Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | CRISTINA XAVIER DA FONSECA | ||
| Descritores: | CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ PROCESSO SUMÁRIO SENTENÇA ORAL DIREITO DE DEFESA ALCOOLÍMETRO ERRO MÁXIMO ADMISSÍVEL | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 01/28/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
| Sumário: | 1. Em processo sumário, o direito de defesa do arguido não está coarctado pela circunstância (prevista na lei) de os factos provados não estarem transcritos na acta da audiência de julgamento. 2. Os instrumentos de medição destinados a medir a concentração mássica de álcool (etanol) por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado devem cumprir os requisitos metrológicos e técnicos definidos na Recomendação da Organização Internacional de Metrologia Legal, OIML R 126 (artigos 2.º e 3.º, da Portaria n.º 366/2023). 3. Em especial, os valores dos erros máximos admissíveis para a primeira verificação destes alcoolímetros são os definidos na Recomendação da Organização de Metrologia Legal, OIML R 126 (art. 7.º, n.º 3).” 4. Segundo a última versão desta Recomendação, aprovada em 2012, o erro máximo admissível, para mais ou para menos, é de 0,020 mg/L ou de 5% do valor de referência da concentração mássica, quando esta for mais elevada (entenda-se, a concentração de álcool detectada no ar expirado) 5. Não há qualquer correlação fixa entre a quantidade de bebidas alcoólicas ingerida e uma dada e constante taxa de alcoolemia, nesta interferindo factores subjectivos (peso, idade, género ou tolerância ao álcool) e objectivos (como o tempo decorrido entre aquela ingestão e o momento do teste). | ||
| Decisão Texto Integral: | Neste processo n.º 253/24.9GAMNC.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I - RELATÓRIO No processo sumário n.º 253/24...., a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Monção, Comarca de Viana do Castelo, em que é arguido AA, foi proferida sentença que o condenou, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (o que perfaz a quantia de € 440,00) e, nos termos do art. 69.º, n.º 1, a), do mesmo Código, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses. Inconformado, recorreu o arguido, apresentando as seguintes conclusões[1]: «1) Em primeiro lugar não se encontra descrito os factos provados e não provados na ata da audiência de julgamento, apenas se encontrando transcrito o dispositivo, o que dificulta o direito de defesa do arguido. 2) Sendo assim violado o disposto no artigo 32, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. 3) O recorrente referiu nas suas alegações de recurso que o aparelho que realiza a medição de álcool no sangue não estava a funcionar de forma correta. 4) O que se pode verificar no documento Certificado de Verificação do Instituto Português da Qualidade que faz parte do presente processo, que no campo Classe de exatidão apresenta a seguinte informação: “----” 5) O que se pode entende que o referido aparelho DAGER não possui exatidão para avaliar o quer que seja. 6) Se não vejamos, pelo resultado obtido, o recorrente deveria ter consumido mais de 1,2 litros de substâncias acólicas (tendo em vista o teor alcoólico do vinho e o peso do recorrente), 7) O que não ocorreu, como se pode verificar a confissão integral e sem reservas que foi proferida nos presentes autos e que foram consideradas válidas pelo Tribunal a quo. 8) Além disso, cabe dizer que em mais de 11 de anos de experiência profissional, o advogado subscritor não teve conhecimento de taxa tão elevada. 9) O que pode ser assacado a falta de exatidão da máquina que realizou o exame que consta dos presentes autos. 10) Como referido nas alegações orais, na dúvida sobre a taxa real, deveria o Tribunal a quo absolver o arguido. 11) Com o devido respeito que é muito, o Tribunal a quo não esteve acertado ao condenar o recorrente, pois teria de ter aplicado o princípio “in dubio pro reo”. 12) Sendo assim também violado os artigos 69, nº 1, alínea a) e 292, nº 1 do Código Penal. 13) A douta sentença recorrida violou os artigos 69, nº 1, alínea a) e 292, nº 1 do Código Penal e artigo 32, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.» Pede a procedência do recurso e, em consequência, a revogação da sentença e sua substituição por outra que absolva o arguido. O recurso foi admitido. O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, sendo as conclusões: «I. Sendo a confissão livre, integral e sem reservas, como meio de prova, percepcionada pelo tribunal na audiência e mandada exarar em acta, essa confissão constitui um facto inelutavelmente provado, mesmo se não transcritos e replicados todos os “Factos Provados» constantes da acusação. II. Ao confessar integralmente os factos, o arguido aceita o teor da acusação sejam dados como provados todos os factos nela constantes, em conformidade com o teor da alínea a) do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Penal, pois sendo sem reservas a confissão não admite condições ou alterações aos factos admitidos, tal como constam da acusação. III. O art. 32.º nº 1 da CRP, ao assegurar todas as garantias de defesa ao arguido, incluindo o recurso, impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um modelo de impugnação das decisões penais que possibilite, de modo efetivo, a reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e sobre a medida da pena. Os fundamentos do direito ao recurso, que entroncam na garantia do duplo grau de jurisdição, são: a redução do risco de erro judiciário, a apreciação da decisão recorrida por um tribunal superior e a possibilidade de, perante este, a defesa apresentar de novo a sua visão sobre os factos ou sobre o direito. IV. Não se vislumbra, por isso, como se possa invocar dificuldade no exercício do direito de defesa ante a ausência de menção concreta aos factos provados, se os foram, todos, dados como provados, enquanto efeito de confissão integral e sem reservas. V. Estatui o artigo 153.º, n.º 2 do Código da Estrada que sendo o resultado do exame positivo, deve o examinado ser informado da possibilidade de o mesmo requerer contra prova, o que se verificou, tendo os senhores Militares informado de tal possibilidade o arguido. VI. Declarou então expressamente o arguido a dispensa de contraprova, conformando-se, como conformou, com o resultado obtido. VII. A recolha da prova do estado de embriaguez, mediante o exame de ar expirado, depende tal situação da quantificação da TAS, e não tendo sido requerida a contra prova pelo arguido, o resultado, assim alcançado, prevalece, sem a pretendida dúvida de (in)validade apenas por na folha restar o símbolo “---“. VIII. Assim, inexistem razões para infirmar o conteúdo e acerto da sentença, pois o arguido, prescindiu da realização de contraprova, não contestou, em sede própria, a invalidade da prova indicada, confessou a prática dos factos quando confrontado com o respectivo jaez em sede de audiência de julgamento, admitindo, de resto, o consumo de bebidas alcoólicas no decurso do almoço e, também, pela tarde do dia indicado. IX. Pelo exposto, também nesta parte, bem andou o Tribunal a quo a dar como provada toda a factualidade descrita e condenar o Recorrente nos termos exactos que o fez.» Pugna pela improcedência do recurso, com manutenção da decisão recorrida. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto acompanha esta última resposta, alerta para o teor do art. 389.º-A do Código de Processo Penal, que entende ter sido cumprido pelo Mm.º Juiz a quo, refere que o aparelho de medição da taxa de alcoolemia estava certificado e que o arguido não quis contraprova relativamente a essa taxa. Cumprido o contraditório, o recorrente reitera o teor das suas alegações de recurso. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência. II – FUNDAMENTAÇÃO A. Delimitação do objecto do recurso Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[2], e face às conclusões do recurso, são três as questões a resolver: - se o direito de defesa do arguido foi violado por falta de descrição dos factos provados e não provados na acta da audiência de julgamento; - se há fundamento para pôr em causa o aparelho de medição da taxa de alcoolemia; - se foi violado o princípio in dubio pro reo. B. Decisão recorrida[3] 1. Factos provados «O Tribunal dá aqui por assente toda a matéria que constava da douta acusação pública, a factualidade descrita nos pontos 1 a 5 da referida acusação, de fls. 21 e 22, que aqui se dá por integralmente reproduzida. O arguido confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos. O arguido não esteve envolvido em acidente de viação. À data da fiscalização, não dava sinais de condução perigosa e seguia sozinho no motociclo. O arguido tinha ingerido vinho tinto numa festa antes de iniciar o exercício da condução. O arguido recusa ter qualquer problema de consumo de álcool. (…)» 2. Motivação «O tribunal sopesa desde logo a confissão integral e sem reservas do arguido no que respeita à factualidade descrita na douta acusação. No que diz respeito à concreta taxa de álcool no sangue, (…) o juízo pericial que consta do talão do teste do alcoolímetro não está prejudicado pela concreta taxa de álcool no sangue suscitada, isto porque o certificado de verificação do Instituto Português da Qualidade refere uma primeira verificação na data de 19.8.2024, sendo os factos de 12 de Outubro de 2024. Portanto, nenhuma dúvida resta ao Tribunal de que o aparelho utilizado cumpria o disposto na Portaria 366/2023, de 15 de Novembro, no que diz respeito ao regulamento do controlo metrológico legal dos alcoolímetros. A referência à inexistência de uma classe de exactidão diz respeito a um pressuposto meramente formal descritivo do certificado de verificação, e não a uma invalidação da prova assim obtida através deste concreto aparelho, que se trata do Alcotest 7110 MKIII P, com o n.º ...29. Verifica-se também que o talão de teste foi emitido pela máquina certificada, (…) ...29, que pertence ao modelo Drager 7110 MKIII P. Portanto, dúvidas não restam de que a máquina certificada foi a máquina utilizada para a obtenção (…)[4] Olhando ainda para os pressupostos desta Portaria 366/2023, diga-se ainda que, efectivamente, o aparelho certificou o volume de ar exalado, 1,6 l, e o tempo de exalação, 7,4 s, portanto de acordo com os normativos referidos e do ponto de vista metrológico, as premissas das conclusões periciais não podem ser (…) prejudicadas. Diga-se também que não foram os militares nem são os militares autuantes e fiscalizadores quem pode pedir ou não a realização da contraprova. Aliás, consta de fls. 17, e depois 18, que o arguido foi regulamente notificado nos termos e para os efeitos do referido dispositivo legal (art. 153.º, n.º 2, do Código da Estrada), no que diz respeito à realização do teste de álcool no sangue e substâncias psicotrópicas e, conforme se encontra rubricado e assinado pelo próprio condutor, o arguido declarou não requerer a realização de contraprova. Foi cumprido o pressuposto legal da sua notificação legal para o efeito e foi o próprio arguido que recusou a realização desta contraprova. No que diz respeito à estranheza da concreta taxa de álcool no sangue e à possibilidade de o arguido estar a exercer a condução com a mesma, diga-se que não é caso inédito, sendo do conhecimento deste Tribunal taxas que alcançaram até 4, 4,1 e 4,2. Portanto, sendo uma taxa concretamente muito elevada, ainda assim não se afigura que a mesma, só pelo volume nominal alcançado, já deduzido do erro máximo admissível, permita infirmar os resultados da própria perícia que foi realizada. No que respeita à possibilidade de o arguido estar com esta taxa a exercer a condução, o mesmo referiu nas suas declarações que ingeriu vinho tinto num contexto festivo, tendo bebido mais do que a sua conta; portanto, o excesso que poderia conduzir a esta taxa está também justificado nas declarações do arguido, aqui cotejadas e analisadas também à luz da prova pericial que foi alcançada com a realização do teste em causa, com este alcoolímetro. (…)» C. Apreciação do recurso 1. Da violação do direito de defesa do arguido Entende o recorrente que tal violação se consubstanciou na circunstância de, na acta de audiência de julgamento, não estarem descritos os factos provados e não provados, mas apenas o dispositivo, o que seria contrário ao previsto no art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.” (conclusões 1 e 2). Efectivamente, daquela acta (ref.ª ...53) não consta a transcrição dos factos provados, referindo-se, na parte final da pág. 2, que «o Mmº Juiz de Direito procedeu à locução com indicação sumária dos factos provados e não provados, com indicação e exame crítico sucinto das provas e exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, elementos esses recolhidos pelo sistema de gravação digital em uso neste tribunal, com início às 12 horas e 28 minutos e termo às 12 horas e 45 minutos». Só que tal não constitui qualquer infracção da lei processual penal, mas antes a sua estrita observância, como facilmente decorre da simples leitura do art. 389.º-A – da qual o recorrente parece ter-se esquecido –, relativa às especificidades da sentença no processo sumário (aplicável ao crime dos autos, porque punível com pena de prisão de máximo inferior a 5 anos e por ter havido detenção em flagrante delito por autoridade policial – art. 381.º, n.º 1): “1 - A sentença é logo proferida oralmente e contém: a) A indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação[5] e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas; b) A exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão; c) Em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada; d) O dispositivo, nos termos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 374.º.” Ora, como decorre do supra transcrito em B.2., foi exactamente o procedimento seguido pelo Mm.º Juiz a quo, com grande diligência e clareza, remetendo de forma expressa, no caso dos factos provados, para os pontos 1 a 5 da acusação, que aqui se recordam (ref.ª ...81): «1º. No dia 12.10.2024, pelas 19h:20, o arguido conduzia, ao km 27, 200 da EN...01, sita em ... e ... em ..., o motociclo com a matrícula ..-GQ-.., marca ...”, modelo .... 2.º Antes de iniciar a condução, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas, em quantidade e qualidade não concretamente apuradas. 3º. O arguido encontrava-se, na data e hora referidas, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 3,059 gramas por litro, deduzido o valor de erro máximo admissível. 4º. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, no exercício da condução do veículo automóvel acima referido, na via pública, não obstante saber que antes havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para acusar uma TAS no sangue igual ou superior a 1,2 gramas por litro. 5º. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se abstendo de a levar a cabo.» Acresce que, tal como decorre da acta – e também da audição integral do registo áudio do julgamento, levada a cabo neste Tribunal –, deu o Mm.º Juiz a quo conhecimento integral do teor da acusação ao arguido, tendo a atitude deste sido a de confessar na íntegra os factos nela descritos. Após, e com grande diligência, o Mm.º Juiz a quo tratou de se assegurar, com todo o cuidado e usando de vocabulário acessível ao destinatário, que o arguido fazia tal confissão de forma livre (o que chegou a ser objecto de uma confirmação no mesmo sentido por parte do defensor oficioso), bem como procedeu a uma instância tranquila e abrangente sobre as circunstâncias que precederam os factos (como o álcool ingerido, a não intervenção do arguido em acidente e a forma da sua condução no momento da intercepção pelos militares da GNR), a que acresceu idêntica indagação no que respeita às condições pessoais do arguido. Foi assim cumprido o art. 389.º-A, n.º 3, porquanto a sentença foi documentada nos termos dos artigos 363.º e 364.º: o primeiro prevê que as “declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”, e o segundo especifica as formas de registo e seus requisitos (como o início e o fim da gravação de cada interveniente), sendo regra – mesmo para o processo comum – a inexistência de transcrição, salvo determinação do juiz em contrário, oficiosamente ou por requerimento (n.º ...). Assim, e ao contrário do que alega o recorrente, o direito de defesa deste em nada resultou coarctado, tendo o Mm.º Juiz a quo cumprido estritamente o que a lei lhe impunha. Deve, por isso, improceder este segmento do recurso, sem necessidade de mais considerações. 2. Da certificação do aparelho de medição da taxa de alcoolemia Invoca o recorrente que o aparelho quantitativo usado na aferição dessa taxa não funcionava correctamente, com três argumentos (conclusões 3 a 9): - a omissão de qualquer informação no campo “classe de exatidão”; - a afirmação de que, para acusar a taxa em causa, o recorrente teria «consumido mais de 1,2 litros de substâncias acólicas (tendo em vista o teor alcoólico do vinho e o peso do recorrente)», o que não ocorreu «como se pode verificar a confissão integral e sem reservas»; e - a falta de conhecimento, por parte do seu defensor oficioso, de taxa tão elevada «em mais de 11 de anos de experiência profissional». Começando pela alegada falta de exactidão, cite-se aqui o primeiro parágrafo da Portaria n.º 366/2023, de 15 de Novembro (Regulamento do Controlo Metrológico Legal dos Alcoolímetros): “O controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição em Portugal obedece ao regime geral aprovado pelo Decreto-Lei n.º 29/2022, de 7 de abril, às disposições regulamentares gerais previstas no Regulamento Geral do Controlo Metrológico aprovado pela Portaria n.º 211/2022, de 23 de agosto, e ainda às disposições constantes das portarias específicas de cada instrumento de medição.” Sendo a metrologia a “ciência que trata da medição das grandezas físicas, dos sistemas de unidades, dos instrumentos de medida e dos métodos e técnicas operatórias”[6], o controlo metrológico legal aplica-se, para o que aqui releva, “aos instrumentos de medição, utilizados (…) na segurança, na saúde (…)” (art. 2.º, a), do D.L. n.º 29/2022), obedecendo cada um deles aos regulamentos do respectivo domínio de aplicação, sempre tendo por orientação os actos legislativos da União Europeia ou, na ausência destes, as “recomendações emitidas pela Organização Internacional de Metrologia Legal, aplicando-se sempre as definições constantes do Vocabulário Internacional de Metrologia e do Vocabulário Internacional dos termos de Metrologia Legal.” (art. 3.º, n.º 2, do mesmo D.L.). Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, o uso de tais instrumentos pressupõe o seu acompanhamento por “certificado emitido por organismo reconhecido ao abrigo dos atos legislativos da União Europeia aplicável, no âmbito da atividade de metrologia legal, com base em especificações e procedimentos que assegurem uma qualidade metrológica equivalente à visada pelo presente decreto-lei.” O controlo metrológico legal dos instrumentos de medição exige, desde logo, a aprovação de modelo e a primeira verificação – art. 5.º, n.º 1, a) e b), do D.L. que se vem citando. Cabe ao Instituto Português da Qualidade, I.P. (IPQ), na qualidade de Instituição Nacional de Metrologia, “assegurar e gerir o sistema de controlo metrológico legal dos métodos e dos instrumentos de medição” (art. 13.º, n.º 1, ainda do mesmo diploma). No caso dos autos, o aparelho é um alcoolímetro da marca ..., modelo ... MK ..., cuja aprovação consta do Despacho n.º ...07 do IPQ[7], como é expressamente referido no respectivo Certificado de Verificação, no item “Identificação da Aprovação de Modelo” (ref.ª ...21, pág. 35). Quanto à primeira verificação, e tal como consta do mesmo Certificado, data de 19 de Agosto de 2024 (secção “Operação Efetuada”, onde se incluem “Tipo” e “Data”), com o resultado “Aprovado”. O aparelho em causa tem um número de identificação – ...29 –, que consta quer do Certificado quer do talão emitido pelo aparelho (pág. 33 da citada ref.ª); não há, por isso, dúvidas de que foi aquele alcoolímetro, aprovado e objecto de verificação, o utilizado para aferir da taxa de alcoolemia do recorrente no momento da sua interpelação pela GNR. Especificamente para os alcoolímetros, o Regulamento aprovado na citada Portaria n.º 366/2023 não só os define – “instrumentos de medição destinados a medir a concentração mássica de álcool (etanol) por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado” (art. 2.º) – como determina que devem cumprir “os requisitos metrológicos e técnicos definidos na Recomendação da Organização Internacional de Metrologia Legal, OIML R 126” (art. 3.º). Também aí se prevê a aprovação de modelo (art. 6.º) e a necessidade de uma primeira verificação (art. 7.º), concretizando o já previsto no citado regime geral, tendo a segunda o prazo de validade de um ano (n.º 1 deste último artigo). Relevante para estes autos é que, nos termos do art. 7.º, n.º 3, os valores dos “erros máximos admissíveis para a primeira verificação são os definidos na Recomendação da Organização de Metrologia Legal, OIML R 126.” Ora, consultada esta Recomendação Internacional[8], de 2012, específica para os alcoolímetros, aí se estabeleceu que “o erro máximo admissível, para mais ou para menos, é de 0,020 mg/L ou de 5% do valor de referência da concentração mássica, quando esta for mais elevada”[9] (entenda-se, a concentração mássica de álcool detectada no ar expirado). E foi precisamente este último critério o adoptado pela GNR, bem como acolhido pelo Ministério Público na acusação e pelo Mm.º Juiz a quo na sentença: no talão já referido, a taxa de alcoolemia registada era de 3,22 g/l, e foi reduzida, para efeitos de imputação do crime, em 5% (0,161), o que resultou na taxa de 3,059 g/l. Resulta do que vem sendo explicado que o talão, associado ao certificado de verificação do IPQ, são prova mais do que suficiente da taxa de alcoolemia que o recorrente registava no momento do teste, feito na sequência de uma fiscalização de trânsito, tal como o Mm.º Juiz a quo já tinha explicado, na fundamentação supra transcrita[10]. Assim, é evidente que, tratando-se de um sistema de medida em que há um erro máximo admissível, nada podia constar no Certificado de Verificação no campo “Classe de exatidão”; aliás, a nossa lei só refere tais classes[11] para unidades de massa SI (sistema internacional) – quilograma, micrograma, miligrama, grama, tonelada –, do sistema imperial – a onça troy, nos metais preciosos – e para outra unidade, o carat métrico (pedras preciosas), como decorre do Anexo I ao D.L. n.º 43/2017, de 18 de Abril, relativo aos instrumentos de pesagem não automáticos. Por isso, nenhum significado reveste a ausência de informação nesse campo, no dito Certificado. Passando à segunda objecção do recorrente, não se vislumbra donde retira este a conclusão de que, para registar a citada taxa de alcoolemia, teria havido uma ingestão prévia de mais de 1,2 l de bebidas alcoólicas, e que tal não ocorreu. São várias especulações em cadeia: - a relação entre o volume de bebidas alcoólicas ingeridas e a taxa de alcoolemia depende não só de múltiplos factores subjectivos – o peso (que se desconhece nem vem sequer alegado), a idade, o género ou a tolerância ao álcool, para referir os mais relevantes –, mas também objectivos, como o tempo decorrido entre aquela ingestão e o momento do teste; - por isso, não há qualquer correlação fixa entre a quantidade de bebidas alcoólicas que se toma e uma dada e constante taxa de alcoolemia; - em passagem alguma dos factos provados consta que o arguido tenha bebido menos (ou mais) de 1,2 l daquelas bebidas, mas tão-só que «Antes de iniciar a condução, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas, em quantidade e qualidade não concretamente apuradas»; - finalmente, a confissão integral e sem reservas do arguido, devidamente acolhida pelo Tribunal, nunca poderia abranger a exacta quantidade que o recorrente bebera, uma vez que tal facto não constava sequer da acusação… Afastado este (esboço de) argumento, resta o último, cuja invocação só se compreende pela falta de conhecimento do defensor oficioso do recorrente. Ainda que nos restrinjamos ao campo do Direito, uma rápida pesquisa na jurisprudência dos tribunais superiores ter-lhe-ia permitido encontrar um recente acórdão em que há uma taxa absolutamente idêntica à dos autos[12]. E, num país com hábitos tão antigos de consumo de álcool, muitos outros casos haverá de taxas idênticas, ainda que não tenham chegado à fase de recurso. Porém, e mais importante, a realidade ultrapassa em muito o âmbito jurídico (ou qualquer outro, mesmo o da ficção), pelo que acontece a cada momento uma miríade de situações que a mente humana nem sequer imagina; como tão bem escreveu Shakespeare há 400 anos, “Há mais coisas no céu e na terra (…) do que se sonha na vossa filosofia”[13]. Assim, é evidente a falta de fundamentos deste segmento do recurso, destinado ao insucesso. 3. Da violação do princípio in dubio pro reo Na visão do recorrente, esta violação traduziu-se na dúvida que, segundo ele, o Mm.º Juiz a quo deveria ter tido quanto à real taxa de alcoolemia (conclusões 10 e 11). Aquele princípio é a aplicação prática do previsto no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio da presunção de inocência: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. O processo penal português “é um processo de estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial, [o que] significa que, em última instância, recai sobre o juiz o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento”[14] (tal resulta claro, na fase de julgamento, do art. 340.º). Porém, face ao princípio supra citado, deve o julgador, em caso de dúvida sobre a prova dos factos constantes da acusação (pública e/ou particular), decidir a favor do arguido, ou seja, considerá-los não provados. Tal princípio “serve para controlar o procedimento do tribunal quando teve dúvidas em termos de matéria de facto e não para controlar as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve”[15] (e, permita-se acrescentar, o recorrente acha que o Tribunal a quo devia ter tido). Ou seja, o que deve operar a favor do arguido é a ausência de prova ou a sua fragilidade, e não a forma como a mesma é, em si, valorada. A demonstração da violação deste princípio “pode afirmar-se pela respetiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, ou seja, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença”[16]. Ou seja, caso decorra do texto da fundamentação de facto da sentença recorrida que o julgador teve dúvidas sobre a actuação do arguido e sobre a respectiva culpa, o non liquet daí resultante (que, em processo civil, é valorado conforme as regras do ónus da prova em cada caso concreto) tem sempre de ser resolvido a favor do arguido. Porém, como a própria formulação do princípio indica, o primeiro pressuposto para a sua aplicação é a existência de uma dúvida: sem ela, isto é, se o julgador tiver firme e devidamente justificada convicção do envolvimento do arguido nos factos e da sua culpa, não há qualquer dúvida a resolver a favor deste. Ora, da fundamentação de facto da sentença recorrida neste caso, não se vislumbra que o Mm.º Juiz a quo tenha tido qualquer dúvida sobre os factos, nem motivos para que esta pudesse existir, por tudo o que deixou exarado quanto ao meio de prova da taxa de alcoolemia. Há aqui, portanto, uma confusão de conceitos: no caso, o recorrente, ao invocar a violação daquele princípio “por o tribunal recorrido haver considerado provado certo e determinado facto que, a seu ver, não ficou devidamente apurado, o que na realidade impugna é o conteúdo da decisão proferida sobre a matéria de facto, com a qual discorda.”[17] Isto posto, não é de todo susceptível de aplicação ao caso o princípio in dubio pro reo, não tendo havido qualquer violação deste. Deve também o recurso improceder nesta parte. III – DISPOSITIVO Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se integralmente a sentença recorrida. Custas a cargo do arguido, com 3 UC de taxa de justiça. Guimarães, 28 de Janeiro de 2025 (Processado em computador e revisto pela relatora) Os Juízes Desembargadores Cristina Xavier da Fonseca Paula Albuquerque Paulo Almeida Cunha [1] Opta-se por manter os negritos e sublinhados de origem. [2] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem. [3] Conforme ditada para a acta, atenta a forma de processo sumário, e apenas na parte relevante para o recurso. [4] Aqui, embora imperceptível na gravação, a referência óbvia é ao teste quantitativo de alcoolemia. [5] Sublinhado nosso. [6] https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/metrologia. [7] In DR II, n.º 109, de 6 de Junho de 2007. [8] Disponível em https://www.oiml.org/fr/files/pdf_r/r126-f12.pdf/view. [9] Tradução nossa. [10] Qualquer cidadão pode consultar o estado de verificação de um instrumento de medição, em https://www.ipq.pt, na área “Serviços” e “Registo de Operação Metrológica”, apondo o respectivo número de etiqueta (no caso, 2024-001-071225-6, no canto superior direito do Certificado de Verificação, e que nesta data lá continua…). [11] Dividas em especial, fina, média e corrente. [12] Ac. Rel. Porto de 14.12.22, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2022:209.22.6GEVNG.P1.7C/. [13] Hamlet, Acto 1, Cena 5, ed. Relógio de Água, 2015, tradução de António M. Feijó, pág. 63. [14] Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português, 3, pág. 237 (citando escritos seus nos dois volumes anteriores), Universidade Católica Editora, Setembro de 2014 (reimpressão de Janeiro de 2023). [15] Ac. STJ de 27.4.17, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2017:452.15.4JAPDL.L1.S1.2E/. [16] Ac. desta Relação de 12.4.2021, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2021:366.11.7TAPTL.G1.21/. [17] Ac. STJ de 9.6.2010, no proc. n.º 1/05.2GCMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt. |