo, como os requerimentos recursivos, as alegações, as contra-alegações, os requerimentos probatórios, etc...) que seja emanada do escritório de um dos mandatários judiciais para ser junta ao processo e que a parte contrária deva tomar conhecimento, nomeadamente para poder exercer o princípio do contraditório ou para preparar a sua defesa, integra o conceito de “requerimento autónomo” para efeitos do disposto nos artigos citados. 3. O art. 229.º-A, teleologicamente orientado, pois, no sentido de «desonerar os tribunais da prática de actos de expediente que possam ser praticados pelas partes», tem aplicação, além do mais, relativamente a todos os «requerimentos autónomos», ou seja, àqueles cuja admissibilidade não depende de despacho prévio do juiz. O aludido artigo vem, por conseguinte, a abranger na sua teleologia - até - as alegações e contra-alegações de recurso. E a expressão «requerimentos autónomos», numa acepção do conceito em termos amplos (tal como supra explicitados), representa um mínimo de correspondência verbal, quiçá imperfeitamente expresso, no qual pode ancorar-se a interpretação teleológica do art. 229.º-A. 4. Em suma, a alteração introduzida pelo DL 303/2007 visou perfilhar a interpretação mais ampla que ao preceito vinha, embora com hesitações, sendo dada: todos os actos processuais escritos das partes são por ele abrangidos. 5. Acusada a falta de relação de bens em processo de inventário, se o cabeça de casal notificado, nada diz no prazo legal, tem-se por confessada a existência de tais bens, devendo proceder-se ao aditamento da relação de bens apresentado.» Conforme preceitua o nº 2 do artigo 219º do CPC, a notificação serve para, em todos os casos que não importem a citação, chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto. Por sua vez, o nº 2 do artigo 220º do CPC, respeitante às notificações oficiosas da secretaria, estabelece que «cumpre ainda à secretaria notificar oficiosamente as partes quando, por virtude de disposição legal, possam responder a requerimentos, oferecer provas ou, de um modo geral, exercer algum direito processual que não dependa de prazo a fixar pelo juiz nem de prévia citação». Porém, como advertem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[3], ficam «ressalvadas as notificações entre mandatários». Igualmente Teixeira de Sousa[4] refere que «[d]a actuação oficiosa da secretaria estão excluídas as notificações que, nos termos do art. 221.º, n.º 1, devam ser realizadas pelos mj [mandatários judiciais]». A Recorrente sustenta que a reclamação contra a relação de bens deve ser notificada oficiosamente pela secretaria à cabeça de casal, mas, como bem referem os indicados autores, o regime do nº 2 do artigo 220º do CPC não é aplicável às notificações que, nos termos do artigo 221º, nº 1, do CPC, devam ser realizadas pelos mandatários judiciais. Dito de outra forma, na parte em que o artigo 221º, nº 1, determine a notificação entre mandatários, fica excluída a possibilidade de se operar a notificação mediante atuação oficiosa da secretaria. Daí que tudo dependa de o acto processual praticado por escrito estar ou não abrangido pela imposição legal de o mandatário do apresentante o notificar ao mandatário judicial da contraparte. O artigo 221º, nº 1, do CPC, que trata das notificações entre os mandatários das partes, dispõe: «Nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, nos termos previstos no artigo 255.º». A referência ao artigo 255º releva para esclarecer que as notificações entre mandatários das partes são efetuadas eletronicamente, nos termos definidos, em concreto, no artigo 26º da Portaria nº 280/13, de 26 de agosto. Não sendo a redação do preceito do artigo 221º, nº 1, um primor técnico, é suficientemente elucidativa de que tendo as partes constituído mandatário judicial, todos os actos praticados por escrito pelas partes, “após a notificação da contestação do réu ao autor”, obedecem à apontada regra da notificação entre mandatários. Desde logo, a reclamação à relação de bens não foi legalmente qualificada como contestação (v. artigos 1104º e 1105º do CPC). E também não é uma petição inicial, ao contrário do defendido pela Recorrente nas conclusões 6ª e 7ª das suas alegações, não havendo qualquer fundamento, material ou formal, para qualificar como “petição” um acto que se destina a reagir a uma outra peça processual – a relação de bens. Depois, não se descortina uma razão substancial para ser aplicável à notificação da reclamação à relação de bens, quando o reclamante e o cabeça de casal tenham constituído mandatário judicial, o regime das notificações oficiosas pela secretaria. Num tal caso, tanto a notificação pela secretaria como aquela que é feita pelo mandatário judicial do apresentante são efetuadas eletronicamente e com as mesmas garantias. Ora, não havendo nenhuma razão substancial para exigir que a notificação seja efetuada pela secretaria, vigora o regime regra aplicável por força do disposto no artigo 221º, nº 1, do CPC: o mandatário judicial do apresentante da reclamação contra a relação de bens notifica o mandatário judicial do cabeça de casal através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, ou seja, mediante comunicação eletrónica, nos termos do artigo 26º da Portaria nº 280/13, de 26 de agosto. E a razão de ser da submissão da reclamação à relação de bens ao regime de notificação entre mandatários é perfeitamente clara, desde pelo menos a reforma pontual introduzida no Código de Processo Civil de 1961 pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de agosto: «desonerar os tribunais da prática de actos de expediente que possam ser praticados pelas partes». Era esse o sentido do anterior artigo 229º-A do CPC, reforçado depois com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de agosto («Nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor, são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte, no respetivo domicílio profissional, nos termos do artigo 260.º-A»), muito próxima daquela que contém agora o artigo 221º do CPC/2013, que então perfilhou a interpretação mais ampla que ao preceito vinha sendo dada: todos os actos processuais escritos das partes são por ele abrangidos. Esse foi o desiderato prosseguido pelo legislador, pelo que o preceito do artigo 221º do CPC/2013 deve ser interpretado de harmonia com o seu sentido teológico, o qual corresponde, aliás, ao seu sentido literal. Por conseguinte, quando o artigo 1105º, nº 1, do CPC refere que da reclamação «são notificados os interessados», não está a excluir a aplicação do artigo 221º, nº 1, do CPC, ou seja, a afastar a regra geral relativa às notificações entre mandatários judiciais, mas sim aos interessados que não se encontrem representados por advogado, que são notificados pela secretaria, sendo que, quanto aos que o estiverem, a notificação terá de ser efetuada nos termos do disposto nos artigos 221º, nº 1, e 255º do CPC. Acresce que no caso dos autos, como foi a reclamante que requereu o inventário (art. 1099º do CPC), a cabeça de casal já tinha sido citada pela secretaria, com a inerente comunicação do requerimento inicial e da sua designação para o exercício da função, sabendo naturalmente, desde então, que a requerente se encontrava patrocinada por advogado, assim como esta sabia, por ter sido notificada por via eletrónica no dia 29.11.2021 pela própria mandatária judicial da cabeça de casal (e não pela secretaria) do requerimento complementar e relação de bens, que a cabeça de casal tinha constituído mandatária judicial. Por isso, pergunta-se: com que propósito, para proteção de que interesse legítimo, é que a secretaria deveria notificar oficiosamente a reclamação contra a relação de bens à cabeça de casal, quando anteriormente já tinha ocorrido o processado que se acabou de descrever? No nosso entender, nenhum interesse digno de tutela demandava tal forma de notificação, a qual representaria até um retrocesso. A notificação oficiosa pela secretaria à cabeça de casal da apresentação da reclamação contra a relação de bens não tem qualquer sentido útil, a não ser o de manter um processado anacrónico que o legislador quis expressamente afastar com o disposto nos artigos 221º e 255º do CPC, prosseguindo o rumo que já havia tomado quando introduziu os artigos 229º-A e 260º-A no CPC/1961. Pior: além de injustificado, seria incongruente a secretaria proceder à notificação oficiosa da reclamação contra a relação de bens à cabeça de casal quando a mandatária desta já previamente tinha notificado por via eletrónica a relação de bens ao mandatário da reclamante/requerente. Quer dizer, se a apresentação da relação de bens já havia obedecido à regra das notificações entre os mandatários das partes, nos termos prescritos no artigo 221º, nº 1, do CPC, o acto subsequente da contraparte, traduzido na apresentação de reclamação contra aquela relação de bens, obviamente que estava subordinado à mesma regra de notificação. Em suma, nenhum vício pode ser apontado à notificação da reclamação contra a relação de bens, daí que a decisão recorrida seja insuscetível de crítica na parte em que considerou devidamente notificada a cabeça de casal, com advogada constituída, por a notificação ter tido lugar na pessoa da mandatária. * Alega a Recorrente que «a omissão da secretaria de um ato que vem desde sempre praticando, e que está previsto na lei – artigo 1105º C.P.Civil- violou o princípio da certeza e segurança jurídica e ainda o principio de igualdade de armas previsto no artigo 4º do C.P. Civil, sendo que é jurisprudência unânime dos tribunais de primeira instância que a notificação aqui em causa no presente recurso seja levada a cabo pela secretaria». É incorreto o pressuposto de que parte a Recorrente: não se verifica a omissão de qualquer acto pela secretaria, pois a lei impunha, conforme já demonstramos, que a notificação obedecesse à regra vigente quanto às notificações entre os mandatários. Inexiste a alegada violação do princípio de igualdade de armas no concreto contexto dos autos, na medida em que no dia 29.11.2021 a Requerente do inventário – que posteriormente veio a apresentar a reclamação –, na pessoa do seu mandatário, já tinha sido notificada por via eletrónica pela mandatária judicial da cabeça de casal, e não pela secretaria, do requerimento complementar e relação de bens. Esse mesmo procedimento foi adotado pelo mandatário quanto à notificação da reclamação à relação de bens. Se os procedimentos foram idênticos é destituído de fundamento invocar-se um desrespeito do princípio da igualdade de armas, formulação bélica que hoje até tem pouco sentido e é de evitar. Quanto à violação do «princípio da certeza e segurança jurídica», além de desconhecermos se «é jurisprudência unânime dos tribunais de primeira instância que a notificação aqui em causa no presente recurso seja levada a cabo pela secretaria», o que relevaria era saber qual a jurisprudência dos tribunais superiores e a Recorrente não aponta um único acórdão que acolha a sua interpretação. Também não cita qualquer autor que defenda semelhante entendimento. Por outro lado, é de relembrar que o nosso ordenamento jurídico não acolhe o sistema do precedente jurisdicional, próprio dos países anglo-saxónicos. Daí que seja irrelevante se o tribunal recorrido já decidiu de outro modo noutro(s) processo(s), pois, isso em caso em algum é fundamento legal para revogar a decisão recorrida. Os recursos servem precisamente para apurar se ocorreu ou não erro no julgamento, o qual é apurado com base nos factos e na sua subsunção ao direito aplicável e não por um tribunal de primeira instância já ter decidido noutro sentido. * Argumenta ainda a Recorrente, na conclusão 12ª das suas alegações, que os despachos «constituem excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º nº1 al. d) in fine do C.P.Civil». Trata-se de uma afirmação que a Recorrente não fundamenta na motivação das alegações, porquanto, depois de verter exatamente o que transcreveu na conclusão 12ª, limitou-se a dizer algo que em nada se relaciona com o vício de excesso de pronúncia, enquanto causa de nulidade de uma decisão: «Na verdade, quer se entenda como uma omissão, quer se entenda que lhe incumbe receber primeiramente a reclamação contra a relação de bens, ao decidir considerar-se notificado o mandatário do cabeça de casal nos termos do artigo 221º e 255ºCPC o Meritíssimo Juiz a quo incorreu em erro de julgamento, aplicando erradamente o direito, designadamente o tramite legal». Por conseguinte, estamos perante uma inconcludência, sendo certo que o erro de julgamento é algo de completamente distinto do vício por excesso de pronúncia. A verificação do primeiro conduz à revogação ou anulação da decisão, enquanto o segundo conduz à declaração da sua nulidade (art. 615º, nº 1, al. d) do CPC). Em todo o caso, sempre se dirá que a decisão recorrida não padece de nulidade por excesso de pronúncia, sem prejuízo do que infra se apreciará na vertente de erro de julgamento. * 2.2.2. Da inconstitucionalidade Alega a Recorrente que «é inconstitucional o artigo 1105º, n.º 1 do CPC na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal de 1ª Instância ao entender que a notificação à/às contraparte(s) da reclamação contra a relação de bens não é uma acto oficioso da secretaria, e viola o disposto nos artigos 2º, 13º e 20º da C.R.P., sendo, por isso materialmente inconstitucional, e fere o disposto em Convenções Internacionais a que Portugal aderiu, maxime o artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem». Também nesta parte a Recorrente não fundamenta por que razão se deve considerar que a interpretação que o Tribunal recorrido fez do artigo 1105º, nº 1, do CPC viola os três referidos preceitos constitucionais ou o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ressalvado o devido respeito, parece-nos destituída de qualquer sentido útil a invocação não fundamentada do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o qual dispõe que «toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida». Repare-se que a questão dos autos se circunscreve a saber se uma notificação eletrónica dirigida a uma certa pessoa, que tem mandatário constituído e por isso deve ser notificada na pessoa deste (art. 247º do CPC), deve ser realizada pelo mandatário judicial da parte contrária ou pela secretaria do tribunal. Seja realizado por aquele ou por esta, é sempre uma notificação eletrónica, dotada de idênticas garantias de fidedignidade e efetuada no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (v. art. 132º, nº 2, do CPC), nos termos que se mostram exaustivamente regulados na Portaria nº 280/2013, de 26 de agosto. No aludido plano, não há qualquer distinção entre notificações eletrónicas da secretaria e notificações eletrónicas entre mandatários. Trata-se de matéria que assiste ao legislador ordinário regular e que em nada contende com direitos fundamentais, sejam eles os consagrados na Constituição da República Portuguesa ou na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Elevar tal questão ao plano da violação do direito fundamental humano consagrado no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem é perder de vista que não está em causa nos autos uma questão de igualdade, independência, imparcialidade, equidade ou de publicidade do julgamento. * 2.2.3. Do efeito da falta de resposta à reclamação contra a relação de bens Assente que a notificação foi efetuada nos termos legalmente prescritos, importa agora apurar qual o efeito da falta de resposta à reclamação por parte da cabeça de casal. Segundo a Recorrente, tal omissão não tem qualquer consequência, na medida em que «a resposta à reclamação deve ocorrer sob cominação, conteúdo e advertências previstas no artigo 1105º nº1 e 2 do CPC». A generalidade da argumentação aduzida pela Recorrente sobre esta matéria alicerça-se no pressuposto de que a reclamação à relação de bens tem de ser notificada pela secretaria. Após se ter concluído que a notificação devia ser efetuada pelo mandatário da reclamante à mandatária da cabeça de casal, nos termos prescritos nos artigos 221º e 255º do CPC, fica em grande parte prejudicado o âmbito da questão suscitada pela Recorrente. No mais, como já sublinhava José Alberto dos Reis[5], o inventário é um processo especial de jurisdição contenciosa. Tal natureza mostra-se vincada no atual regime em vigor para o processo de inventário, instituído pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, na medida em que nele se estabelece um conjunto de cominações e preclusões. É preciso ter presente que a tramitação do processo de inventário envolve a resolução pelo juiz de uma multiplicidade de litígios, colaterais à partilha, como sejam a definição do universo dos interessados diretos e respetivas quotas hereditárias, a competência do cabeça de casal e a delimitação do património hereditário, incluindo o passivo. Todas essas questões são resolvidas no confronto entre todos os interessados, ou seja, com base na pretensão ou posição assumida por um interessado e o exercício do contraditório pelos demais interessados. Atento o objeto do recurso, importa circunscrevermos a nossa apreciação à matéria da definição da composição do acervo hereditário a partilhar. No atual regime essa definição passa pela apresentação da relação de bens (arts. 1097º/3-c, 1098º e 1102º/1-b), a reclamação à relação de bens por parte dos interessados (art. 1104º/1-d) e a resposta à reclamação por parte do cabeça de casal e dos demais interessados que tenham legitimidade para se pronunciar (art. 1105º/1), atento o normal carácter multipolar[6] do inventário. Lopes do Rego[7] salienta que a «estruturação sequencial e compartimentada do processo envolve logicamente a imposição às partes de cominações e preclusões, anteriormente inexistentes, levando naturalmente – em reforço de um princípio de auto responsabilidade das partes na gestão do processo – a que (como aliás constitui princípio geral em todo o processo civil) as objecções, impugnações ou reclamações tenham de ser deduzidas, salvo superveniência, na fase procedimental em que está previsto o exercício do direito de contestação ou oposição». Tendo sido apresentada reclamação à relação de bens, o artigo 1105º, nº 1, do CPC apenas prevê que podem «responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada», não especificando qualquer cominação aplicável à falta de resposta. Por isso, a resposta sobre se existe cominação e, na afirmativa, no que consiste, terá de ser encontrada nas disposições que regulam o processo comum, em conformidade com o disposto no artigo 549º, nº 1, do CPC. Por um lado, relativamente à relação de bens, o efeito cominatório da falta de reclamação contra a mesma ou da apresentação de uma reclamação restrita (o interessado só impugna algumas verbas daquela relação ou alega a existência de bens não relacionados) é o que decorre do regime contido, para o processo declarativo comum, nos artigos 566º e 567º, nº 1, para a situação de revelia, e no artigo 574º, nº 1, para o incumprimento do ónus de impugnação, sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 1106º quanto ao reconhecimento do passivo, dado que esta última disposição regula expressamente a consequência da falta de impugnação das dívidas da herança indicadas pelo cabeça de casal (institui um efeito cominatório, traduzido no reconhecimento das dívidas não impugnadas, salvo se se verificarem as circunstâncias previstas no nº 2 do art. 574º do CPC). É um efeito cominatório semipleno: no caso de revelia, consideram-se confessados os factos alegados na relação de bens (art. 567º, nº 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574º, nº 1). Mantêm-se as exceções ao efeito cominatório semipleno estabelecidas nos artigos 568º e 574º, nºs. 2 a 4, designadamente quando a vontade das partes for ineficaz para produzir a confissão ou admissão do facto não impugnado ou quanto a factos que só possam ser provados por documento. Por outro lado, a falta de resposta à reclamação contra a relação de bens produz o efeito estabelecido no artigo 574º, por aplicação do disposto no artigo 587º, nº 1, ambos do CPC. Por conseguinte, há um ónus de resposta à reclamação (art. 1105º, nº 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta, a aceitação dos termos dessa reclamação. Vigora o efeito cominatório semipleno, sempre com a ressalva relativa ao reconhecimento do passivo (art. 1106º, nº 1, do CPC). É essa a lição de Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, in O novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 44: «importa salientar que, no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (arts. 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art. 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário.» Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no seu Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, página 572, referem: «regra geral, e sem embargo das exclusões legais (prova documental necessária), ocorre a admissão dos factos que não tenham sido impugnados por qualquer dos requeridos diretamente interessados na resposta ou antecipadamente». * Sendo patente que a falta de resposta à reclamação por parte do cabeça de casal tem um efeito cominatório semipleno, facilmente se verifica que não estavam verificados os pressupostos para a Sra. Juiz declarar a produção de tal efeito.Partiu-se do pressuposto de que a questão tinha de ser decidida apenas com base nas posições assumidas pela reclamante e a cabeça de casal, como se fosse matéria subjetivamente circunscrita àquelas duas interessadas, quando no processo de inventário intervêm ainda dois outros interessados: DD e EE. Repare-se que a partilha do património comum exige, quanto a todos os aspetos que a condicionam, uma decisão uniforme e vinculativa para todos os interessados. Esses dois interessados não foram notificados da reclamação à relação de bens e, por isso, não tiveram oportunidade de manifestar a sua posição sobre questões que respeitam à delimitação do património hereditário, matéria que a todos interessa e afeta. Se mais não houvesse, dificilmente se poderia aceitar que fosse considerado demonstrado um direito de crédito da herança sobre o interessado DD, relativo a um alegado «valor monetário que foi entregue em vida do “de cuius” ao interessado DD a título de empréstimo», sem que tal interessado se pudesse pronunciar sobre tal matéria. Como é evidente, não se pode considerar produzido um efeito cominatório semipleno, decorrente do não exercício do direito de resposta no prazo legalmente fixado, quando dois dos interessados não puderam exercer tal direito por não terem sido notificados da reclamação contra a relação de bens. Tendo sido deduzida reclamação, é o próprio artigo 1105º, nº 1, do CPC, que impõe que sejam «notificados os interessados» e que possibilita a resposta a todos «aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada». Sem tal notificação, em caso algum se verificaria a estabilização dos elementos factuais apurados nesta fase dos articulados. Trata-se de matéria perfeitamente pacífica. Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres – obra citada, pág. 9 – referem a esse propósito que à «reclamação podem responder todos os demais interessados (art. 1105.º)». Sendo a questão tão evidente, não se torna sequer necessário tecer qualquer consideração sobre a impossibilidade de formação de caso julgado formal sobre uma matéria subtraída ao conhecimento de dois dos interessados no inventário. Por isso, deve ser revogado o despacho recorrido na parte em que considerou verificado o efeito cominatório semipleno e ordenou a notificação da cabeça de casal para «retificar a relação de bens apresentada, designadamente adicionando à relação de bens os bens e direitos em falta, em conformidade com o requerido no requerimento supra identificado». Fica, por isso, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela Recorrente. ***** III – Decisão Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, decide-se revogar o despacho recorrido na parte em que considerou verificado o efeito cominatório semipleno e ordenou a notificação da cabeça de casal para «retificar a relação de bens apresentada, designadamente adicionando à relação de bens os bens e direitos em falta, em conformidade com o requerido no requerimento supra identificado», mantendo-se no mais. Custas a suportar por Recorrente e Recorrida, sendo na proporção de dois terços a suportar pela primeira e um terço a cargo da segunda. * * Guimarães, 23.03.2023 (Acórdão assinado digitalmente) Joaquim Boavida Paulo Reis Maria Luísa Duarte Ramos |