Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
200/14.6TCGMR.G2
Relator: ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA
Descritores: RESPONSABILIDADE
AUTOR DO PROJECTO
DIRECTOR TÉCNICO DA OBRA
DONO DA OBRA
TERCEIROS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do Relator)

I- Enquanto um dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual a “ilicitude” comporta duas vertentes: a) violação de um direito de outrem; b) violação da lei que protege interesses alheios.

II- Nesta segunda vertente, para que lesado tenha direito à indemnização, três requisitos especiais se mostram indispensáveis, a saber: i) que a lesão dos interesses do particular corresponda à violação de uma norma legal; ii) que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada; iii) que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

III- Esta tutela de interesses privados terá que ser direta, ou seja, não poderá constituir um mero reflexo da proteção dos interesses coletivos que, como tal, a lei visa salvaguardar.

IV- As normas relativas ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (D.L. n.º 555/99, de 16.12) e aos deveres impostos ao diretor técnico da obra (D.L. n.º 119/92, de 30.06), não visam tutelar somente interesses de ordem pública e coletiva, mas também interesses particulares (e daí a sua chamada natureza bifronte), cuja violação implica ilicitude civil.

V- No entanto, os interesses particulares que tais normas visam acautelar respeitam apenas ao dono da obra, pois que só este é que diretamente está interligado com a construção e execução da mesma e com os danos que eventualmente lhe sobrevenham a falta de cumprimento daquelas normas de caráter público; e não já outro terceiro, que só reflexamente viu os seus interesses afetados por via da violação das apontadas normas de ordem coletiva.
Decisão Texto Integral:
Recorrentes: (…) Construções, Lda. (recurso independente)
(…) (recurso subordinado)

Recorridos: (…). (recurso independente)
(…) (recurso subordinado)

Acordam no Tribunal da Relação de ...:

I. RELATÓRIO

(…) (atualmente (…)) intentou a presente ação declarativa comum contra (...) peticionando a condenação dos réus a, solidariamente, pagarem à autora a quantia de € 332.903,11, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Mais pediu a condenação da 1ª ré, (…)., a efetuar as obras de conservação do aterro e do talude, para evitar mais derrocadas de terras, alterando os projetos efetuados, tendo em conta a linha de água existente no prédio, bem como a executar o aterro com materiais adequados ao mesmo, de acordo com as melhores regras técnicas exigíveis pelas melhores regras de técnica e arte.

Para tanto, em suma, invocou a realização de obras de construção de edifícios levadas a cabo pela primeira ré e sob comando técnico dos demais réus, com violação de normas procedimentais de segurança que terão dado lugar a escorregamento de terras para a EN, provocando danos que a autora teve de suportar, no montante reclamado nos autos.

As rés (…) contestaram, pugnando pela improcedência da ação.

Em síntese, a 1ª ré alegou ter cumprido todas as normas regulamentares e procedimentais exigíveis, sublinhando que o aterro não foi da sua autoria, mas sim do vendedor, imputando a responsabilidade da derrocada à autora, na medida em que, aquando da construção da E.N., não executou um muro de suporte de terras no corte do talude que atualmente se situa imediatamente abaixo dos prédios por si construídos. Essa circunstância, associada à abundante chuva que caiu nos dias que precederam o sinistro e consequente saturação do solo está na causa da derrocada.

A ré (…) pugnou também pela improcedência da ação no que a si respeita, na medida em que todos os projetos que assinou foram elaborados por (…), então topógrafo, com quem estagiou na sociedade “….”.

Pediu também a intervenção principal provocada do referido (…), a qual veio a ser indeferida pelo despacho de fls. 312 e sgs.

Proferido o despacho a que alude o art. 596º do CPC e efetuada a prova pericial solicitada, realizou-se o julgamento com observância das formalidades legais.

Foi proferida sentença, entretanto anulada pelo Tribunal da Relação de ..., que aditou quesitos à perícia, nos termos que constam do acórdão de fls. 752 e segs..
Após nova produção de prova pericial, procedeu-se a realização da audiência de julgamento.

Na sequência, por sentença de 21 de Setembro de 2018, veio a julgar-se parcialmente procedente a ação e, em consequência, decidiu-se:

Condenar a ré ”(…) no pagamento, à autora “(…).”, da quantia de € 332.903,11 (trezentos e trinta e dois, novecentos e três euros e onze cêntimos), quantia esta acrescida de juros à taxa de 4% contados desde a citação até integral pagamento.
Mais foi a mesma ré condenada a conservar e intervir nas obras que efetuou em termos que impeçam a ocorrência de novas derrocadas, face à atual configuração do local.
No mais, julgou-se improcedente a ação, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos.

Inconformada com o assim decidido, veio a ré (…) interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1. Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 1, al. a) do CPC, vem a presente apelação interposta da douta sentença de 21/09/2018, que condena a Recorrente no pagamento à A. da quantia de €332.903,11, acrescida de juros à taxa de 4% contados desde a citação até integral pagamento e a conservar e intervir nas obras que efetuou em termos que impeçam a ocorrência de novas derrocadas, face à atual configuração do local;
2. A Apelante impugna a decisão da matéria de facto dos pontos 46, 47, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 58, 61, 64, 66, 73 e 80 dos factos provados e da alínea f) dos factos não provados, entendendo que sobre aquela matéria deveria ter sido proferida a seguinte decisão:
46- O sinistro ocorrido a 2 de Abril de 2013 consistiu num escorregamento de terras;
47- Não provado.
50- Não provado.
51- Não provado.
52- Não provado.
53- Não provado;
54- Não provado;
55- Não provado;
58- Não provado;
61- Quando a autora mandou executar a Variante, naquele local, deveria ter considerado, na zona onde ocorreu o incidente, uma Passagem Hidráulica com dimensões superiores à que foi considerada;
64- Não provado;
66- Não provado.
73- O sinistro teve como consequência o corte da referida estrada à circulação automóvel de quaisquer veículos.
80- Não provado.
f- PROVADO APENAS QUE em 2004, naquele local, a A. procedeu a escavações numa altura variável entre 4,3 e 16 metros e não construiu um muro de suporte;
3. A Apelante funda a sua discordância no depoimento de (…), que é perentório quanto à inexistência de uma linha de água ou de uma bacia ou de uma concha propícias à acumulação de água no local da realização do aterro e, ainda, quanto ao facto de alguma vez ali ter existido água;
4. E no depoimento de (…) que, quanto ao mesmo aspeto, corrobora o de (…);
5. Funda ainda a sua discordância no valor atribuído à perícia e ao modo da sua apreciação, posto que esta tem como premissa incontestável a existência de uma linha de água no local (tendo-se provado o contrário) de modo que atribuem a origem da derrocada à “não consideração de drenagem numa zona onde existe uma nascente de uma linha de água”;
6. Especialmente quando, depois de repetido o julgamento, os Senhores Peritos não se conseguem entender quanto à existência de uma linha de água (com ou sem nascente) ou de um talvegue;
7. O mesmo sucedendo relativamente aos senhores engenheiros da Universidade do Minho;
8. Como tal, é legítimo questionar se os Senhores Peritos, confrontados com a inexistência de linha de água no local (e não foram), considerariam a deficiente execução do aterro, conjugada com a precipitação de água superior aos valores médios normais seriam suficientes para explicar o fenómeno;
9. Concomitantemente, funda ainda no valor atribuído à perícia por não se ter como presente que os Senhores Peritos não vislumbraram de que modo ocorreu o fenómeno de deslizamento de terras, nem os respetivos vestígios, tendo versado tão-somente sobre documentos elaborados por técnicos que não prestaram juramento legal;
10. O “Relatório da Comissão de Avaliação do Escorregamento do Talude na Variante de ...-...”, o “Relatório do LNEC – Análise do Deslizamento ocorrido ao km 115+850, a 2 de Abril de 2013” e os “Projetos da Realização da Variante ...-...” constituem o manancial documental que serviu de base à perícia e, quanto aos mesmos, a 1.ª Ré impugnou-os por falsos e sempre considerou, como considera, que constituem documentos tendenciosos, promovidos por entidades com interesse no desfecho da presente demanda, designadamente, com interesse na responsabilização dos RR. e consequente desresponsabilização da A. e da Câmara Municipal de ...;
11. Os esclarecimentos aos quesitos 2, 3, 13, 14, 15, 16, 17 e 28 são clarividentes no sentido de que os Senhores Peritos não efetuaram, eles mesmo, os juízos técnicos essenciais ao apuramento da verdade, limitando-se a crer nos juízos técnicos de pessoas não ajuramentadas;
12. Não há garantias de que as “amostras” recolhidas pela Comissão de Avaliação do Escorregamento do Talude na Variante de ...-... sejam efetivamente oriundas do aterro e não tenham sido contaminadas pelas chuvas intensas;
13. O depoimento de …, que no local efetuou escavações para as fundações dos edifícios, fomenta fundadas razões pra duvidar da origem das ditas amostras;
14. Não existe obrigatoriedade legal de realização de estudos geológicos e geotérmicos e pode suceder que estes, em determinados períodos, não detetem a existência de linhas de água;
15. Em resposta ao quesito 13.º, o Senhor Perito do Tribunal responsabiliza o 2.º R., a 3.ª Ré, a 4.ª Ré e a A., mas nunca a 1.ª Ré, na justa medida em que considera que se não fossem as omissões daqueles, a qualidade do aterro seria retificada e não teria ocorrido o evento em discussão nos presentes Autos;
16. O Senhor Perito do Tribunal considera ainda que a Passagem Hidráulica (PH) construída pela A. no local tinha dimensões manifestamente insuficientes e, como tal, não é possível concluir que a A., no local, tenha acautelado eficientemente o encaminho de águas;
17. Aliás, se a passagem hidráulica realizada no local pela A., quando da construção da variante, era suficiente, como explicar a necessidade da máscara drenante hercúlea que se visualiza nas fotos 30 e 31 do anexo 2 do Relatório Fotográfico do memorando que a A. juntou com a petição inicial (documento n.º 2)?
18. Destarte, a prova produzida e valorada pelo Tribunal, mostra-se viciada por pareceres técnicos externos, promovidos por entidades com interesse pessoal e direto na presente demanda, assim como pela opinião de técnicos não ajuramentados;
19. Funda ainda a sua discordância na ignorância a que foram votados os documentos juntos pela 1.ª Ré em 12/12/2016, onde se constata que a A. procedeu a escavações não apenas até ao limite da expropriação, mas também no interior dos limites do prédio da 1.ª Ré, situação que … equacionou como hipotética;
20. Funda ainda a sua discordância na desconsideração dos registos da quantidade de terras que foram retiradas da variante, incomensuravelmente superior à quantidade de terra utilizada no aterro (apenas 9740m3), muito menos significativa do que a quantidade de terra do talude da Variante (12.000m3), em conjugação com o documento n.º 1 junto com a Petição Inicial, de onde resulta que o terreno da 1.ª Ré tinha “pendentes com alguma inclinação e um perfil pouco irregular (…) com cota ligeiramente abaixo dos acessos confinantes”, perfeitamente reveladoras de que ocorreu um aterro diminuto, incompatível com a quantidade de terras que deslizaram sobre a Variante (800 camiões);
21. Funda ainda a sua discordância na desconsideração dos registos fotográficos do anexo 2 do documento n.º 2 junto com a Petição Inicial, que desmontam a tese de que só a crista do talude da Variante foi danificada;
22. E na ignorância das consequências do facto julgado provado em 18, de onde emerge que a A. já desde 2006 tinha perfeito conhecimento das novas condicionantes existentes no prédio da 1.ª Ré, nunca tendo considerado necessária a construção de um muro de suporte de terras do talude da Variante como o que agora/depois construiu;
23. Funda ainda a sua discordância na errada interpretação do depoimento de …, que quanto ao estado do talude da Variante é perfeitamente compaginável com as fotos n.os 1 e 2 do relatório fotográfico do anexo 2 do documento n.º 2 junto com a PI (totalmente invadido pela vegetação e árvores), e quanto à descrição do evento afirmou, em moldes que não levantam quaisquer dúvidas, que “já víamos a via rápida cheia de terra e cá em cima a terra ainda não tinha caído”;
24. A prova produzida, expurgada das contaminações de técnicos não ajuramentados e interessados, que basearam as suas apreciações em premissas falsas (como seja a existência de uma linha de água no local e “amostras” duvidosas), aponta no sentido de que a rutura ocorreu primeiro no talude da Variante e só depois no talude do aterro do prédio a 1.ª Ré, só assim se compreendendo a localização do veículo automóvel da foto n.º 6 do relatório fotográfico do anexo 2 do documento n.º 2 junto com a PI, que estando estacionado no prédio da 1.ª Ré aquando da ocorrência do deslizamento, não foi arrastado para a Variante, tendo ficado muito próximo das habitações;
25. Finalmente, funda ainda a sua discordância na total ausência de prova quanto ao ponto 80 da fundamentação de facto e à manifesta falência do argumento (ou presunção judicial) de que os estagiários não remunerados não têm qualquer intervenção ou colaboração nos documentos e projetos que assinam;
26. Face à prova produzida, não é possível determinar, com a necessária segurança, se o deslizamento ocorreu por rutura do talude da Variante (escavado e construído pela A. aquando da sua construção) ou se por rutura do aterro do prédio da 1.ª Ré;
27. Aliás, se os taludes realizados pela A., aquando da construção da variante, tinham segurança, qual a razão da realização de uma obra hercúlea como a que se verifica nas figuras 2.8 e 2.9 do relatório do LNEC?
28. E não se diga que tal se deveu às novas condicionantes (a construção do loteamento), pois é insofismável que a A. já desde o ano de 2006 que tinha perfeito conhecimento das novas condicionantes existentes no prédio da 1.ª Ré;
29. Não é despiciendo lembrar que a alegada rutura do aterro por virtude da sua pretensa inidoneidade vem invocada pela A. como estando associada a um fenómeno de acumulação de águas oriundas de nascentes que alimentaram uma ou mais linhas de água direcionadas para o interior do aterro, as quais não teriam sido consideradas por ausência de estudos geotécnico e geológico, que deveriam ter sido realizados pelo 2.º, pela 3.ª ou pela 4.ª RR., o que tudo resultou não provado;
30. Sem prescindir, os factos julgados provados nos pontos 21, 22, 23, 24, 35, 36 e 37 impõem como necessária conclusão a responsabilidade do 2.º Réu, da 3.ª Ré e da 4.ª Ré e, em caso algum, da 1.ª Ré;
31. A construção civil não é uma atividade livre e totalmente controlável pela vontade do dono da obra e/ou do empreiteiro, de modo que, se porventura a execução de determinado trabalho, como seja um aterro, não obedece aos critérios de segurança e nem às normas técnicas, é obrigação do 2.º Réu e da 4.ª Ré impedir a progressão dos trabalhos e exigir a respetiva retificação, sob pena, designadamente, desta última não atestar a execução da obra em perfeitas condições técnicas e de a Câmara Municipal de ... embargar administrativamente a obra;
32. As normas relativas ao regime jurídico de urbanização e aos deveres impostos ao diretor técnico da obra (DL nº 119/92 de 30/6) têm carácter bifronte, tratando-se de normas imperativas e de interesse público;
33. A 1.ª Ré é uma das pessoas coletivas que vê a confiança frustrada pelo 2.º, pela 3.ª e pela 4.ª RR., e não a pessoa coletiva que frustra a confiança da comunidade;
34. Concomitantemente, a 1.ª Ré alegou e provou (pontos 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39 da fundamentação de facto) que atuou sem culpa, isto é, sem razões para prever a ocorrência do sinistro como resultado necessário ou mesmo eventual da sua conduta;
35. Aliás, é incontornável que “Mesmo que um aterro seja bem realizado, não é de excluir a possibilidade de derrocada caso não seja acautelada a devida drenagem”, tarefa que é do projetista, tal como esclarecido à saciedade pelos Senhores Peritos;
36. Demonstrou-se que foi a A. quem, no local do escorregamento, procedeu a escavações numa altura variável entre 4,3 e 16 metros e não construiu um muro de suporte, tendo com efeito apenas deixado um talude que considerou suficiente;
37. Dispõe o art.º 1348.º, n.º 1 do Código Civil que o proprietário tem a faculdade de fazer no seu prédio escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra;
38. A lei tutela o interesse do proprietário no exercício da livre fruição do seu prédio, tirando proveito de certos atos, mas, por razões de justiça, não permite que o dono do prédio vizinho, com iguais direitos de gozo no plano legal, veja estes direitos sacrificados;
39. Nos termos dos factos julgados provados nos pontos 1 e 18, a A. tomou atempado conhecimento da nova condicionante existente no local e competia-lhe, por atribuição legal, garantir a segurança da Variante ...-..., razão pela qual, tendo perfeita consciência de que ali tinha realizado escavações, não pode ser desresponsabilizada pela ocorrência do sinistro;
40. A 1.ª Ré não pode ser responsabilizada pelo pagamento do muro, cujo custo corresponde a mais de metade do pedido indemnizatório;
41. Se é premissa da douta sentença recorrida que um aterro idóneo sempre prevenirá a ocorrência de um escorregamento como o que é objeto dos presentes Autos, não faz sentido algum que A. adote para reconstrução do talude uma solução muito mais dispendiosa e robusta;
42. Tendo ocorrido o deslizamento de terras, a urgência da intervenção da A. estava perfeitamente circunscrita à limpeza e restauro da via (para reabertura do tráfego automóvel) e à reposição do talude no estado anterior (para evitar novos deslizamentos de terras), nunca em relação à construção de uma nova obra – o muro;
43. Esta nova obra seria sempre responsabilidade exclusiva da A., enquanto entidade legalmente incumbida da segurança da Variante ...-... e considerando que tinha efetuado uma escavações no local;
44. O dever de indemnizar apenas compreende o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, sendo que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que pudesse ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos;
45. O pagamento do custo do muro à A. consubstancia enriquecimento ilegítimo e sem causa justificada;
46. Ofende claramente os princípios da justiça e do sentimento jurídico dominante que a 1.ª Ré seja duplamente condenada, a conservar e intervir nas obras que efetuou em termos que impeçam a ocorrência de novas derrocadas, face à atual configuração do local e, ao mesmo tempo, a pagar um muro de suporte de terras à A., que esta nunca teve no local, o que é subsumível à figura do abuso de direito;
47. A douta sentença recorrida viola o art.º 5.º, n.º 1 do CPC e os art. os 334.º 483.º, 491.º, n.º 1, 564.º, 566.º, n.º 2 e 1348.º, n.º 1 do Código Civil.

Finaliza, pugnando pela revogação da sentença recorrida, julgando-se a ação totalmente improcedente ou absolvendo-se a 1ª ré do pedido ou, ainda, deduza da quantia indemnizatória o montante de € 178.604,00, correspondente ao muro de suporte entretanto construído pela autora, com as legais consequências.
*
A autora (…) apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso de apelação interposto pela 1ª ré, e apresentou recurso de apelação subordinado, no qual formulou as seguintes

CONCLUSÕES

1. O sinistro resultou de uma conduta culposa, desde logo, da primeira ré, que efetuou um aterro inidóneo, que contraria as regras de construção, dando causa à derrocada causadora dos danos pelos quais pretende ser ressarcida.
2. Os demais réus, são, também, co-responsáveis em virtude da validação que, enquanto técnicos, deram ao projeto da obra executada pela primeira ré.
3. Os pedidos formulados contra todos os Réus assenta na responsabilidade civil extracontratual.
4. Apesar de os 2º, 3º e 4º Réus não terem celebrado qualquer contrato com a Autora, todos eles praticaram atos que se revelaram lesivos e causaram danos à Autora.
5. É irrelevante qual o vínculo jurídico que unia os Réus entre si.
6. A relação contratual que vincula os Réus entre si, é questão que não se coloca, uma vez que, perante a Autora, todos eles praticaram danos, através de factos ilícitos e com culpa.
7. Deste modo, relativamente aos 2º 3º e 4º Réus estão verificados, cumulativamente, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
8. Os factos considerados como provados pelo tribunal a quo nos pontos 19º a 37 º e 66º a 70º da sentença comprovam a prática do facto voluntário dos 2º, 3º 4º Réus e que demonstram a ilicitude desses atos, bem como o nexo de causalidade desse atos e os danos causados.
9. Deste modo, os 2º, 3º e 4º Réus violaram as normas do n. º 1, do art. 10º, do Decreto/Lei 555/99 de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto/Lei 177/2001 de 4 de Junho.
10. A atuação destes Réus não se circunscreve à mera relação contratual interna com a 1ª Ré.
11. A conduta e factos praticados por estes referidos Réus ocorreu no âmbito de um procedimento administrativo de licenciamento de uma operação urbanística de loteamento.
12. Operação urbanística esta que só foi licenciada porque os aludidos Réus subscreveram termo de responsabilidade, que foi junto ao processo administrativo.
13. Esse termo de responsabilidade tem que ser obrigatoriamente subscrito por técnico inscrito em associação pública profissional e credenciado com título profissional que essa associação lhe confira para praticar esses atos e subscrever o termo de responsabilidade.
14. Assim, a elaboração do termo de responsabilidade é um ato com relevância em interesse público e praticado no âmbito de ordem pública.
15. Pois que a entidade administrativa competente (câmara municipal) não licencia a operação urbanística de loteamento nem emite o título e alvará de construção e de utilização sem que tais técnicos tenham subscrito o termo de responsabilidade.
16. As normas relativas ao regime jurídico de urbanização (DL nº 555/99 de 16/12) e aos deveres impostos ao diretor técnico da obra (DL nº 119/92 de 30/6) visam tutelar não só interesses de ordem pública e coletiva, mas também interesses particulares, cuja violação implica ilicitude civil.
17. Os artigos 86°, n° 5, e 87º nº 2 do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo Decreto-Lei n° 119/92, de 30 de Junho, têm relevância de ordem pública e de interesse coletivo.
18. As normas relativas ao regime jurídico de urbanização e aos deveres impostos ao diretor técnico da obra visam tutelar não só interesses de ordem pública e coletiva, mas também interesses particulares.
19. Além disso, é aplicável o regime da responsabilidade do comissário: por culpa (mesmo) presumida, pelo que os comitentes respondem civil e solidariamente, com o comissário, em conformidade como estatuído nos arts. 497º, n.º 1, e 503°, n° 1, 566°, n.º 3, do Cód. Civil.
20. A má execução do aterro constitui um facto voluntário do agente, - 1ª Ré -, ou seja, um facto dominável ou controlável pela vontade, com o que se verifica o primeiro dos apontados pressupostos da responsabilidade civil.
21. E para essa má execução importa a co-responsabilidade dos demais Réus.
22. Prevalecem as normas de relevância no interesse público e ordem pública, e deve ser imputada essa violação a esses réus, com efeitos na sua responsabilidade civil extracontratual perante a Autora.
23. E, a argumentação expendida na douta sentença no que concerne à aplicação do DL 13/71, de 23 de Janeiro e 13/94, de 15 de Janeiro e do D.L. nº 13/94, de 15.01, evidencia natureza de ordem pública das normas estatutárias profissionais que regulamentam a atividade dos 2º, 3º e 4º Réus, determinante da responsabilidade civil destes perante a Autora.
24. A sentença recorrida fez incorreta interpretação e aplicação das normas do DL 13/71, de 23 de Janeiro e 13/94, de 15 de Janeiro e do D.L. nº 13/94, de 15, (DL nº 555/99 de 16/12) do DL nº 119/92 de 30/6 e artigos 86°, n° 5, e 87º nº 2 do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo decreto-lei n° 119/92, de 30 de Junho, n. º 1, do art. 10º, do Decreto/Lei 555/99 de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto/Lei 177/2001 de 4 de Junho.

Termina, pugnando pela procedência total da ação, condenando-se solidariamente todos os réus nos pedidos formulados.
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A ré (…) respondeu ao recurso subordinado apresentado pela autora, tendo concluído pela sua improcedência, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo nos moldes preconizados pela ré recorrente.
- Na sequência, saber se deverá ser realizada outra nova interpretação e aplicação do Direito à nova factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida, nos termos defendidos pelas recorrentes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. A autora é uma sociedade anónima, participada integralmente pelo Estado, que tem as atribuições legais e as competências inerentes à atividade de prestação, em moldes empresariais, de um serviço público da conservação, exploração, requalificação e alargamento das vias que integram a Rede Rodoviária Nacional [al. a) dos factos assentes].
2. A autora tem como atribuições legais zelar e manter a conservação da EN 101 [al. b) dos factos assentes].
3. A 1ª ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade comercial de construção civil de edifícios para revenda, atividade de desenvolve e prossegue no intuito de obter lucros [al. c) dos factos assentes].
4. A 1ª ré é titular do alvará de construção nº … válido até 03.01.2008, emitido pelo IMOPI [al. d) dos factos assentes].
5. O 2º réu é engenheiro técnico com a cédula profissional nº … emitida pela ANET [al. e) dos factos assentes].
6. A 3ª ré é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica à prestação de serviços de engenharia, da qual é sócio-gerente o 2º réu [al. f) dos factos assentes].
7. A 4ª ré é engenheira civil inscrita na Ordem dos Engenheiros sob o nº … [al. g) dos factos assentes].
8. No exercício da sua atividade comercial, a 1ª ré requereu, em 29.04.2004, um pedido de informação prévia (com o nº 161/04) à Câmara Municipal de ... solicitando capacidade construtiva para um prédio rústico [al. h) dos factos assentes].
9. Esse pedido de informação prévia foi aprovado por despacho do Vereador da Câmara Municipal de ... datado de 12.08.2004, que determinou a possibilidade e capacidade construtiva para esse loteamento [al. i) dos factos assentes).
10. No exercício desta sua atividade comercial, a 1ª ré requereu, em 13.05.2005, o licenciamento de operação urbanística de loteamento de obra particular à Câmara Municipal de ..., através de procedimento administrativo que correu termos nos serviços urbanísticos da Câmara Municipal de ... sob o nº … [al. j) dos factos assentes].
11. Tendo por objeto o prédio sito na Rua … descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … [al. l) dos factos assentes)].
12. O terreno localiza-se dentro do aglomerado urbano de Mesão Frio, com a área de 5.575m2, que confronta a Norte com (..), ligação da circular de ... à variante de ..., Sul [al. m) dos factos assentes)].
13. Esse pedido de licenciamento de operação urbanística de loteamento foi aprovado, quanto ao projeto de arquitetura, por despacho do Vereador da Câmara Municipal de ... datado de 15.03.2007, através de subdelegação de competências deste órgão executivo do Município, tendo sido emitido o alvará de loteamento nº … [al. n) dos factos assentes)].
14. A 1ª ré solicitou pareceres vinculativos às diversas entidades externas à autarquia de ..., as quais emitiram pareceres e pronúncia [al. o) dos factos assentes)].
15. Em 17.10.2005 a elaborou parecer, que deu entrada no processo administrativo de loteamento [al. p) dos factos assentes)].
16. Em 27.10.2005 a elaborou parecer, que deu entrada no processo administrativo de loteamento [al. q) dos factos assentes)]
17. Em 07.12.2005 a 1ª ré requereu à aqui autora, a consulta obrigatória desse projeto de loteamento [al. r) dos factos assentes)]
18. Em 06.01.2006 a elaborou parecer, que deu entrada no processo administrativo de loteamento, com o seguinte teor: “Relativamente ao pedido de parecer em referência e em resposta ao ofício dessa autarquia acima designado, informo V. Exª. que o processo poderá ser deferido, dado respeitar o disposto na alínea c) do artigo 5º. do Decreto-Lei 13/94, de 15 de Janeiro. Nos termos da legislação em vigor, nenhuma autorização ou alvará pode ser concedido por essa Câmara Municipal, sem que a requerente faça prova de ter autorizadas, por esta direcção de Estradas, as obras que carecem de licença da … (vedações, acessos e eventual ocupação da via pública). Para o efeito, solicito que essa autarquia informe a Interessada da necessidade de tal facto, devendo a mesma apresentar, neste organismo, processo elaborado nos termos da Portaria 114/71. Nos termos do artigo 11°. do citado Decreto-Lei 13/94, será nulo qualquer eventual licenciamento concedido em oposição ao referido decreto. O requerente deverá legalizar todas as intervenções a efectuar a menos de 20 metros do eixo da via e 5 metros da linha limite da zona da E.N.” [al. s) dos factos assentes)].
19. Em 23.06.2006, o arquiteto projetista apresentou o termo de responsabilidade no processo administrativo de licenciamento da operação de loteamento [al. t) dos factos assentes)].
20. Em 02.06.2006 a Comissão de Coordenação de Desenvolvimento do Norte apresentou no processo administrativo de licenciamento da operação de loteamento parecer sobre o projeto de efluentes [al. u) dos factos assentes)].
21. O 2º réu, na qualidade de diretor técnico da empresa que elaborou os projetos de estabilidade, não ordenou nem exigiu a elaboração do estudo geotécnico para o local onde decorria a implantação dos edifícios [al. v) dos factos assentes)].
22. A 3ª ré, enquanto empresa que elaborou os projetos de especialidade, não elaborou nem executou o estudo geotécnico para o local onde decorria a implantação dos edifícios [al. x) dos factos assentes)]
23. A 4ª ré, enquanto autora dos projetos de especialidade de escavação, aterro e pavimentação, relativos às obras de infraestruturas viárias do loteamento, não elaborou nem executou o estudo geotécnico para o local onde decorria a implantação dos edifícios [al. z) dos factos assentes].
24. A 4ª ré apresentou nesse processo de licenciamento o termo de responsabilidade, com o seguinte teor: «…, Engenheira Civil, inscrito na Ordem dos Engenheiros sob o n.º …, declara sob responsabilidade profissional, nos termos e para o efeitos do disposto nos n. º 1, do art. 10º, do Decreto/Lei 555/99 de 16 de Dezembro, e as alterações introduzidas pelo Decreto/Lei 177/2001 de 4 de Junho, que o projeto de escavação, aterro e pavimentação relativo as obras de infra-estruturas viárias de loteamento, localizada no lugar de… , freguesia de …., concelho de ..., cujo requerente é a …, foram observadas as normas técnicas gerais e específicas de construção, bem como as disposições regulamentares aplicáveis» [al. aa) dos factos assentes)].
25. Essa operação urbanística foi aprovada por despacho do Presidente da Câmara Municipal de ... datado de 21.05.2001 da Câmara Municipal de ... [al. bb) dos factos assentes)].
26. A ré apresentou os projetos de especialidades nos serviços da autarquia em referência, designadamente o cálculo de estruturas, eletricidade, águas e saneamento, betão armado, que foram aprovados por despacho do vereador da Câmara Municipal de ..., em conjunto com o despacho final de aprovação do pedido de licenciamento da operação urbanística de loteamento, em 21.05.2004 [al. dd) dos factos assentes)].
27. Após a aprovação desses projetos de especialidades, a 1ª ré requereu o licenciamento final dessa operação urbanística de loteamento, que foi aprovado pelo Presidente da Câmara Municipal de ..., tendo sido emitido o alvará de que titula o licenciamento dessa operação urbanística [al. ee) dos factos assentes)].
28. Para garantir a boa execução das obras de urbanização que lhe competiam, a 1ª ré apresentou no processo administrativo de loteamento duas garantias bancárias com o nº …. em 03.04.2007, no montante de € 121.500,00 [al. ff) dos factos assentes)].
29. A 1ª ré iniciou as obras de urbanização em 10.05.2007 (obras de construção de arruamentos, passeios, saneamento, canalização e iluminação pública [al. gg) dos factos assentes)].
30. Em 16.04.2008 a 1ª ré concluiu as obras de urbanização e requereu à Câmara Municipal de ... a receção provisória das infraestruturas em 24.03.2009 [al. hh) dos factos assentes)].
31. A 1ª ré requereu a licença de utilização cujo alvará foi emitido pela CM… em 16.04.2007, após ter efetuado vistoria às obras de urbanização [al. ii) dos factos assentes].
32. Esta operação urbanística tinha por objeto a constituição de dez (6 + 4) lotes destinados a habitação onde foram construídos dois edifícios pela ré [al. jj) dos factos assentes].
33. O edifício 1 é constituído por 6 fogos numerados de 1 a 6 de norte para sul [al. ll) dos factos assentes].
34. O edifício 2 é constituído por 4 fogos numerados de 7 a 10, de poente para nascente [al. mm) dos factos assentes].
35. No que respeita especificamente às obras de urbanização do loteamento, o 2º réu, enquanto profissional, tinha a direção técnica da obra [al. nn) dos factos assentes].
36. A 4ª ré elaborou os projetos de especialidades para a aludida operação urbanística de loteamento através da 3ª ré, que foi contratada pela 1ª ré [al. oo) dos factos assentes].
37. Em 22.02.2008, a 4ª ré, na qualidade de diretora técnica da obra, apresentou declaração no processo administrativo de loteamento atestando que a execução da obra estava em perfeitas condições técnicas [al. pp) dos factos assentes].
38. Em 24.03.2008 a 1ª ré solicitou à Câmara Municipal de ... a vistoria às obras de urbanização, a qual foi efetuada por técnicos dessa Câmara Municipal de ... em 06.04.2009 [al. qq) dos factos assentes].
39. A Câmara Municipal de ... procedeu à receção provisória das obras de urbanização por despacho do Presidente da Câmara Municipal datado de 21.05.2009 [al. rr) dos factos assentes].
40. No dia 2 de Abril de 2013, pelas 18 horas, na Rua (…), Município de ..., na Estrada Nacional, Variante à (…) (km115+850), ocorreu um sinistro [al. ss.) dos factos assentes].
41. Foi a autora quem construiu, em 2005, a Variante EN101 (km115+850) [al. uu) dos factos assentes].
42. O mês de Março de 2013 foi caracterizado por elevada precipitação e qualificado de muito chuvoso a extremamente chuvoso [al. vv) dos factos assentes].
43. A chuva saturou o solo em conjunto com as águas que se infiltraram superficialmente, conduzindo a uma redução da resistência mecânica do solo do aterro, que era já de si baixa [al. xx) dos factos assentes].
44. Várias toneladas de terra ficaram depositadas na Estrada Nacional, Variante à EN101 (km115+850) e impediram a circulação do tráfego automóvel no local [al. zz) dos factos provados].
45. O terreno onde foi efetuada a urbanização está num plano superior à E.N., Variante à EN101 (km115+850) em altura e com grau de inclinação que não se logrou quantificar – quesito 1º.
46. O sinistro ocorrido a 2 de Abril de 2013 consistiu num escorregamento e derrocada do talude que suportava as terras onde haviam sido executadas as obras de urbanização do loteamento dos autos e que confinava com a Estrada Nacional, Variante à EN101 km115+850) – quesito 2º.
47. Esse talude e as terras que ele suportava caíram sobre a plataforma da Estrada Nacional, Variante à EN101 (km115+850) – quesito 3º.
48. Este talude havia sido edificado e construído pela 1ª ré, no âmbito da operação urbanística de loteamento – quesito 4º.
49. A 1ª ré procedeu à execução do aterro por baixo do edifício, numa zona com propensão para a acumulação de água – quesito 5º.
50. No local, o solo tem uma quantidade apreciável de matéria orgânica (aproximadamente 7%) tais como plantas, plásticos e materiais cerâmicos, misturados com uma areia siltosa de baixa plasticidade com que a ré procedeu à execução do aterro – quesito 6º. 51. Este material de plástico na presença de água torna-se extremamente deformável e pouco resistente – quesito 7º.
52. Tendo causado a derrocada do talude – quesito 8º.
53. Verifica-se a existência de uma zona propensa à acumulação de água no terreno de implantação do loteamento - quesito 9º.
54. A acumulação de água referida em 53) coincide com uma linha de água inscrita no terreno onde foi erguida a urbanização, possivelmente alimentada por nascente – quesito 12º
55. O projeto de arquitetura não teve em conta a existência desta linha e da propensão para acumulação de água – quesito 10º.
56. As linhas de água num ano que tenha uma precipitação pluvial intensa constituem canal natural para o escoamento das águas – quesito 11º.
57. O estudo geotécnico e geológico permite a deteção de linhas de água no subsolo – quesito 12º (o 2º, repetido no despacho de fls. 318 ss.).
58. O estudo geotécnico e geológico permitiria perceber a existência da zona propensa à acumulação de água – quesito 13º (o 2º, repetido no despacho de fls. 318 ss.).
59. Relativamente ao aterro realizado, apenas constam dos projetos realizados pelos 3º e 4º réus cortes transversais e um corte longitudinal que serviram, fundamentalmente, para a quantificação dos volumes de movimentos de terras a realizar – quesito 14º.
60. Medido o caudal, recorrendo a um processo expedito, à entrada da Passagem Hidráulica sobre a E.N. 101, no dia 23 de Abril, pelas 11h e 30m, os peritos obtiveram um valor de cerca de 2 litros/segundo – quesito 15º.
61. Quando a autora mandou executar a variante, naquele local, em concreto, acautelou o encaminhamento de águas por debaixo e ao lado da via – quesito 16º.
62. Tendo, inclusivamente, efetuado passagens hidráulicas – quesito 17º.
63. O dimensionamento das fundações do edifício e do talude foram efetuados com base na interpretação que os réus fizeram sobre a cota mais apropriada para construir as fundações – quesito 18º.
64. A água que escoou do aterro e a que se infiltra a partir da superfície provocaram forças de percolação descendentes que contribuíram para a instabilização do aterro – quesito 19º.
65. Pelo menos uma sapata do edifício 1 ficou parcialmente “descalça” – quesito 22º.
66. Sem o muro de contenção entretanto erguido pela ora autora e mantendo-se a composição do aterro, outros escorregamentos seriam possíveis, principalmente em caso de precipitação intensa – quesito 23º.
67. Na construção dos edifícios, a 1ª ré adotou para “tensões de contacto” entre as sapatas e o solo adjacente o valor de 0.30 Mpa – quesito 24º.
68. O valor referido no artigo anterior, bem como a cota das “fundações directas – sapatas de tipo rígido” foram assumidos pelos réus na execução da obra tendo em conta a “observação do terreno” e as “cotas dos pisos ou pelas cotas do terreno natural” – quesito 24º-A.
69. O projeto de especialidades é completamente omisso em relação à cota das fundações – quesito 26º.
70. O dimensionamento das fundações dos edifícios construídos no local pela 1ª ré foi efetuado com base na interpretação que os intervenientes no projeto e execução fizeram sobre a cota mais apropriada para construir as fundações – quesito 28º.
71. A capacidade de carga das fundações não foi estimada com base nas propriedades do solo, determinadas por estudo, e não existem elementos que permitam saber com rigor o que realmente foi executado no que respeita às fundações – quesito 29º.
72. A autora teve que efetuar uma intervenção de emergência no troço da referida E.N. danificada pelo escorregamento massivo e derrocada de solos e terras – quesito 33º.
73. O sinistro teve como consequência o corte da referida estrada à circulação automóvel de quaisquer veículos, devido à invasão da plataforma pelos solos escorregados, à rotura de um talude de escavação e rede de drenagem associada, na área de influência do escorregamento – quesito 34º.
74. A autora teve que contratar de imediato duas empresas de construção civil e obras públicas para procederem à remoção das terras e talude caídos sobre a plataforma da referida estrada nacional – quesito 35º.
75. A autora encetou um procedimento de contratação por ajuste direto, tendo sido executados os trabalhos em 2013, que consistiram no seguinte (quesito 36º):
a. Em 2 de Abril ocorreu a entrada em obra de equipamento pesado de terraplenagem, 2 horas após o acidente, para operação de despiste de eventuais vítimas soterradas, em apoio aos Serviços de Proteção Civil;
b. Em 3 de Abril foi feito o esboço do plano de ataque para reabertura da via (PCA, DPRJ e CON) e fixação de um prazo de 15 dias para restabelecimento da circulação automóvel;
c. Em 4 de Abril ocorreu a reabertura de canal de circulação, para tráfego de obra e veículos de emergência;
d. Em 9 de Abril ocorreu o desimpedimento da plataforma da estrada e o início da execução das obras de reconstrução das estruturas afetadas;
e. Em 18 de Abril ocorreu a reabertura da estrada ao tráfego, para os dois sentidos de circulação, com estreitamento de vias;
f. Entre 18 de Abril a 31 de Maio ocorreu execução geral de toda a obra de reconstrução das estruturas afetadas.
g. A obra de reconstrução da via incidiu sobre três vertentes principais – a remoção de solos e respetiva colocação em vazadouro, a construção de uma obra de contenção, do tipo “muro de cais”, e a execução e reconstrução do sistema de drenagem.
h. O trabalho de reconstrução consistiu nas seguintes tarefas:
- Escavação dos solos escorregados, colocação em vazadouro e modelação do terreno- cerca de. 12.000 m3;
- Prolongamento de Passagem Hidráulica cerca de 1000m - 8 m;
- Caixa de PH, visita e de ligação- 6 un.;
- Valas de crista, banqueta e bordadura - 278 m;
- Drenos- 200 m;
- Cortinas /esporões drenantes em brita - 563 m3
- Muro de Contenção;
- Pedra (blocos ciclópicos) - 3721 toneladas e Betão pronto- 358 m3;
- Pavimentação;
- Fresagem e substituição de pavimentos- 320 m2;
- Camada de desgaste em microaglomerado betuminoso- 2880 m2;
76. A intervenção decorreu entre 2 de Abril e 31 de Maio, correspondendo a um prazo de execução de 58 dias, a que corresponde um desvio de 3% por referência à estimativa inicial de 60 dias – quesito 37º.
77. Em 3 de Maio foi fixado, e cumprido, um prazo parcelar de 15 dias para reabertura a estrada ao tráfego, situação que ocorreu em 18 de Maio – quesito 38º.
78. A obra executada ascendeu a € 332.903,11 (quesito identificado no despacho de fls. 318 ss. como sendo o 64º).
79. A autora efetuou o pagamento dessa quantia às duas identificadas empresas que contratou, para executar os trabalhos descritos – quesito 39º.
80. Foi a Y – Design de Arquitectura e Topografia, Ld.ª, quem elaborou e procedeu a todos os relatórios e pareceres técnicos da obra, limitando-se a ré S. L. a apor a sua assinatura – quesito 40º.
81. As fundações dos pilares da zona do edifício estavam suportadas num enrocamento efetuado nessa zona – quesito 30º.
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FACTOS NÃO PROVADOS

Por sua vez, com relevância para o mérito da causa, o tribunal a quo deu como não provados os demais factos alegados, designadamente:

a) Que a estrutura dos edifícios implantados em cima do talude não tenha estabilidade – quesito 20º.
b) Que tenham existido várias alterações ao previsto em fase do projeto, tomadas durante a execução das fundações, que não hajam sido registadas para consulta posterior – quesito 21º.
c) Que as alterações ao projeto de fundações previsto na memória descritiva e justificativa do processo de licenciamento não tenham ficado expressas e reportadas à data das suas implementações – quesito 28º.
d) Que durante a execução da obra os réus tenham incumprido os projetos – quesito 31º.
e) Que as alterações não tenham sido registadas no livro de obra nem participadas à Câmara Municipal – quesito 32º.
f) Que a derrocada do talude se tenha devido ao corte daquele talude por parte da autora e à falta de construção de um muro de suporte pela autora – quesito 41º.
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A) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A primeira questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.

Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.

Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação.

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ (…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.

Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).

Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Assim, como salienta Abrantes Geraldes (1), o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”. (2)

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior.

Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos. (3)

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, a recorrente ré, cumprindo, no essencial, os apontados requisitos formais, pretende a alteração da decisão que incidiu sobre a factualidade dada como provada, de modo que a factualidade contida nos nºs 47, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 58, 64, 66 e 80 dos factos provados passe a ser considerada como não provada.

Por sua vez, pretende que a factualidade dada como provada sob os nºs 46, 61 e 73, tenha uma diferente redação, mais concretamente:

46- O sinistro ocorrido a 2 de Abril de 2013 consistiu num escorregamento de terras;
61- Quando a autora mandou executar a Variante, naquele local, deveria ter considerado, na zona onde ocorreu o incidente, uma Passagem Hidráulica com dimensões superiores à que foi considerada;
73- O sinistro teve como consequência o corte da referida estrada à circulação automóvel de quaisquer veículos.

Por outro lado, entende ainda a ré recorrente que no que se refere à al. f) dos factos não provados deveria antes ter sido dado como provado que:
f) Em 2004, a A. procedeu a escavações numa altura variável entre 4,3 e 16 metros e não construiu um muro de suporte.

A recorrente ré defende, no essencial, que, neste particular, deverá ser atribuído especial credibilidade ao depoimento da testemunha (…), que é perentório quanto à inexistência de uma linha de água ou de uma bacia ou de uma concha propícias à acumulação de água no local da realização do aterro e, ainda, quanto ao facto de alguma vez ter ali existido água.

De igual modo, o depoimento da testemunha (…) corrobora, neste aspeto, o depoimento da testemunha J. F..

Discorda igualmente a ré apelante do valor probatório atribuído pelo tribunal a quo à perícia realizada nos autos, tanto quanto é certo que esta tem como premissa incontestável a existência de uma linha de água no local (o que não se verifica), atribuindo a origem da derrocada à falta de drenagem numa zona onde existe uma nascente de uma linha de água, muito especial quando os mesmos peritos não se conseguem entender quanto à existência de uma linha de água (com ou sem nascente) ou de um talvegue.

Por outro lado, os Srs. Peritos não vislumbraram de que modo ocorreu o fenómeno de deslizamento de terras, nem os respetivos vestígios, tendo antes assentado em documentos tendenciosos, que foram impugnados pela ré apelante.

Não há garantias que as “amostras” recolhidas pela “Comissão de Avaliação do Escorregamento do Talude na Variante de ...-...” sejam efetivamente oriundas do aterro e não tenham sido contaminadas pelas chuvas intensas; sendo de relevar, neste particular, o depoimento da testemunha (…).

Em resposta ao quesito 13º, o Sr. Perito do Tribunal responsabiliza o 2º réu e 3ª e 4ª ré, mas não a 1ª ré, na justa medida em que considera que se não fossem as omissões daqueles, a qualidade do aterro seria retificada e não teria ocorrido o sinistro em causa.

O mesmo Sr. Perito do Tribunal considera ainda que a passagem hidráulica construída pela autora no local tinha dimensões manifestamente insuficientes e, como tal, não é possível concluir que a autora, no local, tenha acautelado eficientemente o encaminho de águas.

Funda ainda a sua discordância na ignorância a que foram votados os documentos juntos pela 1.ª ré em 12.12.2016, onde se constata que a autora procedeu a escavações não apenas até ao limite da expropriação, mas também no interior dos limites do prédio da 1.ª ré, situação que J. F. equacionou como hipotética.

Discorda ainda da desconsideração dos registos da quantidade de terras que foram retiradas da variante, incomensuravelmente superior à quantidade de terra utilizada no aterro (apenas 9740m3), muito menos significativa do que a quantidade de terra do talude da Variante (12.000m3), em conjugação com o documento n.º 1 junto com a Petição Inicial, de onde resulta que o terreno da 1.ª ré tinha “pendentes com alguma inclinação e um perfil pouco irregular (…) com cota ligeiramente abaixo dos acessos confinantes”, perfeitamente reveladoras de que ocorreu um aterro diminuto, incompatível com a quantidade de terras que deslizaram sobre a Variante (800 camiões).

Funda ainda a sua discordância na desconsideração dos registos fotográficos do anexo 2 do documento n.º 2 junto com a petição inicial, que desmontam a tese de que só a crista do talude da Variante foi danificada.

E na ignorância das consequências do facto julgado provado em 18, de onde emerge que a autora, já desde 2006, tinha perfeito conhecimento das novas condicionantes existentes no prédio da 1.ª ré, nunca tendo considerado necessária a construção de um muro de suporte de terras do talude da Variante como o que agora/depois construiu.

Alicerça ainda a sua discordância na errada interpretação do depoimento de , que quanto ao estado do talude da Variante é perfeitamente compaginável com as fotos nºs 1 e 2 do relatório fotográfico do anexo 2 do documento n.º 2 junto com a PI (totalmente invadido pela vegetação e árvores), e quanto à descrição do evento afirmou, em moldes que não levantam quaisquer dúvidas, que “já víamos a via rápida cheia de terra e cá em cima a terra ainda não tinha caído.

Conclui, pois, que a rutura ocorreu primeiro no talude da Variante e só depois no talude do aterro do prédio a 1.ª ré, só assim se compreendendo a localização do veículo automóvel da foto n.º 6 do relatório fotográfico do anexo 2 do documento n.º 2 junto com a PI, que estando estacionado no prédio da 1.ª ré aquando da ocorrência do deslizamento, não foi arrastado para a Variante, tendo ficado muito próximo das habitações.

Finalmente, funda ainda a sua discordância na total ausência de prova quanto ao ponto 80 dos factos provados e à manifesta falência do argumento (ou presunção judicial) de que os estagiários não remunerados não têm qualquer intervenção ou colaboração nos documentos e projetos que assinam.

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pela 1ª ré recorrente, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.

Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes (4), que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente.

Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada.

Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova (5), princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil. (6)

De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil).

Como refere Miguel Teixeira de Sousa (7), a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.”

Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha.

Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.

Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. (8)

Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”. (9)

Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pela recorrente.

No que se refere aos factos provados impugnados, o tribunal a quo deu como provado a seguinte factualidade:

46. O sinistro ocorrido a 2 de Abril de 2013 consistiu num escorregamento e derrocada do talude que suportava as terras onde haviam sido executadas as obras de urbanização do loteamento dos autos e que confinava com a Estrada Nacional, Variante à EN101 km115+850) – quesito 2º.
47. Esse talude e as terras que ele suportava caíram sobre a plataforma da Estrada Nacional, Variante à EN101 (km115+850) – quesito 3º.
50. No local, o solo tem uma quantidade apreciável de matéria orgânica (aproximadamente 7%) tais como plantas, plásticos e materiais cerâmicos, misturados com uma areia siltosa de baixa plasticidade com que a ré procedeu à execução do aterro – quesito 6º.
51. Este material de plástico na presença de água torna-se extremamente deformável e pouco resistente – quesito 7º.
52. Tendo causado a derrocada do talude – quesito 8º.
53. Verifica-se a existência de uma zona propensa à acumulação de água no terreno de implantação do loteamento - quesito 9º.
54. A acumulação de água referida em 53) coincide com uma linha de água inscrita no terreno onde foi erguida a urbanização, possivelmente alimentada por nascente – quesito 12º
55. O projeto de arquitetura não teve em conta a existência desta linha e da propensão para acumulação de água – quesito 10º.
58. O estudo geotécnico e geológico permitiria perceber a existência da zona propensa à acumulação de água – quesito 13º (o 2º, repetido no despacho de fls. 318 ss.).
61. Quando a autora mandou executar a variante, naquele local, em concreto, acautelou o encaminhamento de águas por debaixo e ao lado da via – quesito 16º.
64. A água que escoou do aterro e a que se infiltra a partir da superfície provocaram forças de percolação descendentes que contribuíram para a instabilização do aterro – quesito 19º.
66. Sem o muro de contenção entretanto erguido pela ora autora e mantendo-se a composição do aterro, outros escorregamentos seriam possíveis, principalmente em caso de precipitação intensa – quesito 23º.
73. O sinistro teve como consequência o corte da referida estrada à circulação automóvel de quaisquer veículos, devido à invasão da plataforma pelos solos escorregados, à rotura de um talude de escavação e rede de drenagem associada, na área de influência do escorregamento – quesito 34º.
80. Foi a Y – Design de Arquitectura e Topografia, Ld.ª, quem elaborou e procedeu a todos os relatórios e pareceres técnicos da obra, limitando-se a ré S. L. a apor a sua assinatura – quesito 40º.

Por seu turno, a sentença recorrida deu como não provado sob a al. f):

Que a derrocada do talude se tenha devido ao corte daquele talude por parte da autora e à falta de construção de um muro de suporte pela autora – quesito 41º.

Analisámos a prova produzida, em especial os depoimentos das testemunhas e peritos ouvidos em sede de audiência final, assim como toda a prova documental junta (cfr. em especial os documentos com o tribunal a quo baseou a sua decisão sobre a matéria de facto) e, muito especial, a prova pericial realizada e respetivos esclarecimentos (cfr. em especial fls. 411 a 431, 461 a 464, 816 a 818, 830 a 834), e da mesma não foi possível, de facto, concluir, com a necessária segurança, pela existência de um erro de apreciação relativamente aos pontos de facto impugnados.

Desde logo, como é fácil de ver do teor da sentença recorrida, a exposição dos motivos que levaram o tribunal a quo a decidir pela verificação da factualidade dada como provada, em contraponto com a considerada não provada, é completa e exaustiva, seguindo sempre um raciocínio bastante consistente e estruturado.

Segundo aqueles princípios de imediação, oralidade e livre apreciação da prova, o tribunal a quo teve bem presente o conjunto da prova produzida, conjugando e sopesando assertivamente esta mesma prova, muito em especial, aquela que lhe afigurou mais convincente e objetiva, mormente a prova pericial em conjugação com os elementos documentais constantes dos autos e com os esclarecimentos prestados pelos Srs. Peritos em sede de audiência final.

A recorrente deu especial enfâse ao depoimento da testemunha (…), adiantando que o mesmo foi perentório em afirmar que o mesmo perentoriamente nega a existência de uma linha de água ou de uma bacia ou concha propícias à acumulação de água no local da realização do talude (o que no seu entendimento também foi corroborado pela testemunha (…)).

Se é um facto que na sessão da audiência de julgamento realizada a 09.12.2016 foi possível concluir que a apontada testemunha … nega a existência de uma linha de água no local (cfr. passagens transcritas nas alegações de recurso da ré recorrente), o mesmo já não sucedeu na sessão de audiência de julgamento realizada a 19.09.2018, em especial quando confrontado com a carta militar junta a fls. 870, disso mesmo dando conta o tribunal a quo, designadamente salientando o seguinte:

(…) O relatório da comissão indicou também como causas mais prováveis para o escorregamento a existência de uma linha de água, a precipitação, a concepção e construção do aterro, referindo a existência de afloramentos de água em pelo menos três pontos, consideradas, nesse relatório, nascentes naturais. Nesta parte as testemunhas inquiridas no julgamento realizado antes do acórdão anulatório, confrontadas com a carta militar de fls. 431, hesitaram em afirmar que havia alguma nascente ou tampouco linha de água, sendo que a ora subscritora, olhando esse documento, também não seria capaz de o afirmar com qualquer certeza, afigurando-se mais verosímil que ali houvesse uma zona ou bacia de acumulação de água que acabou por ser confundida com uma linha de água ou até com uma nascente, conforme referiu a testemunha …, adiante mencionada. Contudo, aquando da repetição do julgamento na sequência daquele acórdão anulatório, foi junta aos autos uma carta militar datada de 1948 que, segundo a testemunha …, geólogo que esteve presente na perícia, se manteve inalterada ao longo de 3 versões, na parte relativa à linha de água. Essa carta militar mostra-se junta a fls. 870 dos autos e nela é possível ver efectivamente a linha de água que, segundo os Srs. peritos que subscreveram o relatório da comissão de avaliação do escorregamento do talude (…) e o Professor … , já referido, será provavelmente alimentada por uma nascente, podendo embora não ter água durante todo o ano.

(…) A testemunha em questão (…) considerou, na sessão anterior ao acórdão anulatório, que o documento de fls. 431 não exibe qualquer nascente nem mesmo uma linha de água; antes sim uma “bacia” ou “concha” que convida à acumulação de águas.

Quando confrontado com a carta militar junta a fls. 870, esclareceu que a linha azul que ali se vê constituirá, em seu entender, uma espécie de “afluente” (não o é verdadeiramente, já que não desagua no rio) da linha, mais densa, que lhe está perpendicular (na carta militar, a que passa por … e …), linha essa que, por sua vez, vai desaguar numa outra, mais densa ainda (na carta, a linha que passa na Quinta do ..., mais a norte) e que, por seu turno, desemboca no Rio de ....

No que se refere ao depoimento da testemunha (…), o mesmo, neste particular, apenas se limitou a dizer que não viu no local qualquer linha de água, o que por si só, não nos permite concluir que ela inexistia.

Por conseguinte, sendo igualmente para este tribunal ad quem pacífico que no local existia uma “linha de água” (ou mais especificamente uma linha de talvegue se assim a quisermos chamar), independentemente de ser alimentada ou não por uma nascente, forçoso é concluir que a zona em causa era claramente propensa à acumulação de água, o que, de todo, não foi levado em consideração no respetivo projeto de arquitetura e, muito em especial, de execução da obra em causa (aterro).

Não vemos, pois, razões para alterar a decisão que incidiu sobre os factos provados sob os nºs 53, 54, 55, 58 e 64.

Outrossim, a perceção in loco do fenómeno de deslizamento das terras e seus vestígios em nada contribuiu, em nosso ver, para a desvalorização da perícia realizada, sendo certo que não encontramos razões para, no seu essencial, a termos como adequada e suficientemente fundamentada, em especial considerando a prova documental junta ao processo, em conjugação com os conhecimentos técnicos patenteados pelos Srs. Peritos nas respostas e esclarecimentos elaborados.

Realce-se, ainda, que a prova pericial realizada é livremente apreciada pelo tribunal (art. 389º, do C. Civil).

No entendimento da recorrente ré, não existem garantias de que as “amostras” recolhidas pela Comissão de Avaliação do Escorregamento do Talude da Variante de ...-... sejam efetivamente oriundas do aterro e não tenham sido contaminadas pelas chuvas intensas, chamando para o efeito à colação o depoimento da testemunha (…).

Estas dúvidas suscitadas pela ré apelante não se nos afiguram minimamente fundadas, sendo certo que a testemunha (…) se limitou a abrir uns buracos, em locais e com a profundidade não concretamente identificada, para meter pilares na obra; sendo ainda evidente que o mesmo não possui conhecimentos técnicos adequados à perceção, em concreto, da morfologia do terreno em questão.

Por outro lado, a conclusão, defendida pela ré apelante, de que a passagem hidráulica (PH) inicialmente construída pela autora, aquando a construção da dita Variante, não possuía as dimensões suficientes (ou devia ter uma dimensão superior à que foi considerada), apenas foi veiculada pelo perito indicado pela ré, sendo certo que os peritos indicados pela autora e pelo tribunal expressamente a rejeitam (cf. resposta “não” dada ao quesito 13º no relatório pericial de fls. 411 e sgs.), fazendo ainda o perito da autora constar, em resposta ao perito da ré, designadamente, que:

(…) d) O escoamento da linha de água identificada na cartografia militar encontrava-se acautelado pela EP, tanto no projeto que já preconizava a construção de uma descida de talude e de uma passagem hidráulica sob a estrada, como no decorrer da obra com a construção de uma máscara drenante.

Mais se refere, que as questões levantadas acerca do dimensionamento e eficácia da referida passagem hidráulica existente sob a estrada são inconsistentes e inconsequentes, dado que o percurso de escoamento na linha de água identificada na carta cartográfica militar foi interrompido pelo aterro construído posteriormente a montante, pela R.R., o qual terá funcionado como barreira absorvendo as águas que deveriam circular sub-superficialmente na referida linha de água.

e) Recorde-se que à data do projeto e construção da estrada, finalizada em 2004, a EP não podia prever alterações no regime de escoamento a montante, em terrenos que não são sua propriedade, cabendo a responsabilidade destas alterações ao proprietário do terreno.” (cf. fls. 416 e 417).

Nesta medida, se, após o sinistro, a autora resolveu fazer uma “máscara drenante hercúlea” – o que nem sequer temos como demonstrado no ponto 75. –, em nada invalida a conclusão de que a anteriormente existente servia perfeitamente os fins a que se destinava, disso dando conta o tribunal a quo designadamente salientando que (o que igualmente aqui sufragamos):

De resto, não se descortinou qualquer omissão da autora quanto à drenagem do solo na variante. Pelo contrário, como se refere no artigo 61º, aquela efectuou várias passagens hidráulicas, não havendo prova que permita afirmar que as mesmas fossem insuficientes.

De resto, o perito M. R., ouvido na nova audiência deixou clara a ideia de que se a acumulação de água tivesse advindo do subdimensionamento ou má colocação da passagem hidráulica, seria naquela zona (da PH) que se daria a saturação do solo, com consequências na estrada, que seria afectada em termos diversos daqueles que se verificaram, para além de necessariamente ficar inundada. E, neste mesmo sentido, atente-se nas fotografias que constam nos pontos 2.5 – a) e b) – e 2.6 do relatório do LNEC (fls. 861), a darem boa nota do aluimento das terras superiores e do estado da estrada. Nesse relatório faz-se também referência à passagem hidráulica efectuada pela ora autora aquando da construção da estrada, afirmando-se que a mesma assegurava um caudal superior ao estimado (atenta a linha de água aí também mencionada) para um período de retorno de 100 anos. Diz-se também que, superficialmente, a água é recolhida em valas de crista e em valetas de banqueta, sendo depois conduzida controladamente. Conclui-se, aliás, que «(…) os principais problemas de uma escavação neste tipo de maciços foram abordados de forma adequada e de acordo com a “boa prática”. A estabilidade do talude de escavação ao km 115+850 e a respectiva drenagem estariam adequadamente garantidas para as acções existentes, quer à data do projecto, quer à data da construção da estrada, quer durante a sua vida útil, mantendo-se as condicionantes do projecto».

Não vemos igualmente em que medida é que a autora possa ter escavado terras pertencentes a terrenos vizinhos, conforme a ré apelante defende, quando é certo que isso mesmo não resulta clarividente do teor dos apontados documentos juntos pela própria a 12.12.2016 (cf. fls. 517 e sgs.), sendo certo que tal matéria sequer foi alegada pela ré apelante na contestação apresentada.

De qualquer modo, isso poderia apenas ter relevância como forma de demonstração de que as obras levadas a cabo pela autora, aquando da construção da dita Variante, foram as causadoras do desmoronamento em causa (art. 1348º, n.º 1, do C. Civil), o que, conforme já vimos, não ocorreu, constituindo antes o aterro deficientemente construído pela ré apelante (sem a drenagem adequada e com a utilização de materiais inapropriados), em conjugação com a forte pluviosidade verificada na ocasião, as principais causas desse mesmo desmoronamento, o que se mostra plenamente justificado na decisão recorrida, em face da globalidade da prova produzida.

Realce-se ainda que, contrariamente à ré recorrente, o tribunal a quo não deu especial relevância ao depoimento da testemunha (…), tendo-o considerado “irrealista”, o que se nos afigura igualmente correto, tanto quanto é certo que se nos revelou pouco isento e em claro comprometimento com a tese da 1ª ré, afirmando que a derrocada em causa se deu “de baixo para cima”, ou seja, “com as árvores da urbanização a afundarem, como se sugadas fossem, e com o subsequente deslizamento de terras para a variante.

Esclarecendo-se ainda na decisão recorrida, que “(…) o certo é que, se assim sucedesse, o talude erguido pela E.P. (que a testemunha em questão, contrariando todas as demais, afirmou não existir) teria ficado todo por terra, o que não aconteceu, já que, como resultou dos depoimentos acima referidos, apenas a crista deste talude executado pela autora veio a ser danificada.

Ademais, um fenómeno assim singular, proveniente das entranhas da terra, teria muito provavelmente tido um resultado bem diferente, com a própria variante a levantar, o que manifestamente não ocorreu.”

A ré apelante defende, porém, que o tribunal a quo não compreendeu o depoimento desta mesma testemunha, pois que não se apercebeu a parte mais importante do mesmo, ou seja, que já havia terra em cima da Variante e o aterro não tinha deslizado.

Como se depreende da motivação sobre a decisão da matéria de facto, o tribunal a quo considerou o conteúdo desta parte do depoimento da apontada testemunha, apenas o desvalorizou, dada a inverosimilhança do relatado e a falta de credibilidade da testemunha, o que aqui, igualmente, partilhamos.

Para além de não termos como assente qual a quantidade de terra utilizada na construção do referido aterro, também não percebemos como é que a ré apelante entende que a terra retirada da variante teria necessariamente que coincidir com a existente no dito aterro, até porque foi realizada uma nova obra por parte da autora, com a movimentação de terras que a mesma sempre implica.

Não vislumbramos igualmente – até porque igualmente tal não foi minimamente justificado pela ré apelante, nem resulta da demais prova produzida –, em que medida é que os registos fotográficos do anexo 2 (incluindo foto de automóvel) do documento 2 junto com a petição inicial, nos permitem concluir, sem mais, que o desmoronamento ocorreu inicialmente no talude elaborado pela autora.

Por último, a ré apelante entende que o ponto 80. dos factos provados deverá ser dado como não provado, indicando, para o efeito, a total ausência de prova e a manifesta falência do argumento de que os estagiários não remunerados não têm qualquer intervenção ou colaboração nos documentos e projetos que assinam.

Também aqui partilhamos da conclusão final retirada, neste âmbito, pelo tribunal a quo, designadamente quando, referindo-se ao depoimento da testemunha (…) (então “patrono” da ré (…)) afirma que:

O seu depoimento não convenceu em diversos aspectos: desde logo, a testemunha procurou esquivar-se de modo ostensivo à questão de saber se tinha havido aterro para a urbanização, optando antes por falar sempre de um “acerto para cima, acerto para baixo” para não mencionar “aterro”, “palavra proibida”, já que a primeira ré alegou nos autos não ter feito aterro algum.

Acresce que não é de todo verosímil que os projectos por cuja regularidade a ora ré … assinou termos de responsabilidade fossem de facto da sua autoria, já que a mesma estava ainda em regime de estágio e não há qualquer comprovativo de tais projectos lhe terem sido pagos (apesar de tais comprovativos de pagamento terem sido solicitados à testemunha, a mesma juntou outra documentação, relativa a outro comprovativo que nada tinha a ver com o pretendido).

Assim, parece fazer muito mais sentido a tese segundo a qual a ré em questão assinava os projectos que não eram seus, quer porque o seu formador/patrono não os podia ainda assinar (só mais tarde é que concluiu a licenciatura e/ou formação na Ordem dos Arquitectos), quer porque, desse modo, ela conseguia também preencher o seu currículo (ainda que de modo fraudulento, como está bom de ver), como referiu a testemunha ….

Realce-se igualmente que, neste particular, a ré recorrente invoca que a dita testemunha … juntou a documentação demonstrativa de que o estágio da 4ª ré era remunerado, mas também concluímos que tal não resulta inequivocamente do teor dos documentos juntos a fls. 633 a 639.

Por conseguinte, bem andou, pois, o tribunal a quo em dar como provada a matéria de facto incluída nos nºs 46, 47, 50, 51, 52, 61, 66, 73 e 80, dando concomitantemente como não provada a factualidade inserta na al. f).

Daqui resulta, em suma, que este tribunal ad quem não possui qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, que se mostra assim inalterável, face à prova produzida.

Deverá pois, soçobrar integralmente a pretensão da ré recorrente, mantendo-se totalmente inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
*
B) Da nova fundamentação de direito

B.1) Da responsabilidade civil extracontratual da 1ª ré

A autora veio fundamentar a sua pretensão contra os réus (pedido) tendo por base (causa de pedir) a responsabilidade civil extracontratual, onde a obrigação de indemnizar funda-se no art. 483º, nº 1, do C. Civil, nos termos do qual: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou delitual: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano. (10)

Uma vez analisados todos estes requisitos de que depende a verificação da responsabilidade civil extracontratual, o tribunal a quo concluiu pela atribuição de responsabilidade civil extracontratual à 1ª ré, condenando a mesma em conformidade na indemnização à autora dos apontados danos causados com o seu comportamento delitual, acrescida do dever legal de conservar e intervir nas obras que efetuou em termos que impeçam a ocorrência de novas derrocadas, face à atual configuração do local.

Todavia, a ré recorrente entende que, por via dos factos provados sob os nºs 21, 22, 23 e 24, a mesma não teve qualquer responsabilidade na ocorrência do sinistro em causa, designadamente porque competia ao 2º réu exigir a elaboração de estudo geotécnico para o local onde decorria a implantação dos edifícios, assim como competia à 3ª ré elaborar e executar o mesmo estudo geotécnico, o que não sucedeu; sendo certo que a ré empreiteira não sabia nem tinha a obrigação de saber que tais estudos fossem necessários ou se tornassem aconselháveis no concreto local das obras.

Por seu turno, a 4ª ré, enquanto autora dos projetos de especialidade de escavação, aterro e pavimentação, relativos às obras de infraestruturas viárias do loteamento, também não elaborou ou executou o apontado estudo geotécnico, tendo inclusivamente assinado “termo de responsabilidade”, atestando que a observância das normas técnicas gerais e específicas de construção, bem como as disposições regulamentares aplicáveis.

Deste modo, em conjugação ainda com a factualidade dada como provada sob os nºs 35, 36 e 37, conclui a 1ª ré que tinha todas as razões para crer que atuava em perfeita conformidade com a legalidade e com a legis artis aplicáveis ao caso.

Como é bom de ver, não pode a 1ª ré (dona e executante da obra em causa) desculpar-se com a falta de diligência de terceiros no que à sua própria atividade de construção civil diz respeito, sendo certo que esta atividade, verificados todos os requisitos legais, por si só, é potenciadora de gerar danos a terceiros (art. 483º, n.º 1, do C. Civil), sendo que a culpa (por dolo ou mera culpa) deverá ser apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487º, n.º 1, do C. Civil), sem prejuízo de poderem concorrer na produção do ato ilícito e dos respetivos danos outros responsáveis (arts. 490º e 497º, do C. Civil).

Nesta medida, conforme resulta da decisão recorrida, que aqui igualmente sufragamos, o aterro voluntariamente construído pela 1ª ré apresentou-se claramente deficiente e, na sequência, com a sua derrocada invadiu a estrada construída pela autora, violando norma legal destinada a proteger interesses desta (e do público em geral), causando-lhe, por essa via, danos.

Outrossim, por via do disposto no art. 492º, n.º 1, do C. Civil, cabe ao proprietário ou possuidor de edifício ou obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de construção, responder pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.

Estamos, pois, aqui perante uma presunção legal de culpa, presunção que tem como resultado, de acordo com o estatuído no n.º 1 do art. 344º, do C. Civil, a inversão do ónus da prova, que deixa, assim, de competir ao lesado, para passar a recair sobre o autor do dano: é este quem terá que provar, para se eximir à responsabilidade, que não teve culpa na produção do facto danoso.

Constitui, assim, uma exceção à regra do n.º 1 do art. 487º, do C. Civil, sem que, contudo, se altere o princípio do art. 483º, do mesmo Código, de que a responsabilidade depende de culpa, pelo que admite a prova da falta de culpa como causa de exclusão de responsabilidade do agente. (11)

A ré apelante entende que, em face dos factos provados sob os nºs 8, 9, 10, 11 e 13 a 39, atuou sempre dentro da legalidade, de modo que as entidades administrativas competentes deram pareceres favoráveis à sua obra e os técnicos responsáveis pela execução da obra e dos projetos certificaram a conformidade técnica da respetiva execução, pelo que conclui assim que atuou sem culpa. E, como tal, não lhe poderá ser assacada responsabilidade pelo sinistro.

Não obstante, julgamos que não assiste razão à ré recorrente.

De facto, como já salientámos, temos antes como demonstrado que foi a 1ª ré quem cuidou de construir o aterro em causa, sendo certo que, em resultado da deficiente execução do mesmo, foram provocados danos na dita Variante anteriormente construída pela autora.

Apreciada a culpa, de acordo com a diligência de um bom pai de família (art. 487º, n.º 1, do C. Civil), torna-se patente que a mesma atuou com culpa, tanto quanto é certo que competia à mesma, enquanto empresa de construção civil responsável pela execução do dito aterro, munir-se de todos os elementos necessários e exigíveis para que a obra a realizar seguisse todos os critérios (legis artis) de construção adequados, o que manifestamente não se verificou no caso em presença.

Poderá a ré recorrente invocar, e mesmo demonstrar, que não foi devidamente auxiliada pelos técnicos responsáveis que projetaram e acompanharam a obra em causa, levando a ré apelante a executar uma obra deficiente. Porém, tal poderá, verificados os necessários pressupostos, funcionar como fundamento para efeitos do exercício de direito de regresso pelos danos que teve de suportar, mas nunca como causa de exclusão da sua culpabilidade (que, neste caso, legalmente se presume).

De acordo com o disposto no art. 1348º, n.º 1, do C. Civil, o proprietário tem a faculdade de no seu prédio fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra.

Nesta medida, entenda a ré recorrente que existe igualmente responsabilidade da autora, quando ao proceder às escavações para construção da Variante, optou por deixar no local apenas um talude com um ângulo de 34º, por considerar ser suficiente.

Como já salientámos atrás, em sede de apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não temos como demonstrado que as obras levadas a cabo pela autora, aquando da construção da dita Variante, mormente com o talude existente no local, foram as causadoras do desmoronamento em causa, constituindo antes o aterro deficientemente construído pela ré apelante (sem a drenagem adequada e com a utilização de materiais inapropriados), em conjugação com a forte pluviosidade verificada na ocasião, as principais causas desse mesmo desmoronamento; não sendo legalmente imposto à autora apelante prever as obras que se iriam realizar nos terrenos a montante, tal como acompanhar as obras realizadas pela ré apelante, da sua inteira responsabilidade.

Não assiste, pois, igualmente razão à ré recorrente quando afirma que não pode ser responsabilizada pelo pagamento do muro que autora sempre deveria ter construído, por ser sua obrigação, quer aquando da escavação para a construção da Variante ou após ter tomado conhecimento das obras de urbanização ocorridas no prédio da ré apelante.

Neste âmbito, a ré apelante veio ainda alegar que o que existia anteriormente era um talude e não um muro, pelo que, em face do disposto nos artºs. 564º e 566º, n.º 2, do C. Civil, o pagamento do muro consubstancia assim um enriquecimento ilegítimo e sem causa justificada.

Por outro lado, invoca ainda que se o novo aterro, uma vez construído de acordo com as regras de arte e com toda a segurança, é garantia suficiente da não ocorrência de novos deslizamentos, forçoso é concluir que sempre violaria os princípios da boa fé, da proporcionalidade e da proteção da confiança a condenação da ré apelante no pagamento do muro construído pela autora.

Nesta medida, considera que ocorre abuso de direito (art. 334º, do C. Civil), por ofender claramente os princípios de justiça e do sentimento jurídico dominante que a ré seja duplamente condenada a conservar e intervir nas obras que efetuou em termos que impeçam a ocorrência de novas derrocadas e, ao mesmo tempo, a pagar um muro de suporte de terras à autora, que esta nunca teve no local, tanto mais que a intervenção no aterro nos termos em termos que impeçam a ocorrência de novas derrocadas torna totalmente desnecessária a existência de um muro de suporte de terras no talude da Variante.

O abuso do direito – art. 334º, do C. Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”. (12)

Para Vaz Serra, o ato abusivo é, em regra, o exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na coletividade social. Só excecionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede. (13)

Noutra perspetiva, para Antunes Varela, “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.(14)

Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante. (15)

O instituto do abuso de direito visa “obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria ajustada, numa específica situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.(16)

Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar à injustiça chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido. (17)

No entanto, aceitamos que para a verificação do abuso de direito não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo; basta que, objetivamente, esses limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito exercido tenham sido exercidos de forma evidente, sendo esta a conceção objetivista do abuso do direito adotada pelo legislador. (18)

Isto não significa, porém, que ao conceito de abuso do direito sejam alheios fatores subjetivos, como por exemplo a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes fatores pode relevar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito. (19)

O abuso de direito tem sido analisado sobretudo nas modalidades de “venire contra factum proprium”, de “inalegabilidades formais”, de “suppressio”, de “tu quoque” e de “desequilíbrio entre exercício do direito e os efeitos dele derivados.” (20)

Ora, na sentença recorrida, pode ler-se, neste particular, que:

Determinando agora quais os concretos danos patrimoniais sofridos pela autora apurou-se que a mesma teve que despender a quantia de € 332.903,11, quer para remover as terras com carácter de urgência, quer para construir um muro mais robusto, capaz de acautelar aquelas deficiências do aterro efectuado pela primeira ré e, consequentemente, nova derrocada.

Nessa medida, também esta maior robustez do muro se enquadra causalmente neste sinistro, já que apenas se justificou em virtude das ineficiências da própria ré aquando da edificação.

O tribunal a quo fala na necessidade de construir um “muro mais robusto” no local, quando é certo que temos como suficientemente demonstrado que o talude anteriormente existente, adjacente à Variante, se trata de um simples “talude de escavação” (cfr. ponto 73. dos factos assentes), pelo que sem qualquer muro de suporte ou de contenção, o qual só foi construído após o sinistro verificado (cfr. ponto 75., al. g) dos factos provados). (21)

Naturalmente, estamos, ao que tudo indica, perante um mero lapso de escrita por parte do tribunal a quo, querendo antes este justificar a necessidade por parte da autora de construir um “talude mais robusto”.

Sendo assim, como resultou suficientemente provado, face à urgência das obras necessárias à reposição de circulação automóvel na dita Variante (cfr. pontos 72. e 73. 1ª parte, dos factos provados), a autora por via do perigo proveniente do dito aterro deficientemente construído pela ré, teve necessidade de construir um muro de contenção, no talude anteriormente existente, tudo de forma a evitar outros possíveis escorregamentos de terras, principalmente em caso de precipitação intensa (cfr. ponto 66. dos factos provados).

Por conseguinte, a necessidade de construção no local de um muro de contenção por parte da autora, justifica-se plenamente em face do evento danoso (construção de aterro deficiente) praticado pela ré apelante, estando esta, consequentemente, obrigada a indemnizar a autora por tal prejuízo que não teria sofrido não fosse a atuação lesiva da ré empreiteira (arts. 563º e 566º, n.º 2, do C. Civil).

A ré apelante entende, porém, que está a ser duplamente condenada, pois que, para além de ter que suportar os custos com o novo muro de contenção construído pela autora, terá ainda que conservar e intervir nas obras que efetuou em termos que impeçam a ocorrência de novas derrocadas.

No entanto, como é bom de ver, estas obras de conservação e/ou de intervenção nas obras que efetuou (claro está que somente aquelas que ao caso couberem), visam unicamente impedir novas derrocadas, assim se prevenindo igualmente a ocorrência de novos danos, muito em especial numa via pública de circulação automóvel permanente; sendo certo igualmente que não temos como demonstrado quais foram as obras de reparação e/ou de conservação realizadas pela 1ª ré no local, mormente no dito aterro e zonas circundantes.

Por conseguinte, como já afirmámos, o abuso de direito visa sancionar comportamentos clamorosamente ofensivos da boa fé, do fim económico e social do direito ou dos bons costumes: comportamentos clamorosos no sentido de intoleráveis, inadmissíveis, chocantes do sentido de justiça, que o direito e a ética negocial não podem tolerar.

Pelo que fica dito, afigura-se-nos que tal situação não ocorre no caso em análise.

Não ocorre, por conseguinte, qualquer violação das normas aludidas pela ré apelante (cfr. conclusão n.º 47).

Termos em que se conclui, igualmente neste segmento, pela improcedência dos fundamentos de recurso da ré recorrente.
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B.2) Da responsabilidade civil extracontratual dos demais réus

A questão que importa agora dirimir prende-se com a responsabilidade civil extracontratual, solidária com a 1ª ré, dos demais réus.

Neste âmbito quer a ré apelante quer a autora (apelante subordinada) entendem que os demais réus também deveriam ser condenados solidariamente na indemnização peticionada, invocando, em suma, que os mesmos réus são co-responsáveis nos danos ocorridos, em virtude da validação que, enquanto técnicos, deram ao projeto executado pela 1ª ré.

Na opinião da ré apelante, os factos julgados como provados sob os nºs 21, 22, 23, 24, 35, 36 e 37 impõem, como necessária conclusão, a responsabilidade do 2º réus, da 3ª ré e da 4ª ré.

Por seu turno, a autora entende que a factualidade provada sob os nºs 19 a 37 e 66 a 70 (67 a 71 em face da nova factualidade assente) comprovam a prática de facto voluntário dos 2º, 3ª e 4ª réus e que demonstram a ilicitude desses atos, bem como o nexo de causalidade desses atos e os danos causados.

No essencial, invoca que a atuação destes réus não se circunscreve à mera relação contratual interna com a 1ª ré, tanto quanto é certo que os mesmos intervieram em procedimento administrativo de licenciamento de uma operação urbanística de loteamento, a qual só foi licenciada porque os aludidos réus subscreveram termos de responsabilidade que foi junto ao processo administrativo.

Mais invoca que as normas relativas ao regime jurídico de urbanização (D.L. n.º 555/99, de 16.12) e aos deveres impostos ao diretor técnico da obra (D.L. n.º 119/92, de 30.06) visam tutelar não só interesses de ordem pública e coletiva, mas também interesses particulares, cuja violação implica ilicitude civil.

Além disso, entende igualmente a autora que é aplicável in casu o regime da responsabilidade do comissário, por culpa (mesmo) presumida, pelo que os comitentes respondem, civil e solidariamente, com o comissário (arts. 497º, n.º 1, 503º, n.º 1 e 566º, n.º 3, do C. Civil), concluindo que, se foi a 1ª ré quem em derradeira linha violou norma destinada à proteção de interesses alheios, consubstanciadora da ilicitude, em primeira linha avulta a elaboração dos projetos e a subscrição dos termos de responsabilidade, sem os quais a operação urbanística de loteamento não teria sido licenciada, nem a obra construída.

Vejamos então.

Com interesse para a apreciação da presente questão, o tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade:

19. Em 23.06.2006, o arquiteto projetista apresentou o termo de responsabilidade no processo administrativo de licenciamento da operação de loteamento [al. t) dos factos assentes)].
20. Em 02.06.2006 a Comissão de Coordenação de Desenvolvimento do Norte apresentou no processo administrativo de licenciamento da operação de loteamento parecer sobre o projeto de efluentes [al. u) dos factos assentes)].
21. O 2º réu, na qualidade de diretor técnico da empresa que elaborou os projetos de estabilidade, não ordenou nem exigiu a elaboração do estudo geotécnico para o local onde decorria a implantação dos edifícios [al. v) dos factos assentes)].
22. A 3ª ré, enquanto empresa que elaborou os projetos de especialidade, não elaborou nem executou o estudo geotécnico para o local onde decorria a implantação dos edifícios [al. x) dos factos assentes)]
23. A 4ª ré, enquanto autora dos projetos de especialidade de escavação, aterro e pavimentação, relativos às obras de infraestruturas viárias do loteamento, não elaborou nem executou o estudo geotécnico para o local onde decorria a implantação dos edifícios [al. z) dos factos assentes].
24. A 4ª ré apresentou nesse processo de licenciamento o termo de responsabilidade, com o seguinte teor: «(…), Engenheira Civil, inscrito na Ordem dos Engenheiros sob o n.º ..., declara sob responsabilidade profissional, nos termos e para o efeitos do disposto nos n. º 1, do art. 10º, do Decreto/Lei 555/99 de 16 de Dezembro, e as alterações introduzidas pelo Decreto/Lei 177/2001 de 4 de Junho, que o projeto de escavação, aterro e pavimentação relativo as obras de infra-estruturas viárias de loteamento, localizada no lugar de (…), freguesia de (…), concelho de ..., cujo requerente é a Firma (…), foram observadas as normas técnicas gerais e específicas de construção, bem como as disposições regulamentares aplicáveis» [al. aa) dos factos assentes)].
25. Essa operação urbanística foi aprovada por despacho do Presidente da Câmara Municipal de ... datado de 21.05.2001 da Câmara Municipal de ... [al. bb) dos factos assentes)].
26. A ré apresentou os projetos de especialidades nos serviços da autarquia em referência, designadamente o cálculo de estruturas, eletricidade, águas e saneamento, betão armado, que foram aprovados por despacho do vereador da Câmara Municipal de ..., em conjunto com o despacho final de aprovação do pedido de licenciamento da operação urbanística de loteamento, em 21.05.2004 [al. dd) dos factos assentes)].
27. Após a aprovação desses projetos de especialidades, a 1ª ré requereu o licenciamento final dessa operação urbanística de loteamento, que foi aprovado pelo Presidente da Câmara Municipal de ..., tendo sido emitido o alvará de que titula o licenciamento dessa operação urbanística [al. ee) dos factos assentes)].
28. Para garantir a boa execução das obras de urbanização que lhe competiam, a 1ª ré apresentou no processo administrativo de loteamento duas garantias bancárias com o nº … em 03.04.2007, no montante de € 121.500,00 [al. ff) dos factos assentes)].
29. A 1ª ré iniciou as obras de urbanização em 10.05.2007 (obras de construção de arruamentos, passeios, saneamento, canalização e iluminação pública [al. gg) dos factos assentes)].
30. Em 16.04.2008 a 1ª ré concluiu as obras de urbanização e requereu à Câmara Municipal de ... a receção provisória das infraestruturas em 24.03.2009 [al. hh) dos factos assentes)].
31. A 1ª ré requereu a licença de utilização cujo alvará foi emitido pela (…) em 16.04.2007, após ter efetuado vistoria às obras de urbanização [al. ii) dos factos assentes].
32. Esta operação urbanística tinha por objeto a constituição de dez (6 + 4) lotes destinados a habitação onde foram construídos dois edifícios pela ré [al. jj) dos factos assentes].
33. O edifício 1 é constituído por 6 fogos numerados de 1 a 6 de norte para sul [al. ll) dos factos assentes].
34. O edifício 2 é constituído por 4 fogos numerados de 7 a 10, de poente para nascente [al. mm) dos factos assentes].
35. No que respeita especificamente às obras de urbanização do loteamento, o 2º réu, enquanto profissional, tinha a direção técnica da obra [al. nn) dos factos assentes].
36. A 4ª ré elaborou os projetos de especialidades para a aludida operação urbanística de loteamento através da 3ª ré, que foi contratada pela 1ª ré [al. oo) dos factos assentes].
37. Em 22.02.2008, a 4ª ré, na qualidade de diretora técnica da obra, apresentou declaração no processo administrativo de loteamento atestando que a execução da obra estava em perfeitas condições técnicas [al. pp) dos factos assentes].
67. Na construção dos edifícios, a 1ª ré adotou para “tensões de contacto” entre as sapatas e o solo adjacente o valor de 0.30 Mpa – quesito 24º.
68. O valor referido no artigo anterior, bem como a cota das “fundações directas – sapatas de tipo rígido” foram assumidos pelos réus na execução da obra tendo em conta a “observação do terreno” e as “cotas dos pisos ou pelas cotas do terreno natural” – quesito 24º-A.
69. O projeto de especialidades é completamente omisso em relação à cota das fundações – quesito 26º.
70. O dimensionamento das fundações dos edifícios construídos no local pela 1ª ré foi efetuado com base na interpretação que os intervenientes no projeto e execução fizeram sobre a cota mais apropriada para construir as fundações – quesito 28º.
71. A capacidade de carga das fundações não foi estimada com base nas propriedades do solo, determinadas por estudo, e não existem elementos que permitam saber com rigor o que realmente foi executado no que respeita às fundações – quesito 29º.

Na sequência, a autora recorrente (subordinada) defende que os 2º, 3ª e 4ª RR. violaram o disposto no art. 10º, do D.L. n.º 555/99, de 16.12 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), o qual se refere ao “termo de responsabilidade”, que tem que ser subscrito por técnico inscrito em associação pública profissional e credenciado profissionalmente, pelo que se trata de um ato com relevância em interesse público e praticado no âmbito de ordem pública, pois que do mesmo depende o respetivo licenciamento da operação urbanística a realizar (neste caso de loteamento), assim como alvará de construção e de utilização.

A autora veio igualmente invocar o não cumprimento por parte dos demais réus (enquanto diretores técnicos da obra) do disposto nos arts. 86º, n.º 5 e 87º, n.º 2, do D.L. n.º 119/92, de 30.06 (Estatuto da Ordem dos Engenheiros).

Por conseguinte, veio a autora chamar à colação o Ac. RC de 26.01.2010 (22), onde se pode ler do seu sumário que: “É juridicamente plausível que a omissão de cumprimento dos deveres de fiscalização por parte do diretor técnico de obra particular contratado pela empreiteira o constitua na obrigação de indemnizar o dono da obra relativamente aos danos decorrentes dessa omissão seja com base em responsabilidade civil por facto ilícito fundada na violação de normas legais do direito da construção que visam tutelar o dono da obra ou com fundamento na violação de deveres profissionais seja ainda com fundamento em responsabilidade contratual decorrente de contrato com eficácia de protecção de terceiros ou em contrato com encargo de terceiro. (23)

Por assim dizer, este aresto entende que o diretor técnico da obra, mercê da violação da omissão de cumprimento de deveres de fiscalização de obra particular, poderá ser responsabilizado civilmente por facto ilícito relativamente aos danos que causou ao dono da obra, com base na violação de normas legais do direito da construção ou de deveres profissionais que visam tutelar o dono da obra.

Neste âmbito, cumpre realçar ainda que diversamente se decidiu no Ac. RC de 09.02.2010 (24), lendo-se no seu sumário que “O engenheiro técnico civil, autor dos projetos e diretor técnico da obra não é responsável perante os compradores de imóvel comprado à firma que o construiu, pela eliminação de possíveis defeitos nem com base em responsabilidade contratual, atento o princípio da eficácia relativa dos contratos (n.º 2 do art.º 406.º do CC), a que foi de todo estranho, nem em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, desde logo porque arredado o pressuposto da ilicitude do seu procedimento (art.º 483.º, n.º 1, do CC).

Neste mesmo aresto, consignou-se que:

São conhecidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (facto, ilicitude, imputação do facto ao lesante, dano e nexo de causalidade entre facto e dano – art.º 483.º do CC), relevando hic et nunc a ilicitude, que se traduz na infracção de um dever jurídico.

Pode revestir duas modalidades:

a)Violação de um direito de outrem, ou seja, infracção de um direito subjectivo, principalmente direitos absolutos, como os direitos reais (art.ºs 1251.º e ss do CC) e de personalidade (art.ºs 70.º e ss do CC);
b)Violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios.

O que aqui releva não é qualquer violação de deveres jurídicos. Há que perscrutar o fim da disposição, necessário sendo que vise proteger interesses particulares e não outros, ainda que deles possa aproveitar-se e que o dano se produza no círculo de interesses privados que a lei tem em vista tutelar.

Parece claro que o R., ainda que admitindo que enquanto projectista e director técnico da obra não acompanhou devidamente a execução da construção da moradia e não registou no livro de obra todos os factos relevantes, não atentou contra qualquer direito dos AA. recorrentes, v. g., contra o direito de propriedade, que era o que aqui poderia estar em causa (…)

Daí que a 1.ª modalidade de ilicitude esteja arredada.

Sustentam os recorrentes, nas alegações, que o recorrido enquanto director técnico não orientou nem fiscalizou os trabalhos e violou normas legais urbanísticas sancionadas a título contra-ordenacional, designadamente a omissão no livro de obra da alteração ao projecto.

Percorrendo as diversas normas do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) (DL n.º 559/99 de 16.12) não encontramos definição do conteúdo funcional do técnico autor de projecto e de director técnico de obra, funções que aqui o recorrido assumiu cumulativamente.

Contudo, podemos ver que a responsabilidade para o autor do projecto radica no respectivo “termo de responsabilidade”, que obrigatoriamente deve instruir o processo de licenciamento (art.º 10.º e Portaria n.º 1110/01 de 19.9, anexo I) em como foram observadas as normas legais e regulamentares aplicáveis, designadamente as normas técnicas de construção em vigor.

E para o director de obra igualmente relevante é o “termos de responsabilidade” a que alude o art.º 63.º daquele RJUE e cit. Portaria, anexo, II, em como a obra foi executada de acordo com o projecto e licença e as normas legais e regulamentares.

E tal declaração é tão relevante quanto hoje dispensa a vistoria prévia municipal para a concessão de licença de utilização e só em casos de indícios de a mesma não ser verdadeira há lugar a ela (art.º 64.º).

As falsas declarações em tais termos de responsabilidade podem integrar responsabilidade contra-ordenacional ou criminal (art.ºs 98.º, n.º 1, alíns. e) e f) e 5 e 100.º, n.º 2, do RJUE).

Também a falta do livro de obra ou a falta dos registos pelo técnico podem integrar ambos os tipos de responsabilidade (idem, art.º 98.º, n.º 1, alín. e) e 6 e 100.º, n.ºs 1 e 2).

Não é de excluir também a responsabilidade disciplinar desencadeada pelas respectivas associações profissionais (idem, art.º 99.º, n.º 3).

Daqui resulta que os valores subjacentes a essas normas de ilícito urbanístico têm cariz essencialmente administrativo e só reflexamente visam proteger interesses particulares.

Daí que e em conclusão, a possível violação dos deveres jurídicos em causa, atentas as considerações expendidas, não pode fundamentar a 2.ª vertente da ilicitude relevante para integrar a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.

Também, de acordo com Antunes Varela (25), no caso desta 2ª vertente do pressuposto da ilicitude (violação da lei que protege interesses alheios), a mesma comporta três requisitos especiais, a saber:

i) Que a lesão dos interesses do particular corresponda à violação de uma norma legal.
ii) Que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada;
iii) Que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

Ora, lendo as invocadas normas relativas ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (D.L. n.º 555/99, de 16.12) e aos deveres impostos ao diretor técnico da obra (D.L. n.º 119/92, de 30.06), entendemos que, se é certo que as mesmas não visam tutelar somente interesses de ordem pública e coletiva, mas também interesses particulares (e daí a sua chamada natureza bifronte), cuja violação implica ilicitude civil, não temos como suficientemente defensável que as mesmas se possam extravasar para qualquer particular, para além do dono da obra, pois que só este é que, diretamente, está interligado com a construção e execução da mesma e com os danos que eventualmente lhe sobrevenham a falta de cumprimento daquelas normas de caráter público.

Na realidade, importa, desde logo, considerar, na esteira do defendido por Antunes Varela, que “é preciso que a tutela dos interesses privados não seja, portanto, um mero reflexo da proteção dos interesses coletivos que, como tal, a lei visa salvaguardar.(26) (sublinhámos).

Assim o mesmo Autor, aceita que na nova categoria dos factos antijurídicos cabem os casos em que os danos provenham de uma simples contravenção ou de uma transgressão de caráter administrativo, mas unicamente nos casos em que as normas violadas visam proteger interesses dos particulares, sem lhes conferir um verdadeiro direito subjetivo.

E, de entre estes casos, Antunes Varela enumera “o dono da construção que ruiu, porque o arquiteto ou o engenheiro responsável não observaram as regras aplicáveis às construções desse género.(27)

De igual modo, podemos assim concluir que o dito “termo de responsabilidade” apenas assume relevância jurídica na relação (privada) entre o autor do projeto/dono da obra, pois que, em caso de violação das respetivas normas que causem prejuízos a este último, aquele “termo de responsabilidade” permite imputar ao primeiro a respetiva responsabilidade. (28)

No fundo, conclui-se, assim, que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso daquelas normas jurídicas de caráter público, por parte dos técnicos responsáveis pelo projeto e fiscalização da obra, poderão, em determinados casos, servirem como fundamento de responsabilidade civil por facto ilícito pelos prejuízos que dai lhes advieram para o dono da obra (diretamente interessado com a boa execução da obra em causa), mas não já para qualquer outro terceiro, que só reflexamente viu os seus interesses afetados por via da violação das apontadas normas de ordem coletiva.

Pelo que fica dito, independentemente de se poder concluir que os 2ª, 3ª e 4ª réus não cuidaram de cumprir adequadamente com os seus deveres profissionais, que aquelas normas de interesse coletivo visam acautelar, designadamente por via do referido “termo de responsabilidade” da sua autoria, necessários ao licenciamento das operações de loteamento e de construção levados a cabo no local pela 1ª ré construtora e dona da obra, daí não podemos necessariamente concluir que, por via da violação de tais normas que visam proteger interesses coletivos, assiste o direito particular da autora em ver solidariamente condenados os demais réus, a título de responsabilidade civil extracontratual, no ressarcimento dos danos causados, pois que in casu não se verifica, desde logo, o preenchimento de um dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual, mais concretamente o da ilicitude.

Por último, entende igualmente a autora que é possível convocar in casu a responsabilidade do comissário, em que por culpa presumida os comitentes respondem civilmente, solidariamente, com o comissário, em conformidade com o disposto nos arts. 497º, n.º 1, 503º, n.º 1, do C. Civil.

Ora, desde logo, afigura-se-nos evidente, que o disposto no art. 503º, do C. Civil (que se refere a acidentes causados por veículos) é aqui inaplicável.

Possivelmente, a autora pretendeu fazer alusão ao art. 500º, do C. Civil, o qual, tem como epígrafe “Responsabilidade do comitente”.

De acordo, com o n.º 1 deste último preceito legal, “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

Na opinião de Antunes Varela, o termo “comissão” tem aqui o sentido amplo, de serviço ou atividade realizada por conta e sob a direção de outrem, podendo essa atividade traduzir-se tanto num ato isolado como numa função duradoura, ter caráter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc.

Outrossim, a comissão pressupõe, pois, uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autoriza aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direção é que poderá justificar a responsabilidade do comitente pelos atos do comissário. (29)

No caso em apreço, não temos demonstrado que a 1ª ré, que foi quem executou a obra em questão, se encontrava numa relação de dependência para com os demais réus, sendo certo também que o inverso também não se verifica, existindo apenas uma relação contratual (de prestação de serviços) entre os 2º, 3ª e 4ª réus e a 1ª ré (cfr. designadamente facto provado n.º 36.).

Termos em que, sem necessidade de maiores delongas, se conclui pela total improcedência dos fundamentos de recurso da autora e, igualmente neste segmento, da ré apelante, sendo de manter a decisão recorrida, ainda que, com base em fundamentos não totalmente coincidentes.
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V-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedentes os recursos (principal e subordinado) de apelação apresentados pela 1ª ré e autora, respetivamente, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.

Custas das apelações pelas apelantes respetivas (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
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Guimarães, 04.04.2019

Este acórdão contem a assinatura digital de:
Relator: António José Saúde Barroca Penha.
1º Adjunto: Desembargadora Eugénia Marinho da Cunha.
2º Adjunto: Desembargador José Manuel Alves Flores.



1. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4ª Edição, pág. 164.
2. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
3. Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
4. Ob. citada, págs. 274 e 277.
5. Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
6. O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
7. Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
8. Vide, neste sentido, por todos, Acs. do STJ de 03.11.2009, proc. n.º 3931/03.2TVPRT.S1, relator Moreira Alves; e Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
9. Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609.
10. Vide, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, 4ª Edição, pág. 471.
11. Neste particular, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 493.
12. Teoria Geral das Obrigações, Almedina, 3ª edição, págs. 63-64.
13. Abuso de Direito, BMJ n.º 85, pág. 253.
14. Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 5ª edição, pág. 499.
15.Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 299.
16. Cfr. Ac. STJ. de 15.01.2013, proc. n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, relator Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt.
17. Manuel de Andrade, ob. citada, pág. 63.
18. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 298.
19. Neste sentido, cfr. Antunes Varela, ob. cit. pág. 499.
20. Cfr. desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais realizados por António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, Almedina, 2ª edição, 2015, págs. 295 a 381.
21. Neste sentido, vai igualmente a prova pericial produzida – cfr. resposta dada aos quesitos 2º, 27º e 28º.
22. Proc. n.º 1801/08.7TBCBR.C1, relator Carlos Gil, acessível em www.dgsi.pt.
23. No mesmo sentido, cfr. Ac. RC de 13.11.2012, proc. n.º 180/08.7TBTBU.C1, relator Carvalho Martins; e AC. RG de 21.01.2016, proc. n.º 203/09.2TBMCD.P1.G1, relator Jorge Teixeira, disponível em www.dgsi.pt.
24. Proc. n.º 1255/07.5TBAVR-A.C1, relator Francisco Caetano, acessível em www.dgsi.pt.
25. Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10ª edição, págs. 536-542.
26. Ob. cit., pág. 540.
27. Ob. cit., págs. 538 e 539.
28. Neste sentido, cfr. Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maças, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado, Almedina, 2ª edição, pág. 166.
29. Ob. cit., pág. 640.