Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1167/19.0T8VRL.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: PROVA ILÍCITA
SIGILO PROFISSIONAL DO ADVOGADO
CORRESPONDÊNCIA ENTRE MANDATÁRIOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – A valoração de prova proibida não constitui vício da sentença susceptível de, nos termos do art. 615.º do CPC, gerar a sua nulidade.
II – Se o recorrente não identifica nas conclusões, nem nas alegações que as antecedem, qual, ou quais, os concretos pontos da matéria de facto, provada e/ou não provada, que pretende impugnar, como não indica nas conclusões a/as resposta(s) alternativa(s) que em seu entender deve/devem ser dada(s) ao(s) ponto(s) da matéria de facto que sustente terem sido mal julgados, o que também não assinala no corpo das alegações, é manifesto o incumprimento dos ónus previstos no n.º 1, al.s a) e c), do art. 640.º do CPC, o que impõe a rejeição do recurso nesta parte.
III - Apenas durante a vigência do contrato de trabalho são irrenunciáveis os direitos laborais de natureza pecuniária.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães
           
I – RELATÓRIO

AA, com os demais sinais nos autos intentou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra EMP01..., Comércio de Produtos Alimentares Lda., também nos autos melhor identificada, pedindo que seja a ré condenada a:

A. Reconhecer que a autora procedeu ao despedimento por justa causa;
B. Que a comunicação do despedimento foi feita no prazo legal:
C. Em consequência da procedência dos pedidos formulados em A e B a entregar à autora a quantia de € 1.200, não pagos.
D. Pagar o valor de € 34.280,72 a título de horas suplementares e extraordinárias não pagas.
E. A pagar a quantia de € 3.000 por danos morais.
F. No pagamento da indemnização e em consequência do despedimento, que se calcula provisoriamente em 4.500 €, no limite máximo previso pelo art.º 396º e 394º do CT.
G. A acrescer juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento.
H. A pagar custas de parte.

Para tanto, alegou, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de trabalho, em 1 de Novembro de 2013, para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de operadora-ajudante, no horário das 9 h até 13 h e das 14 h até as 18 h, no máximo de 8 horas diárias, e com duas pausas de 15 minutos, sendo que, no dia 21 de Dezembro de 2018, comunicou à mesma a resolução do contrato e trabalho, com justa causa, pelo facto de a ré se recusar a proceder ao pagamento do trabalho suplementar e exigir que a autora apresentasse sistematicamente serviço suplementar, para uma bolsa de horas não admitida nem aceite.
Alegou que durante os anos em que prestou serviço para a ré, prestou, sempre, as 8 horas referentes ao período normal de trabalho diário, sendo que, após tal período, a autora trabalhou, sempre, pelo menos 20 horas mensais suplementares não pagas, pois que todos os dias de trabalho a autora prestou uma hora de trabalho suplementar, de setembro até dezembro, época de maior trabalho, prestava diariamente mais 2 a 3 horas (dependendo dos dias) de trabalho suplementar e as duas semanas de encerramento durante o Natal, que era determinado pela ré, eram retirados da bolsa de horas, isto é, 8 horas de trabalho, retiradas da bolsa de horas indevidamente, não pagas, prestando, ainda, serviço em todos os dias feriados, de todos os anos em que trabalhou, na época da castanha, o que representa 5 feriados, nos quais prestava cerca de 8/10 horas de trabalho diários, no total de 40/50 horas de trabalho.
Que a ré efectuou o desconto do montante de € 600 por considerar que inexistia justa causa para o seu despedimento e que não havia cumprido o período de pré-aviso; sofreu danos morais derivados da pressão psicológica exercida pela ré.

A ré - realizada a audiência de partes sem que houvesse conciliação – apresentou contestação para, em síntese, impugnar a versão trazida pelo autora, alegando que a resolução de contrato é ilícita por carecer de forma, bem como carecer da invocação de factos concretos e objetivos por forma a fundamentar a devida resolução, pelo que entende que não deve ser, assim, reconhecida a justa causa na resolução do contrato de trabalho da autora, sempre tendo a ré direito à indemnização dos prejuízos causados, nunca inferior ao montante calculado nos termos do artigo 401.º do Contrato de Trabalho.
Invocou, ainda, a excepção de caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo decurso do prazo previsto no n.º 1 do artigo 395.º do Contrato de Trabalho.
No mais, impugnou toda a factualidade referente ao alegado trabalho suplementar, dos fins de semana e feriados, referindo que a autora não prestou trabalho suplementar e que se, eventualmente, prestou trabalho para além do seu horário de trabalho foi ao abrigo do acordo de utilização de banco de horas, e no seu cumprimento escrupuloso, sendo que a autora, no dia em que celebrou contrato de trabalho com a ré, acordou na constituição de um acordo de utilização banco de horas, nos termos do n.º 1 do artigo 208-A do CT.
Defendeu, também, nada ser devido a título de danos não patrimoniais, até porque a resolução do contrato deve ser considerada ilícita, e os danos invocados não assumem a gravidade que mereça a tutela do direito.
Deduziu reconvenção, peticionando a condenação da autora no pagamento de €1160, 00 (580,00x2), por falta de cumprimento do aviso prévio previsto no art.º 400.º n.º 1 do Código do Trabalho.
Por fim, defende a condenação da autora como litigante de má-fé, por ignorar um acordo que celebrou, agindo, por isso, numa atitude de má fé.

Respondeu a autora para, em síntese, se defender das excepções deduzidas pela ré e reafirmar a posição vertida no articulado inicial

Prosseguindo os autos, veio a realizar-se a audiência de julgamento e, subsequentemente, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, e em consequência, decide-se:
- Condenar a ré EMP01..., COMÉRCIO DE PRODUTOS ALIMENTARES LDA. a
a) Reconhecer que a autora AA procedeu à resolução do contrato de trabalho celebrado por justa causa, no prazo legal e, em consequência, a entregar-lhe a quantia de 600,00€ (seiscentos euros).
b) Pagar à autora AA a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho, correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, nos termos do art.º 396.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Trabalho), quantia a apurar em incidente de liquidação posterior, de acordo com o que se prove ter ser a retribuição mensal da autora, nunca podendo ser superior à quantia peticionada a esse título pela autora, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data de vencimento e até efectivo e integral pagamento.
c) Pagar à autora AA as 20h00 mensais de trabalho suplementar, Desde ../../2014, a quantificar em incidente de liquidação posterior, de acordo com o que se apure ter sido a retribuição mensal da autora em cada um desses anos, nunca podendo ser superior à quantia peticionada a esse título pela autora, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data de vencimento e até efectivo e integral pagamento.
d) Pagar à autora AA as retribuições referentes às duas semanas de encerramento durante o Natal, que era determinado pela ré, retirados da bolsa de horas, indevidamente não pagas, pelos mesmos motivos a liquidar posteriormente, de acordo com o que se apure ter sido a retribuição mensal da autora em cada um desses anos, nunca podendo ser superior à quantia peticionada a esse título pela autora, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data de vencimento e até efectivo e integral pagamento.
- Absolver a ré EMP01..., COMÉRCIO DE PRODUTOS ALIMENTARES LDA.do demais peticionado pela autora AA.
*
Julga-se totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, decide-se absolver a autora/reconvinda AA do pedido formulado pela ré/reconvinte EMP01..., COMÉRCIO DE PRODUTOS ALIMENTARES LDA.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a ré interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

1.º A sentença recorrida padece de fortes e fatais patologias, nomeadamente valoração de prova proibida, errada valoração da prova por declarações de parte e critérios decisórios contraditórios, que culmina em condenação parcial da Recorrente relativamente aos pedidos formulados pela recorrida.
2.º Relativamente ao facto enunciado em 6), o tribunal a quo fundou, como o próprio refere, a sua convicção nas declarações de parte da recorrida e numa carta de resposta do Mandatário da Recorrente ao Mandatário da recorrida (cfr. fls. 40).
Acontece que,
3.º Ao proceder de tal forma, o tribunal a quo atropelou a Lei, incumprindo o procedimento aplicável e fundou a sua convicção de condenação da Recorrente tendo como base um documento remetido e endereçado por Advogados em exercícios dos seus patrocínios jurídicos.
4.º Como é amplamente sabido, sobretudo pela comunidade jurídica, os Advogados estão sujeitos a segredo profissional, cfr. artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
5.º Para que possa ser quebrado o segredo profissional, o legislador português estabeleceu no artigo 92.º n.º 4 do EOA que “O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seu representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”
6.º Nos presentes autos, não foi solicitada qualquer dispensa do segredo profissional ao competente Conselho Regional da Ordem dos Advogados Portugueses.
7.º Como tal, a recorrida, por via do seu mandatário, produziu prova documental sobre matérias sobre as quais aquele mandatário estava obrigado a segredo, sem que estivesse autorizado estivesse devidamente autorizado.
8.º A prática deste tipo de atos tem consequências intraprocessuais, mas também é suscetível de gerar responsabilidade disciplinar e, em abstrato, responsabilidade penal (vide artigo 195.º do Código Penal).
9.º O próprio legislador nacional prevê a consequência para esta quebra não autorizada do segredo profissional, desde logo, no artigo 92.º n.º 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), preceituando que “os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”.
10.º Solução jurídica essa que se impõe nos presentes autos, por violação do expressamente preceituado no EOA, mas também por ser um meio de prova absolutamente proibido.
11.º Como assenta o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão datado de 02.02.2021, sob os autos de processo n.º 4348/19.2T8ALM-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, “…A busca da verdade no âmbito dum processo judicial não é um valor absoluto, não sendo admissível que se possa procurar a verdade usando de quaisquer meios, mas tão-só de meios justos, ou seja, através de meios legalmente admissíveis.
12.º Anuir e conformar-se com a valoração deste documento era não só violar a lei processual laboral, civil, constitucional (nomeadamente por violação do artigo 20.º n.º 4 e 32.º n.º 8), mas também até da prática de um eventual crime cometido dentro da “casa da justiça”; seria permitir uma crassa violação da Lei para que o poder jurisdicional pudesse punir alguém por, abstratamente, também ter infringido a Lei.
14.º Ou seja, com o devido respeito – que é muito! - e apenas para tornar cristalino este argumento, permita-se a expressão que comummente a gíria popular utiliza: “seria o rôto a julgar o esfarrapado”.
15.º Há uma cristalina nulidade da sentença, por valoração de prova proibida, que implica e impõem que seja desconsiderado em pleno tudo quanto aquilo que fora referido pela testemunha advogado.
16.º Nulidade que aqui expressamente se sindica com as devidas e legais cominações.
17.º Ainda a propósito deste facto enunciado em 6) dado como provado pelo tribunal a quo, conclui-se então que o tribunal recorrido poderia fundar a sua convicção apenas nas declarações de parte da recorrida e no documento respeitante, enviada pelo mandatário da recorrida à Recorrente.
18.º Porém, quanto às declarações de parte da recorrida – respeitante a este facto 6), ou não -, a mesma limitou-se a reproduzir, por palavras próprias, a versão por si apresentada nos seus articulados e requerimentos, não conseguindo explicar minimamente, de forma coerente, a razão de ser da alegação dos pedidos e das causas de pedido, em geral procedentes na sentença recorrida.
19.º Prestando a devida atenção às declarações prestadas pela recorrida e transcritas no nosso capítulo de anterior de Alegações, é por demais evidente o seu grau de comprometimento e de incoerência.
20.º Uma vez que a recorrida alega que “sempre!” foi contra o banco de horas e que “estava sempre a reclamar que não queria banco de horas.
21.º Porém, de acordo com as nossas transcrições, a mesma afirma que havia épocas do ano – “a época da castanha” – nas quais trabalhava desde as 14 horas até às “2, 3, 4, 5 da manhã”.
22.º Ou seja, que havia alturas do ano – meses – nos quais ela trabalhava semanalmente e de forma ininterrupta até 15 (quinze) horas diárias.
23.º O que, se fosse verdade a teoria da recorrida, trabalhando 7 dias por semana, daria 105 (cento e cinco) horas semanais!
24.º Como certamente o tribunal ad quem perceberá, as declarações da recorrida não traduzem a verdade material dos factos pois, por um lado a recorrida afirma que era manifestamente contra o banco de horas e que sempre protestava, mas por outro afirma fazer 105 horas de trabalho semanais.
25.º Ou seja, 150% mais horas de que um qualquer normal contrato de trabalho a tempo inteiro.
26.º Sem ser paga de qualquer forma quanto a essas horas extra.
27.º De acordo com juízos de razoabilidade, de um bonus pater familias bem assim das regras de experiência comum e de normal acontecer, este argumento não é coerente nem tem uma elevada probabilidade de verdade.
28.º Pois não é razoável que alguém esteja, alegadamente, a ser sempre tão “sacrificado” no que tange a condições de trabalho (vide que nas declarações de áudio da recorrida afirmou que muitas vezes não tinham autorização para ir à casa de banho), a condições remuneratórias e a privação de tempo para estar com a sua filha (“a minha garota”), e ainda assim continuar a trabalhar recorrentemente períodos de até 15 horas diárias.
29.º Indagando-nos se “é possível uma pessoa trabalhar 15 horas por dia, 7 dias por semana, durante anos, sem receber essas horas ou concordar com o banco de horas”?
30.º Inevitavelmente, a resposta de cada um de nós será um pronto “não!”, sobretudo quando estamos a referirmo-nos a trabalho em período noturno!
31.º Por isso, as declarações prestadas pela recorrida não deveriam ter sido valoradas pelo tribunal a quo, uma vez que se limitou a reproduzir, por palavras próprias, a versão por si apresentada nos seus articulados e requerimentos, sem que essa versão correspondesse à verdade material ou, sequer, a uma hipótese coerente.
32.º Forçosamente o tribunal a quo, se ponderasse devidamente toda a prova produzida, concluiria que a recorrida não tinha (nem tem) fundamento para resolução do contrato de trabalho por justa causa.
33.º E inevitavelmente a Recorrente não teria sido condenada, absolvição que aqui expressamente se requer.
34.º No final da página 12 da sentença recorrida, o tribunal a quo diz que “Decorre, assim, dos princípios gerais sobre repartição do ónus de prova consagrado nos art.s 342.º e segs CC e 414.º CPC – a chamada teoria das normas formulada por Rosenberg, com base na natureza do facto nelas previsto e no benefício que o mesmo tem para a parte que a invoca – tal encargo recai sobre a parte que pretende aproveitar do comando preceituado pela norma que invoca, sendo certo que nenhuma regra pode ser aplicada sem que o juiz se convença da verificação de todos os elementos da respetiva facti species, decidindo-se a dúvida sobre a verificação de todos, ou de qualquer deles, contra a parte que a norma beneficiaria.”
35.º Significa isto que, quem sindica um direito, tem de alegar e provar em concreto os motivos de facto e de direito que assiste a sindicar tal prorrogativa.
36.º Este é, de tal forma, um fator fundamental que, em abstrato, numa qualquer petição inicial ou recurso, a parte tem de indicar em concreto os fundamentos de facto e de direito que sustentam o pedido, sob pena de ineptidão.
37.º Nos presentes autos, a recorrida sindicou apenas, de forma genérica que trabalhou muitas horas extra, durante anos, inclusive aos fins de semana e feriados, sem concretizar os dias exatos em que, alegadamente, terá acontecido.
38.º A este respeito, o tribunal a quo na página 16 da sentença recorrida decide, erradamente, num sentido:
Não podendo ser estabelecido qual o trabalho suplementar certo realizado, temos por certo, porque as testemunhas assim o afirmaram, em consonância com a tese da autora, que após o horário de trabalho predefinido ficavam pelo menos mais uma hora extra, em trabalhos de limpeza ou mesmo em continuação do trabalho normal.
Mais referiram que em épocas especiais, as chamadas “campanhas” da fruta, por regra, de Setembro até Dezembro, épocas de maior trabalho, prestava a autora e os demais trabalhadores, diariamente, mais 2 a 3 horas (dependendo dos dias) de trabalho suplementar.
Pelo que nos parece razoável fixar com certo uma média de pelo menos 20 horas, como peticionado pela autora, de trabalho suplementar, o que de acordo com o atrás exposto, nos parece razoável, mas a partir de 21.06.2014, cinco anos antes da reclamação do trabalho suplementar, na presente ação”.
39.º Com critérios em sentido oposto, o mesmo tribunal a quo refere na página 20 que:
Se é verdade que a mesma alega ter trabalhado todos os dias feriados, de todos os anos em que trabalhou, na época da castanha, o que representaria 5 feriados, nos quais prestava cerca de 8/10 horas de trabalho diários, no montante de 40/50 horas de trabalho, já a este respeito, entendemos que a mesma não cumpriu o ónus probatório de firmar qual era o período da castanha e, depois, quais os feriados que trabalhou efectivamente.
Por uma razão é que os feriados estão claramente identificados no calendário de cada ano e não se pode premiar a autora pelo facto de vir alegar genericamente ter trabalhado nesses feriados sem os identificar.
Por uma questão de igualdade de armas, à autora incumbia identificar quais os 5 dias feriados, delimitando-os no tempo, que deveriam ser considerados para esse efeito, até para que a ré se pudesse defender.”
40.º Da leitura dos nossos dois pontos que antecedem, constata-se que, no último, o tribunal exige às partes – in casu à recorrida – o correto cumprimento do ónus de especificação (até para que se possa fazer, na justa e correta medida, a defesa da Recorrente), mas, por outro lado, no penúltimo ponto, já se contradiz e faz uma assunção e presunção genérica de que a recorrida terá trabalhado 20 horas suplementares, em média.
41.º O que ofende as normas processuais declarativas, mas também, como se disse, os próprios critérios e princípios defendidos pelo tribunal a quo.
42.º Bem assim, quarta a segurança e certeza jurídica da Recorrente e dos seus direitos de defesa.
43.º Repare-se que este grau de exigência na especificação do pedido e da causa de pedir volta a mostrar-se presente na página 31 da sentença recorrida quando se refere “Sucede que também aqui faltam elementos ao tribunal para quantificar a condenação, pois a autora não alega o valor da sua retribuição mensal em cada ano, apenas fazendo cálculos, sem se perceber a razão e ser de tais valores de retribuição, nomeadamente o valor hora.”
44.º Mesmo que a resolução contratual tivesse sido validamente efetuada, sempre se diria que nestes autos de processo não foram cumpridos os ónus de prova e especificação que impendia sobre a recorrida, motivos pelos quais não poderia ter sido a Recorrente condenada nos termos em que foi.
45.º Absolvição que, expressamente, se requer.”

O autor/recorrido apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Apresentou também recurso subordinado, que concluiu do seguinte modo:

“1. O M.º Tribunal considerou provado que a autora havia prestado trabalho suplementar de, e pelo menos, 20 horas mensais , Desde ../../2014
2. Considerou provado que todos os dias a autora prestou, pelo menos, uma hora de trabalho a mais.
3. Mais considerou provado que de setembro até dezembro, época de maior trabalho, prestava diariamente mais 2 a 3 horas, de trabalho suplementar;
4. Dando ainda como provado que as duas semanas de férias de natal eram indevidamente retiradas da bolsa de horas da autora.
5. Deveria a ré ser condenada no pagamento de tais horas suplementares efetivamente dadas pela autora e não pagas.
6. Sem que tal pagamento tivesse qualquer limite, nomeadamente o do seu pedido.
7. O art.º 74º do C. P. do Trabalho, impõem ao Juiz o conhecimento e decisão para lá do pedido formulado pelas partes.”

Não houve resposta a este recurso.

Admitidos os recursos na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.

Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:
Recurso da ré (principal):
- Nulidade da sentença por o Tribunal de 1.ª instância ter valorado (para formar a sua convicção quanto à decisão de facto) a “carta de resposta do Mandatário da Recorrente ao Mandatário da recorrida (cfr. fls. 40)”;
- Impugnação da matéria de facto.

Recurso da autora (recurso subordinado):
- Condenação extra vel ultra petitum.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que constam da decisão recorrida como provados e não provados são os seguintes:

1. Instruída e discutida a causa, com relevo para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1) A autora celebrou contrato de trabalho com a ré em 1 de novembro de 2013.
2) Nos termos daquele contrato de trabalho a autora desempenharia as funções de operador-ajudante.
3) O que faria no horário das 9 h até 13 h e das 14 h até as 18 h, no máximo de 8 horas diárias, e com duas pausas de 15 minutos.
4) Na sede da empresa ré sita em Rua ..., em ....
5) Auferindo o salário de 485 €, acrescidos de 4,27€ de subsídio de refeição de 4, 27 € por dia útil que viria a ser atualizado nos termos legais.
6) A autora prestou serviço à empresa ré até ao dia 21 de Dezembro de 2018, data em que comunicou a resolução do seu contrato de trabalho pelo facto de a empresa ré se recusar a proceder ao pagamento dos trabalhos suplementares e horas extraordinárias e exigir que a mesma apresentasse sistematicamente serviço suplementar, para uma bolsa de horas.
7) Desde ../../2014, a autora realizou trabalho suplementar não pago, nomeadamente, pelo menos, 20 horas mensais suplementares não pagas.
8) Todos os dias de trabalho a autora prestou uma hora de trabalho suplementar.
9) De setembro até dezembro, época de maior trabalho, prestava diariamente mais 2 a 3 horas (dependendo dos dias) de trabalho suplementar.
10) As duas semanas de encerramento durante o Natal, que era determinado pela ré, eram retirados da bolsa de horas, indevidamente, não pagas.
11) A autora, através do seu advogado, procedeu à resolução do contrato de trabalho, através de carta datada de 21.12.2018 com o seguinte teor:
“Exmº. Senhores,
Venho contactar-vos em nome da vossa funcionária AA.
Apesar das insistências da mesma, essa empresa não lhe tem pagado as horas extraordinárias que a mesma vem prestando desde o início do contrato. O mesmo acontecendo com o trabalho suplementar que a mesma vem prestando.
Está ainda a ser-lhe descontado do banco de horas os períodos de Natal e Ano Novo, data em que a empresa encerra por sua iniciativa, e não por iniciativa dos trabalhadores.
Tais factos, porque reiterados, fundamentam o pedido de resolução do contrato de trabalho, o que se faz de forma expressa, e que ocorrerá finda que seja o período de baixa da minha cliente e férias que faltam gozar.
No mesmo período solicito sejam feitas as contas aos montantes a receber pela minha constituinte, que devem ser remetidas para o meu escritório.
Com os melhores cumprimentos.
O Advogado.”
12) Recebida a comunicação a empresa ré, além do mais, descontou-lhe o montante de € 600 por considerar que inexistia justa causa para o seu despedimento e que não havia cumprido o período de pré-aviso.
13) A autora vinha solicitando à ré que procedesse à reposição do pagamento referente ao trabalho suplementar realizado, bem como ao período de trabalho realizado nos fins de semana e feriados, sempre sem resposta.
14) No decorrer do ano de 2018 preencheu um inquérito para avaliação do seu grau de satisfação.
*
2. Matéria de facto não provada

Com relevo para a decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:

a) Durante os anos em que prestou serviço para a ré a autora prestou, sempre, as 8 horas referentes ao período de trabalho.
b) A autora prestava ainda serviço em todos os dias feriados, de todos os anos em que trabalhou, na época de castanha, o que representa 5 feriados, nos quais prestava cerca de 8/10 horas de trabalho diários, no montante de 40/50 horas de trabalho.
c) Não lhe foram pagas as horas referentes aos dias feriados em que efectivamente trabalhou.
d) Ficou ainda por pagar o subsídio de férias referentes ao ano de 2019.
e) A autora dirigiu-se à ACT de ..., fazendo queixa de todo este abuso, não tendo qualquer resposta ou ajuda.
f) Tendo como resposta uma sistemática e permanente coação moral, que sobre si vinha sendo exercida.
g) O que vinha trazendo problemas psicológicos, nomeadamente porque lhe impunham os horários ao fim de semana, alterando-lhe os turnos e folgas.
h) A própria autora, em 04/01/2019, pelas 13h40m através do seu email ..........@..... remeteu para o email da aqui Ré ..........@..... com o assunto “Solicitação”, onde, entre outros, solicitou à aqui Ré que lhe fosse concedida licença sem vencimento pelo período de 15 dias a contar do dia 7 de janeiro data em que retomaria a suas funções.
i) Se a autora, eventualmente, prestou trabalho para além do seu horário de trabalho foi ao abrigado do acordo de utilização de banco de horas.
j) A autora, no dia em que celebrou contrato de trabalho com a ré acordou na constituição de um acordo de utilização banco de horas, nos termos do n.º 1 do artigo 208-A.
*
Os restantes factos alegados na Petição Inicial e na Contestação não foram considerados pelo Tribunal por serem irrelevantes, conclusivos ou conterem matéria argumentativa ou de direito.”

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

- Da nulidade da sentença por o Tribunal de 1.ª instância ter valorado (para formar a sua convicção quanto à decisão de facto) a “carta de resposta do Mandatário da Recorrente ao Mandatário da recorrida (cfr. fls. 40)” – Conc. 1.ª a 16.ª:

A recorrente arguiu expressamente, nas conclusões 15.ª e 16.º, a nulidade da sentença, por valoração de prova proibida, a dita carta de resposta pelo mandatário da recorrente ao mandatário da recorrida.

No despacho que ao abrigo do art. 617.º/1 do CPC proferiu, o Mm.º Juiz a quo pronunciou-se nos seguintes termos:
Nas alegações de recurso veio a recorrente invocar uma nulidade de sentença.
Contudo, o vício suscitado prende-se com a alegada valoração de uma prova proibida, a qual não se enquadra nos fundamentos de invalidade previstos no artigo 617.º, n.º 2, do C.P.C. [crê-se que se quis dizer artigo 615.º n.º 1 do CPC], mas outrossim com a discordância face ao decidido, o que não é causa de nulidade da decisão posta em crise.
Nessa decorrência, julga-se inverificada a nulidade de sentença arguida – cfr. artigo 617.º, n.º 1, do C.P.C.

Entendemos também que não se verifica a invocada nulidade.

O artigo 615.º CPC, sob a epígrafe Causas de nulidade da sentença, estabelece:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”

Ora, a eventual valoração de prova proibida não consta do elenco das nulidades da sentença.[1]

A concluir-se que houve valoração de prova proibida tal circunstância (como outras patologias atinentes à decisão de facto, como a falta de motivação) não constitui vício da sentença susceptível de, nos termos do art. 615.º do CPC, gerar a sua nulidade, sem prejuízo de poder acarretar, sim, a alteração da matéria de facto ao abrigo do art. 662.º do CPC.

Improcede, pois, a arguida nulidade da sentença.

Da impugnação da matéria de facto:

A recorrente impugna a decisão da matéria de facto, insurgindo-se contra o Tribunal recorrido ter dado como provada a matéria que consta do número 6 do rol dos factos provados mas sem dizer (nem nas conclusões nem nas alegações, assinala-se), qual a resposta que em alternativa deve ser dada, incumprindo assim o ónus previsto no art. 640.º/1 c) do CPC), pelo que o recurso deve ser rejeitado nesta parte – cf. parte final do n.º 1 do art. 640.º do CPC.

Mesmo que assim se não entenda, do mencionado número 6 dos factos provados consta:
“6) A autora prestou serviço à empresa ré até ao dia 21 de Dezembro de 2018, data em que comunicou a resolução do seu contrato de trabalho pelo facto de a empresa ré se recusar a proceder ao pagamento dos trabalhos suplementares e horas extraordinárias e exigir que a mesma apresentasse sistematicamente serviço suplementar, para uma bolsa de horas.” (esta matéria foi alegada no art. 7.º da PI, e expressamente impugnada, por alegadamente falsa, em 3.º da contestação)

Nesta sede invoca também a recorrente a valoração de prova proibida – a já mencionada carta de resposta enviada pelo mandatário da recorrente ao mandatário da recorrida e que consta de fls. 40 dos autos (embora nas conclusões 17.º e 18.º a recorrente alegue ainda que as declarações de parte da autora não corroboram o que foi dado como provado no ponto 6), o certo é que – como decorre da transcrição que faz em XX das alegações – invoca/identifica declarações prestadas pela autora que nada têm a ver com esta matéria).

Contendendo com a questão supra enunciada, na decisão recorrida discorreu-se efectivamente nos termos seguintes:
Relativamente ao facto enunciado em 6), o Tribunal teve em consideração as declarações de parte da autora, as quais se afiguraram sérias e credíveis, neste particular, pois que assentes nos documentos de fls. 36-39, nomeadamente a carta de resolução do contrato de trabalho operada, enviada pelo Mandatário da mesma à ré, sendo que, nessa sequência, o Mandatário da ré respondeu, nos termos do documento de fls. 40, acusando a recepção da mesma, não tendo levantado qualquer objecção ao facto de ter sido remetida por Mandatário, antes pelo contrário, considerando-a eficaz para o efeito pretendido, apenas colocando em crise a justa causa da referida resolução, por entender que a autora não tinha horas extraordinárias/trabalho suplementar a receber, sendo devedora ao banco de horas, alegando, ainda, falta de cumprimento do aviso prévio e declarando ser devida indemnização pelos danos causados, nos termos do art.º 401.º do Código do Trabalho.”

Constata-se, contudo, que também se encontra provado, sob os n.ºs 11 e 12:
11) A autora, através do seu advogado, procedeu à resolução do contrato de trabalho, através de carta datada de 21.12.2018 com o seguinte teor:
“Exmº. Senhores,
Venho contactar-vos em nome da vossa funcionária AA.
Apesar das insistências da mesma, essa empresa não lhe tem pagado as horas extraordinárias que a mesma vem prestando desde o início do contrato. O mesmo acontecendo com o trabalho suplementar que a mesma vem prestando.
Está ainda a ser-lhe descontado do banco de horas os períodos de Natal e Ano Novo, data em que a empresa encerra por sua iniciativa, e não por iniciativa dos trabalhadores.
Tais factos, porque reiterados, fundamentam o pedido de resolução do contrato de trabalho, o que se faz de forma expressa, e que ocorrerá finda que seja o período de baixa da minha cliente e férias que faltam gozar.
No mesmo período solicito sejam feitas as contas aos montantes a receber pela minha constituinte, que devem ser remetidas para o meu escritório.
Com os melhores cumprimentos.
O Advogado.”
12) Recebida a comunicação a empresa ré, além do mais, descontou-lhe o montante de € 600 por considerar que inexistia justa causa para o seu despedimento e que não havia cumprido o período de pré-aviso.

Na motivação dos factos constantes daqueles números 11) e 12 consignou o Tribunal recorrido que “são pacíficos”.

E tais factos foram efectivamente aceites: os que constam do ponto 12), alegados em 31.º da PI (aperfeiçoada) foram expressamente admitidos em 1.º da contestação, os que constam do ponto 11), v.g. envio à ré, pelo mandatário da autora, da carta a comunicar a resolução do contrato de trabalho e seu concreto conteúdo, foram também aceites pela ré, como designadamente resulta dos art.s 9.º a 13.º e 23.º e 79.º (abaixo transcritos).

Ora, a recorrente não impugna estes factos, considerados provados sob os números 11 e 12.

Mas estes factos são, na sua essência, conquanto redigidos de forma diferente, os mesmos que foram considerados provados sob o n.º 6, apenas mais concretizados, pois que ao invés de se sintetizar [como em 6.º)] o conteúdo da carta de resolução do contrato, se reproduziu [em 11)] esse mesmo conteúdo, notando-se que no ponto 6 dos factos provados não se deu como provado o segmento final do alegado em 7.º da PI (“não admitida nem aceite”).

Não se alcança, pois, qual a utilidade de impugnar a matéria do ponto 6 dos factos provados.

Acresce que apesar de a recorrente ter impugnado oportunamente a factualidade em questão (como se disse acima, através do art. 3.º da contestação) o certo é que veio, expressamente, a admitir a veracidade da factualidade em questão, pois, note-se, alegou nomeadamente, nos art.s 9.º a 13.º e 23.º e 79.º da contestação/reconvenção:
9.º - Efetivamente, foi recebida nas instalações da R. carta outorgada pelo Ilustre Advogado Dr. BB, que de forma muito ligeira e genérica referiu que “a R. não tinha pago à A. as horas extraordinárias desde o início do contrato, o mesmo acontecendo com o trabalho suplementar”.
10.º - Mencionando, ainda, que “estaria a R. a descontar à A. do banco de horas os períodos de Natal e Ano novo, data em que a empresa encerra por sua iniciativa, e não por iniciativa dos trabalhadores”
11.º - Concluindo o referido Ilustre Advogado que “tais fatos, porque reiterados, fundamentam o pedido de resolução do contrato de trabalho, o que se faz de forma expressa, e que ocorrerá finda que seja o período de baixa da minha cliente e férias que faltam gozar”.
12.º - Opondo a sua assinatura no final da tratada comunicação.
13.º - No entanto, tal comunicação para resolução de contrato é ilícita por carecer de forma, de fundamento legal bem como, carecer da invocação de fatos concretos e objetivos por forma a fundamentar a devida resolução.
23.º - Assim, a carta de resolução do contrato enviada pelo Ilustre Advogado da trabalhadora à empregadora em que fez consignar como justa causa de resolução apenas a falta do pagamento do trabalho suplementar, não especificando qualquer fato concreto, mas antes apenas e tão-só afirmações de natureza conclusiva.
79º-Pelas razões expostas, a resolução do contrato foi efetuada sem justa causa. (sublinhamos)

Quer dizer – e repetindo-nos -, a ré/recorrente admitiu expressamente que a autora/recorrida procedeu à resolução do contrato de trabalho, através da carta que o seu advogado enviou para a ré, e que esta recebeu.

De qualquer forma, não foi valorada prova ilícita.

O Estatuto da Ordem dos Advogados/EOA estabelece no seu art. 92.º:
Artigo 92.º
Segredo profissional
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.” (sublinhamos/realçamos)

Ora, como se refere em parecer da AO (emitido por reporte ao art. 87.º do anterior EOA, mas que para o que aqui interessa – particularmente n.ºs 1 a 3 - tem redacção semelhante ao citado art. 92.º do actual EOA), “(…) Não consta nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor, uma proibição genérica da revelação de correspondência trocada entre Advogados ou subscrita por Advogados.
Existe, sim, essa proibição quando, do seu teor decorram factos sujeitos a sigilo profissional. Isso mesmo prescreve o n.º 3 do artigo 87.º do Estatuto. (…)
Portanto, não é a mera circunstância de determinada correspondência se mostrar subscrita ou dirigida a advogado que só por si, e ipso facto, submete a referida correspondência ao regime do sigilo profissional.
(…)
A norma estatutária aqui em causa, dentro dos seus objectivos, não abrange as comunicações enviadas entre as partes, por intermédio dos seus mandatários, que tenham um carácter meramente interpelatório ou que se traduzam numa mera resposta a uma interpelação, isto é, em ambos os casos, destinadas, apenas e somente, a fazer marcar a posição, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário.
O mesmo se diga, mutatis mutandi, quanto às comunicações que, embora juridicamente não revistam a natureza de interpelações admonitórias, se destinem exclusivamente a marcar a posição, a manifestação de vontade e os fundamentos, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário.[2]

No mesmo sentido vai o acórdão da RE de 08.06.2021 em que se defende que “O significado da expressão “negociações” empregue nas alíneas e) e f), do artigo 92º do EOA [a que correspondia o artigo 87º da anterior versão do EOA], deve ser interpretado no sentido de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões[8].
Assim, estará sujeita a sigilo profissional do advogado, a correspondência trocada entre mandatários, entre o mandatário e o respetivo cliente ou a parte contrária ou o respetivo representante, quando se reportem aos termos de negociações havidas ou em que hajam sido revelados factos, ao Advogado ou este deles tomou conhecimento, que pela sua natureza seja de presumir que quem os confiou ou deu a conhecer ao Advogado, tinha um interesse «objetivamente fundado», em que se mantivessem reservados e não fossem revelados[9].
Mas já não estão estarão abrangidos pelo dever de sigilo, v.g. os factos transmitidos por um Advogado à parte contrária do cliente (acompanhada ou não de Advogado), «com natureza meramente interpelatória ou até de mero convite a negociar com o objetivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas».”[3]

Reportando à situação concreta que aqui analisamos, temos de concluir que a junção do documento em causa – carta de fls 40, subscrita pelo ilustre mandatário da recorrente e que constitui resposta à carta, subscrita pelo ilustre mandatário da autora, a comunicar a resolução do contrato de trabalho, não está sujeita ao segredo profissional.

Com efeito, nesta carta de resposta a ré não faz qualquer proposta negocial à autora, nem com a sua junção aos autos estão a ser revelados factos relativos a uma (no caso inexistente) proposta negocial.
Na dita missiva limita-se a ré, através do seu ilustre advogado, a negar que a autora tenha prestado trabalho suplementar e a exprimir o seu entendimento de que a autora carece de fundamento legal para resolver o contrato de trabalho, pelo que a resolução é ilícita e confere à ré o direito a haver da autora uma indemnização por falta de aviso prévio e pelos danos que lhe causou essa resolução.

Ademais, como bem refere no seu parecer a Exmª PGA “Nos termos do disposto no artº. 113º. nº. 1 do EOA, “Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha carácter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção.”
A comunicação entre advogados, quando tenha caráter confidencial, merece particular proteção, não sendo, em circunstância alguma suscetível de ser revelada, conforme disposto no nº. 2 do artigo em apreço.
Na situação em apreço, não é atribuído carácter confidencial à correspondência em causa, sendo que, aliás, nada nela é dito que pudesse eventualmente justificar confidencialidade, limitando-se o advogado a afirmar que considera não existir motivo para a resolução com justa causa, por não existir a invocada prestação de trabalho suplementar não remunerado, sendo assim tal resolução ilícita, não prescindindo a entidade empregadora de receber a devida indemnização, argumentação que está em total consonância com a expendia nesta ação.”

Refira-se, aliás, que notificada do mencionado documento (fls 40 dos autos) aquando da sua citação, a ré limitou-se a impugnar o mesmo “por não ser possível deles retirar o alcance e os efeitos que a mesma pretende fazer deles em juízo.”.

Nas conclusões 19.ª e ss a recorrente tece considerações acerca da prova que terá ou não sido efectuada relativamente a trabalho prestado em regime de banco de horas e/ou de trabalho suplementar mas não identifica nas conclusões, nem nas alegações que as antecedem, qual, ou quais, os concretos pontos da matéria de facto, provada e/ou não provada, que pretende impugnar, como não indica nas conclusões a/as resposta(s) alternativa(s) que em seu entender deve/devem ser dada(s) ao(s) ponto(s) da matéria de facto que sustente terem sido mal julgados, o que também não assinala, diga-se, no corpo das alegações.
Assim, é manifesto o incumprimento dos ónus previstos no n.º 1, al.s a) e c), do art. 640.º do CPC, o que também aqui, e agora por razão acrescida, impõe a rejeição do recurso.

De qualquer modo, como resulta da motivação da matéria de facto o Tribunal recorrido assentou a sua convicção, relativamente aos diversos pontos da matéria de facto quer provada quer não provada tanto respeitantes a trabalho suplementar como relativos ao banco de horas não só nas declarações de parte da autora mas também na “conjugação de toda a prova produzida”, ponderando nomeadamente o conteúdo dos documentos que menciona e os depoimentos das diversas testemunhas que refere.
E quanto à invocada contradição de critérios não corroboramos esse entendimento: efectivamente, são situações diversas – o que pode reflectir-se na ponderação e exigência probatória - o trabalho prestado em (todos) os dias úteis, que assume um carácter indiscriminado, e o trabalho prestado em dias feriado, que realmente ocorrem em dias específicos, ou como se diz na decisão recorrida “estão claramente identificados no calendário de cada ano”.

Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto.

A solução jurídica propugnada pela recorrente – de absolvição total – assenta na alteração da matéria de facto o que, como supra se viu, não logra êxito.
           
(recurso subordinado)

- Da condenação extra vel ultra petitum:

Dispõe o artigo 74.º do CPT:

“Condenação extra vel ultra petitum
O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho.”

Como bem se assinala no parecer do Ministério Público, «Na realidade, a condenação “extra vel ultra petitum”, prevista no artº. 74º. do CPT, apenas é possível quando estejam em causa normas que consignem direitos de natureza irrenunciável.», como sejam, por ex., as que prescrevem prestações directamente advenientes de acidente de trabalho ou que regulam o direito à retribuição na vigência do contrato de trabalho.[4][5]

“Dito de outro modo: é necessário que o tribunal decida com base em preceitos de carácter injuntivo (normalmente relativos a direitos irrenunciáveis do trabalhador13) e é também indispensável que a matéria de facto adquirida (e não apenas a provada) no processo seja suficiente para possibilitar a aplicação daqueles preceitos.”[6]

Ora, no caso em apreço estão em causa prestações pecuniárias que radicam quer na execução quer na cessação do contrato de trabalho, mas todas peticionadas judicialmente pela autora/recorrente já após a sua desvinculação da ré, i. é após a cessação do contrato de trabalho, em momento em que a autora já não é trabalhadora da ré e não está mais sujeita à subordinação jurídica (nem de facto) inerente aquela relação laboral.
Não está em causa, pois, a aplicação de qualquer preceito legal que reconheça direito à autora a cujo exercício esta não possa renunciar.

Inexiste, pois, fundamento para aplicar, como pretende a autora/recorrente, o disposto no art. 74.º do CPT (o que vale por dizer que não há razão para se não aplicar o disposto no art. 609.º/1/2 do CPC, ex vi do art. 1.º/2 a) do CPT)

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes ambos os recursos e confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da respectiva recorrente.
Notifique.
Guimarães, 29 de Maio de 2024

Francisco Sousa Pereira (relator)
Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Vera Maria Sottomayor


[1] Sendo que, como se defende em Ac. TRL de 07-11-2018, Proc. 158/16.7T8SRQ.L2-4, Leopoldo Soares, in www.dgsi.pt, “I– A enumeração das nulidades referidas no artigo 615º do NCPC tem cariz absolutamente taxativo, sendo que as mesmas não admitem analogia nem interpretação extensiva.”
[2] Parecer n.º 10/2015, de 11.6.2015, citado em Legislação profissional, Ordem dos Advogados – Conselho Regional de Lisboa, 2017 / 1.ª edição, a pág.s 106.
[3] Ac. RE de 08-06-2021, Proc. 1400/19.8T9EVR-A.E1, Fátima Bernardes, www.dgsi.pt .
[4] Ac. TRP de 24-09-2018, Proc. 625/11.9TUMTS.P1, Fernanda Soares, e Ac. STJ 12.10.2022, Proc. 4015/15.6T8MTS.P1.S1, Domingos Morais, ambos em www.dgsi.pt , e José Joaquim F. Oliveira Martins, Código de Processo de Trabalho Anotado e Comentado, Almedina, pág. 108
[5] Como se diz no sumário do Ac. RP de 13-11-2023, Proc. 3392/22.7T8MTS.P1, Nelson Fernandes, www.dgsi.pt :
“II - Tem a jurisprudência, de forma consolidada, considerado que os direitos laborais de natureza pecuniária são indisponíveis e irrenunciáveis, mas, isso, apenas durante a vigência do contrato de trabalho, o que é justificado dada a situação de subordinação jurídica e económica em que se encontra o trabalhador relativamente à entidade empregadora.”
[6] Miguel Teixeira de Sousa - Poderes do juiz no processo do trabalho: algumas notas, pág. 11, in
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