Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1159/18.6T8VRL.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
DEPOIMENTO DE PARTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Na fase de recurso, a junção de documentos reveste natureza excecional, só sendo admissível no caso de impossibilidade de apresentação até ao encerramento da discussão em 1ª instância ou de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
2 – A impossibilidade de apresentação anterior ao momento do encerramento da discussão em 1ª instância pode resultar de:
a) o documento se ter formado posteriormente, mas referir-se a facto já anteriormente alegado;
b) a parte só posteriormente ter tido conhecimento da existência do documento (o documento apenas veio ao conhecimento da parte após aquele momento);
c) ocorrência de um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva;
d) o facto probando ser posterior ao encerramento da discussão.
3 – A junção será considerada necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância se a decisão recorrida contiver elementos de novidade, isto é, que tenha sido absolutamente surpreendente para o apresentante do documento, face ao que seria de esperar em face dos elementos do processo. 4 – Quando a questão respeita ao resultado probatório a que chegou o tribunal de 1ª instância, é indispensável, para que se admita a junção do documento, que o julgamento proferido seja inovatório e imprevisível em face dos elementos probatórios recolhidos no âmbito do processo, seja por na sentença se formular uma exigência probatória com que razoavelmente não se podia contar ou por se sustentar a necessidade de provar facto cuja relevância não tinha sido equacionada em face da forma como foram expostos os fundamentos da ação ou da defesa ou da delimitação do objeto factual relevante efetuada pelo tribunal.
5 – A parte pode no mesmo processo prestar declarações de parte e depoimento de parte, isto é, ser ouvida em qualidades distintas. Prestando depoimento de parte e declarações de parte no mesmo acto, se admite factos que lhe são desfavoráveis, produz uma confissão; na parte em que se pronuncia sobre factos que lhe são favoráveis, as suas declarações estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, em conformidade com o disposto nos artigos 466º, nº 3, e 607º, nº 5, do CPC.
6 – A parte que deve prestar depoimento pode requerer a prestação de declarações de parte, assim como o tribunal também pode determinar oficiosamente a prestação destas declarações, como resulta da remissão efetuada pelo artigo 466º, nº 2, do CPC designadamente para o artigo 452º, nº 1, do CPC, valorando-as livremente.
7 – O tribunal que determina a prestação de esclarecimentos deve considerar estes, em tudo o que não tenha carácter confessório, como uma declaração de parte e valorar livremente esta declaração, o que redunda no dever de valorar os factos favoráveis alegados pela parte chamada a responder sobre determinado facto em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.
8 – Pedindo a autora o reconhecimento da sua qualidade de herdeira dos primitivos donos de certo bem e que as heranças destes integram o respetivo direito de propriedade, não sendo questionada tal qualidade ou que aqueles foram proprietários do bem, não cabe à demandante demonstrar o facto negativo relativo à não disposição do bem, mas sim aos réus demonstrar a matéria de exceção que invocam, relativa à aquisição por doação ou por usucapião.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, BB, BB, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, CC, NN e OO, pedindo que se reconheça a qualidade de herdeira da Autora nas heranças por óbito de PP, CC e QQ, bem como o reconhecimento de que os vinhos identificados no item 1º da petição inicial pertencem a tais heranças e devem ser confiados ao respetivo cabeça de casal, para que os guarde e administre até à partilha dos mesmos, nos termos do artigo 2079º do Código Civil.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que existe um conjunto de vinhos generosos que se encontram inscritos no IVDP em nome de BB e outros, que se encontram depositados em 4 cubas seladas pelo IVDP, depositadas na Quinta ...; o direito de propriedade sobre tais vinhos, ou sobre uma parte determinada de tais vinhos, já foi discutido em várias ações judiciais, sendo que em processo de inventário foram os interessados remetidos para os meios comuns quanto a saber se as quotas indivisas de vinho aí relacionadas/reclamadas faziam parte do património dos inventariados à data do seu decesso; são antecessores da Autora e de todos os Réus, PP, falecido em .../.../2000, CC, falecido em .../.../1976 e QQ, falecido em .../.../1979, os quais eram irmãos, sendo os três os donos, em comum e em partes iguais, dos vinhos em causa; estes vinhos, em 1975, encontravam-se distribuídos por vasilhame existente na denominada Quinta ..., situada no Concelho ..., dentro da região demarcada de Vinho do Porto, quinta que pertencia aos três referidos irmãos, que ainda eram vivos; PP faleceu intestado em .../.../2000, no estado de viúvo e sem filhos nem ascendentes sobrevivos; CC faleceu intestado em .../.../1976, no estado de solteiro e sem filhos nem ascendentes sobrevivos, e QQ faleceu intestado, em .../.../1979, no estado de viúvo de RR e do seu casamento nasceram os filhos (seis) BB (1ª Ré), CC, BB, CC, NN (17ª Ré) e PP; os vinhos identificados no item 1º da petição são o que resta atualmente dos vinhos que os mesmos possuíam em 1975, posto que o remanescente, ou foi alienado no decurso do tempo, ou foi alvo de evaporação natural; tais vinhos nunca foram partilhados pelos herdeiros dos três referidos irmãos PP, CC e QQ, pelo que são pertença, em comum e sem determinação de parte ou direito, dos herdeiros dos mesmos, tendo permanecido ininterruptamente guardados na Quinta ....
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Citados todos os Réus, apenas a Ré BB apresentou contestação, impugnando a factualidade alegada pela Autora, e alegando, por sua vez, que o vinho em causa se mostra inscrito em conta corrente na Casa do ..., sendo propriedade de quatro irmãos, filhos de QQ, a saber, BB (tia da A.), BB (tia da A.), CC (pai da A.) e CC (tio da A.), por lhes ter sido doado pelos três primitivos donos, em comum e partes iguais; uma quarta parte da litragem do vinho em causa foi relacionada no inventário por óbito do pai da Autora, e adjudicada à contestante, mãe da Autora, e a três irmãos da Autora, tendo esta recebido as tornas respetivas.
Terminou deduzindo reconvenção, pedindo que a Autora seja condenada a reconhecer que da herança aberta por óbito de seu pai, CC, fez parte um quarto da litragem inscrita em quatro contas correntes de vinhos emitidas pela Casa do ... e constantes do seu arquivo, todas tituladas, em comum e partes iguais, pelo referido seu Pai e por BB, BB e CC, no total de 49.795 litros de vinho generoso, sendo 24.302 litros de VV (vinho velho), 19.782 litros de vinho da colheita de 1970, 5.631 da colheita de 1972 e 80 litros da colheita de 1974, bem como que a Autora seja também condenada como litigante de má-fé a pagar multa e as despesas da Ré com os honorários que terá que pagar ao Advogado.
No prazo para a contestação, os Réus NN e OO constituíram Mandatário e apresentaram rol de testemunhas.
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Na pendência da ação faleceram as Rés BB e NN e, tendo sido promovida a habilitação dos respetivos sucessores, foram habilitados como tal os seus filhos, já réus nesta ação.
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1.2. A reconvenção não foi admitida, tendo-se proferido despacho saneador, definido o objeto do litígio e enunciado os temas da prova.

Realizada a audiência final, proferiu-se sentença com o seguinte dispositivo:
«Por tudo o exposto, e na procedência da matéria excecional alegada:
1º Julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e consequentemente:
a) Declaro reconhecida a qualidade de herdeira da autora nas heranças por óbito de PP, CC e QQ.
b) Julgo improcedente o demais peticionado, absolvendo os réus dessa parte do pedido.
2º Condeno a autora como litigante de má-fé, em multa que fixo em 5 (cinco) UC, e em indemnização a favor da ré contestante, que por equidade se fixa em € 3.000,00 (três mil euros).»
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1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«i. No decurso da segunda sessão de julgamento, violando todas as regras processuais, o Tribunal desatou a ouvir, em narrativas do tipo das declarações de parte, todos os réus que aí se apresentaram para prestar depoimento de parte, mesmo não tendo estes contestado, nada tendo alegado, e não tendo sido indicada a matéria sobre a qual iriam ser ouvidos.
ii. A final, o Tribunal estribou a sua convicção nessas insólitas, inusitadas e ilegalmente permitidas “declarações de parte”, produzidas sobre factos que nem sequer podem considerar-se factos pessoais dos respetivos declarantes, violando desta forma as regras processuais de aquisição da prova.
iii. Ainda assim, nem por essa via se logrou provar a controversa doação, contrariamente ao que a Mmª Juiz a quo ajuizou.
Com efeito,
iv. No início da 2ª sessão de julgamento deu-se um imbróglio jurídico que inquina de forma determinante toda a prova produzida e a subsequente marcha do processo, porquanto houve uma troca de palavras entre a Mmª Juiz e os mandatários forenses, relativa ao conteúdo dos depoimentos de parte e à forma como deveriam ser prestados, na sequência da qual o Ilustre Advogado Dr. SS pretendeu que alguns dos réus fossem ouvidos em declarações de parte, já que estavam a ser convocados para prestar depoimentos de parte.
v. Não consta da gravação da sobredita audiência o requerimento para a prestação das declarações de parte (nem a delimitação destas), o consequente contraditório, nem mesmo o despacho judicial e, de igual modo, na ata não foi consignado nenhum requerimento, nem qualquer oposição ou mesmo despacho judicial.
vi. Como tal, foi valorada prova que não foi legalmente admitida.
vii. Além disso, foi manifestamente violado o artº 466º do CPC (e ainda o artº 452º nº 2 do CPC), porquanto foi requerida a prestação de declarações de parte de réus, por mandatário forense que não os representava.
viii. Acresce que não foram cumpridos requisitos legais a que o requerimento de produção de prova por declarações de parte deve obedecer, nomeadamente, o dever indicar no requerimento os factos pessoais a que pretende depor.
ix. Ademais, a parte pode requerer a produção do meio de prova “declarações de parte” quando pretenda produzir prova sobre factos por si alegados, ou por si impugnados, em que tenha intervindo pessoalmente, ou de que tenha conhecimento direto, prova por declarações de parte que carece de ser admitida por despacho judicial, no qual se fixe o âmbito dessas declarações, ou seja, se determine quais são os factos pessoais a que a parte vai depor – o que não sucedeu no caso dos autos, não tendo incidido sobre este meio de prova qualquer despacho judicial.
x. Na verdade, a Mmª Juiz limitou-se a, desse momento em diante, admitir que os Il. Mandatários dos réus interrogassem as partes, que se aprestavam a prestar depoimento de parte a determinados factos previamente indicados e admitidos, as quais passaram a partir daí a depor com toda a amplitude a tudo o que lhes foi perguntado pelos Il. Mandatários que os patrocinavam, bem como pelos demais que patrocinavam as compartes.
xi. Tendo erroneamente sido validadas tais declarações, servindo de fundamento à decisão do Tribunal sobre a matéria de facto precisamente a conjugação destes supostos “depoimentos de parte”.
xii. Constitui doutrina e jurisprudência dominantes que o depoimento de parte é um meio processual através do qual se pode obter e provocar a confissão judicial, sendo esta uma declaração de ciência que emana da parte, na qual se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante (contra se pronuntiatio) e favorável à parte contrária, a quem competiria prová-lo (art. 352º do Código Civil), pelo que, nesta medida, o depoimento de parte só pode incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente.
xiii. Acresce que, consoante estatui o artº 454º nº 1 do CPC, o depoimento só pode ter por objeto factos pessoais, ou de que o depoente deva ter conhecimento, posto que, nos termos do artº 466º nº 1 do CPC, as partes podem requerer (...) a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
xiv. Porém, nada disto nunca sucedeu, em momento algum, e com depoimento nenhum, ao longo de todo este julgamento, em que as partes falaram sempre de factos passados na sua infância ou juventude, de que seriam intervenientes os seus pais e avós, ou seus tios avós, os quais supostamente lhes terão sido narrados em conversas de família, e que, por conseguinte, se revelaram invariavelmente serem comunicações de “ouvir dizer”.
xv. Ora, está vedado ao julgador conferir às declarações de parte um âmbito que extravase o mero conhecimento pessoal, ou valorar depoimentos em que a parte narra aquilo a que não assistiu, mas que assinala por ter ouvido dizer, numa declaração que se limita a sustentar, repetindo, a tese já constante dos seus articulados.
xvi. No caso concreto dos autos ainda a situação é mais grave, na medida em que as declarações de parte foram todas prestadas por réus que nem sequer contestaram a ação e que, nessa medida, nem podiam ser admitidos a produzir prova por declarações de parte, fosse sobre que matéria fosse – matéria essa que nem se encontrava balizada.
xvii. Segundo o melhor entendimento doutrinário e jurisprudencial, as declarações de parte não são suficientes, por si só, para estabeleceram autonomamente um juízo de aceitabilidade final, podendo apenas auxiliar a prova de um facto quando conectadas com outros elementos probatórios., não sendo suficientes para o Juiz formar a sua convicção.
xviii. Daqui facilmente se conclui que não é aceitável que o Tribunal firme a sua convicção nos depoimentos de parte não confessórios, convenientemente alargados para servirem como declarações dessas partes, mesmo que se verifique um número significativo de compartes a opinarem todos a mesma coisa (que, contudo, não lhes é pessoal!) e um número escasso de compartes a dizerem o contrário.
Análise crítica e reapreciação da matéria de facto provada:
xix. Não foi produzida nos autos, nem em audiência, prova suficiente e credível, valorável como tal, no sentido de que a doação invocada pela ré contestante efetivamente ocorreu, nem mesmo que os alegados donatários tenham estado, ou estejam, na posse dos ajuizados vinhos.
xx. A motivação relativa à prova da exceção que foi suscitada (doação) assenta quase exclusivamente nos depoimentos de parte dos interessados nessa prova, não existindo documentos que a sustentem com um mínimo de segurança.
xxi. Na verdade, a prova documental valorada pelo Tribunal, desacompanhada de prova por depoimentos, seria por si só insuficiente para se concluir pela existência duma qualquer doação de vinhos.

Prova por declarações orais
xxii. No que concerne às declarações orais, a Mmª Juiz a quo começa a motivação por afirmar que, à exceção de um dos depoimentos de parte (OO) e da única testemunha ouvida sobre os factos relativos à propriedade dos vinhos (TT), todos os demais depoimentos de parte foram no sentido de que existiu a alegada doação.
xxiii. Assim, olvidou no seu processo de cognição que, além das regras da experiência e dos processos lógicos, o Julgador deverá ter em conta a probabilidade prática de os factos não terem realmente ocorrido, tendo a consciência que no âmbito da prova por declarações de parte, o declarante poderá fazer um raciocínio lógico perfeito, mas falso, corrompendo a verdade real dos factos ocorridos, por ter um interesse direto no ganho da causa.
xxiv. In casu, é manifesto o interesse dos depoentes que declararam pela existência da alegada doação, já que a mesma redundaria em os vinhos sub judice serem repartidos por menos pessoas, cabendo na futura partilha uma maior quantidade de vinho ao quinhão de cada um.
xxv. Ademais, em tais depoimentos ninguém revelou factos pessoais ou de que tivesse conhecimento direto, nos quais a Mmª Juiz se pudesse sustentar validamente para a convicção que formou e, nem mesmo essa, corresponde ao que foi efetivamente declarado pelos depoentes.
xxvi. Analisando o depoimento gravado da ré BB (neta e sobrinha neta dos primitivos donos dos vinhos) conclui-se que esta não narrou um único facto em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tivesse conhecimento direto, à exceção de uma suposta conversa com seu avô ocorrida nos anos 70, cujos contornos e localização espácio-temporal não foi capaz de revelar ou identificar com precisão.
xxvii. Torna-se relevante reapreciar os excertos de tal depoimento, transcritos nas alegações supra, que constituem o depoimento de parte desta ré gravado em ficheiro áudio 20220427102327_1345839_2871877.wma e prestado no dia 27 de abril de 2022 das 10:23:29 às 11:04:14.
xxviii. Do relato da depoente resulta que o avô contou pormenores do inventário por morte da avó, mas não fez qualquer referência à alegada doação.
xxix. O sobredito depoimento indicia precisamente o contrário do que concluiu a Mm.ª Juiz a quo, demonstrando que a depoente não tomou conhecimento direto de nenhuma doação. Ademais, a depoente limita-se a narrar entendimentos e conclusões, não factos – que nunca seriam pessoais.
xxx. Assim, à luz das regras de apreciação e valoração da prova, não se pode extrair do depoimento qualquer conclusão favorável à prova de factos constitutivos de um direito.
xxxi. Quanto ao depoimento do réu CC (filho da ré contestante) – depoimento que se impunha desconfiar da veracidade e credibilidade por vir indicado pela própria mãe para corroborar a sua tese –, não se extrai dele o relato de qualquer facto pessoal, isto porque à data dos factos o réu era apenas uma criança de poucos anos, que não interveio nos factos, nem mesmo destes podia conhecer de forma direta.
xxxii. Não obstante, foi admitido a repetir até à exaustão a tese alegada pela sua mãe na contestação, embora nada se aproveitasse do seu depoimento, em termos de conhecimento pessoal, já que por variadíssimas vezes, ao longo do seu depoimento, referiu que estava a declarar com base naquilo que ouviu dizer a terceiros, não porque tivesse conhecimento direto dos factos.
xxxiii. Isto mesmo se apreenderá ao reapreciar os excertos de tal depoimento, transcritos nas alegações supra, que constituem o depoimento de parte deste réu, gravado no ficheiro áudio 20220704101628_1345839_2871877.wma prestado no dia 27 de abril de 2022 entre as 11:07:07 a 12:03:02.
xxxiv. Quanto ao depoente de parte KK, afirma a Mmª Juiz que este depôs “no mesmo sentido” do seu antecessor, valendo aqui as considerações já expendidas nas conclusões antecedentes, importando reanalisar o seu depoimento, do qual extraímos a título exemplificativo as passagens do depoimento gravado no ficheiro áudio 20220704101628_1345839_2871877.wma prestado no dia 4 de julho de 2022 entre as 10:16:34 e as 10:42:40
xxxv. Haverá ainda que assinalar que este depoente declarou de forma assertiva ao Tribunal que sobre a suposta doação nada sabia, pelo que é incompreensível que a resposta positiva do Tribunal se possa fundar também no depoimento deste réu.
xxxvi. A Mmª Juiz de seguida atribuiu ao réu CC dizeres semelhantes aos antecedentes, valendo assim, por contraposição, aquilo que vimos afirmando sobre os dois depoimentos anteriores.
xxxvii. Este depoente serviu assim para formar a convicção da Mmª Juiz apesar de, estranhamente, ter passado o depoimento a dizer “penso eu...” “penso eu...”, sem certeza alguma do que afirmava, escudando-se no facto de ser uma criança quando tudo teria acontecido.
xxxviii. Isso mesmo se constatará ao reapreciar os excertos de tal depoimento, transcritos nas alegações supra, que constituem o essencial do depoimento de parte deste réu, gravado no ficheiro áudio 20220704104427_1345839_2871877.wma prestado no dia 4 de julho de 2022 entre as 10:44:28 e as 11:14:07.
xxxix. Relativamente ao depoimento do réu II, como na motivação nada se acrescenta, sendo o seu depoimento em tudo similar, repetem-se as considerações anteriores.
xl. Importa, contudo, assinalar que este foi o depoente que prestou declarações “espontaneamente”, sem que para tal tenha sido solicitado, que não constituiu advogado, não contestou, nada requereu, e cujas declarações de parte nem sequer se poderiam equacionar, pelas razões anteriormente aduzidas, especialmente na conclusão xvi. supra.
xli. Por fim, estribou-se a Mmª Juiz no depoimento da ré HH, que repetiu a tese já exaurida pelos anteriores depoentes, no sentido da convicção sobre a existência da alegada doação, e os motivos que a haveriam determinado, tendo a Mmª Juiz acrescentado na motivação que esta ré teria afirmado que há mais de 30 anos os vinhos estariam a ser declarados como propriedade dos quatro irmãos supostos donatários.
xlii. Esta depoente referiu que o seu avô nunca lhe disse que nada sobre esse assunto, a ela diretamente, e veio a falecer 4 anos depois da avó e 3 anos após a data da suposta doação, sem nunca lhe ter dito nada.
xliii. O depoimento desta ré é elucidativo da falta de convicção e insegurança destes depoimentos de parte, porquanto é notório e indisfarçável ao longo do depoimento que foi o Ilustre Mandatário da ré contestante quem fez o depoimento, através de perguntas sugestivas, que em forma de pergunta davam a resposta, limitando-se a depoente a afirmar: “sim, sim...”, sem nada declarar de concreto, e sem indicar ou evidenciar qualquer razão de ciência.
xliv. Importa aferir as transcrições do seu depoimento feitas nas alegações, gravadas em no ficheiro áudio 20220930100647_1345839_2871877.wma prestado a 30 de setembro de 2022 entre as 10:04:30 e as 10:38:42.
xlv. Note-se que esta depoente não afirma que o seu avô nunca lhe falou nada acerca da suposta doação, afirmou antes que o avô nunca disse nada sobre a doação, ou seja, não o disse a si nem a ninguém.
xlvi. Aliás, de todos os depoentes, ninguém falou disso com o avô, e este a ninguém contou semelhante coisa!
xlvii. Mais importante ainda é a circunstância de nenhum dos depoentes ter falado sobre esta matéria com nenhum dos dois tios-avôs que também supostamente haveriam de ter subscrito a efabulada doação.
xlviii. Logo, o suposto móbil que é invocado para um dos supostos doadores (o avô dos depoentes) não se verifica quanto aos outros dois supostos doadores (os tios-avôs) – o que deita por terra, completamente, a justificação apresentada na motivação da sentença.
xlix. A única testemunha apresentada pela ré contestante, UU, no seu depoimento, constante do ficheiro áudio 20220704151551_1345839_2871877.wma do dia 4 de julho de 2022, prestado entre as 15:15:52 e as 15:39:5, foi completamente desvalorizado pela Mmª Juiz, apesar de ter trabalhado na Quinta ... durante 19 anos consecutivos.
l. Isto posto, forçoso é concluir que os depoimentos de parte dos réus, conjugados com o desta testemunha, de nada servem para sustentar a tese da doação, pois nenhum facto pessoal ou de seu conhecimento direto narram ao Tribunal que lhe permita extrair semelhante conclusão, quanto à matéria de exceção suscitada pela ré contestante.
li. No que toca à apreciação dos depoimentos que contrariam a existência da suposta doação, importa sindicar o desvalor que a Mmª Juiz lhes atribuiu, contrariando-o.
lii. OO foi em rigor o único réu que verdadeiramente foi admitido a prestar, e prestou, declarações de parte, na correta aceção do conceito, tendo o seu depoimento sido desvalorizado pela Mmª Juiz com o argumento de que não tinha a certeza do que afirmava.
liii. Ao invés, contudo, tratou-se de um depoimento contrastante com os demais, mas na medida em que se revelou um depoimento sereno, desapaixonado, escorreito, coerente e nada hesitante, sendo mister que os Exmos. Desembargadores possam ouvir este depoimento para daí concluir se é assim como afirmamos ou não.
liv. Por outro lado, ao falar, o declarante expressou a sua convicção (daí que tenha dito amiúde “penso”), talqualmente os demais, que todos disseram apenas o que pensavam, sem qualquer base de sustentação ou razão de ciência que não fosse a sua própria opinião/convicção, sem que a Mmª Juiz tenha encontrado nisso um óbice relativamente aos demais.
lv. Assim, nota-se uma inaceitável dualidade de critérios na apreciação destas declarações, às quais o Tribunal imputa um defeito que é transversal a todos os depoimentos que acolheu em sentido contrário.
lvi. Sobre este depoimento, analisamos e reproduzimos nas alegações as seguintes passagens constantes no ficheiro áudio 20220704115233_1345839_2871877.wma prestado no dia 4 de julho de 2022 entre as 11:52:34 e as 12:27:24.
lvii. Finalmente, existe o depoimento testemunhal de TT, que a Mmª Juiz desvalorizou com um incompreensível argumento de ser casado com uma ré, quando todos os outros que valorou eram dos próprios corréus e, como tal, interessados diretos na sorte do processo.
lviii. Ocorreu assim uma ostensiva violação das regras de direito probatório. Sem mais, no confronto entre um depoimento testemunhal mais as declarações de parte de um réu, por um lado, e vários depoimentos de parte não confessórios, pelo outro lado, a Mmª Juiz valorou de forma depreciativa o depoimento testemunhal, com o argumento de a testemunha ser casada com uma ré, e as declarações de parte, com o argumento de que o declarante referiu muitas vezes a frase “penso eu”, ao mesmo tempo que valorava o depoimento de pessoas que são eles próprios réus interessados na sorte da ação, e que se fartaram de dizer a mesmíssima frase “penso eu” ao longo dos seus depoimentos, que foram total e flagrantemente depoimentos indiretos e de “ouvir dizer”.
lix. Esta completa desconsideração pelas regras de apreciação da prova não pode ser sufragada em sede de recurso, por se mostrar manifestamente parcial, e revelar claramente uma convicção aprioristicamente formada.
lx. O depoimento da única testemunha com conhecimento direto dos factos é muito importante, designadamente porque explica toda a conflitualidade existente ao longo de décadas entre os diversos membros da família, relativamente a estes vinhos, que a Mmª Juiz ignora completamente, ao dar a entender que a questão é pacífica e que só há dois ou três herdeiros que não reconhecem a doação, quando não é assim, nunca foi assim, e existiram diversas ações por causa da propriedade destes vinhos, que a testemunha enumera detalhadamente, mas que o Tribunal desconsiderou totalmente.
lxi. Transcreveram-se nas alegações as partes mais significativas do depoimento desta testemunha TT, que impunham decisão diversa da matéria de facto, mormente quanto à contraprova da alegada doação e quanto à posse dos vinhos, que são as seguintes passagens constantes do ficheiro áudio 20220704142021_1345839_2871877.wma prestado a 4 de julho de 2022 entre as 15:15:52 e as 15:39:59.
lxii. Esta testemunha narrou ainda ao Tribunal a posição da ré contestante e da Sociedade Agrícola da D..., Lda., na ação judicial conhecida como Processo de ..., de 1999, na qual se discutiu a questão dos mesmos vinhos, entre outras ações que enumerou, indicando que quem contestou a ação em nome da sociedade agrícola foram os gerentes de então, CC – que aqui depôs em sentido contrário – e VV, pai de WW, que aqui também depôs em sentido contrário.
lxiii. A testemunha, ao longo do seu depoimento, referiu a existência do documento que posteriormente foi junto aos autos, no qual um dos doadores declara perante Notário que nunca doou quaisquer vinhos e nunca lhe constou que os irmãos tenham feito qualquer doação, revelando profundo conhecimento dos factos, tendo sido inclusive gerente da Quinta.
lxiv. Nenhuma razão existe para não se conferir a este depoimento, que – repete-se – é o único depoimento de cariz testemunhal, o relevo devido em sede probatória.
lxv. Note-se que a posição assumida pela Mmª Juiz a quo na sentença final foi uma completa surpresa, em face do que vinha manifestando ao longo da audiência, onde foi sempre dando a entender, nos seus parcos comentários aos depoimentos de parte, que as afirmações neles contidas não serviriam para nada, por se tratar de meras convicções sem suporte em qualquer conhecimento direto ou pessoal.
lxvi. Assim, a apreciação da prova por depoimentos orais não escapa à crítica e deve ser completamente alterada.
lxvii. Acresce ainda que, a Mmª Juiz não terá atentado em que a sustentação da prova sobre a doação de bens móveis no âmbito da prova pessoal redunda em violação flagrante do preceituado no artº 364º, conjugado com o artº 947º nº 2, ambos do Código Civil.
Prova por documentos
lxviii. Os vinhos que eram propriedade dos primitivos donos CC e PP, estavam na sua Quinta ..., não estavam individualizados, e aí continuaram a estar, antes de 1976 e depois de 1976 – data em que teria alegadamente ocorrido a imputada doação – sem qualquer individualização relativamente aos demais vinhos.
lxix. A Quinta ..., por herança, passou dos primitivos donos para os seus herdeiros e, por decisão do primitivo sobrevivo e seus sucessores, passou para a titularidade da Sociedade Agrícola Quinta da D....
lxx. Os vinhos nunca mudaram de detentor, mesmo que tivesse havido alguma intenção de doação desses vinhos, em 1976, a sua tradição material nunca ocorreu.
lxxi. Tal como estatuído no artº 947º, n.º 2 do Código Civil – e consolidado pacificamente desde do Código de Seabra –, não havendo tradição, a doação só poderia ser celebrada por documento escrito.
lxxii. Assim, in casu, teria de fazer-se prova documental do instrumento escrito e assinado pelos doadores, que consubstanciasse a doação – o que não sucedeu, pois, tal documento não existe, e nunca existiu.
lxxiii. Pelo contrário, existe um documento que comprova que não existe doação: uma declaração do suposto doador (PP) – por escrito, pessoalmente e perante um notário que a atestou, bem como perante duas testemunhas, que também assinaram a declaração conjuntamente com o declarante – a afirmar que não realizou doação nenhuma e que não lhe consta que algum dos seus dois irmãos (comproprietários consigo desses vinhos) tenha em algum momento feito alguma doação, e afirmando que a inscrição desses vinhos na Casa do ... em nome dos sobrinhos não correspondia à verdade.
lxxiv. Enferma de erro de julgamento, violador das mais elementares regras de aquisição da prova, a convicção do Tribunal que desconsidera o sobredito meio de prova documental, com o único argumento de que o seu autor nada teria feito em vida para alterar a situação.
lxxv. Aliás, o mencionado subscritor nunca foi gerente de facto da Quinta (facto asseverado pela testemunha UU), sendo verosímil que nada soubesse sobre a conta-corrente dos vinhos na Casa do ....
lxxvi. O referido documento foi junto aos autos, não tendo sido impugnada a sua assinatura, tem-se por verdadeiro o conteúdo nele aposto, que aliás foi certificado presencialmente por notário, sendo por isso um instrumento público, que faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor – cfr. artºs. 363º, 375º e 376º nº 1 do Código Civil.
lxxvii. A Mmª Juiz deu ênfase aos documentos emanados da Casa do ..., mormente a conta-corrente dos vinhos, reconhecendo, contudo, que esta não é um registo no significado jurídico do termo, antes uma inscrição para controle de existências de vinhos generosos.
lxxviii. O legislador conferiu poderes à Casa do ... para fiscalizar a produção dos vinhos da região demarcada do ..., estabelecendo no Decreto nº 30.408 de 30/04/1940, no seu artº 6º, as funções da Casa do ..., nas quais se incluía: 10º Abrir e escriturar contas correntes para todos os possuidores de mosto, vinhos e aguardentes, inscrevendo nelas todas as operações de que resulte transmissão dos produtos e verificando a sua exactidão e a realidade das operações.
lxxix. No referido diploma não se encontram previstos os documentos que servem de suporte para os lançamentos em conta-corrente, no entanto, a testemunha TT esclarece que seria com base em documentos comprovativos de transmissão, tais como faturas de venda ou similares, enquanto a testemunha UU, que foi durante muito tempo funcionário da Casa do ..., esclarece que existiria um impresso que se preencheria para o averbamento da transmissão de vinhos e mostos.
lxxx. Destarte, nenhum documento foi junto aos autos que sustentasse a saída dos vinhos da conta-corrente dos três irmãos e a abertura de uma nova conta-corrente em nome de BB e irmãos e que, portanto, prove indiretamente ou indiciariamente a doação.
lxxxi. Consta da folha de conta-corrente dos vinhos manifestados em nome dos irmãos CC e PP, seus primitivos donos, que em 1976 teria sido feita uma Tranfª por oferta pª Mº XX e irmãos de determinadas quantidades de vinho, no entanto não se faz aí referência a qualquer documento que suporte tal transferência.
lxxxii. Por outro lado, existe um registo de transferência global dos vinhos desses proprietários, já em 22 de novembro de 1989, para a Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda. (que havia sido constituída em 26/02/1987), a qual se estribou numa simples carta, o que denota a leviandade da escrita da Casa do ..., pois só dois anos de meio depois de a exploração ter passado para o nome da Sociedade Agrícola é que foram averbados os vinhos na Casa do ... em nome dessa sociedade.
lxxxiii. Ainda quanto à transferência de 1976, alguém apôs posteriormente uma chamada com um a) para o campo de “observações”, onde alguém manuscreveu que a transferência teria sido apresentada na Casa do ... em 09/09/1976, conforme visto do ... (palavra ilegível) – anotação manuscrita mais uma vez sem qualquer suporte documental, a que não terá sido alheia a circunstância de em .../.../1976 ter falecido um dos putativos doadores, o CC, e como tal esta transferência com esse fundamento ser manifestamente irregular, por facilmente se demonstrar que nunca poderia ter ocorrido nenhuma suposta oferta, se reportada a novembro desse ano.
lxxxiv. Ademais, a nova conta-corrente, constante da folha seguinte, contudo, só foi aberta no tal dia 17 de novembro de 1976 e em nome dos tais quatro irmãos.
lxxxv. Nota-se pelo conteúdo de tais documentos, e pela forma como são manuscritos, que os mesmos não contêm o mínimo rigor quanto aos documentos de suporte das transmissões aí manifestadas, não contendo, direta ou indiretamente, nenhuma declaração de vontade escrita dos doadores (ou sequer dos donatários) e, por conseguinte, não servindo como prova jurídica de qualquer contrato bilateral de transmissão de vinhos.
lxxxvi. Andou mal a Mmª Juiz, ao valorar os documentos de fls. 208 verso a 212, relacionados com a Casa do ..., como confirmadores da existência dos vinhos em causa em nome dos quatro irmãos como proprietários, porquanto tal como demonstrado pela prova testemunhal produzida acerca desta matéria (mormente as testemunhas TT, UU e CC) as declarações anuais de existência a dada altura começaram a ser separadas para os vinhos da Quinta e para os vinhos nominais, apenas porque era a forma como constavam da conta-corrente da casa do ... e doutra maneira esta entidade as não aceitaria.
lxxxvii. Quanto ao documento de fls. 213, assinado pelo gerente de então da Quinta ..., FF, falecido marido da ré contestante e pai da autora, é de notar que aí se pede a transferência de uma conta-corrente para outra de determinado vinho, constando do texto impresso que se trataria de uma venda, contudo, nada mais é possível aferir de tal documento, não havendo nenhuma prova de que esses quatro irmãos tenham vendido vinho e tenham recebido o preço da venda – não se evidenciando qualquer ato de disposição.
lxxxviii. Reitere-se que o FF, além de procurador de alguns irmãos, era também gerente da Sociedade Agrícola onde os vinhos estavam armazenados e que, compulsadas as procurações juntas aos autos (fls. 213 a 216), delas nada se extrai de relevo.
lxxxix. Quanto ao facto de na certidão de fls. 88 a 115 dos autos, relativa ao inventário por óbito do FF, ter sido relacionado ¼ indiviso desses vinhos, deve notar-se que, a serem os mesmos vinhos, a descrição da verba não deixa lugar a qualquer dúvida, porquanto está descrita como uma existência litigiosa, ou ao menos controvertida.
xc. Além de a litragem não coincidir com a reclamada nestes autos, é de assinalar que a cabeça de casal, aqui ré contestante, ao relacionar esses vinhos, expressamente declara que a Sociedade Agrícola Quinta da D..., da qual – repete-se – todos são contitulares, recusava entregar tais vinhos aos quatro irmãos, pelo que tal documento também nada prova quanto à suposta doação.
xci. Em suma, a prova documental que a Mmª Juiz concitou para fundamentar a sua decisão não passa de prova circunstancial, insuscetível de provar as declarações de vontade integradoras de uma doação, a saber: provar que os doadores, os três, de livre vontade, declararam doar tais vinhos e/ou provar que os supostos donatários, os quatro, declararam aceitar tal doação. Como a doação sem traditio só por escrito pode provar-se, forçosa é a conclusão de que inexiste prova escrita da mesma. Incorreta ponderação das regras do ónus da prova
xcii. A Mmª Juiz considera que a autora não fez prova da inexistência da doação que havia sido invocada pela ré contestante na sua contestação, numa clara inversão das regras probatórias.
xciii. Outro erro no mesmo sentido se verifica quando a Mmª Juiz afirma que a autora teria de comprovar em juízo a continuação da titularidade dos vinhos nos seus proprietários e nos seus sucessores.
xciv. Provada que está a propriedade em nome dos primitivos comproprietários, presume-se a sua manutenção, cabendo à parte contrária que nisso tenha interesse, infirmá-lo – consoante ditam os comandos normativos: artº 1257º nº 2, artº 1255º, 1305º, 1311º, 1313º, 1405º nº2, todos do Código Civil.
xcv. Por outro lado, também as regras do ónus da prova ditam que basta à autora provar a propriedade dos seus antecessores, de quem é herdeira, para que seja a quem se lhe opõe que incumbe provar a transmissão do direito de propriedade: artº 1316º, conjugado com o artº 342º nº 2, ambos do Código Civil.
xcvi. Esta regra é válida tanto para a autora como para o corréu declarante OO, o qual, como herdeiro que é de uma herdeira direta dos primitivos proprietários, se presume contitular do direito de compropriedade, afigurando-se de todo desajustado afirmar que este declarante não logrou comprovar de forma concludente que a sua mãe era comproprietária dos vinhos.
xcvii. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo ofendeu as regras de aquisição da prova, pois a autora não tinha de apresentar nenhuma prova no sentido da inexistência de doação.
Por tudo exposto,
xcviii. O item 34º dos factos provados tem de ser eliminado, porque não há prova da doação que aí se refere, nem de que os supostos doadores declararam doar ou oferecer o que quer que fosse, nem que os donatários hajam declarado aceitar tal transmissão.
xcix. O item 37º dos factos provados tem de ser eliminado a partir da palavra “porque”, na medida em que: não se produziu a mínima prova sobre os supostos donatários não terem onde guardá-los; não foi a circunstância de estes se terem tornado mais tarde comproprietários da quinta onde estava o vinho e da comparticipantes no capital social da sociedade agrícola que determinou a presença contínua do vinho lá; aliás, foi abundante a prova no sentido de que foi a Sociedade Agrícola quem proibiu os vinhos de saírem de lá, quando a ré contestante quis ter acesso a ¼ dos mesmos, opondo-se mesmo a isso através da ação judicial que pendeu no Tribunal de Círculo ....
c. O item 38º dos factos provados tem de ser eliminado, porque os vinhos apenas tiveram tratamento diferenciado nas declarações anuais de existências a apresentar à Casa do ..., mais tarde, e a partir de data indeterminada, não tendo sido referido qualquer outro tratamento diferenciado relativamente aos vinhos que pertencem à Sociedade Agrícola Quinta da D....
ci. O item 39º dos factos provados tem de ser eliminado porque não consta das declarações de existências a identidade dos quatro supostos donatários, antes e apenas, na sua maior parte, a menção “BB.. e Irmãos” e/ou a menção “BB e outro(s)”, sem especificar quem os mesmos são, sendo certo que a Casa do ... não é nenhuma “autoridade”, contrariamente ao que aí se afirma.
cii. O item 41º dos factos provados tem de ser eliminado porque não foi feita a mínima prova quanto a este impedimento, posto que um deles faleceu nesse imputado ano de 1976, supostamente dois dias depois da assinalada data, outro faleceu três anos depois sem que haja notícia de que tenha sido impedido do que quer que fosse, e o último sempre esteve arredado dos negócios dos vinhos ao longo da sua vida, como o atestaram as testemunhas, não tendo sido afirmado por ninguém que tivesse tentado sequer dispor de vinhos alguns ao longo da vida, muito menos haja sido disso impedido.
ciii. O item 42º dos factos provados tem de ser eliminado porque não foi produzida nenhuma prova no sentido de que tenha mesmo ocorrido a alegada venda e que, a ter existido, o preço tenha revertido para os alegados quatro irmãos (nem prova testemunhal, nem declarações de parte, nem o único documento disponível atesta isso).
civ. O item 43º dos factos provados tem de ser eliminado porque é frontalmente contrário à prova produzida. Dos depoimentos de TT, UU e depoimento de parte do encarregado CC, resulta que quem assinava as declarações eram os gerentes encarregados da Sociedade Agrícola, e antes da Quinta, nomeadamente o próprio UU, o próprio CC e o próprio TT, enquanto gerente que foi, bem como a seguir pelos outros gerentes, não pelo FF (que quando muito poderá ter assinado nos primeiros anos, não existindo contudo prova concludente de que o fez). Verdadeiro é, portanto, apenas o item 44º e não o 43º.
cv. Os itens 45º e 46º dos factos provados têm de ser eliminados, porque são ostensivamente desconformes com a prova produzida. Exceção feita ao AA, que estaria convencido de que ¼ dos vinhos pertenciam aos herdeiros de seu pai. O UU, perguntado, afirmou que assim fazia apenas porque copiava declarações anteriores, não sabendo por que motivo as mesmas eram feitas assim, com aquele conteúdo. O TT afirmou que assim o fazia por exigência da Casa do ..., pois de outra forma a declaração de existências não seria aceite, posto que era assim que a conta-corrente estava na origem e as declarações tinham que “bater certo” com o que constava do a conta-corrente da Casa do ... relativa aos vinhos da D....
cvi. O item 47º dos factos provados tem de ser eliminado porque não resultou provado. Tal como referiu a testemunha UU, só depois de ele ter começado a trabalhar lá (em 1999, portanto), anos depois, é que as declarações de existências foram mudadas. Não é exato, portanto, que sempre fossem assim há mais de 30 anos.
cvii. O item 64º dos factos provados tem de ser eliminado, na medida em que não é certo nem se provou que a autora esteja convicta de que aqueles vinhos eram propriedade do seu pai na proporção de ¼, pelas razões já sobejamente expostas. Quando a autora recebeu tornas no inventário por morte de seu pai, recebeu-as pela globalidade dos inúmeros e valioso bens constantes da relação de bens certificada nos autos, na qual consta uma contitularidade de vinhos que não sabia nem sabe serem os mesmos, aí relacionados como de posse controvertida, posto que não licitou em nenhuns bens, aceitou que todos os bens ficassem para quem os quis licitar, desinteressou-se totalmente do inventário e recebeu o valor que lhe coube em tornas, sem nada reclamar, ignorando, então como hoje, se neles estavam contabilizados os vinhos ajuizados nestes autos.
cviii. O item 65º dos factos provados deve ser eliminado porque é uma desnecessária contradição nos seus próprios termos, não faz sentido e não se consegue lobrigar qual o relevo do aí plasmado. Com efeito, afirmar que “os vinhos que se encontram em conta corrente dos quatro irmãos” são idênticos em litragens, ano de produção e tipologia, àqueles “que constam das contas correntes dos quatro irmãos” é uma redundância que não se consegue perceber. Só pode ser lapso, estamos em crer.
Considerações de Índole Jurídica:
cix. Não se pode aceitar que, muito embora esteja assente a matéria de facto constante dos Factos Provados sob os pontos 5 a 9 e 22, apesar de reconhecer que a autora invoca uma forma de adquirir legítima – que é a via sucessória –, e apesar de verificar que esses vinhos pertenciam às pessoas de quem a autora e os réus são sucessoras, a Mmª Juiz afirme que a autora teria de provar que os vinhos se mantêm na propriedade das heranças dos primitivos donos – o que considera não ter sido logrado, por assumir o Tribunal que os vinhos terão sido doados.
cx. A autora provou (aliás, não foram sequer contestados) os factos constitutivos do seu direito: provou a quem os vinhos pertenciam e provou a sua qualidade de herdeira, para invocar a transmissão por via sucessória daqueles para os atuais.
cxi. Sendo a sucessão uma forma legítima de adquirir – tal como a Mmª Juiz reconhece, expendendo até a esse propósito diversas considerações – a prova que a autora estaria obrigada a fazer mostra-se feita.
cxii. Ao afirmar a seguir que a única presunção de propriedade é a que resulta da posse, a Mmª Juiz dá a entender – embora nunca o chegue a afirmar ao longo da sentença – que considera que a posse dos vinhos, no momento atual, é dos quatro irmãos a quem supostamente teriam sido doados.
cxiii. Mas resulta de todos os depoimentos, bem como da postura das partes perante essa questão, e ainda dos factos provados, que os quatro irmãos supostos donatários nunca estiveram na posse de tais vinhos. E indiscutivelmente não estão na posse de tais vinhos!
cxiv. Durante as duas primeiras décadas do século atual, sucederam-se ações judiciais atinentes a estes vinhos, tendo os mesmos permanecido sempre à guarda da Sociedade Agrícola Quinta da D..., de forma ininterrupta, até aos dias de hoje.
cxv. Para que os supostos donatários tivessem a posse de tais vinhos, haveria de ter ocorrido (ser alegada e comprovada, que não foi...) uma inversão do título de posse.
cxvi. Ademais, não pode haver inversão do título de posse entre herdeiros de uma mesma herança.
cxvii. Não existe, não está alegado, nem consta dos autos, nenhum ato de posse material dos supostos donatários, exercido ou não contra os demais herdeiros daquelas heranças, que possa significar uma intenção de posse.
cxviii. Nesta medida, nunca pode falar-se de posse dos quatro irmãos supostos donatários, porque ela não existiu – sendo certo que a Mmº Juiz também a não afirma, mas serve-se implicitamente dela, ao referi a posse da litragem, por estar inscrita na conta-corrente da Casa do ....
cxix. Só que os vinhos são coisas corpóreas, cuja apreensão material tem de ser demonstrada por quem a invoca, ou quem quer dela prevalecer-se em sede de direito possessório.
cxx. Contrariamente ao que conclui a Mmª Juiz relativamente a esse primeiro argumento (da prova efetiva da propriedade dos vinhos) não existindo presunção decorrente do registo, por não se tratar de bens sujeitos a registo, e não beneficiando os supostos donatários de presunção decorrente da posse, tem de presumir-se legalmente que os bens pertencem aos seus donos primitivos (comprovados) e, por morte destes, aos seus sucessores, na sua globalidade.
cxxi. A autora, para reivindicar o direito de propriedade para as heranças de que é herdeira, pode fazê-lo a todo o tempo, bastando comprovar que é sucessora dos primitivos proprietários, entretanto falecidos – artº 1311º nº 1 e artº 1313º do Código Civil.
cxxii. E a autora pode valer-se para tal da posse dos seus antecessores, sem carecer de demonstrar que está ela própria na posse dos bens, conforme estabelece o artº 1255º do Código Civil.
cxxiii. A Mmª Juiz considera a questão da doação não apenas como matéria de exceção, na medida em que a utiliza para a partir daí inverter o ónus da prova, ao considerar que seria a autora quem teria de comprovar a inexistência da doação, como requisito para lograr comprovar o seu direito (rectius: o direito dos herdeiros).
cxxiv. Não podemos de forma nenhuma sufragar esta tese, que constitui aliás uma manifesta surpresa e uma questão nova, introduzida no processo em sede de sentença et pour cause.
cxxv. A regra probatória é a do artº 342º do Código Civil, segundo a qual aquele que invoca o direito prova os factos que o constituem, incumbindo à contraparte a prova dos factos impeditivos desse direito.
cxxvi. Consta dos factos provados da ação que pendeu no Tribunal de Círculo ..., cuja certidão foi ora junta, na respetiva “especificação”, alínea L) que, na assembleia-geral da Sociedade Agrícola de 27/01/1996 o representante da herança do FF junto da sociedade, o CC, propôs que a sociedade reconhecesse que a sociedade tinha à sua guarda o ajuizado vinho.
cxxvii. E consta da subsequente alínea M) da especificação que a Sociedade, em assembleia-geral, deliberou maioritariamente não reconhecer a propriedade daqueles vinhos aos titulares indicados (aos supostos donatários) e não autorizar o levantamento desses vinhos pelos mesmos.
cxxviii. Daqui decorre que, pelo menos desde 1996, tais vinhos estão na posse da Sociedade Agrícola, a qual se recusa a entregá-los, sendo portanto falso que os supostos donatários estejam na posse desses vinhos.
cxxix. Como tal, essa posse – que a Mmª Juiz não chega a afirmar, mas que utiliza para através dela pretender que é a autora quem tem de provar a manutenção até aos dias de hoje da propriedade dos primitivos donos – pura e simplesmente não existe.
cxxx. Mesmo que houvesse de provar a inexistência da doação – no que se não concede de forma alguma – a autora comprovou que não existiu transmissão de propriedade por doação, não existe documento que a comprove, e nem existe prova testemunhal da tradição, entendida esta como a transmissão do corpus, com animus possedendi, por parte do transmissário.
cxxxi. A doação de bens móveis sem tradição só pode ser operada por declaração escrita do doador, que neste caso inexiste.
cxxxii. Tal como inexiste (decorre também, e com mais segurança ainda, da sentença da certidão ora junta) qualquer documento que haja servido de suporte à inscrição dos vinhos na Casa do ... em nome dos pretensos donatários.
cxxxiii. Estamos, portanto, perante uma pretensa doação verbal, sendo que a própria Mmº Juiz o admite, exarando-o na sentença.
cxxxiv. Porém, tendo a doação de ser obrigatoriamente declarada por escrito, a prova dessa doação também só por declaração escrita poderia ser feita.
cxxxv. A existência de escrito constitui também, simultaneamente, uma formalidade ad probationem, querendo isto significar que, não tendo sido oferecido o título, este não pode ser substituído por depoimento testemunhal, muito menos por declaração de parte interessada.
cxxxvi. É errada a afirmação, que consta a dado passo da sentença, segundo a qual a doação é um negócio consensual, invocando o Tribunal a favor deste entendimento o artº 219º do Código Civil, mas esquecendo por completo a exigência do artº 947º do mesmo diploma.
cxxxvii. Quanto à posse, a Mmª Juiz justifica essa posse com a circunstância de as litragens de vinho estarem inscritas na Casa do ... a favor dos pretensos donatários, acompanhada da circunstância de os mesmos vinhos estarem armazenados separadamente na Quinta ..., afirmando, sem se perceber porquê, que nunca houve oposição a esta posse.
cxxxviii. À luz do conceito jurídico de posse, não tem fundamento considerar a existência de posse, sem apreensão material da coisa, apenas porque existe uma conta-corrente da casa do ... que contém a inscrição de litragens de vinho generoso guardadas em nome dos pretensos donatários.
cxxxix. Mesmo descurando a circunstância de a Quinta ... nunca reconhecer essa suposta pretensão manifestada pela herança de ¼ dos vinhos, o simples facto de os vinhos estarem guardados em pipas ou tonéis pertencentes à Sociedade Agrícola, donde nunca saíram, estejam ou não individualizados, é insuficiente para que possa considerar-se a existência do corpus da posse.
cxl. Com efeito, nunca houve tradição dos vinhos, porque estes estavam na Quinta ..., quando ela era propriedade dos três primitivos donos, continuaram nessa Quinta à medida que estes foram falecendo, dando lugar aos seus herdeiros, e passou depois para a titularidade da Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda., formada por um dos primitivos e pelos herdeiros dos demais.
cxli. Presume-se legalmente a posse naquele que exerce o poder de facto (artº 1252º nº 2 do Código Civil), sendo certo que não existe nenhum facto que ateste, ou sequer que indicie, que os pretensos donatários exerceram qualquer poder de facto sobre tais vinhos.
cxlii. Aliás, quando um deles os reivindicou, foi frontalmente repelido, até por via judicial.
cxliii. Também a afirmação constante da sentença segundo a qual os pretensos donatários estariam na posse de tais vinhos desde 1976, ininterruptamente, sem oposição e à vista de todos, nomeadamente da autora, mas também de outros herdeiros, é absolutamente insustentada em quaisquer factos que hajam sido provados.
cxliv. Aliás, percorrida toda a extensa matéria fáctica que o Tribunal considerou provada, não se encontra aí uma única referência a posse pacífica, pública e continua dos pretensos donatários.
cxlv. E se quanto ao corpus da posse nenhuma matéria existe, muito menos existe quanto ao animus, inexistindo tanto o animus donandi como o animus accipiendi.
cxlvi. Ainda que se considerasse que no caso pudesse haver uma traditio ficta – a inscrição simbólica dos nomes dos alegados donatários na Casa do ... –, não existe qualquer prova de que a inscrição foi feita pelo punho de um dos alegados doadores.
cxlvii. Aliás, há prova em contrário do animus donandi, que atinge o seu expoente máximo na declaração por escrito, e seguidamente em juízo, de um dos próprios pretensos doadores, negando a doação.
cxlviii. Não se pode extrair dos autos o animus donandi que tem de acompanhar a traditio.
cxlix. Ou seja, para a transferência da posse dos pretensos doadores para os pretensos donatários não bastaria a tradição material – já de si inexistente – mas seria ainda preciso comprovar a intenção dos pretensos doadores, de todos eles, de transferir juridicamente a propriedade de parte dos seus vinhos para terceiros, de forma gratuita – esta também completamente inexistente nos presente autos.
cl. Não havendo, como não há, nem nunca houve, posse exclusiva (passe a redundância...) dos pretensos donatários, nunca poderia ocorrer a usucapião de que fala Mmª Juiz.
cli. A sentença em apreço violou diversas normas de direito substantivo, designadamente: quanto à posse, interpretou e aplicou indevidamente os artigos 1251º, 1252º nº 1, 1257º, 1258º a 1262º, todos do Código Civil, abstendo-se de aplicar, como devia, o artº 1255º, 1311º e 1313º, todos do mesmo diploma; e aplicou indevidamente o artº 342º nº 1 e nº 2 e o artº 219º, ambos do Código Civil, deixando de atender, como devia, ao artº 947º nº 2 do Código Civil, no respeitante à análise da suscitada doação; e ainda violou o artº 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
Quanto à litigância de má-fé
clii. Para que ocorra má-fé é preciso que a inveracidade seja clara e que a falta de razoabilidade da pretensão formulada seja ostensiva.
cliii. A autora não sabia, não tinha como saber, e ainda hoje não sabe, estando até convicta do contrário, se os vinhos relacionados no inventário por óbito de seu pai têm qualquer correspondência com os vinhos ajuizados nos presentes autos.
cliv. Tal como consta da sentença do processo do Círculo de ..., esses vinhos não foram relacionados na primitiva relação de bens para efeitos de processo de imposto sucessório por óbito de seu pai, em 1991.
clv. E quando, muitos anos depois, vieram a ser relacionados no inventário, em 1999, foram aí descritos como bens litigiosos, ou pelo menos controvertidos, mencionando-se na relação de bens que a Sociedade Agrícola Quinta da D... os detinha e recusava entregá-los à cabeça de casal.
clvi. Decorre depois, da sentença desse processo de ..., que a herança de seu pai não logrou provar a existência e propriedade de tais vinhos.
clvii. A autora nunca aceitou que esses vinhos relacionados no inventário pertencessem em ¼ a seu pai, antes sempre entendeu que tais vinhos pertenciam aos primitivos donos, pelo que não podia aceitar que esses vinhos fossem os relacionados no inventário de bens do seu pai.
clviii. Em coerência, a autora reclamou o relacionamento desses vinhos no último inventário que pende por óbito de seu tio YY, cumulado com o inventário do seu tio-avô PP, que ainda se encontra pendente.
clix. E não é despiciendo referir que, como aliás consta da sentença e dos Factos Provados, o Ministério Público assumiu a mesma posição da autora – o que por si só afasta a possibilidade de esta posição estar eivada de qualquer má intenção.
clx. A própria remessa da questão para os meios comuns, de que este processo é o corolário lógico, arreda qualquer possibilidade de má-fé na pretensão formulada, que se afigura medianamente plausível e sustentável.
clxi. Atento o exposto, mostra-se assaz infundada a condenação da autora como litigante de má-fé – a qual deve, portanto, ser revogada, independentemente do desfecho que venha a ser conferido à lide.
TERMOS EM QUE DEVE SER REVOGADA IN TOTUM A SENTENÇA RECORRIDA, substituindo-a por acórdão que julgue a ação procedente.»
*
Os Réus BB e CC apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
**

1.4. Questões a decidir

Em conformidade com o disposto nos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC), as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, restrição que não opera relativamente a questões de conhecimento oficioso.
Por outro lado, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente suscitadas pelas partes, sendo o seu objeto em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Neste enquadramento, constituem questões a decidir:

i) Admissibilidade da junção de documento às alegações;
ii) Valoração de “prova que não foi legalmente admitida”;
iii) Violação do “artº 466º do CPC” e “ainda [d]o artº 452º nº 2 do CPC”;
iv) Não cumprimento dos “requisitos legais a que o requerimento de produção de prova por declarações de parte deve obedecer, nomeadamente, o dever indicar no requerimento os factos pessoais a que pretende depor”;
v) Erro no julgamento da matéria de facto;
vi) Prova dos factos constitutivos do direito invocado pela Autora;
vii) Incorreta ponderação das regras do ónus da prova;
viii) Inexistência de tradição e falta de prova de que a doação foi celebrada por escrito; 
ix) Falta dos requisitos para aquisição por usucapião;
x) Litigância de má-fé.
***

II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

«1. Existe um conjunto de vinhos generosos que se encontram inscritos no IVDP em nome de BB e outros, e que se encontram depositados em 4 cubas seladas pelo IVDP, depositadas na Quinta ....
2. O direito de propriedade sobre tais vinhos, ou sobre uma parte determinada de tais vinhos, já foi discutido em várias ações judiciais, nomeadamente:
a. Processo ordinário nº 186/99 do Tribunal Judicial ...;
b. Processo ordinário nº 336/14.... (ex-processo ...) da instância local, secção de competência genérica ...;
c. inventário nº ...4... da instância local, secção de competência genérica ....
3. Neste último processo, de inventário, por despacho de 2 de maio de 2017, devidamente transitado em julgado, foram os interessados remetidos para os meios comuns quanto a saber se as quotas indivisas de vinho aí relacionadas/reclamadas faziam parte do património dos inventariados à data do seu decesso.
4. São antecessores da autora e de todos os réus, PP, falecido em .../.../2000, CC, falecido em .../.../1976 e QQ, falecido em .../.../1979. 5. Estes três falecidos antecessores de autora e réus eram irmãos, todos filhos de CC e AA.
6. Exploravam quintas com vinhas na zona do ..., das quais extraíam anualmente vinho generoso.
7. Os vinhos em causa, em 1975, encontravam-se distribuídos por vasilhame existente na denominada Quinta ..., no lugar da D..., da freguesia ..., do Concelho ..., dentro da região demarcada de Vinho do Porto.
8. Tal quinta pertencia aos três referidos irmãos, que ainda eram vivos.
9. Nessa altura, tais vinhos encontravam-se manifestados na Federação dos Viticultores da Região do ... (CASA DO ...) em nome dos três indicados irmãos.
10. O referido PP faleceu intestado em .../.../2000, no estado de viúvo e sem filhos nem ascendentes sobrevivos.
11. O referido CC faleceu intestado em .../.../1976, no estado de solteiro e sem filhos nem ascendentes sobrevivos.
12. O referido QQ faleceu intestado, em .../.../1979, no estado de viúvo de RR e do seu casamento nasceram seis filhos:
a. BB
b. CC
c. BB
d. CC
e. NN (aqui 17ª ré)
f. PP.
13. A 1ª ré BB foi casada com ZZ, sob o regime de comunhão geral de bens.
14. Falecido este ZZ em .../.../1977, deixou como seus herdeiros a viúva e os seguintes filhos do casal de ambos:
a. BB (aqui 2ª ré)
b. BB (aqui 3ª ré)
c. ZZ.
15. Este último - ZZ – faleceu no dia .../.../2018, no estado de solteiro e sem descendentes, deixando como sua única herdeira sua mãe, a aqui 1ª ré BB.
16. O aludido CC faleceu em .../.../1991, no estado de casado com BB (aqui 4ª ré), deixando como herdeiros a viúva e seus cinco filhos:
a. AA (aqui autora);
b. CC (aqui 5º réu);
c. DD (aqui 6ª ré);
d. EE (aqui 7º réu);
e. FF (aqui 8º réu).
17. A aludida BB faleceu em .../.../1998, no estado de casada com AAA, sob o regime de separação e bens, deixando como herdeiros os seus três filhos:
a. GG (aqui 9º réu);
b. HH (aqui 10ª ré);
c. II (aqui 11º réu).
18. O CC faleceu em .../.../2012, no estado de casado com JJ, deixando como herdeiros a viúva (aqui 12ª ré) e seus quatro filhos:
a. KK (aqui 13º réu);
b. LL (aqui 14º réu);
c. MM (aqui 15º réu);
d. CC (aqui 16º réu);
19. A NN (aqui 17ª ré) foi casada, em primeiras e únicas núpcias de ambos, sob o regime de comunhão geral de bens, com BBB, que, entretanto, veio a falecer intestado em 03/01/2004.
20. Deste último casamento nasceram dois filhos:
a. CCC (aqui 18ª ré);
b. OO (aqui 19º réu).
21. O PP faleceu em .../.../2011, no estado de solteiro, sem filhos, nem ascendentes sobrevivos, intestado e interdito, tendo o seu óbito dado origem ao inventário nº ...4... acima referido.
22. Assim, além da autora e dos réus, não há mais ninguém que prefira ou possa concorrer na sucessão por óbito dos aludidos PP, CC e QQ.
23. Os vinhos em causa nos autos são o que resta atualmente dos vinhos que os mesmos possuíam em 1975, posto que o remanescente, ou foi alienado no decurso do tempo, ou foi alvo de evaporação natural.
24. Tais vinhos nunca foram partilhados pelos herdeiros dos três referidos irmãos PP, CC e QQ.
25. Tais vinhos permaneceram ininterruptamente guardados na Quinta ....
26. Por óbito de CC e QQ, correu termos o inventário nº ...5.
27. Contudo, os vinhos em causa nesta ação não foram descritos nem partilhados nesse inventário.
28. Ao patrocinar o interdito PP, no inventário por óbito deste, que corre termos pelo Juízo ... de ... ... sob o nº 7/79, apenso ao inventário ...5 (atual 336/14....), o Ministério Público veio requerer a partilha adicional de tais vinhos, originando que nos mesmo autos se viesse a cumular também o inventário pelo terceiro dos irmãos acima referidos, PP.
29. Mostra-se inscrito em documentação da Casa do ..., que em 1975, os referidos três irmãos eram proprietários e, por isso, com inscrição em conta-corrente na Casa do ..., de 314.733 litros de vinho generoso, sendo: 106.836 litros de vinho velho (VV, colheitas de 1932 a 1962), 57.294 litros da colheita de 1969, 116.816 litros da colheita de 1970 e 33.787 litros da colheita de 1972.
30. Em 09/09/1976 saíram desta conta-corrente as seguintes partidas de vinhos:
17.806 litros das colheitas de 32/62 (VV),
9.549 litros da colheita de 1969,
19.782 litros da colheita de 1970,
5.631 litros da colheita de 1972,
e 80 litros da colheita de 1974.
31. Está inscrito que esta saída teve o seguinte fundamento: “Transferência por oferta para BB e irmãos”.
32. Nessa sequência, na Casa do ..., foram abertas quatro contas correntes de vinhos generosos, constando como titulares, em comum e partes iguais, os seguintes quatro irmãos: BB (tia da A.), BB (tia da A.), CC (Pai da A.) e CC (tio da A.).
33. E estes são, todos eles, filhos do QQ e todos sobrinhos do M... e do PP.
34. Os três proprietários primitivos doaram a estes seus filhos e sobrinhos, que aceitaram, aquelas partidas de vinhos, em comum e partes iguais.
35. Nas contas correntes referidas, está inscrito o seguinte:
“Transferência por oferta de CC e PP: - colheita de 1972: 5.631 litros, - colheita de 1974: 80 litros, - colheita de 1970: 19.782 litros, - colheita de VV: 27.355 litros.”.
36. Esta litragem corresponde exatamente à que está anotada como transferência por oferta na conta-corrente de M..., CC e PP, apenas com a alteração de que o vinho generoso da colheita de 1969 foi considerado em VV e somado ao das colheitas de 32/64, ou seja: 17.806 + 9.549 = 27.355 litros.
37. Estes vinhos estavam depositados em armazéns da “Quinta ...”, em ..., deste Concelho ..., que, na altura era propriedade em comum do CC, do M... e do PP, e lá continuaram depositados até hoje, porque os donatários não tinham onde guardá-los e também porque, depois, eles mesmos se tornaram com outros comproprietários da quinta e, mais tarde, também proprietários dela por via da “Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda.”, de que são/eram sócios e a sociedade proprietária da quinta.
38. Estes vinhos passaram a ter tratamento diferenciado dos demais ali armazenados sobretudo no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as autoridades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do ....
39. Anualmente, a declaração de existências em armazém e respeitante àquelas litragens sempre foi emitida em nome destes quatro comproprietários como titulares delas e assim apresentadas perante aquelas autoridades.
40. E, ao menos, desde 1996 encontram-se em vasilhames próprios e separados dos demais vinhos armazenados.
41. Os anteriores proprietários, os três irmãos, ficaram impedidos de os transacionarem ou de deles disporem por qualquer forma.
42. Os novos proprietários passaram a deles disporem quando quisessem e pela forma que considerassem adequada, e até o fizeram, pois que em julho de 1979 venderam 3.053 litros de VV ao comerciante “M..., Lda.”.
43. As declarações anuais de existências perante a Casa do ... e depois perante as entidades que lhe sucederam, a CIRDD e o IVDP, foram tituladas por aqueles quatro irmãos (donatários) e assinadas pelo FF que, para este efeito, tinha procuração dos demais.
44. E, depois, assinadas por quem estava na administração, ou gestão corrente, da “Quinta ...”, nomeadamente o aqui corréu CC, o Sr. UU, encarregado geral da administração da quinta, ou a gerência da “Sociedade Agrícola da Quinta da D...”, NIPC ..., atual proprietária daquela.
45. Todos agindo desta forma por aceitarem que aqueles vinhos eram propriedade dos referidos quatro irmãos.
46. E, por isso, também cientes de que não eram propriedade conjunta dos proprietários dessa quinta e depois nem daquela sociedade que lhes sucedeu.
47. Os procedimentos supra descritos mantiveram-se inalterados até hoje, ou seja, por mais de 30 anos.
48. Por óbito do CC correu termos, com início após 1976, inventário judicial para partilha dos bens deixados e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.
49. Nenhum herdeiro acusou a sua falta de relacionação.
50. A partilha foi julgada por sentença que transitou em julgado.
51. Por óbito do M... também correu termos, com início após 1976, inventário judicial para partilha dos seus bens e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.
52. Também aqui nenhum herdeiro acusou a sua falta de relacionação.
53. A partilha foi julgada por sentença que transitou em julgado.
54. Por óbito do PP corre, agora, termos inventário judicial para partilha dos seus bens e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.
55. A aqui Autora, sobrinha-neta do inventariado, veio acusar a falta de relacionação deles.
56. Por falecimento do Pai da autora, CC, que era um dos donatários referidos, correu termos pelo Tribunal ... o processo de inventário para partilha dos respetivos bens e que teve início em 15/03/1999, depois renumerado para processo de inventário nº 321/14.... do Juízo de Competência Genérica ... - J..., deste Tribunal da Comarca ....
57. Nele foi relacionado sob o nº 08 o seguinte bem:
Um quarto indiviso de 49.795 litros de Vinho Generoso do ..., registados na Federação dos Vinicultores da Região Demarcada do ... (Casa do ...) em nome do Inventariado e de BB, DDD e CC à guarda da Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda. e que esta se recusa a entregar à herança no valor estimado de Esc. 6.224.375$00.
58. Trata-se das mesmas partidas/litragens de vinhos doadas e supra, referidas com um diferencial dos 3.053 litros de VV que foram transacionados para a empresa “M..., Lda.”.
59. A Autora não requereu a exclusão desta verba da herança deixada por seu Pai.
60. Na conferência de interessados, a mesma foi licitada em comum e parte iguais pela aqui Ré/contestante (mãe da A.), e por EE, FF e CC, todos de apelido AA, e todos irmãos da A., e pelo valor de Esc. 6.300.000$00.
61. Consta do mapa de partilha que a Autora ficou credora de tornas a pagar pelo FF e pelo montante de 23.409,08 €, e de mais 66.065,54 € a pagar pelo CC.
62. Quantias estas que, efetivamente, foram pagas por depósito no processo e que a Autora recebeu.
63. O mapa de partilha foi homologado por sentença que transitou em julgado.
64. A Autora está certa de que aqueles vinhos eram propriedade na proporção de um quarto ( ¼ ) de seu falecido Pai, aceitou entrar na partilha dos bens por este deixados e neles incluir aquele ¼, recebeu tornas dos demais interessados e nelas estando contabilizado o valor daqueles vinhos.
65. Os vinhos que se encontram em conta corrente dos quatro irmãos têm as litragens, as tipologias e o ano de produção que constam das contas correntes dos quatro irmãos – BB, BB, FF e CC.
66. Por falecimento, em .../.../1977 de ZZ, a cabeça de casal, a sua viúva e aqui Ré BB, relacionou perante a Repartição de Finanças e para efeitos de liquidação do respetivo imposto sucessório, o ¼ que o casal tinha naqueles vinhos.»
*

2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
«- O conjunto de vinhos generosos que se encontram inscritos no IVDP em nome de BB e outros, são das seguintes colheitas e litragens:
a. 11.900 litros de vinho generoso da colheita de 1944
b. 4.365 litros de vinho generoso da colheita de 1951
c. 20.760 litros de vinho generoso da colheita de 1970
d. 8.348 litros de vinho generoso da colheita de 1972.
- Esse conjunto de vinhos é pertença, em comum e sem determinação de parte ou direito, dos herdeiros dos três primitivos proprietários.».
**

2.2. Questão prévia - do documento junto às alegações

Com as suas alegações, a Recorrente apresenta uma «certidão extraída do dito processo de ..., que é o processo nº ...9 do ... Juízo do Tribunal ..., que teve origem no processo nº ...6 do extinto Tribunal de Círculo ..., no qual foi autora a Herança de CC, representada pela cabeça de casal – a aqui ré contestante BB – e foi ré a Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda.», integrando «Despacho saneador, Resposta aos quesitos, Sentença de 1ª instância e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, devidamente transitado em julgado em 13/12/1999».
Pretende com aquela junção provar «que pelo menos desde 1996 tais vinhos estão na posse da Sociedade Agrícola, a qual se recusa a entregá-los. Portanto, é falso que os supostos donatários estejam na posse desses vinhos. Como tal, essa posse – que a Mmª Juiz não chega a afirmar, mas que utiliza para através dela pretender que é a autora quem tem de provar a manutenção até aos dias de hoje da propriedade dos primitivos donos – pura e simplesmente não existe.»
Sustenta que apenas na sentença se acolhe «o entendimento segundo o qual à autora caberia provar que tais vinhos não se encontram na posse dos supostos donatários e não foram alvo de doação», pelo que «a Mmª Juiz introduziu uma questão nova, que torna indispensável a junção aos autos de um novo documento, nos termos em que o permite o artº 651º nº 1 in fine do Código de Processo Civil».

Vejamos se é admissível a junção de tal documento com as alegações.
Os documentos destinam-se a demonstrar a realidade dos factos – artigo 341º do Código Civil. Como são meios de prova de factos, devem ser apresentados, em regra, com o articulado em que se alegam os factos que constituem os fundamentos da ação ou da defesa, tal como exige o artigo 423º, nº 1, do CPC. Portanto, as partes devem juntar logo ao articulado o documento comprovativo do facto alegado, mas essa não é uma regra preclusiva.
Posteriormente, nos termos do nº 2 do artigo 423º do CPC, podem ainda ser apresentados até 20 dias antes da data da audiência final, sujeitando-se a parte ao pagamento de multa, salvo se a apresentação extemporânea for considerada justificada. Depois desse momento e até ao encerramento da discussão em 1ª instância, só é admitida a junção se o documento for objetiva ou subjetivamente superveniente (documento que apenas foi produzido posteriormente ao apontado limite de 20 dias antes da audiência final ou que apenas veio ao conhecimento da parte após aquele momento), se tiver ocorrido um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva ou em caso de ocorrência posterior que tenha tornado necessária a sua apresentação – artigo 423º, nº 3, do CPC.

Na fase de recurso, a junção de documentos reveste natureza excecional. É isso que resulta do nº 1 do artigo 651º do CPC, onde se estabelece que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. Nos termos do artigo 425º do CPC, depois de encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, isto é, que sejam objetiva ou subjetivamente supervenientes ao encerramento da discussão em 1ª instância. A impossibilidade de apresentação anterior ao momento do encerramento da discussão em 1ª instância pode resultar de:

a) o documento se ter formado posteriormente, mas referir-se a facto já anteriormente alegado;
b) a parte só posteriormente ter tido conhecimento da existência do documento (o documento apenas veio ao conhecimento da parte após aquele momento);
c) ocorrência de um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva;
d) o facto probando ser posterior ao encerramento da discussão.

No caso vertente, não ocorre nenhuma das suprarreferidas situações de natureza excecional que permitem a instrução documental com as alegações de recurso.
Desde logo, não foi invocada a impossibilidade de apresentação do documento até ao encerramento da discussão em 1ª instância. Trata-se de uma certidão judicial relativa a um processo cuja última decisão – o acórdão da Relação do Porto – transitou em julgado a 13.12.1999, pelo que não é objetivamente superveniente. Mas também não pode ser considerado subjetivamente superveniente, pois a Recorrente não invocou que só teve conhecimento da existência do processo após o encerramento da discussão em 1ª instância; aliás, o processo foi referido por diversas vezes durante a audiência de julgamento e a própria Autora invoca-o no artigo 2º, al. a), da petição inicial (referindo-o como «Processo ordinário nº 186/99 do Tribunal Judicial ...). De igual forma, não se descortina, nem foi alegado, um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva. Finalmente, o facto probando não é posterior ao encerramento da discussão na 1ª instância.

Resta apurar se a junção se tornou necessária devido ao julgamento proferido na 1ª instância.
Para o efeito, é necessário determinar o que o artigo 651º, nº 1, do CPC pretendeu significar com «junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância».
No nosso entendimento, para que esteja verificada a previsão da norma é necessário que a decisão recorrida contenha elementos de novidade, isto é, que tenha sido absolutamente surpreendente para o apresentante do documento, face ao que seria de esperar em face dos elementos do processo. Quando a questão se coloque no plano do resultado probatório a que chegou o tribunal de 1ª instância, é indispensável, para que se admita a junção do documento, que o julgamento proferido seja inovatório e imprevisível em face dos elementos probatórios recolhidos no âmbito do processo, seja por na sentença se formular uma exigência probatória com que razoavelmente não se podia contar ou por se sustentar a necessidade de provar facto cuja relevância não tinha sido equacionada em face da forma como foram expostos os fundamentos da ação ou da defesa ou da delimitação do objeto factual relevante efetuada pelo tribunal.
Em geral, a jurisprudência tem considerado que o aludido pressuposto ocorre nos casos em que o resultado expresso na sentença se mostra assente em meio probatório não oferecido pelas partes – como é o caso de meio de prova cuja produção foi oficiosamente determinada pelo tribunal, em momento processual em que já não era possível à parte carrear para os autos o documento –, em facto novo oficiosamente cognoscível ou em solução de questão de direito nova[1] (por exemplo, quando se fundou em preceito jurídico ou interpretação do mesmo, com a qual a parte que ora se apresenta a recorrer não podia justificada e razoavelmente contar).
Porém, ao referir-se ao caso de a junção só se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida»[2].
Como limite excludente, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a considerar que «não é admissível a junção com a alegação de recurso de um documento que, ab initio, já era potencialmente útil à apreciação da causa»[3]. Isto porque o regime do artigo 651º, nº 1, do CPC não abrange a hipótese de a parte pretender juntar às alegações documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. Dito de outra forma, não é admissível a junção, na fase de recurso, de documentos para provar factos (ou fazer a contraprova destes) que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova.
Em suma, se o documento era necessário ou útil para fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa antes de ser proferida a decisão recorrida e se esta se baseou nos meios de prova com que as partes razoavelmente podiam contar, não se pode dizer que a necessidade de junção do documento com as alegações ocorre em virtude do julgamento realizado pela 1ª instância.

Ora, na base da presente ação, como bem salientou a Autora no artigo 32º da petição, está «a divergência sobre a propriedade de tais vinhos levou – como supra se alegou – a que as partes fossem remetidas para os meios comuns quanto ao direito de propriedade sobre tais vinhos», os quais, segundo também o alegado no artigo 27º da p.i., têm «permanecido ininterruptamente guardados na Quinta ...».
Na contestação da Ré BB foi alegada a doação dos vinhos e a respetiva tradição para os donatários. Alegou que «a transferência entre os três irmãos doadores e os quatro irmãos donatários (a tradição) operou-se por via da inscrição na Casa do ... daquelas litragens em nome dos donatários BB, BB, FF e CC, todos de apelido familiar AA» (art. 16º), que era «esta inscrição o verdadeiro título representativo da posse e propriedade daqueles vinhos» (art. 17º), que os «anteriores proprietários, os três irmãos, ficaram impedidos de os transaccionarem ou de deles disporem por qualquer forma» (art. 18º) e que os «novos proprietários passaram a deles disporem quando quisessem e pela forma que considerassem adequada, e até o fizeram pois que em Julho de 1979 venderam 3.053 litros de VV ao comerciante “M..., L.da”» (art. 19º). Além disso, no artigo 26º, invocou a aquisição dos vinhos por usucapião («se não fora, mas foi, aquela doação, os quatro irmãos, depois continuados por seus herdeiros, adquiriram estes vinhos por usucapião que invocam», depois de ter alegado anteriormente os respetivos pressupostos factuais.
Mais, para que não haja dúvidas, a Autora, na réplica, alegou expressamente que «[j]amais o saudoso FF ou qualquer dos irmãos esteve na posse de tais vinhos, porquanto estes sempre estiveram na posse daqueles PP, CC e QQ, armazenados na sua Quinta ... e depois, após a criação da Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda., aí permanecendo guardados» (art. 24º). Acrescentou no artigo 35º daquela peça processual: «Não houve nenhuma usucapião desses vinhos, não só porque eles nunca foram validamente reivindicados por nenhum dos supostos donatários nem por seus herdeiros, como também porque estes nunca estiveram na posse ou detenção material de tais vinhos, nem jamais se arrogaram a sua posse e, muito menos, a sua propriedade.»
Portanto, as questões relativas à propriedade, doação e tradição dos vinhos, incluindo a usucapião, com todas as suas repercussões no plano do direito, estão suscitadas no processo desde os articulados e foram intensamente discutidas na audiência final. Por isso, não foi apreciada uma questão de direito verdadeiramente nova, mas sim matéria que integrava o objeto do processo, e a sentença não contém qualquer elemento de novidade. As apontadas questões, mal ou bem, o que a seu tempo se verá, foram decididas da forma que a Ré BB defendeu na contestação. Em todo o caso, sempre se dirá, desde já, que, diferentemente do preconizado na sentença, não competia à Autora «a prova de que os vinhos em causa se mantêm propriedade das Heranças dos três primitivos donos» (é a própria sentença que se refere aos «três primitivos donos» dos vinhos, cuja primitiva propriedade dá por adquirida, com plena correspondência na matéria de facto), ou, não tendo a doação sido reduzida a escrito, que não se operou a tradição para os donatários. Pelo contrário, uma vez demonstrado quem eram os primitivos proprietários dos vinhos (o que desde logo estava assente devido à posição assumida pelos Réus), cabia aos Réus provar a existência da doação, enquanto matéria de exceção. O mesmo se diga da tradição da coisa (litragens de vinho generoso), em conformidade com o disposto no artigo 947º, nº 2, do Código Civil, e dos factos de suporte à aquisição por usucapião.
In casu, o documento ora junto já era, desde os articulados, potencialmente útil à apreciação da causa e poderia ter sido apresentado em 1ª instância. Por isso, a junção do documento não se tornou necessária em virtude do julgamento realizado pela 1ª instância.
Não se encontrando verificada a previsão da norma do artigo 651º, nº 1, do CPC, não pode ser admitida a pretendida junção daquele documento.
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2.3. Questões i), ii) e iii) – conclusões i. a xviii.
Alega a Recorrente, na motivação das suas alegações: «Ocorreu um conjunto de erros processuais, que determinaram desvios à normal e legal produção de prova e levaram à consideração de depoimentos que não poderiam ser produzidos, os quais incidiram sobre matérias que não lhes competia depor, e que foram valorados de forma que contende com as regras de apreciação da prova».
Sustenta que no «decurso da segunda sessão de julgamento, violando todas as regras processuais, o Tribunal desatou a ouvir, em narrativas do tipo das declarações de parte, todos os réus que aí se apresentaram para prestar depoimento de parte, mesmo não tendo estes contestado, nada tendo alegado, e não tendo sido indicada a matéria sobre a qual iriam ser ouvidos». No final, «o Tribunal estribou a sua convicção nessas insólitas, inusitadas e ilegalmente permitidas “declarações de parte”, produzidas sobre factos que nem sequer podem considerar-se factos pessoais dos respetivos declarantes, violando desta forma as regras processuais de aquisição da prova».

Como ponto de partida, verifica-se na gravação da audiência final que os Réus depoentes, mesmo os dois que depuseram na sessão de 27.04.2022, foram ouvidos sobre a generalidade das questões factuais em discussão nos autos e não apenas sobre os factos objeto do respetivo depoimento de parte (matéria indicada por quem requereu a diligência). Não resulta da acta ou da gravação qualquer elemento que permita afirmar inequivocamente o motivo que levou a que os depoentes tenham prestado esclarecimentos e declarações de forma tão ampla. Sobre essa matéria apenas consta, da acta da sessão de 04.07.2022, que «o Ilustre Mandatário Dr. EEE, pediu a palavra e no uso da mesma requereu também as declarações de parte dos réus que vão prestar depoimento de parte», sem que se tenha consignado a posição tomada pelos demais Mandatários ou o despacho proferido sobre tal requerimento, sendo certo que na gravação não consta a manifestação de qualquer oposição ao assim requerido. Sabe-se apenas que, a partir daí, na epígrafe que antecede a identificação da parte depoente passou a fazer-se constar «DEPOIMENTO/DECLARAÇÕES DE PARTE». Aquando da prestação do depoimento de parte do Réu KK, cerca dos 13:05, ouve-se um Exmo. Mandatário a indicar os factos a que esse depoente deve prestar declarações de parte, situação que se repetiu relativamente aos depoentes subsequentes (por exemplo, relativamente a CC aos 17:25). Também se ouve na gravação que todos os Mandatários passaram a aludir a declarações de parte, e não apenas a depoimentos de parte, e que formularam aos Réus as perguntas e pedidos de esclarecimentos que bem entenderam, sem qualquer restrição.
Tanto a Recorrente como os Recorridos ensaiam explicações, não inteiramente coincidentes, para o sucedido, conforme se pode ver nas alegações e nas contra-alegações. Num ponto estão de acordo: além dos depoimentos de parte, também foram prestadas declarações de parte.
Nada constando dos registos (acta e gravação), não poderemos ficcionar uma realidade que não está demonstrada pelo meio próprio e apto a demonstrá-la. Apenas releva que os Réus depoentes abordaram questões factuais relativamente às quais não tinha sido requerido o respetivo depoimento de parte. Portanto, acabaram por efetivamente prestar declarações de parte.

Deste inequívoco facto a Recorrente, se bem interpretamos, retira três corolários:

a) A sentença valorou “prova que não foi legalmente admitida”;
b) Foram violados os artigos 466º e 452º, nº 2, do CPC;
c) Não foram cumpridos os “requisitos legais a que o requerimento de produção de prova por declarações de parte deve obedecer, nomeadamente, o dever indicar no requerimento os factos pessoais a que pretende depor”.

Sendo certo que não se mostra arguida a falsidade da acta, para a boa apreciação destas questões releva que em momento algum, anterior à interposição do recurso, qualquer parte se manifestou contra a circunstância de os Réus estarem a ser ouvidos de modo materialmente amplo, em declarações de parte. Não consta do processo a manifestação de qualquer oposição, reclamação ou de outra forma de impugnação. Tudo decorreu de forma inteiramente consensual.
Assim sendo, mostra-se precludida a possibilidade de apreciação de tais questões no âmbito deste recurso. Não foram objeto de reclamação e nenhum despacho – suscetível de reponderação em via de recurso – incidiu sobre tal matéria.
Em todo o caso, sempre se dirá, em primeiro lugar, que não está demonstrada qualquer violação do disposto nos artigos 466º e 452º, nº 2, do CPC. Não consta da acta qualquer requerimento formulado sobre a prestação de declarações de parte, pelo que é destituído de sentido considerar que o pretenso requerente não cumpriu o ónus de indicação discriminada dos factos sobre que deveria recair.
Em segundo lugar, não constando da acta um requerimento de produção de prova por declarações de parte, obviamente que fica prejudicada a possibilidade de apurar sobre o cumprimento de qualquer requisito legal relativo a um tal requerimento.
Em terceiro lugar, a parte pode no mesmo processo prestar declarações de parte e depoimento de parte, isto é, ser ouvida em qualidades distintas – na qualidade de declarante e de depoente –, para prova de factos distintos. Se a parte for ouvida na qualidade de depoente, sê-lo-á para prova de factos que lhe são desfavoráveis; se for ouvida como declarante, sê-lo-á para prova de factos que lhe são favoráveis, sem prejuízo de poder emergir das declarações uma confissão, como admite o nº 3 do artigo 466º do CPC[4].
Em quarto lugar, se é certo que, ao abrigo do nº 1 do artigo 466º do CPC, «as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto», também não é menos seguro que ao abrigo do princípio geral da cooperação plasmado no nº 2 do artigo 7º do CPC, «o juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes e mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes». Mais, o juiz pode oficiosamente realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade (art. 411º do CPC) e que as partes têm o dever de responder ao que lhes for perguntado para tal finalidade (art. 417º, nº 1, do CPC). Também, nos termos do artigo 452º, nº 1, o juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para «a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à discussão da causa». Prestados esses esclarecimentos, serão tais declarações apreciadas livremente pelo tribunal, ex vi do nº 3 do artigo 466º do CPC. Quer dizer, o tribunal que determina a prestação de esclarecimentos deve considerar estes, em tudo o que não tenha carácter confessório, como uma declaração de parte e valorar livremente esta declaração, o que redunda no dever de valorar os factos favoráveis alegados pela parte chamada a responder sobre determinado facto em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.
Mais, nada impede que o tribunal determine oficiosamente a prestação de declarações de parte[5], o que tem fundamento legal bastante no artigo 411º do CPC, tal como já demonstramos. Aliás, a admissibilidade de o juiz ordenar oficiosamente a prestação de declarações de parte sempre resultaria da remissão do artigo 466º, nº 2, para o artigo 452º, nº 1, do CPC. A circunstância de a parte prestar depoimento de parte e declarações de parte não origina qualquer perturbação ou confusão: se admite factos que lhe são desfavoráveis, produz uma confissão, correspondendo a uma prova com valor tarifado ou legal (arts. 356º, nº 2[6], e 358º, nº 1, do Código Civil); na parte em que se pronuncia sobre factos que lhe são favoráveis, as suas declarações estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, em conformidade com o disposto nos artigos 466º, nº 3, e 607º, nº 5, do CPC. No fundo, tudo depende do sentido das declarações que a parte prestar sobre os factos.
No caso em apreciação, tendo os Réus depoentes sido ainda ouvidos sobre factos que lhe são favoráveis, mesmo não tendo sido produzida qualquer confissão, tudo o que disseram fica sujeito à regra da livre apreciação pelo tribunal.
Daí que não se acompanhe a conclusão da Recorrente sobre ter sido valorada “prova que não foi legalmente admitida”.
Com efeito, em conformidade com o disposto no artigo 413º do CPC, vigora o princípio da aquisição processual. Como destacam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7], «no momento da decisão, é irrelevante que a proposição do meio de prova tenha provindo de uma ou de outra parte, ou ainda que a produção do meio de prova constituindo ou a apresentação no processo do meio de prova pré-constituído tenha resultado de iniciativa oficiosa; uma vez produzida a prova constituenda ou admitida a prova pré-constituída, ela deve ser considerada na decisão».
Em quinto lugar, é indiferente que a prestação das declarações de parte tenha sido determinada pelo juiz, que as partes hajam requerido que os depoimentos de parte valham também como declarações de parte ou que todas as partes tenham nisso acordado com a anuência do juiz (que os depoimentos valham como prova por declarações de parte). Todas essas diferentes situações são legalmente admissíveis.
Como sublinha Miguel Teixeira de Sousa, em comentário ao acórdão da Relação do Porto de 05.06.2017 (processo 549/13.5TBGDM-B.P1)[8]: «A circunstância de ter sido determinado pelo tribunal o depoimento de uma parte ou de ter sido requerido por uma das partes o depoimento da outra parte não pode precludir a possibilidade de a parte que deve prestar depoimento requerer a prestação de declarações de parte. O tribunal exerceu os seus poderes inquisitórios em matéria probatória e a parte exerceu uma faculdade na mesma matéria, mas isto não pode retirar à parte à qual é solicitado o depoimento o poder de requerer a prestação de declarações de parte. Pode até ir-se mais longe.
Dado que o tribunal também pode determinar oficiosamente a prestação de declarações de parte (como resulta da remissão efectuada pelo art. 466.º, n.º 2, CPC designadamente para o art. 452.º, n.º 1, CPC), deve entender-se que o tribunal que toma a iniciativa de determinar o depoimento de parte deve considerar este depoimento, em tudo o que não tenha carácter confessório, como uma declaração de parte e valorar livremente esta declaração de acordo com o disposto no art. 466.º, n.º 3, CPC. O tribunal que tem de aceitar a confissão de factos desfavoráveis pela parte à qual determinou o depoimento tem também de aceitar e valorar os factos favoráveis alegados pela parte depoente.
Em suma: a solução proposta obriga o tribunal a valorar, num depoimento de parte, os factos favoráveis alegados pela parte segundo a óptica da prova por declarações de parte numa das seguintes situações:
-- Quando o tribunal tenha determinado oficiosamente o depoimento de parte; ou
-- Quando uma das partes tenha requerido o depoimento da outra parte e esta tenha requerido que o seu depoimento valha igualmente como prestação de declarações de parte.»

Em suma, inexiste qualquer motivo para questionar a «admissibilidade processual da prova produzida» (v. pág. 7 das alegações da Recorrente), o que, em todo o caso, é questão diferente da valoração dessa prova.
Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre estas questões.
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2.4. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.4.1. Em sede de recurso, a Autora impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Conforme resultas das conclusões xcviii. a cviii., a Recorrente considera incorretamente julgados os «pontos 34, 37 (a partir de porque os...), 38, 39, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 64 e 65 dos factos provados da sentença».
Entende que todos esses pontos de facto devem ser eliminados do elenco da matéria de facto provada, com exceção do ponto nº 37, que apenas «tem de ser eliminado a partir da palavra “porque”» (conclusão xcix.).
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Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorretamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes[9], o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».

Analisadas as alegações, conclui-se que a Recorrente especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e indicou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, mas não deu integral cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do CPC, requisitos que condicionam a admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Isto porque, sob a epígrafe «III. Análise crítica e reapreciação da matéria de facto provada», procede a uma análise crítica da «Prova por declarações orais», transcrevendo algumas passagens da gravação, e da «Prova por documentos», aborda o que considera ser uma «Incorreta ponderação das regras do ónus da prova» e, finalmente, passa a descrever as suas «Conclusões sobre a alteração da matéria de facto».
Verifica-se que a Recorrente não indica relativamente a cada ponto de facto impugnado os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, seja uma concreta passagem da gravação (indicando com exatidão essa passagem ou transcrevendo o excerto considerado relevante) ou um específico documento. Não estabelece uma direta relação entre uma passagem da gravação ou um documento e um ponto de facto impugnado.
O que faz é invocar genericamente as passagens da gravação, transcrevendo na generalidade das vezes os excertos que considera relevantes, ou os documentos, mas sem estabelecer a relação preconizada no artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC.
Por conseguinte, a Recorrente utilizou uma metodologia que não obedece ao determinado no artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC. Deveria ter indicado relativamente a cada ponto de facto que considera incorretamente julgado os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida, sendo que quanto à prova gravada incumbia-lhe, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
Por isso, é elevada a dificuldade de esta Relação se pronunciar sobre uma impugnação que não segue a metodologia legalmente imposta, devido à concreta falta de relacionação de um concreto meio probatório com o ponto de facto em causa.
Não obstante, como somos avessos a decisões formais, iremos na medida do possível apurar se existe fundamento para a modificação da decisão da matéria de facto, recorrendo, tal como a Recorrente, a uma apreciação global da prova produzida. E as questões factuais fundamentais, como repetidamente a Recorrente assinala nas alegações, consistem em saber se foi ou não feita a doação dos vinhos (litragens de vinhos ou, numa designação mais específica daquele sector de atividade, partidas de vinhos) aqui em causa, se ocorreu a respetiva tradição e que actos tradutores de posse foram praticados pelos donatários.
Com vista a apreciar a impugnação, procedemos à análise integral dos autos, com especial ênfase nos documentos que os integram, e à audição integral da gravação da audiência final, incluindo as alegações dos Srs. Advogados.
*

2.4.2. Estão impugnados os seguintes pontos de facto julgados provados:

«34. Os três proprietários primitivos doaram a estes seus filhos e sobrinhos, que aceitaram, aquelas partidas de vinhos, em comum e partes iguais.
37. Estes vinhos estavam depositados em armazéns da “Quinta ...”, em ..., deste Concelho ..., que, na altura era propriedade em comum do CC, do M... e do PP, e lá continuaram depositados até hoje, porque os donatários não tinham onde guardá-los e também porque, depois, eles mesmos se tornaram com outros comproprietários da quinta e, mais tarde, também proprietários dela por via da “Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda.”, de que são/eram sócios e a sociedade proprietária da quinta. (só impugnada a parte enfatizada a itálico e a negrito)
38. Estes vinhos passaram a ter tratamento diferenciado dos demais ali armazenados sobretudo no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as autoridades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do ....
39. Anualmente, a declaração de existências em armazém e respeitante àquelas litragens sempre foi emitida em nome destes quatro comproprietários como titulares delas e assim apresentadas perante aquelas autoridades.
41. Os anteriores proprietários, os três irmãos, ficaram impedidos de os transacionarem ou de deles disporem por qualquer forma.
42. Os novos proprietários passaram a deles disporem quando quisessem e pela forma que considerassem adequada, e até o fizeram, pois que em julho de 1979 venderam 3.053 litros de VV ao comerciante “M..., Lda.”.
43. As declarações anuais de existências perante a Casa do ... e depois perante as entidades que lhe sucederam, a CIRDD e o IVDP, foram tituladas por aqueles quatro irmãos (donatários) e assinadas pelo FF que, para este efeito, tinha procuração dos demais.
44. E, depois, assinadas por quem estava na administração, ou gestão corrente, da “Quinta ...”, nomeadamente o aqui corréu CC, o Sr. UU, encarregado geral da administração da quinta, ou a gerência da “Sociedade Agrícola da Quinta da D...”, NIPC ..., atual proprietária daquela.
45. Todos agindo desta forma por aceitarem que aqueles vinhos eram propriedade dos referidos quatro irmãos.
46. E, por isso, também cientes de que não eram propriedade conjunta dos proprietários dessa quinta e depois nem daquela sociedade que lhes sucedeu.
47. Os procedimentos supra descritos mantiveram-se inalterados até hoje, ou seja, por mais de 30 anos.
64. A Autora está certa de que aqueles vinhos eram propriedade na proporção de um quarto ( ¼ ) de seu falecido Pai, aceitou entrar na partilha dos bens por este deixados e neles incluir aquele ¼, recebeu tornas dos demais interessados e nelas estando contabilizado o valor daqueles vinhos.
65. Os vinhos que se encontram em conta corrente dos quatro irmãos têm as litragens, as tipologias e o ano de produção que constam das contas correntes dos quatro irmãos – BB, BB, FF e CC.»
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2.4.2.1. Da doação e factos afins

Revista toda a prova produzida, adquirimos a convicção, tal como o Tribunal recorrido, de que a doação alegada pela Ré BB corresponde à realidade.
Para que fique bem explícito, até para possibilitar o escrutínio por quem nisso tiver interesse, estamos perante uma situação ocorrida em 1976, em que tanto os doadores como os donatários já faleceram, a doação não se mostra titulada por um documento escrito (não foi junto aos autos e alguns Réus referiram que foram feitas buscas e não foi encontrado) e nenhuma das pessoas ouvidas durante a audiência de julgamento esteve presente no acto. Aliás, por os factos já terem ocorrido há mais de 46 anos e dentro de um âmbito familiar, não se descortina sequer a possibilidade de haver uma pessoa sobreviva com conhecimento direto e imediato sobre a questão factual ora em apreciação: as partes deixaram passar tanto tempo que ficou impossibilitada uma prova mais qualificada.
Além disso, para agravar a situação, as duas únicas testemunhas ouvidas só passaram a ter contacto com a situação relativa aos vinhos nominais muito depois da ocorrência da alegada doação: TT, em virtude da sua relação e casamento com a Ré DD (irmã gêmea da Autora) e de ter desempenhado funções de gerente na Sociedade Agrícola da Quinta da D... entre 2013 e 2016 (segundo declarou), e UU, a partir de 1994, quando começou a trabalhar, a tempo parcial (na altura ainda era funcionário da Casa do ...), na Quinta da D..., sendo que só em 1996, depois da sua reforma, passou a trabalhar aí a tempo inteiro, onde se manteve até março de 2013. Estas duas testemunhas apenas forneceram elementos com alguma relevância sobre aquilo de que tomaram posteriormente conhecimento.
Daí que a convicção, no que respeita à doação, apenas se alicerce nas declarações de parte prestadas pelos diversos Réus e na prova documental junta aos autos.
Porém, vários Réus, ao prestarem declarações de parte, carrearam para os autos factos que nos permitem ter um quadro suficientemente elucidativo das circunstâncias que rodearam a doação e das razões que motivaram que dois dos seis filhos de QQ não tivessem sido contemplados na doação.
É o caso da Ré BB, médica, que se formou em 1976 e foi viver para o ..., passando a ter uma convivência privilegiada com a sua família da ... (00:23:47). De igual modo, são relevantes as declarações de parte do Réu CC (nascido em 1963), na medida em que este deixou de estudar e passou a acompanhar o pai (FF, um dos quatro donatários, filhos de QQ) e os assuntos familiares e da Quinta ..., do Réu II (nascido em 1957), que teria cerca de 18 ou 19 anos de idade na altura em que foi feita a doação. Também os Réus CC, HH e KK, à semelhança dos demais referidos, descreveram conversas com os donatários, em que estes lhes referiram a doação e as justificações para a mesma ter sido realizada naqueles precisos termos.
Resulta evidente das declarações de BB que após a morte da sua avó RR, a sua tia NN exigiu que a sua parte na herança da mãe (quinhão) fosse em dinheiro, facto que foi também confirmado, entre outros, pelos Réus CC e II, situação que gerou o descontentamento do pai dela (QQ) e dos restantes quatro irmãos (o quinto irmão, PP, devido à sua doença, com interdição decretada, não tinha capacidade para se aperceber da situação). Que a NN obteve o pagamento em dinheiro, resulta igualmente do depoimento do seu filho, OO, que acabou por admitir que deu origem a um conflito com o pai (QQ), tendo que “pôr o pai em tribunal”, litígio que disse ter acabado por vencer (nesta parte, acompanhamos inteiramente a motivação da matéria de facto na parte em que a Sra. Juiz refere, ao analisar as declarações de parte deste Réu, que a «sua mãe, NN, “teve que pôr o pai em Tribunal”, o que acaba por confirmar que houve um desentendimento, o que justifica a doação em causa»).
Também a Ré BB referiu (por exemplo, aos 00:24:10), em consonância com os demais Réus, que sempre ouviu o seu avô dizer que pretendia assegurar o futuro do seu filho PP, deficiente e interdito, de modo que este não precisasse de partilhar com ninguém e obtivesse um rendimento que permitisse que lhe fossem prestados cuidados até morrer. Essa razão foi referida por todos os referidos Réus e é a que justifica a sua exclusão da doação, sendo compensado através dos outros bens que lhe couberam e que são agora objeto de inventário que, segundo afirmado por diferentes pessoas durante a audiência final, ainda não se mostra findo, aguardando o desfecho destes autos.
Por conseguinte, a situação de partida era de necessidade de compensar BB, BB, CC e CC, todos filhos de QQ e sobrinhos de CC e PP.
É neste contexto que surge a questão factual da doação, sobre a qual seis dos sete Réus que prestaram declarações de parte (o sétimo, OO, disse que não houve qualquer doação, que não há prova da mesma) afirmaram ter ouvido os donatários dizer que os vinhos aqui em discussão lhes foram doados pelos seus primitivos proprietários – M..., PP e CC.
As declarações de parte, só por si, não permitiriam dar como demonstrada a existência da doação, mas temos nos autos elementos documentais suficientes para permitir julgar provada tal questão factual, tal como decidiu o Tribunal a quo.
O primeiro e mais importante, é o documento nº ...[10] junto à petição inicial, que integra uma conta corrente, na Casa do ..., de vinhos generosos. Nesse documento consta uma inscrição com a anotação na margem referente à data de 09.09.1976, atestando que da conta corrente saíram as partidas de vinhos descritas no ponto nº 30 dos factos provados, com fundamento em «Transferência por oferta para BB e irmãos». O mesmo documento evidencia que, subsequentemente, na concretização da transferência, a mesma Casa do ... abriu quatro contas correntes de vinhos generosos, em nome de BB, BB, CC e CC. Nessas contas correntes está inscrito o que consta do ponto nº 35 dos factos provados, com a correspondência assinalada no ponto nº 36.
Aqueles vinhos não são uma ficção, têm existência real e, a nosso ver, não existe qualquer razão substancial para pôr em causa a veracidade dos registos da Casa do ..., a qual era uma entidade a quem foram delegados os poderes de controlo de toda a produção e comercialização do Vinho do Porto. Com efeito, no âmbito do então vigente Decreto nº 30.408, de 30.04.1940, competia-lhe, nos termos do seu artigo 6º, nº 10: «Abrir e escriturar contas correntes para todos os possuidores de mostos, vinhos e aguardentes, inscrevendo nelas todas as operações de que resulte transmissão dos produtos e verificando a sua exatidão e a realidade das operações.»
E no caso isso foi feito, pois, além do registo da transferência, mostra-se anotado que foi «visto pelo contencioso».
Portanto, a doação mostra-se evidenciada por um documento emitido pela entidade legalmente incumbida de registar, inscrevendo nas contas correntes, as operações de transmissão de vinhos, após verificar «a sua exatidão e a realidade das operações».
Depois, também se mostra demonstrado, tanto documentalmente como pelas declarações de parte de todos os Réus, que todos os anos (até determinada altura duas vezes por ano, em fevereiro e agosto, e posteriormente só uma vez por ano) era apresentada a declaração de existências, em armazém, respeitante àquelas partidas de vinhos, emitida em nome dos quatro donatários (v. os documentos juntos por requerimento de 20.01.2021).
Temos assim evidenciada a transferência das partidas de vinhos dos seus primitivos proprietários para os donatários e a partir daí, desde 1977 até à atualidade, a sua ininterrupta menção declarativa, perante a entidade legalmente competente, da existência dos vinhos e de quem são os seus comproprietários.
Mas a conciliação e harmonização entre os elementos documentais, em apoio da tese factual da doação, não se fica por aqui, pois é mais vasta.
Desde logo, por óbito dos doadores CC (falecido em .../.../1976) e QQ (falecido em .../.../1979) correu termos processo judicial de inventário, sem que os vinhos doados tenham sido objeto de relacionação e partilha. Os vinhos não foram relacionados e nenhum herdeiro acusou então a sua falta de relacionação.
Ora, se não tivesse existido a doação, o normal seria os vinhos serem relacionados ou, pelo menos, algum herdeiro suscitar, então, a questão da falta de relacionação.
Também se mostra compaginável com a existência da doação o facto de, por óbito do donatário CC, ocorrido em 24.03.1991, ter sido instaurado inventário judicial e de, no mesmo, se ter relacionado um quarto indiviso dos vinhos doados então existentes, sem qualquer reclamação por quem quer que seja, designadamente da Autora. Do mesmo modo, já anteriormente, quando em .../.../... a .../.../... faleceu ZZ, no estado de casado no regime de comunhão geral de bens com a donatária BB, foi relacionado perante a Repartição de Finanças e para efeitos de liquidação do respetivo imposto sucessório, o ¼ indiviso que o casal tinha nos vinhos doados.
O argumento fundamental esgrimido pela Recorrente para afastar a tese factual da doação é a existência de um escrito, que estava na posse da testemunha TT, aquando da sua inquirição na segunda sessão da audiência final, subscrito por PP, datado de 16.02.1996, onde consta: «(…) declaro que não fiz dádiva de vinhos tratados a meus sobrinhos BB, BB, FF e CC em tempo algum. E não me consta que meus irmãos CC tenham feito qualquer dádiva de vinhos tratados a favor dos mesmos. Por isso, a inscrição de tais vinhos na Casa do ... em nome daqueles meus sobrinhos, como sendo dádivas minhas e de meus irmãos, não corresponde à verdade. Mais declaro que, se porventura existir qualquer documento por mim assinado para esse fim, tal assinatura foi obtida sem o meu consentimento de que se tratava de uma doação dos referidos vinhos.»
Verifica-se que o declarante, então com cerca de 85 anos (faleceu em .../.../2000, com 89 anos de idade, segundo consta do assento de óbito que o Tribunal recorrido requisitou já depois do encerramento da discussão em 1ª instância), assumia ter dúvidas sobre se existia um documento por si assinado a doar os vinhos, o que dificilmente se compagina com a declaração perentória que havia feito anteriormente a negar a dádiva. Um declarante que está seguro do que fez ou não fez limitar-se-ia a afirmar a inexistência da doação, sem necessidade de estar a afastar a hipótese de ter assinado, “sem consentimento” (!), um documento escrito contrário à declaração, documento esse que, em todo o caso, nunca foi encontrado.
Por outro lado, como bem se salienta nas contra-alegações, uma tal declaração é contrária à conduta que adotou nos mais de 19 anos antecedentes e até posteriormente. Tanto antes como depois de produzida aquela declaração, PP sabia do tratamento autonomizado e independente que era dado aos vinhos que todos os interessados conheciam por “vinhos nominais”, que eram os seus sobrinhos BB, BB, FF e CC que se arrogavam os únicos proprietários dos mesmos e que isso assim era declarado perante a Casa do ..., onde as partidas de vinho em causa se mostravam inscritas a favor daqueles (facto que até afirma no escrito datilografado). Basta reparar que a testemunha UU que começou a trabalhar na Quinta ... em 1994, «ainda no tempo do Sr. PP» (00:07:45), pois «os outros dois já tinham falecido» (CC e CC) esclareceu que as declarações de existências dos vinhos, que eram então emitidos e apresentados na Casa do ... duas vezes por ano, foram assinadas por aquele PP (00:13:25 - «no princípio quem começou a assinar essas declarações, era o Sr. PP»).
Ora, se não tivesse doado tais vinhos, o expectável seria que, no mínimo, se dirigisse à Casa do ... para corrigir a situação, o que não fez. Aliás, até seria natural que suscitasse a questão no seio da família e confrontasse os alegados donatários, procurando por todos os meios repor a situação em conformidade com a realidade, o que também não fez.
Daí que se mostre correta a valoração do aludido documento levada a cabo na motivação da sentença, na parte em que a Sra. Juiz afirma que «em relação ao documento junto em audiência de julgamento, e que consta de fls. 241 dos autos, assinado pelo PP, desconhece-se em que condições foi feito, sendo certo que contraria a atitude do subscritor enquanto foi vivo, que nada fez para alterar a situação, apesar de ter vivido até ao ano de 2000, e tal documento ser datado de 1996, para além de nada ter feito desde o ano de 1976, data da alteração do registo.»
Finalmente, quanto à aceitação da doação, todos os Réus sucessores dos donatários, ouvidos em declarações de parte, revelam que ocorreu tal aceitação. Além disso, a mesma emerge ainda da circunstância de o donatário CC, relativamente ao qual nenhuma dúvida existe que sempre se comportou relativamente aos vinhos objeto da doação como comproprietário, possuir procurações dos demais donatários e de nessa qualidade declarar a sua existência, enquanto propriedade dos quatro donatários, à Casa do ....
Pelo exposto, consideramos inexistir fundamento para alterar a decisão recorrida no que respeita à questão factual da doação e aos factos complementares constantes dos pontos 38, 39 e 43[11], cuja prova resulta dos elementos atrás analisados.

Termos em que se julga improcedente a impugnação relativamente aos pontos nºs 34, 38, 39 e 43 dos factos provados.
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2.4.2.2. Dos factos reveladores da tradição e posse

Estão agora em causa os pontos nºs 37 (a segunda parte), 41, 42, 44, 45 e 47 dos factos provados. Trata-se de questões factuais que não são de fácil apreciação, em virtude de, por um lado, os vinhos se terem mantido no mesmo lugar e de serem limitados os actos suscetíveis de revelar uma posse. Daí que devamos circunscrever a redação dos pontos de facto à realidade tal como ela emerge dos meios probatórios, excluindo matéria de direito ou valorativa[12], que efetivamente não está ausente de alguns pontos.
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Do ponto nº 37
No que respeita à segunda parte do ponto nº 37, a partir de “porque os (…)”, desde logo verificamos que nenhum meio de prova permite afirmar que os donatários não tinham onde guardar os vinhos doados, ou se uns tinham e outros não. Ignora-se completamente se tinham ou não instalações para o efeito.
Acresce que se fez constar um raciocínio jurídico, ainda para mais errado: os donatários não se tornaram proprietários da Quinta ... «por via da “Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda.”, de que são/eram sócios». A propriedade da Quinta ... foi em 1987 integrada no património dessa sociedade e os donatários eram sócios da mesma. Mesmo a expressão “são” (sócios) já não correspondia à realidade existente ao tempo da prolação da sentença, uma vez que todos os donatários já haviam falecido.

Nesta conformidade, decide-se:

a) Alterar o ponto nº 37 dos factos provados, que passa a ter a seguinte redação:
37. Estes vinhos estavam depositados em armazéns da “Quinta ...”, em ..., no Concelho ..., que, na altura era propriedade em comum do CC, do M... e do PP, e lá continuaram depositados até hoje, por os donatários se terem entretanto tornado comproprietários da quinta e, mais tarde, sócios da Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda., que passou a ser proprietária da quinta.
b) Aditar um novo item aos factos não provados, com o seguinte teor:
«- Os donatários não tinham onde guardar os vinhos que lhes foram doados.»
*

Do ponto nº 41
Pese embora o seu teor algo conclusivo, estando demonstrada a doação e a inscrição da transferência na Casa do ..., obviamente que os anteriores donos dos vinhos ficaram impedidos de os transacionarem ou de deles disporem. Por um lado, quem não é proprietário dos vinhos não pode deles dispor (no sentido comum). Por outro, estamos perante um bem com um regime específico, que só pode ser transacionado, em nome próprio, por quem figura como seu titular na instituição reguladora, então a Casa do ....
 Daí que nenhuma crítica substancial mereça a decisão sobre este ponto de facto.
*

Do ponto nº 42
Para além da redação conflituante, entre o tomar uma ação (passar efetivamente a dispor dos vinhos) e a possibilidade abstrata de ter essa ação (poder dispor do bem quando quisessem), a primeira parte constitui um juízo valorativo, que não deveria constar da matéria de facto. O que releva é a segunda parte e essa está demonstrada por documento (v. documento nº ... junto com a p.i., onde consta o registo da transferência, e o documento nº ...0 junto com o requerimento de 20.01.2021) e quase todos os Réus referiram esse facto durante as suas declarações de parte.

Sendo assim, altera-se a redação do ponto nº 42 para a seguinte:
«Em julho de 1979, os donatários venderam 3.053 litros de VV[13] à sociedade M..., Lda.»
*

Dos pontos nºs 44 e 45
Estes dois pontos de facto referem-se às declarações anuais de existências perante a Casa do ... e depois perante as entidades que lhe sucederam, a CIRDD e o IVDP (ponto 43), bem como a quem as foi assinando ao longo do período que vai desde 1976 até à atualidade, apontando, a título exemplificativo, o réu «CC, o Sr. UU, encarregado geral da administração da quinta, ou a gerência da “Sociedade Agrícola da Quinta da D...”».
A matéria factual que consta do ponto nº 44 mostra-se, a nosso ver, pacificamente adquirida em face da prova produzida. Depois de um período em que as declarações de existências do armazém da Quinta ... foram sendo assinadas por CC (designadamente as relativas aos vinhos ofertados, declarações estas subscritas em seu nome e dos titulares BB, BB e CC), que no fundo estava incumbido por todos os demais interessados de tratar dos assuntos relativos à Quinta ..., e que efetivamente assumia tais funções (matéria que todos os Réus referiram nas suas declarações de parte e da qual revelaram conhecimento direto), com a criação em 26.02.1987 da Sociedade Agrícola da Quinta da D..., Lda. (v. doc. nº ... junto em 20.01.2021), e a integração dessa quinta (mas também de, pelo menos, uma outra quinta – v. doc. ... junto em 20.01.2021) no património da sociedade (v., por exemplo, o doc. nº ... junto em 20.01.2021) as declarações de existências passaram a ser assinadas sobretudo pelos gerentes (que se foram sucedendo ao longo dos anos, como se pode ver na certidão do registo comercial junta aos autos em 20.01.2021 – doc. ...), mas também por outras pessoas que tinham a gestão corrente ou administração da quinta, como é o caso da testemunha UU (que confirmou tê-lo feito). Vários Réus, designadamente o referido no ponto nº 44 (CC), e a testemunha TT passaram pela gerência e declararam ter assinado tais declarações de existências. Para além da prova oralmente produzida na audiência final, estão juntas aos autos declarações de existências (v. os documentos juntos em 20.01.2021 – docs. ..., ... e ...).
Daí a improcedência da impugnação do ponto nº 44, o que se declara.

Vejamos agora o ponto nº 45, onde se conclui: «Todos agindo desta forma por aceitarem que aqueles vinhos eram propriedade dos referidos quatro irmãos.»
Ora, a realidade é que nem todos quantos passaram pela gerência da Sociedade Agrícola da Quinta da D... aceitaram ou aceitam que os vinhos eram propriedade dos donatários ou, com a morte destes, dos respetivos sucessores.
É o caso da testemunha TT ou do Réu OO.
Trata-se de matéria que nunca chegou a ser inteiramente pacífica, pois NN, conforme resulta bem patente das declarações de parte do seu filho, desde há várias décadas que punha em causa a existência da doação ou, pelo menos, a sua exclusão do âmbito subjetivo da mesma. O mesmo se diga dos seus filhos CCC e OO (ouvido na audiência final). Também, a partir de certa altura, passaram a questionar a doação AA (Autora) e a sua irmã gêmea, DD (v. depoimento da testemunha TT).
Aliás, a gerência da Sociedade Agrícola da Quinta da D..., Lda., não podia deixar de apresentar as declarações de existências referentes aos vinhos e estas tinham de estar em conformidade com o registo constante da Casa do ... e das entidades que lhe sucederam. A declaração tem de ser apresentada e não é lícito emiti-la em desconformidade com os registos constantes da entidade com poder de fiscalização. Da mesma forma, se a questão fosse assim tão consensual, também na década de 90 do século passado a assembleia geral da sociedade não teria deliberado, por maioria, não autorizar o levantamento dos vinhos aos arrogados quatro titulares ou seus sucessores.
Daí que a emissão e entrega das declarações de existências não tenha o imediato significado de os subscritores aceitarem «que aqueles vinhos eram propriedade dos referidos quatro irmãos».

Pelo exposto, na procedência da impugnação nesta parte, decide-se eliminar o ponto nº 45, aditando aos factos não provados o seguinte item:
«- Todos agindo desta forma por aceitarem que aqueles vinhos eram propriedade dos referidos quatro irmãos.»
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Do ponto nº 46
Pelas razões já expostas a propósito dos pontos nºs 44 e 45, a primeira parte do ponto nº 46, até “dessa quinta” deve ser julgada não provada. Trata-se, aliás, de uma decorrência daquele ponto nº 45, o qual foi atrás julgado não provado.
Todas as pessoas ouvidas na audiência final designaram os vinhos por “nominais” e demonstram estar cientes que não são propriedade da Sociedade Agrícola da Quinta da D..., Lda. O que discutem, manifestando posições divergentes, é se são dos sucessores dos seis irmãos ou de apenas de quatro destes, ou seja, os donatários.

Nesta conformidade, decide-se:

a) Alterar a redação do ponto nº 46, que passará a ser:
«46. Todas as pessoas que exerceram até agora a gerência Sociedade Agrícola da Quinta da D..., Lda., estavam e estão cientes de que os vinhos doados não são propriedade daquela sociedade».
b) Aditar um outro item à matéria de facto não provada, com o seguinte teor:
«- E, por isso, também cientes de que não eram propriedade conjunta dos proprietários dessa quinta.»
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Do ponto nº 47
Embora a Requerente impugne o ponto nº 47, com base no depoimento da testemunha UU, alegando que «só depois de ele ter começado a trabalhar lá (em 1999, portanto), anos depois, é que as declarações de existências foram mudadas», não é isso que resulta do depoimento da aludida testemunha, a qual começou a trabalhar na Quinta ... em 1994 e não em 1999.
O que resulta do depoimento da testemunha é coisa diferente: fez as declarações das existências com base nas anteriores. Portanto, deu seguimento a um procedimento já existente e que tem pelo menos 30 anos.
Aliás, se dúvidas houvesse, estão nos autos várias declarações de existências e os Réus referiram-se às mesmas, com conhecimento direto, em conformidade com o que se deu como provado.

Termos em que improcede a impugnação.
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2.4.2.3. Do ponto nº 64
Para além de começar por uma formulação dúbia e adjectivante (“a Autora está certa[14]), não resulta da prova produzida – testemunhal (v. o depoimento da única testemunha que depôs sobre esta matéria, que foi o marido da irmã gêmea da Autora, o qual foi bem explícito sobre como se formou a posição da sua cunhada), declarações de parte e documental – que a Autora esteja certa ou convencida do que quer que seja relativamente aos vinhos.
Por isso, o Tribunal recorrido deveria ter-se cingido ao que é um facto objetivo e incontestado, resultante da posição que a Autora assumiu no inventário que correu termos por morte de seu pai (v. declarações de parte prestadas pelo irmão CC e os documentos juntos aos autos referentes a esse processo, que demonstram os elementos essenciais do inventário, incluindo o pagamento das tornas por precatório cheque entregue à Autora em 11.11.2004 – documentos juntos com a contestação da Ré contestante).
E esse facto resume-se a isto (na formulação alegada na contestação e acolhida na sentença): a Autora aceitou entrar na partilha dos bens deixados por seu pai e neles estava incluído um quarto indiviso dos vinhos doados, recebendo tornas dos demais interessados e nelas estando contabilizado o valor daqueles vinhos.

Nesta conformidade, decide-se:

a) Alterar a redação do ponto nº 64, que passará a ser:
«64. a Autora aceitou entrar na partilha dos bens deixados por seu pai e neles estava incluído um quarto indiviso dos vinhos doados, recebendo tornas dos demais interessados e nelas estando contabilizado o valor daqueles vinhos.»
b) Aditar um outro item à matéria de facto não provada, com o seguinte teor:
«- A Autora está certa de que aqueles vinhos eram propriedade na proporção de um quarto de seu falecido pai.»
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2.4.2.4. Do ponto nº 65
O Tribunal a quo julgou provado:
«65. Os vinhos que se encontram em conta corrente dos quatro irmãos têm as litragens, as tipologias e o ano de produção que constam das contas correntes dos quatro irmãos – BB, BB, FF e CC.»
Em primeiro lugar, esta matéria foi alegada pela Ré contestante para fundamentar a requerida condenação da Autora como litigante de má-fé. Ora, não se descortina o mínimo relevo deste ponto, com a formulação alegada, para a questão da litigância de má-fé. Como os factos provados não constituem um repositório de todos os factos, mas apenas dos relevantes para a decisão das questões suscitadas no processo, só por esse motivo já o ponto 65 deveria ser eliminado.
Depois, lê-se este ponto de facto e não se consegue alcançar o seu significado, nem que realidades se estão aí a confrontar, parecendo operar-se uma redundância, provavelmente por lapso[15]. Como é óbvio, as litragens, as tipologias e o ano de produção dos vinhos são os que constam dos registos. É para isso que tais registos existem e no caso até se verifica que a entidade reguladora foi fazendo ao longo dos anos verificações das existências declaradas, como se pode ver nos documentos nºs ... e ... juntos em 20.01.2021. Mas o que está no ponto nº 65 não é exatamente isso.
Entendemos que assiste inteira razão à Recorrente, pelas razões que esta invoca: «O item 65º dos factos provados deve ser eliminado porque é uma desnecessária contradição nos seus próprios termos, não faz sentido e não se consegue lobrigar qual o relevo do aí plasmado. Com efeito, afirmar que “os vinhos que se encontram em conta corrente dos quatro irmãos” são idênticos em litragens, ano de produção e tipologia, àqueles “que constam das contas correntes dos quatro irmãos” é uma redundância que não se consegue perceber. Só pode ser lapso, estamos em crer.»

Termos em que se determina a eliminação do ponto nº 65 dos factos provados.
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2.4.3. Matéria de facto estabilizada

A) Factos provados:

1. Existe um conjunto de vinhos generosos que se encontram inscritos no IVDP em nome de BB e outros, e que se encontram depositados em 4 cubas seladas pelo IVDP, depositadas na Quinta ....
2. O direito de propriedade sobre tais vinhos, ou sobre uma parte determinada de tais vinhos, já foi discutido em várias ações judiciais, nomeadamente:
a. Processo ordinário nº 186/99 do Tribunal Judicial ...;
b. Processo ordinário nº 336/14.... (ex-processo ...) da instância local, secção de competência genérica ...;
c. inventário nº ...4... da instância local, secção de competência genérica ....
3. Neste último processo, de inventário, por despacho de 2 de maio de 2017, devidamente transitado em julgado, foram os interessados remetidos para os meios comuns quanto a saber se as quotas indivisas de vinho aí relacionadas/reclamadas faziam parte do património dos inventariados à data do seu decesso.
4. São antecessores da autora e de todos os réus, PP, falecido em .../.../2000, CC, falecido em .../.../1976 e QQ, falecido em .../.../1979. 5. Estes três falecidos antecessores de autora e réus eram irmãos, todos filhos de CC e AA.
6. Exploravam quintas com vinhas na zona do ..., das quais extraíam anualmente vinho generoso.
7. Os vinhos em causa, em 1975, encontravam-se distribuídos por vasilhame existente na denominada Quinta ..., no lugar da D..., da freguesia ..., do Concelho ..., dentro da região demarcada de Vinho do Porto.
8. Tal quinta pertencia aos três referidos irmãos, que ainda eram vivos.
9. Nessa altura, tais vinhos encontravam-se manifestados na Federação dos Viticultores da Região do ... (CASA DO ...) em nome dos três indicados irmãos.
10. O referido PP faleceu intestado em .../.../2000, no estado de viúvo e sem filhos nem ascendentes sobrevivos.
11. O referido CC faleceu intestado em .../.../1976, no estado de solteiro e sem filhos nem ascendentes sobrevivos.
12. O referido QQ faleceu intestado, em .../.../1979, no estado de viúvo de RR e do seu casamento nasceram seis filhos:
a. BB
b. CC
c. BB
d. CC
e. NN (aqui 17ª ré)
f. PP.
13. A 1ª ré BB foi casada com ZZ, sob o regime de comunhão geral de bens.
14. Falecido este ZZ em .../.../1977, deixou como seus herdeiros a viúva e os seguintes filhos do casal de ambos:
a. BB (aqui 2ª ré)
b. BB (aqui 3ª ré)
c. ZZ.
15. Este último - ZZ – faleceu no dia .../.../2018, no estado de solteiro e sem descendentes, deixando como sua única herdeira sua mãe, a aqui 1ª ré BB.
16. O aludido CC faleceu em .../.../1991, no estado de casado com BB (aqui 4ª ré), deixando como herdeiros a viúva e seus cinco filhos:
a. AA (aqui autora);
b. CC (aqui 5º réu);
c. DD (aqui 6ª ré);
d. EE (aqui 7º réu);
e. FF (aqui 8º réu).
17. A aludida BB faleceu em .../.../1998, no estado de casada com AAA, sob o regime de separação e bens, deixando como herdeiros os seus três filhos:
a. GG (aqui 9º réu);
b. HH (aqui 10ª ré);
c. II (aqui 11º réu).
18. O CC faleceu em .../.../2012, no estado de casado com JJ, deixando como herdeiros a viúva (aqui 12ª ré) e seus quatro filhos:
a. KK (aqui 13º réu);
b. LL (aqui 14º réu);
c. MM (aqui 15º réu);
d. CC (aqui 16º réu);
19. A NN (aqui 17ª ré) foi casada, em primeiras e únicas núpcias de ambos, sob o regime de comunhão geral de bens, com BBB, que, entretanto, veio a falecer intestado em 03/01/2004.
20. Deste último casamento nasceram dois filhos:
a. CCC (aqui 18ª ré);
b. OO (aqui 19º réu).
21. O PP faleceu em .../.../2011, no estado de solteiro, sem filhos, nem ascendentes sobrevivos, intestado e interdito, tendo o seu óbito dado origem ao inventário nº ...4... acima referido.
22. Assim, além da autora e dos réus, não há mais ninguém que prefira ou possa concorrer na sucessão por óbito dos aludidos PP, CC e QQ.
23. Os vinhos em causa nos autos são o que resta atualmente dos vinhos que os mesmos possuíam em 1975, posto que o remanescente, ou foi alienado no decurso do tempo, ou foi alvo de evaporação natural.
24. Tais vinhos nunca foram partilhados pelos herdeiros dos três referidos irmãos PP, CC e QQ.
25. Tais vinhos permaneceram ininterruptamente guardados na Quinta ....
26. Por óbito de CC e QQ, correu termos o inventário nº ...5.
27. Contudo, os vinhos em causa nesta ação não foram descritos nem partilhados nesse inventário.
28. Ao patrocinar o interdito PP, no inventário por óbito deste, que corre termos pelo Juízo ... de ... ... sob o nº 7/79, apenso ao inventário ...5 (atual 336/14....), o Ministério Público veio requerer a partilha adicional de tais vinhos, originando que nos mesmo autos se viesse a cumular também o inventário pelo terceiro dos irmãos acima referidos, PP.
29. Mostra-se inscrito em documentação da Casa do ..., que em 1975, os referidos três irmãos eram proprietários e, por isso, com inscrição em conta-corrente na Casa do ..., de 314.733 litros de vinho generoso, sendo: 106.836 litros de vinho velho (VV, colheitas de 1932 a 1962), 57.294 litros da colheita de 1969, 116.816 litros da colheita de 1970 e 33.787 litros da colheita de 1972.
30. Em 09/09/1976 saíram desta conta-corrente as seguintes partidas de vinhos:
17.806 litros das colheitas de 32/62 (VV),
9.549 litros da colheita de 1969,
19.782 litros da colheita de 1970,
5.631 litros da colheita de 1972,
e 80 litros da colheita de 1974.
31. Está inscrito que esta saída teve o seguinte fundamento: “Transferência por oferta para BB e irmãos”.
32. Nessa sequência, na Casa do ..., foram abertas quatro contas correntes de vinhos generosos, constando como titulares, em comum e partes iguais, os seguintes quatro irmãos: BB (tia da A.), BB (tia da A.), CC (Pai da A.) e CC (tio da A.).
33. E estes são, todos eles, filhos do QQ e todos sobrinhos do M... e do PP.
34. Os três proprietários primitivos doaram a estes seus filhos e sobrinhos, que aceitaram, aquelas partidas de vinhos, em comum e partes iguais.
35. Nas contas correntes referidas, está inscrito o seguinte:
“Transferência por oferta de CC e PP: - colheita de 1972: 5.631 litros, - colheita de 1974: 80 litros, - colheita de 1970: 19.782 litros, - colheita de VV: 27.355 litros.”.
36. Esta litragem corresponde exatamente à que está anotada como transferência por oferta na conta-corrente de M..., CC e PP, apenas com a alteração de que o vinho generoso da colheita de 1969 foi considerado em VV e somado ao das colheitas de 32/64, ou seja: 17.806 + 9.549 = 27.355 litros.
37. Estes vinhos estavam depositados em armazéns da “Quinta ...”, em ..., no Concelho ..., que, na altura era propriedade em comum do CC, do M... e do PP, e lá continuaram depositados até hoje, por os donatários se terem entretanto tornado comproprietários da quinta e, mais tarde, sócios da Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda., que passou a ser proprietária da quinta.
38. Estes vinhos passaram a ter tratamento diferenciado dos demais ali armazenados sobretudo no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as autoridades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do ....
39. Anualmente, a declaração de existências em armazém e respeitante àquelas litragens sempre foi emitida em nome destes quatro comproprietários como titulares delas e assim apresentadas perante aquelas autoridades.
40. E, ao menos, desde 1996 encontram-se em vasilhames próprios e separados dos demais vinhos armazenados.
41. Os anteriores proprietários, os três irmãos, ficaram impedidos de os transacionarem ou de deles disporem por qualquer forma.
42. Em julho de 1979, os donatários venderam 3.053 litros de VV à sociedade M..., Lda.
43. As declarações anuais de existências perante a Casa do ... e depois perante as entidades que lhe sucederam, a CIRDD e o IVDP, foram tituladas por aqueles quatro irmãos (donatários) e assinadas pelo FF que, para este efeito, tinha procuração dos demais.
44. E, depois, assinadas por quem estava na administração, ou gestão corrente, da “Quinta ...”, nomeadamente o aqui corréu CC, o Sr. UU, encarregado geral da administração da quinta, ou a gerência da “Sociedade Agrícola da Quinta da D...”, NIPC ..., atual proprietária daquela.
45. Todas as pessoas que exerceram até agora a gerência Sociedade Agrícola da Quinta da D..., Lda., estavam e estão cientes de que os vinhos doados não são propriedade daquela sociedade.
46. Os procedimentos supra descritos mantiveram-se inalterados até hoje, ou seja, por mais de 30 anos.
47. Por óbito do CC correu termos, com início após 1976, inventário judicial para partilha dos bens deixados e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.
48. Nenhum herdeiro acusou a sua falta de relacionação.
49. A partilha foi julgada por sentença que transitou em julgado.
50. Por óbito do M... também correu termos, com início após 1976, inventário judicial para partilha dos seus bens e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.
51. Também aqui nenhum herdeiro acusou a sua falta de relacionação.
52. A partilha foi julgada por sentença que transitou em julgado.
53. Por óbito do PP corre, agora, termos inventário judicial para partilha dos seus bens e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.
54. A aqui Autora, sobrinha-neta do inventariado, veio acusar a falta de relacionação deles.
55. Por falecimento do Pai da autora, CC, que era um dos donatários referidos, correu termos pelo Tribunal ... o processo de inventário para partilha dos respetivos bens e que teve início em 15/03/1999, depois renumerado para processo de inventário nº 321/14.... do Juízo de Competência Genérica ... - J..., deste Tribunal da Comarca ....
56. Nele foi relacionado sob o nº 08 o seguinte bem:
Um quarto indiviso de 49.795 litros de Vinho Generoso do ..., registados na Federação dos Vinicultores da Região Demarcada do ... (Casa do ...) em nome do Inventariado e de BB, DDD e CC à guarda da Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda. e que esta se recusa a entregar à herança no valor estimado de Esc. 6.224.375$00.
57. Trata-se das mesmas partidas/litragens de vinhos doadas e supra, referidas com um diferencial dos 3.053 litros de VV que foram transacionados para a empresa “M..., Lda.”.
58. A Autora não requereu a exclusão desta verba da herança deixada por seu Pai.
59. Na conferência de interessados, a mesma foi licitada em comum e parte iguais pela aqui Ré/contestante (mãe da A.), e por EE, FF e CC, todos de apelido AA, e todos irmãos da A., e pelo valor de Esc. 6.300.000$00.
60. Consta do mapa de partilha que a Autora ficou credora de tornas a pagar pelo FF e pelo montante de 23.409,08 €, e de mais 66.065,54 € a pagar pelo CC.
61. Quantias estas que, efetivamente, foram pagas por depósito no processo e que a Autora recebeu.
62. O mapa de partilha foi homologado por sentença que transitou em julgado.
63. A Autora aceitou entrar na partilha dos bens deixados por seu pai e neles estava incluído um quarto indiviso dos vinhos doados, recebendo tornas dos demais interessados e nelas estando contabilizado o valor daqueles vinhos.
64. Por falecimento, em .../.../1977 de ZZ, a cabeça de casal, a sua viúva e aqui Ré BB, relacionou perante a Repartição de Finanças e para efeitos de liquidação do respetivo imposto sucessório, o ¼ que o casal tinha naqueles vinhos.
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B) Factos não provados

- O conjunto de vinhos generosos que se encontram inscritos no IVDP em nome de BB e outros, são das seguintes colheitas e litragens:
a. 11.900 litros de vinho generoso da colheita de 1944
b. 4.365 litros de vinho generoso da colheita de 1951
c. 20.760 litros de vinho generoso da colheita de 1970
d. 8.348 litros de vinho generoso da colheita de 1972.
- Esse conjunto de vinhos é pertença, em comum e sem determinação de parte ou direito, dos herdeiros dos três primitivos proprietários.
- Os donatários não tinham onde guardar os vinhos que lhes foram doados.
- Todos agindo desta forma por aceitarem que aqueles vinhos eram propriedade dos referidos quatro irmãos.
- E, por isso, também cientes de que não eram propriedade conjunta dos proprietários dessa quinta.
- A Autora está certa de que aqueles vinhos eram propriedade na proporção de um quarto de seu falecido pai.
- Os vinhos que se encontram em conta corrente dos quatro irmãos têm as litragens, as tipologias e o ano de produção que constam das contas correntes dos quatro irmãos – BB, BB, FF e CC.
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2.5. Da reapreciação de Direito
2.5.1. Factos constitutivos do direito e ónus da prova – questões vi) e vii)

Alega a Recorrente que «embora esteja assente a matéria de facto constante dos Factos Provados sob os pontos 5 a 9 e 22, apesar de reconhecer que a autora invoca uma forma de adquirir legítima – que é a via sucessória –, e apesar de verificar que esses vinhos pertenciam às pessoas de quem a autora e os réus são sucessoras, a Mmª Juiz afirm[a] que a autora teria de provar que os vinhos se mantêm na propriedade das heranças dos primitivos donos – o que considera não ter sido logrado, por assumir o Tribunal que os vinhos terão sido doados».
Entende ter provado «os factos constitutivos do seu direito: provou a quem os vinhos pertenciam e provou a sua qualidade de herdeira, para invocar a transmissão por via sucessória daqueles para os atuais», pelo que «a prova que a autora estaria obrigada a fazer mostra-se feita».
No fundo, a Recorrente alega – nas conclusões atrás transcritas e em várias outras –  que provou os factos constitutivos do direito invocado e que na sentença se aplicaram de forma errónea as regras do ónus da prova, ao considerar que a Autora tinha de provar, no confronto com os Réus, que os vinhos se mantêm na propriedade das heranças dos três primitivos donos.
Vejamos.
Efetivamente, na sentença considerou-se que «[c]abia à autora, enquanto factos constitutivos do seu direito – art. 342º, nº 1 do Código Civil – a prova de que os vinhos em causa se mantêm propriedade das Heranças dos três primitivos donos.» Significa isto que a Autora, na tese defendida na sentença, estaria onerada com a prova de que inexistiu a doação invocada pela Ré contestante.
No nosso entendimento e ressalvado o devido respeito, é manifesto o erro em que incorre a sentença, embora o mesmo acabe por não ter qualquer relevo prático, por se ter considerado que se fez prova da doação alegada na contestação («a ré contestante, que, aliás, é mãe da autora, provou que tais vinhos foram doados aos quatro irmãos em nome dos quais se mostram inscritos, sendo um deles o seu falecido marido e pai da autora»), ou seja, da matéria de exceção.

A Autora pediu na petição que se reconheça a sua qualidade de herdeira nas heranças por óbito de PP, CC e QQ, bem como o reconhecimento de que os vinhos objeto de litígio pertencem a tais heranças.
Sendo a questão da qualidade de herdeira pacífica desde o início (nem sequer foi questionada pela Ré contestante e mostra-se adquirida face à documentação junta), assim como o facto de os três irmãos - PP, CC e QQ – serem os primitivos proprietários dos vinhos existentes na Quinta ..., pelo menos até ao dia 09.09.1976, o litígio apenas respeitava à divergência sobre a propriedade dos vinhos que posteriormente passaram a ser designados por nominais, no período posterior a 09.09.1976 e até à atualidade, precisamente por as partes, no âmbito de um inventário terem sido remetidas para os meios comuns quanto ao direito de propriedade sobre tais vinhos. A Autora afirmava que os vinhos integravam as heranças daqueles três irmãos, enquanto a Ré contestante aduzia que os vinhos haviam sido doados a quatro pessoas, uma das quais o seu falecido marido.
Por conseguinte, tendo a Autora feito prova dos factos constitutivos do direito alegado na petição inicial (art. 342º, nº 1, do Código Civil), à Ré contestante competia fazer prova da doação do direito de propriedade sobre os vinhos, em conformidade com o disposto no artigo 342º, nº 2, do Código Civil (CCiv), enquanto facto extintivo do direito invocado pela Autora.
Enquadrada a questão como ela deveria ter sido apreciada, incumbe agora apurar se as quatro pessoas invocadas pela Ré contestante, que são filhos/sobrinhos dos originais proprietários dos vinhos, adquiriram em 09.09.1976, por doação, ou posteriormente, por usucapião, o direito de propriedade desses vinhos generosos.
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2.5.2. Da aquisição por doação

Segundo a noção que nos é dada pelo artigo 940º, nº 1, do CCiv, «doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente».
A doação reveste, em regra[16], natureza contratual, pressupondo, para a sua formação, o mútuo consentimento de doador e donatário[17]. Com vista à reunião do consenso entre os contraentes, a lei admite que o acordo de vontades possa resultar de uma sucessão de proposta e aceitação, com o regime específico constante das normas do artigo 945º e 969º do CCiv, sem que seja necessário que esta aceitação ocorra no mesmo momento em que é feita a declaração do doador. Em todo o caso, o processo constitutivo do contrato de doação não fica completo sem a aceitação do donatário.
Não exige a lei que a declaração de aceitação seja expressa. Pode ser tácita, prevendo-se no nº 2 do artigo 945º do CCiv um específico caso de aceitação tácita, mas também assim será considerada a que resultar da simples intervenção do donatário no acto da doação sem manifestação de dissentimento e, em geral, quando se deduza de factos que, com toda a probabilidade a revelam, nos termos do nº 1 do artigo 217º, portanto, através de uma exteriorização indireta da vontade de aceitação.
É havida como aceitação a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada ou do seu título representativo. E essa tradição tanto pode ocorrer no momento da proposta ou num momento posterior, mas terá de realizar-se antes da morte do doador (art. 945º, nº 1, do CCiv).
Quando a proposta não é aceita no próprio acto (aceitação contratual) ou não se verifica a tradição, a aceitação tem de obedecer, nos termos do nº 3 do artigo 945º do CCiv, à forma prescrita no artigo 947º do mesmo código e ser declarada ao doador[18].
Com relevo para o caso dos autos, dispõe o nº 2 do artigo 947º do CCiv que a doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito.
Portanto, as doações verbais de bens móveis só são válidas se acompanhadas da tradição. Dito de outra forma, na doação verbal de móveis a tradição é um elemento constitutivo do contrato: concomitantemente à aceitação, é indispensável que se verifique a tradição da coisa móvel para o donatário. Só assim se forma o contrato.
Se a doação não for acompanhada da tradição da coisa móvel doada, só pode ser feita por escrito, não sendo suficiente o acordo não formalizado desacompanhado da tradição da coisa.
A razão da exigência de forma ou de tradição da coisa servem o propósito de garantir a devida ponderação do doador quanto ao acto que vai celebrar[19].

A Recorrente alega precisamente que não ocorreu a tradição dos vinhos para os donatários, pelo que, não tendo sido reduzido a escrito ou não se demonstrando a existência do escrito, inexiste doação ou, na nossa formulação da questão, não se formou o contrato de doação por falta do elemento constitutivo tradição.
Trata-se de uma questão que não é de fácil resolução.
Porém, estamos perante coisas móveis que, logo ao tempo da doação, estavam sujeitos a um regime especial relativo à produção, armazenamento, transmissão e comercialização. A transmissão dos vinhos generosos tinha de ser declarada e, consequentemente, a Casa do ... estava incumbida de abrir novas contas correntes para os novos possuidores (v. art. 6º, nº 10, do Decreto nº 30.408, de 30.04.1940).
Ressalvada a devida consideração por entendimento diferente, tendo em 09.09.1976 sido declarada a doação com vista ao registo da transmissão a favor dos donatários, aquela inscrição/registo constitui precisamente o título representativo da tradição e da correspondente posse.
É verdade que os vinhos continuaram guardados no mesmo local, a Quinta ..., mas isso resulta da especificidade da coisa móvel em questão e da situação relativa ao seu armazenamento num local que era da família dos donatários. Não era necessária, nem se impunha a sua transferência para outro local, em face do aludido circunstancialismo, como bem atestam os autos.
Os vinhos passaram a ter tratamento diferenciado dos demais armazenados na Quinta ..., designadamente no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as entidades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do ..., como é o caso da declaração de existências em armazém, na parte, respeitante àquelas litragens, a qual sempre foi emitida em nome dos quatro donatários. Os vinhos encontram-se separados dos vinhos da Quinta ..., em vasilhames próprios.
Se não tivesse havido tradição, com a correspondente posse, os donatários nunca teriam conseguido vender, de forma regular, parte dos vinhos à sociedade M..., Lda. Aliás, a atestar a tradição está a circunstância de, perante o registo realizado na Casa do ..., somente os donatários poderem dispor validamente dos vinhos, estando disso impedidos os primitivos proprietários dos vinhos ou os sucessores destes.
Concluímos assim que se formou o contrato de doação, o qual é válido, e que se produziu o efeito essencial previsto na alínea a) do artigo 954º do CCiv: a transmissão da propriedade dos vinhos para os donatários.
Por isso, a exceção invocada na contestação da Ré BB tinha de ser, como foi, julgada procedente na sentença, com a consequente improcedência do segundo pedido formulado pela Autora.
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2.5.3. Da usucapiãoconclusões cxxxvii a cl
A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artigo 1251º do CCiv. Integra um elemento material, o corpus da posse, que é a atuação de facto correspondente ao exercício do direito, e um elemento subjetivo, o animus, que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.
Se mantida a posse por certo lapso de tempo, faculta-se ao possuidor a aquisição do direito correspondente à sua atuação. Essa forma de adquirir o correspondente direito real de gozo chama-se usucapião (art. 1287º do CCiv). No caso de uma coisa móvel como o vinho, são aplicáveis os prazos previstos no artigo 1299º do CCiv., sendo para o efeito relevantes os caracteres da posse enunciados nos artigos 1258º a 1262º do CCiv.

A Recorrente alega que os donatários nunca tiveram a posse dos vinhos, uma vez que «não existe nenhum facto que ateste, ou sequer que indicie, que os pretensos donatários exerceram qualquer poder de facto sobre tais vinhos».
Sucede que essa posse, se mais não houvesse, é evidenciada pelo facto de os donatários terem vendido parte dos vinhos à sociedade M..., Lda. Esse é um facto que demonstra o poder de facto sobre os vinhos e a vontade de agir como proprietários dos mesmos, como efetivamente eram.
Como já concluímos em 2.5.2., ocorreu a tradição dos vinhos e desde então os donatários ficaram na sua posse.
Caso a doação não fosse válida, sempre se deveria considerar, como se fez na sentença, que os donatários teriam adquirido o direito de propriedade sobre os vinhos por usucapião. Estamos perante uma posse de boa-fé (art. 1260º), pacífica, em virtude de não ter sido adquirida com violência (art. 1261º), e pública (art. 1262º), pois, suscetível de ser conhecida, como efetivamente o era, pelos interessados.
Tendo os donatários permanecido mais de seis anos na posse dos vinhos, estavam reunidos os requisitos para a aquisição por usucapião.
Por isso, improcedem as conclusões formulados sobre esta questão.
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2.5.4. Da litigância de má-fé – conclusões clii a clxi
O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efetiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos de ação e de defesa no âmbito do processo civil ou nos outros ramos de direito adjetivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros.
No que respeita ao processo civil, toda e qualquer intervenção das partes no processo deve obedecer ao ditame imposto no artigo 8º do CPC: «as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação» previstos no artigo 7º daquele código, tendo em vista a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.
Para assegurar o aludido desiderato e um correto uso dos direitos processuais surge, a par de outros[20], o instituto da litigância de má-fé.
Partindo de um fundamento ético que deve presidir à exercitação dos direitos, a litigância de má-fé tem subjacente o interesse público na correta administração da justiça, pois a atuação abusiva dos direitos processuais, traduzida na instrumentalização do direito processual, é suscetível de retardar a realização da justiça, de afetar a eficácia da intervenção judicial ou, em casos mais graves, de prejudicar a justa composição do litígio.
 Portanto, estamos perante um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo[21].
É possível descortinar no seu recorte normativo uma vertente sancionatória (v. o artigo 542º, nº 1, do CPC e o artigo 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) e outra tendencialmente indemnizatória ou reparadora (v. artigo 543º do CPC).

Nos termos do nº 2 do artigo 542º do CPC, litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considerou que a Autora litigou de má-fé, com base na seguinte argumentação:
«Ora, a autora alega no seu articulado inicial, factos cuja falta de veracidade não pode desconhecer, para além de contestar, na réplica, factos que sabe corresponderem à verdade, como é o caso de omitir que parte dos vinhos em causa foram partilhados no inventário por óbito de seu pai e negar mesmo que tal tenha acontecido, quando não pode desconhecer tal factualidade, já que esteve presente na conferência de interessados respetiva e recebeu as tornas correspondentes.
Trata-se de factualidade provada por documentos e que a autora não podia desconhecer, pelo que, ao vir invocar matéria factual contrária, apenas se pode concluir que o fez com vista a obter uma finalidade ilegal, litigando, pois, de má fé.»
A Recorrentes contrapõe que «não sabia, não tinha como saber, e ainda hoje não sabe, estando até convicta do contrário, se os vinhos relacionados no inventário por óbito de seu pai têm qualquer correspondência com os vinhos ajuizados nos presentes autos. Tal como consta da sentença do processo do Círculo de ..., esses vinhos não foram relacionados na primitiva relação de bens para efeitos de processo de imposto sucessório por óbito de seu pai, em 1991. E quando, muitos anos depois, vieram a ser relacionados no inventário, em 1999, foram aí descritos como bens litigiosos, ou pelo menos controvertidos, mencionando-se na relação de bens que a Sociedade Agrícola Quinta da D... os detinha e recusava entregá-los à cabeça de casal. Decorre depois, da sentença desse processo de ..., que a herança de seu pai não logrou provar a existência e propriedade de tais vinhos. A autora nunca aceitou que esses vinhos relacionados no inventário pertencessem em ¼ a seu pai, antes sempre entendeu que tais vinhos pertenciam aos primitivos donos, pelo que não podia aceitar que esses vinhos fossem os relacionados no inventário de bens do seu pai. Em coerência, a autora reclamou o relacionamento desses vinhos no último inventário que pende por óbito de seu tio YY, cumulado com o inventário do seu tio-avô PP, que ainda se encontra pendente. E não é despiciendo referir que, como aliás consta da sentença e dos Factos Provados, o Ministério Público assumiu a mesma posição da autora – o que por si só afasta a possibilidade de esta posição estar eivada de qualquer má intenção. A própria remessa da questão para os meios comuns, de que este processo é o corolário lógico, arreda qualquer possibilidade de má-fé na pretensão formulada, que se afigura medianamente plausível e sustentável.»

Analisada a situação, concluímos assistir razão à Recorrente.
Ressalvada a devida consideração, entendemos que não é possível censurar a conduta processual da Autora, sobretudo com base no alegado na petição inicial e no seu confronto com a posição assumida no inventário que correu termos por morte de seu pai, CC.
Em primeiro lugar, no processo de inventário a cabeça de casal (que não é a Autora, sublinhe-se) acabou por relacionar ¼ indiviso dos vinhos. Porém, fê-lo indicando que existia um litígio quanto aos mesmos. Portanto, foi relacionado e partilhado nessa qualidade, ou seja, como um bem litigioso ou controvertido.
Além disso, não está demonstrado que a Autora tenha aí manifestado uma posição expressa, de reconhecimento da existência da doação ou outra com semelhante natureza e efeito. Não licitou tal verba, nem qualquer outra, e limitou-se a receber as tornas devidas.
Por isso, não se alcança como se pode considerar que a Autora alegou na petição inicial factos cuja veracidade não pode desconhecer. Só o simples facto de o bem ter sido partilhado com menção da existência de um litígio quanto ao mesmo já seria suficiente para afastar a possibilidade de a Autora ter agido de má-fé, pelo simples facto de não se ter referido ao inventário nos termos preconizados na sentença.
Em segundo lugar, para além do objetivo facto de ¼ de determinado bem ter sido partilhado nos apontados termos, não está demonstrado que a Autora sabia, de forma inequívoca e sem margem para dúvidas, que se tratavam dos mesmos vinhos. A Autora fica agora a saber, e convencida pela via judicial, que são os mesmos vinhos.
É de recordar que, com exceção da sua participação no inventário, não foi alegado que a Autora teve alguma intervenção direta em factos que lhe permitissem saber de todos os contornos relativos aos vinhos em discussão nestes autos.
Em terceiro lugar, se a questão fosse tão simples e fácil de apreciar e resolver, não teriam decorrido mais de 46 anos sem o litígio conhecer solução definitiva. Muito menos, em inventários cumulados pendentes, as partes seriam, como foram, remetidas para os meios comuns e o Ministério Público requereria a partilha adicional dos vinhos nos termos que constam do ponto de facto nº 28 deste processo.
Em quarto lugar, perante a remessa dos interessados para os meios comuns, a Autora fez o que carecia de ser feito: levar a situação a um tribunal para que seja definitivamente decidido o litígio. Em vez de se arrastar a situação, dando azo a mais conflitualidade, suscitou a questão perante um tribunal, expondo a sua posição.
Em quinto lugar, como facilmente se apreende pela simples análise dos autos, o processo versa sobre um litígio que se tornou complexo de apreciar devido ao elevado período de tempo que decorreu desde os factos, em que nem doadores nem donatários são vivos, não há testemunhas que presenciaram a doação ou os factos dela contemporâneos e nem sequer foi apresentado um eventual escrito a que tenha sido reduzido o contrato. Por conseguinte, o apuramento dos factos não é fácil nem para as partes nem para o Tribunal.
Num tal contexto, perante uma situação que não era líquida e sobre a qual corriam há muito duas versões factuais (sendo que a que não obteve vencimento é muito anterior ao processo de inventário do pai da Autora, defendida pela sua falecida tia NN), ambas sustentadas em argumentos plausíveis, não é a circunstância de a exceção oposta à tese factual da Autora ter sido julgada procedente que pode levar à sua condenação como litigante de má-fé.
Pelo exposto, procede nesta parte a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
3.1. Não admitir a junção do documento apresentado com a apelação, determinando-se o seu desentranhamento dos autos e ulterior entrega à apresentante, condenando-se a Recorrente pela indevida apresentação desse documento em 0,5 UC, a título de multa, nos termos dos artigos 443º, nº 1 do CPC e 27º, nº 1, do RCP;
3.2. Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar a sentença na parte em que condenou a Autora como litigante de má-fé, confirmando-se em tudo o mais a sentença, sem prejuízo da modificação da matéria de facto ora operada.
A Recorrente suportará três quartos das custas e os Recorridos um quarto.
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Guimarães, 10.07.2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Alcides Rodrigues



[1] Esta última hipótese é habitualmente indicada na jurisprudência, mas parece-nos que atualmente é difícil de conceber face ao disposto no artigo 3º, nº 3, do CPC.
[2] Antunes Varela et al, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 533-534.
[3] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 502.
[4] Neste sentido o acórdão desta Relação de Guimarães de 11.02.2021, proferido no processo 171/15.1T8PRG-A.G1, pelo mesmo coletivo do presente acórdão, mas relatado pelo ora 2º adjunto.
[5] Neste sentido, Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, em Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2ª edição, 2014, Almedina, pág. 397.
[6] É de destacar que a confissão, segundo o nº 2 do art. 356º, pode ser feita «em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal», portanto, desde logo, em declarações de parte.
[7] Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, pág. 213.
[8] Acessível em https://blogippc.blogspot.com/2017/11/jurisprudencia-736.html.
[9] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, págs. 168 e 169.
[10] Assim deduzimos, uma vez que no processo eletrónico os documentos não se encontram numerados. Mas estamos a referir-nos aos registos da Casa do .... Esses registos também integram os documentos juntos pela Ré contestante.
[11] As procurações foram juntas aos autos em 20.01.2021 e, como desenvolveremos mais à frente, numa primeira fase, tal como afirmado por alguns Réus, as declarações de existências eram assinadas pelo FF, que estava à frente da Quinta ....
[12] Os juízos de valor ou de direito não retratam ocorrências da vida real, quer internas, quer externas, mas sim o efeito e consequência dessas mesmas ocorrências, que compete ao juiz extrair na sentença. Tudo o que não se cinja ao facto objetivo, tal como ele ocorre no mundo real, introduz um elemento subjetivo, que é já a análise valorativa da ocorrência da vida real.
[13] Vinho velho.
[14] Certo significa que é verdadeiro, exato, que não falha, que está garantido ou, ainda, que está convencido.
[15] Algo muito próximo de uma lapalissada: o que está em conta corrente é o que está na conta corrente.
[16] Constitui exceção à referida regra a doação pura feita a incapaz (art. 951º, nº 2, do CCiv), o que bem se compreende.
[17] Rute Teixeira Pedro, Código Civil Anotado, vol. I, Ana Prata (Coord.), Almedina, pág. 1156.
[18] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, pág. 268.
[19] Rute Teixeira Pedro, ob. cit., pág. 1171.
[20] V.g., o abuso do direito de ação.
[21] António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do direito de acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, pág. 28.