Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1223/20.1T8BGC-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Quando alguma das partes requer a prestação de depoimento de parte deve indicar, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.
2 – Requerer o depoimento de parte dos réus a «toda a matéria constante da petição inicial» não corresponde a uma indicação discriminada dos factos.
3 – Na falta de discriminação dos factos sobre que há de recair o depoimento de parte, o juiz deve convidar a parte requerente a fazê-la, suprindo a deficiência do requerimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, CC, DD, Herança Jacente Aberta Por Óbito de DD e EE, formulando os seguintes pedidos:
«1) Ser declarada a nulidade, por simulação, do contrato de cessão e divisão de quota celebrado entre os Réus BB, CC e DD no dia ../../1994, e ordenado o cancelamento do registo que por virtude do mesmo tenha sido efetuado;
2) Ser declarada a validade do contrato dissimulado de cessão de quota e respetiva divisão em três quotas:
(1) uma quota correspondente a dez por cento do capital social da Sociedade (correspondente ao valor nominal àquela data de € 29.930,00) adquirida pela Ré CC;
(2) uma quota correspondente a dez por cento do capital social da Sociedade (correspondente ao valor nominal àquela data de € 29.930,00) adquirida pelo Réu DD; e,
(3) uma quota correspondente a vinte por cento do capital social da Sociedade (correspondente ao valor nominal àquela data de € 59.860,00) adquirida pelo Autor AA;
3) Serem os Réus condenados a reconhecerem como nulo o contrato simulado de cessão e divisão de quota celebrado entre os Réus BB, CC e DD no dia ../../1994 e como válido o contrato dissimulado de cessão de quota e respetiva divisão em três quotas, sendo uma quota correspondente a dez por cento do capital social da Sociedade (correspondente ao valor nominal àquela data de € 29.930,00) adquirida pela Ré CC, uma quota correspondente a dez por cento do capital social da Sociedade (correspondente ao valor nominal àquela data de € 29.930,00) adquirida pelo Réu DD e uma quota correspondente a vinte por cento do capital social da Sociedade (correspondente ao valor nominal àquela data de € 59.860,00) adquirida pelo Autor AA;
4) (a) Serem os Réus Herança jacente aberta por óbito de DD e EE condenados a reconhecer que dispuseram do seu próprio património de uma verba de € 600.000,00, fazendo a devida correspondência com a moeda legal em curso, para pagar a aquisição da quota ao Engenheiro BB;
(b) correspondentemente ser o Engenheiro BB condenado a reconhecer que o preço que recebeu lhe foi pago pelo Senhor DD, de cujus da Herança Jacente e a D. EE por conta dos filhos destes; e, bem assim,
(c) serem os Réus DD e CC condenados a reconhecer que o preço de aquisição das quotas de que são titulares na Sociedade no montante global de € 600.000,00, fazendo a devida correspondência com a moeda legal em curso, proveio do património dos pais destes, ou seja do de cujus da Herança Jacente e da D. EE.»

No final da petição inicial o Autor requereu «o depoimento de parte dos Réus, BB, CC, DD e EE, sobre toda a matéria constante da petição inicial, visto terem conhecimento direto da mesma».
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Os Réus CC e DD apresentaram contestação.
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1.2. Depois de outras vicissitudes, entre as quais se conta a admissão da intervenção principal provocada de FF, como associada do Réu GG e dos Réus HH e DD, foi dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Decorrido o prazo para reclamações e/ou alteração dos requerimentos probatórios, período durante o qual os Réus CC e DD alteraram o seu requerimento probatório, foi proferido o despacho recorrido com o conteúdo que a seguir se transcreve:
«O Autor requerer o depoimento de parte dos Réus BB, CC, DD e EE sobre “toda” a matéria constante da petição inicial.
Resulta do disposto no artigo 453.º, n.º 3, do C.P.C., que os depoimentos de parte apenas podem ser requeridos pela parte contrária ou por um comparte. E, atento o preceituado no artigo 352.º do Código Civil, os depoimentos de parte só poderão incidir sobre matéria susceptível de confissão, ou seja, desfavorável ao depoente.
In casu, o Autor limitou-se a requerer o depoimento de parte dos Réus ‘a toda a matéria da petição inicial’, sem indicar, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair, como manda o artigo 452.º, n.º 2, do C.P.C., precisamente para que o Tribunal possa aferir da admissibilidade do meio de prova em face da factualidade indicada.
É, pois, pressuposto de admissibilidade de tal meio de prova a discriminação dos factos e o momento para o fazer é o da apresentação do requerimento, com o respectivo articulado, não podendo o Tribunal substituir-se à parte nem a convidar a ‘aperfeiçoá-lo’.
Termos em que indefiro, por irregular, o pedido formulado pelo Autor de prestação de depoimento por parte dos Réus.»
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso é interposto da decisão proferida no despacho que determinou a rejeição do depoimento de parte dos Recorridos BB, CC, DD e EE, meio de prova requerido pelo Recorrente Autor no requerimento de prova inserto na petição inicial, por considerar irregular a formulação de tal pedido em violação do preceituado no artigo 452º, nº 2 do CPC.
2. O Autor, aqui Recorrente, requereu que sejam admitidos os depoimentos de parte dos Recorridos BB, CC, DD e EE a toda a matéria de facto alegada na petição inicial, ou seja, a matéria contante dos artigos 1º a 29º.
3. Os depoimentos requeridos tiveram como objeto factos pessoais e/ou de que os depoentes devam ter conhecimento, em conformidade com estatuído no artigo 454º, nº 1 do CPC, já que a matéria de facto vertida ao longo do articulado petição inicial cumpre tais requisitos.
4. Destarte, sendo a matéria de facto alegada nos artigos 1º a 29º referente à contextualização das circunstâncias que motivaram a formalização do negócio simulado e ao acordo quanto ao negócio dissimulado, todos os depoentes indicados pelo Recorrente tinham conhecimento da mesma.
5. A expressão “discriminada” constante do artigo 452.º, n.º2 CPC deverá ser interpretada de forma ponderada, cum grano salis, como, aliás, se conclui no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/12/2018 in www.dgsi.pt: “(...) E dispondo o art. 452º, nº 2, do mesmo código, que quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair. Esta expressão “discriminada” tem de ser interpretada cum grano salis (...).” Sumariando-se na citada decisão que: “A imposição da indicação discriminada dos factos sobre que há-de recair a prestação de declarações de parte (nos termos conjugados dos arts. 466º, nº 2, e 452º, nº 2, do NCPC) não impede que a parte requeira que tais declarações incidam sobre toda a matéria de facto alegada na p.i. (ou réplica).” (negrito nosso)
6. A matéria de facto indicada pelo Recorrido como objeto dos depoimentos de parte, está alegada nos artigos 1º ao 29º da petição inicial, pelo que, in casu, temos assim, e de modo indireto, por se verificar cumprida a mencionada discriminação e, por outro lado, constitui parte da matéria controvertida constante dos temas da prova selecionados pelo Tribunal a quo no despacho saneador.
7. Sem prejuízo, a circunstância de se requerer o depoimento de parte a toda a matéria, não deveria conduzir, ao imediato indeferimento do requerido, mas, quando muito, ao indeferimento parcial, restringindo-se os depoimentos à matéria controvertida constante dos temas da prova que o Tribunal a quo entretanto já selecionou no despacho saneador.
8. Mesmo que se possa considerar tal intervenção processual desconforme com o estatuído no artigo 452.º, n.º 2 do CPC Cód. Proc. Civil, tal não pode constituir deficiência processual insuprível na marcha subsequente do processado.
9. A omissão, no requerimento probatório, da enunciação, de forma discriminada, dos factos sobre que deverão recair os depoimentos de parte não tem, só por isso, eficácia preclusiva da possibilidade de produção de prova por tal meio.
10. Da aplicação conjugada das disposições dos artigos 6º., 7º. e 590º., nº. 4 do CPC considerados em si mesmos, ou conjugados com o princípio processual do aproveitamento dos atos resulta que, face a requerimentos de produção de prova por meio de depoimentos de parte que não indiquem logo, de forma discriminada, os factos sobre que hão -de recair, verificamos existir outras soluções processualmente admissíveis que não o seu indeferimento, como a seguir se indicam:
11. A admissão dos depoimentos de parte, restringindo o respetivo objeto aos factos enunciados na petição inicial que se considerem controvertidos e que os depoentes tenham tido conhecimento direto, cenário já acima apresentado; ou
12. Mesmo que assim se não entenda e sem prescindir, a verificação de hipotética irregularidade processual da atividade da parte que pede a prestação de tais depoimentos poderá ter por consequência a reação do Tribunal consubstanciada num convite à parte requerente da produção de tal meio de prova, para que indique o mais concretamente possível os factos que devem ser objeto da mesma, no estrito cumprimento do disposto no artigo 452º., nº. 2 do CPC.
13. Conforme, aliás, é posição assumida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31/05/2022 in www.dgsi.pt: “(...) 3 – Incumprido o ónus de discriminação dos factos, não deve ser rejeitado de imediato o requerimento, cumprindo ao Tribunal convidar a parte requerente a suprir tal deficiência.” (negrito nosso).
14. Assim, a intervenção processual do Recorrente no requerimento de prova indeferido nos autos, terá, quando muito, de ser considerada uma mera deficiência a qual não impunha a preclusão do direito, mas sim seria de suprir com a admissão do depoimento aos factos indicados pelo recorrente que reúnem os requisitos previstos no n.º 1 do art.º 454.º do CPC, ou com o convite ao aperfeiçoamento.
15. Tendo decidido que a omissão do cumprimento do ónus de enunciação discriminada dos factos objeto dos depoimentos de parte tem como consequência processual a não admissão dos mesmos, o douto despacho recorrido incorreu em erro de julgamento, por violação, entre outras, das disposições dos artigos. 6º., 7º. 590º., nº. 4, 452º., nº. 2 e 454º. do CPC.
16. O douto despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita os pedidos de produção de prova por meio de depoimento de parte dos Recorridos BB, CC, DD e EE, deixando ao Exmo. Julgador a quo o poder dever de, compulsados os autos, restringir a matéria vertida na petição inicial para tal efeito de constituir objeto dos depoimentos, ao abrigo do disposto no artigo 454º do CPC.
17. Ou, quando assim se não entenda, por outro que corporize o convite ao Recorrente para dar cumprimento mais concretizado ao disposto no artigo 452º., nº. 2 do CPC, indicando aquele, na sequência desse convite, de forma discriminada, os factos sobre que tais depoimentos devem recair.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, deverá ser dado inteiro provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, na parte em que indeferiu os depoimentos de parte dos Réus, aqui Recorridos BB, CC, DD e EE, substituindo-se o mesmo por outro, que admita os referidos depoimentos, tendo tal meio de prova por objeto os factos em que aqueles depoentes tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham tido conhecimento direto; ou, caso assim não se entenda, substituído, no provimento deste recurso, o douto despacho recorrido por outro que ordene a notificação do Autor, aqui Recorrente, para em prazo a fixar pelo Tribunal, indicar os factos sobre os quais deve recair a prestação dos depoimentos de parte requeridos, seguindo-se os ulteriores termos do processo.»
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Os Réus não apresentaram contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso interposto pelo Autor, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil[1]), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, cabe apreciar se deve ser indeferido o depoimento de parte, no caso dos Réus, requerido relativamente a «toda a matéria constante da petição inicial» e, na negativa, qual o procedimento que deve ser adotado quando o objeto do depoimento é indicado nos apontados termos.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a apreciação da apontada questão são os descritos no relatório que antecede.
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2.2. Do objeto do recurso

As provas, diz-se no artigo 341º do Código Civil (CCiv[2]), têm por função a demonstração da realidade dos factos. O termo provas, que é polissémico, é utilizado no apontado preceito legal no sentido de meios, isto é, elementos objetivos capazes de proporcionar a demonstração da realidade de determinados factos.
No nosso ordenamento o juiz pode recusar provas impertinentes, dilatórias ou desnecessárias (v. arts. 6º, nº 1, 411º, 443º, nº 1, 476º, nº 1, e 490º, todos do CPC).
Na sistematização do Código de Processo Civil, o depoimento de parte mostra-se inserido na prova por confissão – art. 452º e segs.
Nos termos do artigo 352º do CCiv, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. Pode ser judicial ou extrajudicial (art. 355º).
A confissão judicial provocada pode ser feita em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal (art. 356º, nº 2, do CCiv). Essas duas formas de confissão judicial provocada também são enunciadas nos dois números do artigo 452º do CPC, mas a prestação de depoimento de parte tanto pode ser determinada pelo juiz como ser requerida por alguma das partes: no nº 1 prevê-se que o juiz pode oficiosamente, em qualquer estado do processo, determinar que a parte preste depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa[3]; no nº 2 consagra-se o direito de o depoimento ser requerido por alguma das partes (ou compartes – art. 453º, nº 3, do CPC).
Sendo requerido por uma das partes, nos termos do artigo 452º, nº 2, do CPC, «devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.»
O depoimento de parte não pode recair sobre todos os factos em discussão, mas apenas, dentre os que interessem à discussão da causa, sobre os que são desfavoráveis ao depoente e, simultaneamente, sejam factos pessoais ou de que este deva ter conhecimento (art. 454º, nº 1, do CPC)[4]. Somente relativamente a estes é possível obter da parte depoente a respetiva confissão.
Como cabe ao juiz proferir despacho sobre a admissibilidade do depoimento de parte, aferindo do preenchimento dos respetivos requisitos, sobre a parte requerente incide o ónus de indicar discriminadamente os factos sobre que há de recair.
No caso dos autos, o Autor requereu o depoimento de parte dos Réus a «toda a matéria constante da petição inicial».

A primeira questão que se suscita consiste em saber se essa formulação corresponde à exigência legal de indicação “de forma discriminada”. Isto por o Autor alegar, na conclusão 6ª, que «[a] matéria de facto indicada pelo Recorrido [ter-se-á pretendido dizer Recorrente] como objeto dos depoimentos de parte, está alegada nos artigos 1º ao 29º da petição inicial, pelo que, in casu, temos assim, e de modo indireto, por se verificar cumprida a mencionada discriminação».
No nosso entender, a referência a toda a matéria constante da petição inicial não corresponde a uma indicação discriminada. Primeiro, discriminar é detalhar, distinguir, separar, especificar; aludir a uma globalidade não corresponde a discriminar. Segundo, a petição inicial deve conter os elementos referidos no artigo 552º, nº 1, do CPC, entre os quais figura matéria de direito e matéria de facto (al. d)), pelo que aludir a toda a matéria constante da petição inicial não traduz qualquer especificação factual. Terceiro, com a exigência de indicação dos factos de forma discriminada, quis-se significar que os factos deviam ser especificados ou individualizados; uma indicação vaga ou genérica constitui uma forma de subverter o pensamento da lei. Quarto, a exigência de discriminação dos factos corresponde a um dever de cooperação para com o tribunal, o qual não tem de substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, o que envolve um juízo sobre a suficiência dos demais meios de prova e a sua inserção na estratégia processual que delineou, o qual é inteiramente estranho ao juiz, a quem cabe apenas controlar se os factos escolhidos são relevantes e suscetíveis de confissão. Quinto, essa indicação é necessária para o exercício do contraditório relativamente ao requerimento, organizar a produção de prova na audiência de julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão.
Como já referia Alberto dos Reis[5], «não satisfaz a exigência legal o requerimento em que se diga: pretende-se o depoimento da parte contrária sobre todos os factos (ou sobre todos os artigos) da petição inicial (…); tal indicação não é discriminada. É necessário, pois, especificar os factos que hão-de ser objecto do depoimento.»
Chegados aqui, sendo inequívoco que o Autor não discriminou os factos nos termos legalmente exigidos, suscita-se uma outra questão: o fundamento invocado pelo Tribunal recorrido para a rejeição do depoimento de parte tem acolhimento legal? Dito de outro modo, a apontada deficiência do requerimento tem como consequência a preclusão do direito à produção daquele meio de prova?

No nosso entender, na falta de discriminação dos factos sobre que há de recair o depoimento de parte, o juiz deve convidar a parte requerente a fazê-la.
Em primeiro lugar, proceder a uma indicação não discriminada é uma realidade diferente da total falta de indicação do objeto do depoimento. Apenas esta última justifica o efeito preclusivo: a omissão de discriminação é uma deficiência, enquanto a falta de especificação do objeto é uma completa omissão de cumprimento do ónus de indicação.
Em segundo lugar, no novo Código de Processo Civil a regra é o aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, a qual tem um valor reforçado no plano da proposição e produção probatória. O juiz deve exercer os seus poderes/deveres de suprimento e, sendo caso disso, de indagação oficiosa. É essa a regra que retiramos, quanto à instrução do processo, do princípio do inquisitório estabelecido no artigo 411º do CPC, segundo o qual, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe cumpra conhecer. Se o juiz tem o poder e o dever de ordenar oficiosamente uma diligência probatória, por maioria de razão tem o dever de convidar a parte a suprir uma deficiência do seu requerimento probatório.
Em terceiro lugar, a possibilidade de supressão da aludida deficiência corresponde à melhor interpretação do princípio da prevalência da substância sobre a forma e da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo.
Em quarto lugar, o convite à parte para corrigir o lapso decorrente de uma deficiente indicação factual mostra-se conforme com os poderes/deveres de gestão processual conferidos ao juiz (cf. artigo 6º do CPC).
Em quinto lugar, a aludida interpretação é a que melhor se coaduna com o objetivo de prossecução da verdade material, o qual preside à determinação de qualquer diligência.

No apontado enquadramento, perante a diligência de prova requerida pelo Autor na petição inicial, sem indicação discriminada dos factos sobre que há de recair, deveria o Tribunal a quo ter proferido despacho de aperfeiçoamento, convidado a parte requerente a suprir a apontada deficiência[6].
Não o tendo feito, procede a apelação e o despacho recorrido deve ser revogado, determinando-se a notificação do Autor para, no prazo de 10 dias, indicar, de forma discriminada, os concretos factos sobre que há de incidir o depoimento de parte oportunamente requerido, sob pena de indeferimento. Caso o Autor corresponda ao convite, será então proferido na 1ª instância o despacho que se justificar, seguindo-se a devida tramitação da causa.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revoga-se o despacho recorrido e, em consequência, ordena-se a notificação do Autor para, no prazo de 10 dias, indicar, de forma discriminada, os concretos factos sobre que há de recair o depoimento de parte oportunamente requerido, sob pena de indeferimento, seguindo-se a subsequente tramitação da causa.
Custas a suportar pela parte vencida a final.
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Guimarães, 09.05.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Maria Luísa Duarte Ramos
José Carlos Dias Cravo



[1] De ora em diante, CPC.
[2] Utilizar-se-á de ora em diante a abreviatura CCiv para designar o Código Civil.
[3] Porém, o depoimento de parte determinado oficiosamente pelo juiz e a prestação de informações e esclarecimentos pela parte ao tribunal são atos distintos e que não se confundem, embora de qualquer deles possa resultar uma confissão judicial. No depoimento de parte, o objetivo é provocar o reconhecimento de um facto desfavorável ao depoente, uma confissão judicial, pelo que está essencialmente em causa a prova de determinado(s) facto(s); na prestação de informações e esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa está em causa o cumprimento do dever de cooperação estabelecido no artigo 7º, nº 2, do CPC; a finalidade é esclarecer o tribunal sobre a matéria de facto.
[4] Excluindo-se ainda o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte depoente seja arguida – nº 2 do art. 454º do CPC. Não é inteiramente pacífica a delimitação de tal exclusão, questão que não importa desenvolver por irrelevante para a apreciação do objeto do recurso.
[5] Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimpressão de 1987, Coimbra Editora, pág. 132.
[6] Neste sentido o acórdão da Relação de Lisboa de 31.05.2022 (Micaela Sousa), processo 6660/21.1T8LSB-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, o qual sintetiza as posições doutrinais e jurisprudenciais sobre esta matéria.