Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO CHAVES | ||
Descritores: | NULIDADE DA SENTENÇA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 02/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I – O juiz de julgamento não pode apreciar a relevância penal da conduta imputada ao arguido a não ser na sentença depois fixar os factos tidos por provados e não provados e de fundamentar esse segmento da decisão; II – A convolação jurídica dos factos descritos na acusação não constitui uma questão prévia ou incidental mas uma questão de fundo, só podendo, por isso, ser apreciada na estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal, depois julgados os factos considerados provados e não provados, com indicação dos respectivos fundamentos; III – A sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, ou seja, a descrição especificada dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das razões de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, é nula (artigo 379.º, n.º 1, a) do mesmo diploma). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães I – Relatório 1. No processo comum singular n.º 1266/22...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz ..., realizado o julgamento, foi proferida sentença em 03-07-2024, depositada na mesma data, com o dispositivo seguinte (transcrição): «Nestes termos, e por se considerar que, efectivamente, o comportamento em apreço será subsumível ao tipo legal matricial previsto no art. 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, procedendo-se assim à necessária convolação jurídica dos factos descritos no libelo acusatório, e destarte atenta a natureza semi-pública deste crime, mais se verificando os requisitos exigidos pelas disposições conjugadas dos arts. 113º e 116º, ambos do C. Penal, e 51º, nº 3, do CPP, atenta a não oposição por parte do arguido, julgo válida e relevante a desistência de queixa formulada por quem de direito, pelo que a homologo e, consequentemente, declaro extinto o procedimento criminal instaurado nos presentes autos contra o arguido AA. Sem custas. * Consequentemente, nos termos do art. 277º, al. e), do CPC, julgo extinta, por impossibilidade legal, a instância referente ao pedido de indemnização civil deduzido pela .Sem custas, também nesta parte, atendendo ao valor do pedido, que se fixa em € 153,51, e ao disposto no art. 4.º, n.º 1, al. n), do RCP.» 2. Inconformado com a decisão, recorreu o Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): «1. O Ministério Público acusou o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de ofensas à integridade física no âmbito de espetáculo desportivo, previsto e punido no artigo 33º, n.º 2, al. a), da Lei 39/2009, de 30 de julho, na redação introduzida pela Lei 113/2019, de 11 de setembro; 2. Realizou-se o julgamento, tendo o arguido confessado a prática dos factos de que era acusado; 3. No seu decurso o ofendido desistiu da queixa que havia apresentado contra o arguido, desistência que o M.isso Juiz apreciou; 4. E, concluindo que os factos que lhe eram imputados integravam singelamente o tipo previsto no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, atendeu à natureza semipública do crime tido por subsistente, julgando subsequentemente válida e relevante a desistência da queixa, e, declarando, em consequência, extinto o procedimento criminal instaurado contra aquele; 5. Mantém o Ministério Público o entendimento de que os factos imputados ao arguido integram a previsão do artigo 33º da Lei n.º 39/2009, de 30/07, na redação da Lei 113/2019, em vigor na data da sua prática; 6. Daí o recurso; 7. Como já se aludiu, entendeu o M.isso Juiz que os factos constantes da acusação se não subsumiam à previsão do artigo 33.º da Lei n.º 39/2009, de 30/07, na redação vigente à data da sua prática; 8. Para assim concluir, ateve-se essencialmente às exposições de motivos das propostas que deram origem à Lei n.º 39/2009, de 30/07, na sua versão originária, bem como da Lei 113/2019, de 11/09, que efetivou alterações ao referido diploma, e que fixou a tipificação prevista nos seus artigos 33º e 34º; 9. Admite-se que com a Lei n.º 39/2009, de 30/07, se visava suprir algumas das assumidas insuficiências da Lei n.º 16/2004, de 11/05, mormente no que respeitava a grupos organizados de adeptos e ao registo e acesso desses grupos aos recintos desportivos; 10. Mas foi-se mais além, pois que, mantendo-se a penalização das manifestações de violência associadas ao desporto, ampliava-se o âmbito da proteção normativa à segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos e alterava-se o regime sancionatório, quer quanto às previsões penais, incluindo as penas acessórias, quer quanto às contraordenações; 11. A nova incriminação contrastava com a sua antecessora, prevista no artigo 26º da Lei 16/2004, que a titulava como tumulto, que punia aquele que, durante um espetáculo desportivo, no interior do recinto desportivo, atuando em grupo, atentasse contra a integridade física de terceiros, desse modo provocando reações dos restantes espectadores e colocando em perigo a segurança no interior do recinto desportivo; 12. Com o novo normativo, a ofensa à integridade física da vítima, ocorrida durante o espetáculo desportivo, perpetrada por elemento ou elementos de um grupo, era suficiente para o preenchimento do tipo; 13. Patentemente excluía-se, em ambos os casos, a possibilidade de a ofensa à integridade física dos ofendidos ser punível quando resultasse de uma ação individual, não enquadrável ou inserida em atuação grupal; 14. A subsequente alteração da Lei 39/2009, operada através da Lei 52/2013, de 25/07, introduziu uma primeira inflexão ao tipo, agravando, ao mesmo tempo, a pena: deixou ser necessária uma atuação grupal, bastando à incriminação que o agente infligisse danos na integridade física da vítima com a colaboração de pelo menos outra pessoa; 15. A segunda alteração à Lei 39/2009, operada através da Lei 113/2019, introduziu uma segunda inflexão ao tipo: a incriminação passou a bastar-se com qualquer comportamento do agente ofensivo da integridade física da vítima, quer tivesse colaboração de outras pessoas quer resultasse de uma decisão e atuação totalmente individual; 16. A associação tendencial - dir-se-ia subconsciente -, do tipo ao público, aos espetadores, desapareceu, pendor que foi mantido na redação atualmente em vigor vinda da Lei 40/2023, de 10/08; 17. E é por isso que parece hoje indiscutível que qualquer das pessoas referidas na alínea a), do artigo 2º, da Lei 39/2009, na redação vigente na data dos factos como na atual, e, especificamente, o praticante, pode ser agente do crime; 18. De resto, como já decorria do artigo 2º da Lei 39/2009, desde a redação introduzida pela Lei 113/2019, a lei aplicava-se, e aplica-se, a todos os espetáculos desportivos e a acontecimentos relacionados com os eles relacionados, incluindo comportamentos em locais destinados ao treino e à prática desportiva e em deslocações de adeptos e agentes desportivos; 19. Lei que, por força do artigo 3º, alínea a), quer na redação vigente quer na redação em vigor na data da prática dos factos, é também necessariamente aplicável, mormente nas suas manifestações penais, aos praticantes, como é o caso dos autos; 20. E daí que a interpretação da norma incriminatória escolhida pelo M.isso Juiz surja como inadmissivelmente restritiva; 21. Tal interpretação parte, por um lado, de uma avaliação estática do fenómeno da violência associada ao desporto, em particular ao futebol, e, por outro, da desvalorização do sentido da evolução das respostas que historicamente motivou; 22. E por isso é contrária à real vontade do legislador, pelo menos desde 2019; 23. Com efeito, a ideia de que os fenómenos de violência associados ao espetáculo desportivo, apenas emergem ou podem emergir de atos praticados por adeptos e já não por agentes desportivos, nomeadamente contra outros agentes desportivos, é hoje profundamente redutora; 24. Assim, se o diploma original de 2009 acolhia uma matriz de violência associada essencialmente aos comportamentos dos adeptos, a partir de 2019, com a Lei 113/2019, a norma do artigo 33º, estendeu o seu âmbito de aplicação a todos os agentes desportivos; 25. Se assim não fosse, o combate penal ao segmento da violência associável à influência que o comportamento dos jogadores tem no espetáculo desportivo, e, consequentemente, sob os espetadores, e a violência associada à xenofobia e ao racismo expressamente visado pelo legislador, não teria lugar e estaria, no geral, condenado ao insucesso; 26. Ao contrário do decidido o âmbito de aplicação do diploma, em vez da restrição propugnada no despacho, foi-se progressivamente alargando, em termos de abarcar, na atualidade, praticamente todas as situações relacionadas com a violência no fenómeno desportivo; 27. Com efeito, o âmbito da aplicação da lei evolui desde a afirmação de que se aplicava a todos os espetáculos desportivos (cf. artigo 2º da Lei 39/09, versão originária), para a afirmação de que se aplicava “…a todos os espetáculos desportivos…, incluindo celebrações de êxitos desportivos, comportamentos em locais destinados ao treino e à prática desportiva,….e em deslocações de adeptos e agentes desportivos de e para os recintos ou complexos desportivos e locais de treino…” (cf. versão da Lei 113/2019), até à afirmação de que se aplicava também às “…concentrações de adeptos prévias, simultâneas ou posteriores ao espetáculo desportivo, com exceção dos casos expressamente previstos noutras disposições legais” (cf. versão da Lei 40/2023); 28. O sentido e dinâmica do alargamento do âmbito de aplicação da Lei relativa à violência e segurança nos e dos espetáculos desportivos é, pois, evidente; 29. Ou seja, deixou de visar apenas o comportamento dos adeptos nos locais que lhes estavam destinados nos recintos para abranger quaisquer acontecimentos relacionados com o fenómeno desportivo, incluindo os que ocorressem em locais destinados ao treino e à prática desportiva e a adeptos ou agentes desportivos que se deslocassem de ou para os recintos desportivos e de ou para os recintos ou nos locais de treino; 30. Por outro lado, é notório que quando o legislador quis intencionalmente restringir a conduta típica a uma categoria específica de agentes (por exemplo, apenas aos adeptos) disse-o expressamente, como sucedia e sucede nas situações previstas no artigo 29.º e 30.º (embora este só na redação da Lei 40/2023), nas quais se exige que o perpetrador atue inserido num grupo de adeptos; 31. Relativamente aos demais tipos, neles se incluindo o previsto no artigo 33º, o legislador usou a expressão “quem”, comumente utilizada em muitos outros tipos legais com um âmbito de aplicação subjetivamente geral e indeterminado; 32. Trata-se, portanto, de um crime comum, pois o tipo não exige qualquer qualidade especial do agente ou a sua pertinência a ente coletivo, em contraste com o que resultava da sua versão originária ou com a que lhe foi conferida pela Lei 52/2013, em que se tratava de um tipo plurissubjetivo - implicando a participação necessária de uma pluralidade de agentes ou de mais que uma pessoa; 33. O que, como já vimos, deixou de suceder com revisão de 2019; 34. E, tendo que assumir-se, por força do disposto no artigo 9º, n.º 3, do Código Civil, que o legislador soube exprimir-se em termos adequados, então não pode restar dúvida que a norma abrange também a condutas dos agentes desportivos, quer entre si, quer quando se dirijam a outros intervenientes no espetáculo ou acontecimento desportivo; 35. E se o elemento literal não consente a interpretação restritiva operada pelo M.isso Juiz, o mesmo se diga relativamente ao elemento teleológico; 36. É verdade que o bem jurídico protegido pela incriminação é, a título principal, a integridade física da pessoa ofendida. Todavia, a ratio da criação do tipo, mais gravemente punido do que o matricial, não se resume à proteção daquele bem jurídico; 37. Está também subjacente o reconhecimento de que as condutas violentas praticadas no contexto dos espetáculos pelos intervenientes, especialmente pelos jogadores, potenciam, por efeito mimético, o contágio a outras pessoas, aumentando assim o perigo de lesão; 38. A tensão emocional induzida por ambientes assim contaminados, gera condições para que qualquer ato violento dos intervenientes no espetáculo, especialmente se forem jogadores, conduza a episódios de grande violência coletiva; 39. E se, como inequivocamente decorre da intenção legislativa, o que se projetou foi a criação de condições que possibilitassem a realização de espetáculos desportivos com segurança, então deveria ser indiferente, como se julga que é, que esses atos de violência ocorram entre adeptos, entre agentes desportivos ou entre adeptos e agentes desportivos; 40. Num certo sentido, recuperou-se, parcial e implicitamente, o objeto do crime de tumulto, previsto no artigo 26º da Lei 16/2004, de 11/05, sem o requisito da atuação grupal; 41. E todos aqueles atos são suscetíveis de gerar reações em cadeia; 42. Por isso que a todos os potenciais agentes se exige o mesmo padrão de comportamento: um comportamento normativo e pacífico que contribua para a segurança do espetáculo desportivo e, consequentemente, para a segurança de espetadores, agentes desportivos e de todos os outros profissionais envolvidos no acontecimento; 43. À luz do que luz do que vem de sustentar-se, impõe-se, pois, rever as conclusões a que chegou o M.isso Juiz no douto despacho de que se recorre, pois que se fundaram em premissas que não podem subsistir; 44. Assim, os factos vertidos na acusação integram efetivamente o crime que nela vem imputado ao arguido; 45. Crime que, por ser de natureza pública, não admite desistência; 46. E daí que a apresentada pelo ofendido não seja válida, não podendo consequentemente ser homologada, como foi; 47. O despacho recorrido viola, pois, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 33º, n.º 1, da Lei 39/2009, na redação da Lei 113/2019, e 51º, n.º 1 e 2, do Código Processo Penal; Termos em que deve ser revogado, determinando-se que, subsequentemente, seja proferida sentença que aprecie o mérito da acusação, com o que, ao que se crê, se fará justiça!» 3. O arguido AA respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição): «1 -O arguido confessou os factos da acusação e o ofendido desistiu da queixa; 2 - O Tribunal “a quo” homologou a desistência e declarou extinto o procedimento criminal; 3 - O Ministério Público recorreu da Douta Sentença por entender que o crime de que o arguido vinha acusado, não admite a respectiva desistência de queixa por se tratar de violência no âmbito do desporto; 4 – Ora, a Douta Sentença recorrida bem andou quando entendeu que a legislação objecto do presente recurso sobre o crime no desporto pretende proteger a paz pública e visa as colectividades desportivas, adeptos e agentes, e não os actos pessoais, individuais, como foi o caso dos autos; 5 - O Tribunal “a quo” mais esclareceu que: “Excluído da abrangência do tipo legal, salvo melhor opinião, ficará (quer à luz da pretérita tipificação, quer da actual) a situação do agente que, dentro ou fora do estádio, atinge a integridade física de um terceiro ao arredio do fenómeno desportivo.” 6 - Pois, “(…) a conduta dos praticantes desportivos – ainda que acabados de serem excluídos do jogo pelo árbitro, como era o caso dos autos – que agridem outro jogador (da mesma ou de outra equipa) também se não perfila como inserida no contexto da prática desportiva tout court, antes consubstanciando uma situação de ofensa à integridade física a despeito da prática ou do espectáculo desportivo” 7 - A situação em causa mais não é que uma “altercação individual, que já nada tem a ver com o desporto em si.” 8 - Assim, a Douta Decisão recorrida deverá ser mantida nos seus precisos termos porque nenhuma censura merece. Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ªs, como sempre, a melhor JUSTIÇA» 4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na vista a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer, afirmando, em conclusão, que o recurso do Ministério Público merece integral provimento, porquanto o crime imputado ao arguido não reveste natureza semi-pública, como erradamente se exarou na sentença recorrida, já que a especial norma incriminatória do arguido não revela a necessidade de queixa por parte do ofendido para que haja lugar o exercício da acção penal, sendo então, e por via disso, um crime de natureza pública, com a consequentemente não admissão de desistência de queixa. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve resposta. 6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão. * II – FUNDAMENTAÇÃO1. É o seguinte o teor da sentença recorrida (transcrição): «I – Relatório. Em processo comum, para julgamento com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público acusou AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia ..., do concelho ..., nascido a ../../1997, solteiro, pintor, residente na Rua ..., ..., da freguesia ..., concelho ..., imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelos artigos 33.º e 34.º, n.º 1, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º Lei n.º 92/2021, de 17 de Dezembro, pelos factos descritos na acusação de fls. 95 a 100, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. * DD formulou pedido de indemnização civil contra o arguido AA, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de € 1635,00 a título de compensação pelos danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos com a actuação do demandado.* A Unidade Local de Saúde .../EMP01..., E.P.E. formulou pretensão indemnizatória contra o arguido AA, requerendo a condenação do mesmo no pagamento de uma indemnização no valor de € 153,51 correspondente às despesas suportadas com os tratamentos médicos dispensados ao queixoso DD.* O arguido apresentou contestação escrita, onde ofereceu, em síntese, o merecimento dos autos.Procedeu-se ao julgamento com observância do formalismo legal, tendo entretanto o demandante DD e o demandado AA logrado alcançar acordo no que tange ao pedido cível pelo primeiro apresentado, o qual o Tribunal homologou na audiência de julgamento. * Questão prévia:Veio, concomitantemente, o queixoso DD declarar que desiste da queixa que oportunamente formulou contra o aqui arguido. Cumpre decidir da validade e eficácia da desistência da queixa. Para o efeito, cumpre aferir se os factos imputados ao arguido se subsumem à previsão do art. 33.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, recorrendo-se imediatamente à exposição de motivos das propostas que deram origem à Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (na versão originária) e à exposição de motivos que esteve na origem da terceira alteração ao referido diploma legal (que fixou a tipificação prevista nos arts. 33.º e 34.º, na redacção em vigor à data da prática dos factos). Como decorre da primeira das motivações, a Lei n.º 39/2009 veio suprir as insuficiências da Lei n.º 16/2004, de 11 de Maio, debruçando-se essencialmente sobre os grupos organizados de adeptos e o registo e acesso dos grupos organizados de adeptos ao recinto desportivo, o que se reflectiu na originária tipificação dos artigos 33.º e 34.º do diploma em escrutínio. Já a exposição de motivos que se debruçou sobre a terceira alteração do referido diploma (efectuada através da Lei n.º 113/2019, de 11/09) – que serve de preâmbulo à Proposta de Lei 153/XIII/4 – estabeleceu “como prioridade a intervenção sobre os fenómenos de violência associados aos espetáculos e, particularmente, às atividades desportivas, com especial incidência na dissuasão das manifestações de racismo, de xenofobia e de intolerância, promovendo-se o comportamento cívico e a tranquilidade na fruição dos espaços públicos”, esclarecendo “É ainda necessário enquadrar a recentemente criada APCVD, melhorar a capacidade dissuasora do seu regime sancionatório, tornar mais eficaz a sua aplicabilidade, conferir maior exigência ao enquadramento previsto para os grupos organizados de adeptos e reforçar a celeridade de tramitação e a transparência dos processos contraordenacionais que eram da responsabilidade do IPDJ, I.P // …// Relativamente ao reforço do caráter dissuasor do regime sancionatório a aplicar, prevê-se o aumento dos limites mínimos das coimas, a aplicação obrigatória de determinadas penas e sanções acessórias e a punibilidade dos adeptos que introduzirem, possuírem, transportarem ou utilizarem determinados instrumentos e objetos de apoio aos clubes e sociedades desportivas, fora das zonas previstas para o efeito. // No que respeita ao regime aplicável aos grupos organizados de adeptos, determina-se um aumento de 100% dos limites mínimos das coimas aplicáveis aos casos de atribuição de qualquer apoio a grupos organizados de adeptos não registados, nomeadamente através da concessão de facilidades de utilização ou cedência de instalações, de apoio técnico, financeiro ou material. // Por outro lado, definem-se zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos, criando-se um cartão de acesso às mesmas e impondo-se a venda eletrónica dos respetivos títulos de ingresso. Estabelece-se também a proibição da introdução, posse, transporte ou utilização, fora daquelas zonas, de megafones e outros instrumentos produtores de ruídos, por percussão mecânica e de sopro, bem como bandeiras, faixas, tarjas e outros acessórios, de qualquer natureza e espécie, de dimensão superior a 1 metro por 1 metro, passíveis de serem utilizados em coreografias de apoio aos clubes e sociedades desportivas. Finalmente, introduz-se, ao nível das punições previstas para os promotores do espetáculo desportivo, a sanção acessória de interdição de zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos // Com vista ao reforço da segurança na realização dos espetáculos desportivos, prevê-se ainda a possibilidade de adoção de medidas que impeçam a cedência de títulos de ingresso a adeptos de clubes ou sociedades desportivas visitantes, nos casos em que tenham ocorrido incidentes graves em espetáculos desportivos anteriores. // Por fim, propõe-se uma atualização e reforço do regime relativo aos ilícitos disciplinares, prevendo-se sanções específicas para a violação do dever de correção, moderação e respeito e para o incitamento ou defesa da violência, do racismo, da xenofobia, da intolerância ou do ódio”. No decurso do processo legislativo, que se pode acompanhar no sítio electrónico da AR, verifica-se que, na proposta inicial de revisão à Lei n.º 39/2009 (que veio a acontecer através da Lei n.º 113/2019), não constava a alteração aos arts. 33.º e 34.º, sendo que foi no âmbito do debate na especialidade que, e depois da discussão e votação, venceu a proposta do grupo Parlamentar do PSD, de onde passou a constar a redacção vertida, em especial, no artigo 33.º com o seguinte teor : «Quem, encontrando-se no interior do recinto desportivo, durante a ocorrência de um espetáculo desportivo, ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, com ou sem a colaboração de pelo menos outra pessoa, ofender a integridade física de terceiros é punido com pena de prisão de 6 meses a 4 anos, ou com pena de multa até 600 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.». Com esta redacção, e de acordo com a evolução legislativa mais recente (reiterada na recente Lei n.º 40/2023, de 10 de Agosto, cfr. exposição de motivos da Proposta de Lei 44/XV/1), quis o legislador aprofundar os «mecanismos dissuasores da intolerância ou de discriminação e estimulando o comportamento cívico e a tranquilidade na fruição dos espaços públicos e de acesso público», na senda, aliás, do propugnado na Convenção do Conselho da Europa sobre uma Abordagem Integrada da Segurança, da Protecção e dos Serviços por Ocasião dos Jogos de Futebol e outras Manifestações Desportivas (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/87, DR I, n.º 57, de 10/03/1987), procurando capacitar as autoridades com meios legais, humanos e técnicos similares àqueles que existem no resto do espaço europeu. Da leitura da referida Convenção, esmiuçada, por seu lado, no parecer apresentado pelo então Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) aquando da discussão e votação da citada Lei n.º 113/2019, atinge-se que foi intenção do legislador punir o adepto ou grupos de adeptos que pratiquem a conduta ali tipificada (e que remete, ademais, para o crime de ofensa à integridade física simples, como veio a ser clarificado com a alteração legislativa propugnada pela Lei n.º 40/2023). Excluído da abrangência do tipo legal, salvo melhor opinião, ficará (quer à luz da pretérita tipificação, quer da actual) a situação do agente que, dentro ou fora do estádio, atinge a integridade física de um terceiro ao arredio do fenómeno desportivo (v.g., o caso caricato do cônjuge que descobre, naquele momento, que o outro cônjuge lhe é infiel e, por isso, decide travar-se de razões com ele; o caso do policia que agride o cidadão, seja ele ou não adepto, extravasando o exercício dos seus poderes-deveres funcionais, etc.; em síntese, nestes dois exemplos a actuação dos agentes agressores está para lá do fenómeno desportivo, nada tendo a ver com ele). Outrossim, a conduta dos praticantes desportivos – ainda que acabados de serem excluídos do jogo pelo árbitro, como era o caso dos autos – que agridem outro jogador (da mesma ou de outra equipa) também se não perfila como inserida no contexto da prática desportiva tout court, antes consubstanciando uma situação de ofensa à integridade física a despeito da prática ou do espectáculo desportivo. Não que se defenda que, e independentemente das responsabilidades disciplinares do agente, tal comportamento fique arredado da tutela do direito penal. Tão só que se não acolhe que esse comportamento – de acordo aliás com as razões de ser plasmadas na citada convenção e melhor escalpelizadas no citado parecer do IPDJ – possa subsumir-se ao tipo legal plasmado no art. 33.º da Lei n.º 39/2009. Aliás, é de salientar, na senda do comentário ao preceito em causa anotado por Jorge Gonçalves (in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. II, Universidade Católica Editora, p. 754) e numa altura em que o tipo exigia ainda um comportamento grupal, que o bem jurídico tutelado, mais do que a simples integridade física, é a paz pública, pelo que só os comportamentos que atentem contra essa paz pública ou alterem a ordem pública são tutelados pela dita norma. Daí que, uma altercação de onde resulta uma agressão de um a outro jogador, ainda que no âmbito de um espectáculo desportivo, sem mais, não tem cabimento teleológico-finalístico no referido preceito. Reitera-se que na base da criação da predita Lei e, em concreto, da referida incriminação, estava o comportamento dos adeptos (primeiro em grupo e, depois, isoladamente considerados) ou até de outras pessoas estranhas à produção do espectáculo desportivo. Até porque, como se observa, o comportamento dos intervenientes no jogo (ou como a Lei os define, os “agentes desportivos”, cfr. art. 3.º, al. a), do citado diploma) será, por outra via, designadamente disciplinar e contra-ordenacionalmente, sancionado. Finalmente, a infracção em apreço é, como aliás se acautela na acusação deduzida, punida com a pena acessória prevista no art. 35.º da Lei n.º 39/2009. Ora, salvo o devido respeito, a aplicação do referido preceito – e a necessária incriminação – só fará sentido, à luz dos critérios constitucionais de proporcionalidade, necessidade e adequação (art. 18.º, n.º 2, da Const. da Repúbl. Portuguesa), se cogitarmos como agente específico do crime em apreço, p. e p. pelo art. 33.º da Lei n.º 39/2009, alguém que, não intervindo directamente no espectáculo desportivo, senão como espectador, adepto ou simples observador, ponha em causa a integridade física dos ali presentes e desencadeie um atentado à referida paz pública. Nunca uma situação de altercação individual, que já nada tem a ver com o desporto em si. Como se disse, e ainda que sendo a conduta em apreço sancionada pelo direito nos termos gerais previstos no art. 143.º do Cód. Penal, não se vê que a mesma possa ser cometida pelos agentes desportivos, designadamente os jogadores, ainda que (obviamente) não a coberta de qualquer causa da justificação ou desculpação (pela evidente razão de que tais condutas ultrapassam as regras consentidas pela modalidade desportiva). De resto, não é de estranhar algumas antinomias legais (vg., cfr. a punição do comportamento tipificado no art. 30.º, n.º 3, al. b), face ao previsto no art. 33.º da referida Lei, na sua actual redacção) previstas no regime sancionatório da Lei n.º 39/2009, e que carecem de ser interpretadas à luz da posição de cada um dos agentes na prática de cada um dos aludidos comportamentos. Dispositivo: Nestes termos, e por se considerar que, efectivamente, o comportamento em apreço será subsumível ao tipo legal matricial previsto no art. 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, procedendo-se assim à necessária convolação jurídica dos factos descritos no libelo acusatório, e destarte atenta a natureza semi-pública deste crime, mais se verificando os requisitos exigidos pelas disposições conjugadas dos arts. 113º e 116º, ambos do C. Penal, e 51º, nº 3, do CPP, atenta a não oposição por parte do arguido, julgo válida e relevante a desistência de queixa formulada por quem de direito, pelo que a homologo e, consequentemente, declaro extinto o procedimento criminal instaurado nos presentes autos contra o arguido AA. Sem custas. * Consequentemente, nos termos do art. 277º, al. e), do CPC, julgo extinta, por impossibilidade legal, a instância referente ao pedido de indemnização civil deduzido pela.Sem custas, também nesta parte, atendendo ao valor do pedido, que se fixa em € 153,51, e ao disposto no art. 4.º, n.º 1, al. n), do RCP.» * 2. ApreciandoDispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1]) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir consiste em saber se é válida e relevante a desistência de queixa apresentada pelo ofendido DD. Haverá ainda que conhecer, oficiosamente (art. 379.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), da nulidade prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 379.º do Código de Processo Penal. 2.1. Da nulidade prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 379.º do Código de Processo Penal Como é sabido, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, tudo sem prejuízo do regime aplicável à alteração de factos (artigo 339.º, n.º 4). Na fase do julgamento, nisto se traduz o objecto do processo, que é conhecido na sentença, acto decisório do juiz por excelência (artigo 97.º, n.º 1, a)). A sentença divide-se em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo (artigo 374.º). A fundamentação é composta pela enumeração dos factos provados e não provados bem como pela exposição completa mas concisa das razões, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2). Os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença são todos os factos constantes da acusação e da contestação, os factos não substanciais que tenham resultado da discussão da causa e os factos substanciais resultantes da discussão da causa e aceites nos termos do artigo 359.º([2]). A fundamentação da sentença penal decorre da exigência de total transparência da decisão, desta forma possibilitando aos seus destinatários e à própria comunidade a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador e o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso. E por isso a lei fulmina com nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, isto é, quando não contenha a descrição especificada dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das razões de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 379.º, n.º 1, a)). No caso em apreço, a sentença recorrida é completamente omissa relativamente a esta matéria, pois não contém qualquer referência relativamente aos factos provados e não provados e, como tal, também não faz qualquer exposição das razões que fundamentariam a decisão sobre a matéria de facto com indicação e exame crítico das provas que serviriam para formar a convicção do tribunal. A desistência de queixa do ofendido e a sua apreciação em nada afecta o conhecimento desta matéria porque o juiz de julgamento não pode apreciar a relevância penal da conduta imputada ao arguido a não ser na sentença depois fixar os factos tidos por provados e não provados e de fundamentar esse segmento da decisão É o que resulta do facto de essa matéria não constituir uma questão prévia ou incidental e de a estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal exigir que o juiz obedeça à ordem de apreciação das questões estabelecida nessa disposição legal. O tribunal a quo entendeu proceder à convolação jurídica dos factos descritos na acusação mas a alteração da qualificação jurídico-penal dos factos não constitui, no nosso sistema processual, uma questão prévia ou incidental, mas uma questão de fundo, só podendo, por isso, ser apreciada na estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal, depois julgados os factos considerados provados e não provados, com indicação dos respectivos fundamentos([3]). Ainda que os factos resultantes da prova produzida sejam coincidentes com os da acusação, torna-se necessário que o tribunal de julgamento proceda à sua fixação na sentença, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, após o que se segue o tratamento jurídico dos factos apurados. O que bem se compreende pois assegura o aproveitamento integral e pleno do acto processual que é o julgamento, possibilitando, em caso de divergência de posições, uma apreciação total dos problemas pela instância superior, por via de recurso interposto, dado existirem, desta maneira, todos os elementos para uma decisão cabal. Desta forma, face ao disposto no art. 379.º, n.º 1, a), a sentença recorrida é nula. Este vício afecta o acto decisório em si mesmo, bem como os actos que dele dependem e que podem ser afectados pela nulidade, como seja o recurso que sobre ele recaiu (artigo 122.º, n.º 1). A procedência desta questão prejudica o conhecimento da questão colocada no recurso (artigo 608.º, n.º 2, 1ª parte do CPC ex-vi artigo 4.º do CPP) na medida em que, declarando-se nula a sentença recorrida, impõe-se que a mesma seja reformulada pelo tribunal a quo através da prolação de nova decisão expurgada da apontada nulidade. * III – DISPOSITIVONestes termos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em declarar nula a sentença recorrida, a qual deve ser reformada pelo mesmo tribunal, proferindo nova sentença que supra a apontada nulidade nos termos sobreditos. * Sem tributação.* (O acórdão foi processado em computador pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)* Guimarães, 11.02.2025 Os Juízes Desembargadores Fernando Chaves (Relator) Pedro Cunha Lopes (1º Adjunto) Paulo Almeida Cunha (2º Adjunto) [1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem. [2] - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 292. [3] - Cfr. Acórdãos da Relação da Lisboa de 24/03/2010, Proc. 470/04.8TAOER.L1-3 e de 17/02/2011, Proc. 1517/05.6JFLSB.L1-9; Acórdãos da Relação de Coimbra de 23/10/2019, Proc. 669/15.1T9CLD-A.C2 e de 18/05/2022, Proc. 787/13.0TACTB.C2, todos disponíveis em www.dgsi.pt. |