Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
97/22.2GAMUR.G1
Relator: ISILDA CORREIA DE PINHO
Descritores: CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
PERDA DE CICLOMOTOR A FAVOR DO ESTADO
USO DE MATRÍCULA DE OUTRO VEÍCULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. Para a declaração da perda de bens a favor do Estado, ao abrigo do artigo 109.º do Código Penal, o legislador exige que se verifiquem os seguintes pressupostos cumulativos:
- a prática de um facto ilícito típico;
- que os objetos tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do referido facto ilícito típico (instrumenta sceleris); e que
- pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco se ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos.
II. A perda de bens a favor do Estado não constitui uma pena, designadamente acessória, pois, cfr. decorre do seu n.º 2, não depende, sequer da condenação do arguido, consubstanciando antes uma medida autónoma, de carácter preventivo.
III. O fundamento da perda regulada no artigo 109.º do Código Penal radica, assim, nas exigências de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, e não na perigosidade do agente do facto ilícito, devendo, por isso, impor-se o ponto de vista objetivo como ponto de partida para a avaliação da perigosidade do objeto e não o ponto de vista subjetivo do relacionamento entre a coisa e um determinado sujeito.
IV. Pese embora o arguido tenha conduzido/utilizado um ciclomotor com chapa de matrícula que não lhe correspondia, tal veículo nem foi instrumento do crime de falsificação de documento, nem produto deste, tendo constituído apenas o objeto sobre o qual incidiu a atuação do arguido, sendo certo que se a matrícula em questão não tivesse sido colocada/usada no referido ciclomotor não existia sequer qualquer crime de falsificação de documento.
V. Na situação dos autos, partindo do ponto de vista objetivo, o ciclomotor apreendido e declarado perdido a favor do Estado não é, por si só, um objeto perigoso, nem lhe são conhecidas características próprias susceptíveis de revelar condições de perigosidade excecional e do ponto de vista subjetivo, tal perigo também não existe, quando se constata que o próprio tribunal a quo considerou provado que a situação dos autos constituiu um caso isolado na vida do arguido e que este se mostrou arrependido.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 97/22.2GAMUR.G1 [Recurso Penal]
Tribunal Judicial da Comarca de ...
Juízo Local Criminal de ... - Juiz ...

Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 97/22.... que corre termos pelo Juízo Local Criminal de ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., em 14-nov-2023, foi proferida sentença condenatória, no que ora releva, com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“III – DECISÃO
Nestes termos, julga-se a acusação totalmente procedente, por provada, e, em consequência:
a) Condeno AA, pela prática, em 11.11.2022, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 90 (noventa) dias de multa, ao quantitativo diário de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos);
b) Condeno AA, pela prática, em 11.11.2022, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, als. e) e f), e n.º 3, ambos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos);
c) Em cúmulo jurídico das penas parcelares previstas em a) e b), condeno AA na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia total de € 990,00 (novecentos e noventa euros).
b) Declaro perdido a favor do Estado o ciclomotor melhor identificado a fls. 44 dos autos.
(…)”. [sublinhado e negrito nossos].

I.2 Recurso da decisão

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“(…)
1ª O presente recurso tem como objecto a matéria de Direito da Sentença proferida nos presentes autos, a qual declarou perdido a favor do Estado, o ciclomotor com a matrícula ..-EM-.., propriedade do arguido.
2ª Nos presentes autos, o Recorrente foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de falsificação de documento, na pena única de 180 dias de multa, à taxa diária de 5,50 €.
3ª O artigo 109º do Código Penal, que regula a perda de instrumentos e produtos do crime, exige, para além da sua qualificação como instrumento ou produto do crime, ainda, cumulativamente, a verificação de um pressuposto material traduzido na sua perigosidade.
4ª Ora, no caso vertente, salvo o devido respeito, o ciclomotor não pode ser considerado como instrumento perigoso, nem oferece sério risco de ser novamente utilizado para o cometimento de futuros ilícitos típicos.
5ª Desde logo porque o arguido tem 71 anos de idade (nasceu a ../../1952) e não tem quaisquer antecedentes criminais – vide ponto 7 dos Factos Provados – e mostrou-se arrependido – cfr. ponto 14 dos Factos Provados – e está inserido profissional e socialmente.
6ª Assim, impõe-se que a douta Sentença seja revogada na parte em que decretou a perda do ciclomotor em causa, por erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 109º, nº 1, do Código Penal e por ser ilegal, por violação do disposto nos artigos 18º, nº 2 e 62º da CRP, ao criar, com a interpretação que faz daquele artigo 109º, nº 1, do CP, uma restrição desnecessária, desadequada e desproporcional ao direito de propriedade do ora Recorrente relativo ao dito ciclomotor, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.

Termos em que, com o douto suprimento de V.Exªs, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, a douta Sentença, ora sob recurso, ser revogada e substituída por uma que mande entregar ao Recorrente o identificado ciclomotor, propriedade deste.
(…)”.

I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, o Ex.mº Sr. Procurador da República junto da 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:

“(…)
1- Nos presentes autos, o arguido, AA, foi condenado pela prática, em 11.11.2022, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, als. e) e f), e n.º 3, ambos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).
2- Na fundamentação da douta Sentença consta (fls. 18) o seguinte: “No caso vertente, a conduta do arguido foi subsumida à prática de um crime de falsificação de documento, tendo tal ciclomotor sido utilizado no cometimento do ilícito em apreço, havendo, ainda, o sério perigo de voltar a ser utilizado na prática de futuros ilícitos (…)”.
3- Não pode o Recorrente concordar com tal decisão, porquanto já é proprietário desse ciclomotor há vários anos, não põe em risco a comunidade e a segurança das pessoas e tão pouco oferece um risco sério de ser utilizado na futura prática de um crime.
4- Porém, uma vez que, em sede acusatória, foi requerido que o aludido ciclomotor fosse declarado como perdido a favor do Estado, estando o mesmo apreendido à ordem dos autos, em sede de sentença, foi o mesmo declarado como perdido a favor do Estado, nos termos do art.º 109º, nº1 do C.P..
5- Para tanto, entendeu-se que a conduta do arguido foi subsumida à prática de um crime de falsificação de documento, tendo tal ciclomotor sido utilizado no cometimento do ilícito em apreço, havendo, ainda, o sério perigo de voltar a ser utilizado na prática de futuros ilícitos uma vez que, atento o teor da informação de fls. 53, o mesmo não consta do registo informático do IMT, tanto que, até ao momento, o arguido não apresentou qualquer documento válido de identificação do mesmo.
6- Ao ciclomotor com a matrícula ..-EM-.. (que anteriormente detinha a matrícula camarária 1-...) corresponde não essa viatura, mas o ciclomotor de marca ..., modelo ..., com o quadro ...78.
7- Ou seja, a matrícula que o arguido tinha aposto naquela ciclomotor não pertencia àquele, mas a outro ciclomotor, pelo que, a decisão recorrida, merece cabimento legal, na medida em que o aludido ciclomotor circulava na via pública, de forma ilegal, por ostentar matrícula diferente daquela que lhe havia sido atribuída, pelo que a detenção do aludido ciclomotor, naquelas circunstâncias, era contrária à lei.
8- Assim, a decisão de declarar o aludido ciclomotor como perdido a favor do Estado, por o mesmo circular de forma ilegal, está abrangido pelo regime do art. 109º, nº1 do C.P., não violando o disposto no art.º 18º, nº2 da C.R.Portuguesa.
9- Pelo que deve improceder o recorrido, devendo manter-se a decisão recorrida, nesta parte, por ter cabimento legal.

Termos em que deve ser negado provimento
ao recurso interposto, só assim se fazendo
JUSTIÇA!
(…)”.

I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, apresentando a seguinte conclusão [transcrição]:
“(…)
Em conclusão, o recurso do arguido deverá ser julgado procedente revogando-se a declaração de perda em favor do Estado do veículo apreendido e onde foi o arguido recorrente colocou uma chapa de matrícula pertencente a outro veículo porquanto tal veículo não é nem instrumento do crime nem o seu produto.
(…)”.

I.5. Resposta

Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:


II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e decidir cinge-se em saber se se encontram, ou não, verificados os pressupostos legais para a declarada perda a favor do Estado do referido ciclomotor conduzido pelo arguido no mencionado dia 11-11-2022.

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“ (…)
A) FACTOS PROVADOS
Resultaram como provados os seguintes factos:
1) No dia 11 de Novembro de 2022, cerca das 12h04, o arguido AA conduziu o ciclomotor de marca ..., modelo ..., com n.º de chassis ...50, ostentando a matrícula ..-EM-.., na Rua ..., em ..., ..., ..., sem que para tanto se encontrasse legalmente habilitado.
2) Ao ciclomotor com a matrícula ..-EM-.. (que anteriormente detinha a matrícula camarária 1-...) corresponde não essa viatura, mas o ciclomotor de marca ..., modelo ..., com o quadro ...78.
3) O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, conduzindo a supra identificada viatura, conhecendo as suas características, bem sabendo que não se encontrava legalmente habilitado para tal, o que representou e concretizou.
4) O arguido AA agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que ao actuar da forma descrita, utilizando veículo com chapa de matrícula que não lhe correspondia, colocava em crise a confiança de terceiros na validade do registo automóvel e na identificação do veículo em causa, pondo em causa a fé pública deste tipo de documentos.
5) Mais tinha conhecimento que a chapa de matrícula tem o valor de documento autêntico e que tal lhe agravava a sua responsabilidade criminal.
6) Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se apurou que,
7) O arguido não tem antecedentes criminais.
8) O arguido encontra-se reformado e aufere uma pensão no valor de cerca de € 150,00.
9) A esposa do arguido também se encontra reformada e aufere uma pensão no valor de cerca de € 150,00.
10) Vive com a esposa e dois filhos maiores com 26 e 42 anos de idade, sendo que aquele encontra-se desempregado e este trabalha numa empresa de distribuição, auferindo o SMN.
11) Vivem em casa que a esposa herdou por morte da mãe.
12) Não tem dívidas.
13) Tem o 4.º ano de escolaridade.
14) Mostra-se arrependido.

(…)
DO DESTINO DO BEM APREENDIDO NOS AUTOS
Compulsados os autos, verificamos que o aludido ciclomotor que se encontrava na posse do arguido foi apreendido (cf. auto de apreensão de fls. 44).
Nos termos do artigo 109.º, do Código Penal, “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.”.
No caso vertente, a conduta do arguido foi subsumida à prática de um crime de falsificação de documento, tendo tal ciclomotor sido utilizado no cometimento do ilícito em apreço, havendo, ainda, o sério perigo de voltar a ser utilizado na prática de futuros ilícitos uma vez que, atento o teor da informação de fls. 53, o mesmo não consta do registo informático do IMT, tanto que, até ao momento, o arguido não apresentou qualquer documento válido de identificação do mesmo.
Deste modo, estão preenchidos os requisitos exigidos no preceito legal acima mencionado, pelo que se declarada o mesmo perdido a favor do Estado.
(…)”.

II.2- Apreciação do recurso

Pugna o arguido/recorrente para que lhe seja devolvido o ciclomotor apreendido nos autos, alegando, em síntese, ter o tribunal a quo incorrido em erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 109º, nº 1, do Código Penal, ao decretar a sua perda a favor do Estado, numa restrição desnecessária, desadequada e desproporcional ao seu direito de propriedade do dito bem, que não se destinou à prática de um facto ilícito típico, tendo, assim, sido violadas as normas legais constantes dos artigos 18.º, n.º 2 e 62.º da Constituição da República Portuguesa, atenta a interpretação que foi feita do artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal.
Analisada a decisão recorrida constata-se que o tribunal a quo, trazendo à colação o artigo 109.º do Código Penal, sustentou a ora questionada declaração de perda a favor do Estado do mencionado ciclomotor, no facto de “a conduta do arguido ter sido subsumida à prática de um crime de falsificação de documento, tendo tal ciclomotor sido utilizado no cometimento do ilícito em apreço, havendo, ainda, o sério perigo de voltar a ser utilizado na prática de futuros ilícitos uma vez que, atento o teor da informação de fls. 53, o mesmo não consta do registo informático do IMT, tanto que, até ao momento, o arguido não apresentou qualquer documento válido de identificação do mesmo.
Ora, cfr. se estatui no artigo 186.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”.
E, in casu, o tribunal a quo declarou a perda do referido ciclomotor a favor do Estado e fê-lo com base no artigo 109.º do Código Penal, que, sob a epígrafe “perda de instrumentos”, dispõe o seguinte:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
(…)” [sublinhado e negrito nossos].
Da análise de tal preceito legal, constata-se que para a declaração da perda de bens a favor do Estado o legislador exige que se verifiquem os seguintes pressupostos cumulativos:
® a prática de um facto ilícito típico;
® que os objetos tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do referido facto ilícito típico (instrumenta sceleris); e que
® pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco se ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos.
Conforme salienta Figueiredo Dias[3], não se trata de uma pena acessória, «porque a perda não possui qualquer ligação com a culpa do agente pelo ilícito-típico perpetrado: podendo o instituto intervir mesmo relativamente a inimputáveis, por um lado, e podendo ele intervir, por outro lado, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser perseguida ou condenada, torna-se patente que a – eventual – culpa do agente não constitui sequer limite da intervenção da providência.» concluindo que «a finalidade atribuída pela lei vigente à perda dos instrumentos e do produto do crime é exclusivamente preventiva (…)” pelo que só devem ser declarados perdidos “(…) aqueles instrumentos ou produto que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos.».
Ou seja, o que se apreende da leitura do citado preceito legal é que a perda de bens a favor do Estado não constitui uma pena, designadamente acessória, pois, cfr. decorre do seu n.º 2, não depende, sequer da condenação do arguido, consubstanciando antes uma medida autónoma, de carácter preventivo.
E, como ensina Germano Marques da Silva[4] «Para a perda é (…) necessário que os objectos ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, o que significa que os objectos hão-de ser perigosos, isto é, “que atenta a sua natureza intrínseca”, a sua “específica e conatural utilidade social” se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa.»
O fundamento da perda regulada no artigo 109.º do Código Penal radica, assim, nas exigências de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, e não na perigosidade do agente do facto ilícito, devendo, por isso, impor-se o ponto de vista objetivo como ponto de partida para a avaliação da perigosidade do objeto e não o ponto de vista subjetivo do relacionamento entre a coisa e um determinado sujeito.
Como refere Figueiredo Dias[5] “(…) não é fácil, com efeito, determinar com a indispensável clareza os critérios em função dos quais um objeto, em si insignificativo do ponto de vista da sua perigosidade, se torna em «objecto perigoso» em função da pessoa que o detém.  O objecto mais anódino (um lençol, uma meia de seda, um lápis ou uma caneta) pode tornar-se em objecto hoc sensu «perigoso» quando detido por um indivíduo perigoso. Declarar a perda nestes casos, porém, significaria procurar atalhar a perigosidade do agente, nãocomo a finalidade do instituto – a perigosidade do objecto: para atalhar a perigosidade do agente dispõe a lei de outros recursos e de outros institutos que nada têm a ver com perda dos instrumenta e dos producta sceleris. Em primeira linha, por conseguinte, deve ser a perigosidade do objecto em si mesmo considerado, independentemente da pessoa que o detém – o tratar-se de uma arma, de um explosivo, de moeda contrafeita ou de cunhos para a fabricar, etc - que justifica, em perspectiva político-criminal, a perda.
Sem prejuízo do que fica dito, a referida perigosidade do objecto não deve ser avaliada em abstrato, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado (…)”. [sublinhado e negrito nossos].

Ora, in casu, o arguido/recorrente foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro e pela prática, na mesma data, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, als. e) e f), e n.º 3, ambos do Código Penal.
Verifica-se, portanto, o primeiro dos pressupostos apontados exigido pelo legislador para a perda de bens a favor do Estado [a saber: a prática de um facto ilícito típico].
Na prática de ambos os crimes o arguido/recorrente fez uso do mencionado ciclomotor, mas o tribunal a quo fundamenta a sua declaração de perda a favor do Estado baseado apenas num desses ilícitos, concretamente no facto de “a conduta do arguido ter sido submetida à prática de um crime de falsificação de documento, tendo tal ciclomotor sido utilizado no cometimento do ilícito em apreço”, ou seja, na circunstância de o arguido/recorrente ter conduzido/utilizado o mencionado ciclomotor com chapa de matrícula que não lhe correspondia, usando um documento falso de identificação do veículo, assim colocando em crise a confiança de terceiros na validade do registo automóvel e na identificação do veículo em causa, pondo em causa a fé pública deste tipo de documentos, assim considerando, portanto, que o ciclomotor em questão constituiu o instrumento do referido crime.
Porém, sem razão.
Na realidade, o ciclomotor em questão nem foi instrumento do crime de falsificação de documento, nem produto deste, tendo constituído apenas o objeto sobre o qual incidiu a atuação do arguido/recorrente, sendo certo que se a matrícula em questão não tivesse sido colocada/usada no referido ciclomotor não existia sequer qualquer crime de falsificação de documento, como já se entendeu, entre outros:
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 23-01-1997, Processo n.º 048730, in www.dgsi.pt, que se encontra sumariado, no que aqui releva, nos seguintes termos: “deixou de haver lugar à perda a favor do Estado dos objectos sobre os quais incidiu actuação ilícita e que não tenham a natureza de instrumentos do crime, como seja o automóvel que tenha sido objecto de viciação dos seus elementos indentificadores”, e
No Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 27-09-2004, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 294, que conclui, relativamente a automóvel viciado e por respeito a elementos identificadores, que “o veículo em causa não entra em nenhuma das duas categorias de instrumentos referidos no nº 1 do art. 109. Com efeito, nem é instrumento do crime nem produto dele. É antes o objecto sobre o qual incidiu a actuação ilícita”.
 O ciclomotor cuja perda a favor do Estado foi declarada pelo tribunal a quo não é instrumento do facto ilícito típico, nem do crime de falsificação de documento, nem, diga-se, do crime de condução sem habilitação legal [porque, na verdade, o ciclomotor conduzido pelo arguido constitui um dos elementos objetivos de tal ilícito penal, sem cuja utilização/condução não existe crime[6]], ou seja, não é instrumento de nenhum dos factos ilícitos típicos pelos quais o arguido/recorrente foi aqui condenado, não se encontrando, portanto, perfectibilizado o referido pressuposto legal exigível para a sua decretada perda.
Mas, mesmo que assim não se entendesse e se defendesse que se trata de instrumenta sceleris ou mesmo producta sceleris, não se pode deixar de atender, como se assinalou supra, que para a declaração de perdimento a favor do Estado de um determinado bem é necessário que este seja suscetível, por sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, de pôr em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública ou oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, o que também não ocorre no caso dos autos.
Com efeito, no que se reporta ao exigido perigo o tribunal a quo sustenta a decisão recorrida no facto de haver “sério perigo de voltar a ser utilizado na prática de futuros ilícitos uma vez que, atento o teor da informação de fls. 53, o mesmo não consta do registo informático do IMT, tanto que, até ao momento, o arguido não apresentou qualquer documento válido de identificação do mesmo.”.
Porém, sem razão.
Na verdade, analisada a situação dos autos, partindo do apontado ponto de vista objetivo, constata-se  que o ciclomotor apreendido e declarado perdido a favor do Estado não é, por si só, um objeto perigoso, nem lhe são conhecidas características próprias suscetíveis de revelar condições de perigosidade excecional e do ponto de vista subjetivo, tal perigo também não existe, quando se constata que o próprio tribunal a quo considerou provado que a situação dos autos constituiu um caso isolado na vida do arguido [facto vertido em: 7) O arguido não tem antecedentes criminais.] e que este se mostrou arrependido [facto vertido em 14.].
Ou seja, nem a natureza do objeto em causa - ciclomotor - nem as circunstâncias do caso permitem afirmar que aquele, por si só, põe em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública ou ofereça sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, não se descortinando qualquer sustento para a conclusão tirada pelo tribunal a quo no sentido da existência do apontado “sério perigo de voltar a ser utilizado na prática de futuros ilícitos”.
E não se diga que tal perigo advém dos factos de o ciclomotor em causa “não constar do registo informático do IMT” e de até ao momento, o arguido não ter apresentado qualquer documento válido de identificação do mesmo”, pois o próprio tribunal a quo não considerou sequer tal factualidade como provada.
De qualquer forma, mesmo que se atendesse a tal circunstancialismo, sempre caberia ao tribunal a quo ter presente os princípios da proporcionalidade[7], da adequação e da necessidade da declaração de tal perda, em obediência ao preceituado no artigo 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa que aqui se relembra: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”, conjugado com o seu artigo 62.º que garante o direito de propriedade privada a qualquer pessoa.  
Na verdade, perante os interesses conflituantes presentes [por um lado o interesse do Estado em obstar a que o ciclomotor em causa circule sem estar matriculado ou circule com matrícula que não lhe pertença, com a inerente perturbação da ordem pública, por criar uma imagem deturpada da realidade, e, por outro lado, o direito de propriedade do mesmo], a compressão de um perante o outro rege-se pela regularização da situação em causa, tendo em conta, designadamente, o disposto no artigo 162.º, n.º 2, do DL n.º 114/94, de 03 de maio [Código da Estrada] concedendo-se ao arguido/recorrente a possibilidade de, no prazo de 90 dias, promover, junto da entidade competente, a regularização da sua situação, que, naturalmente, passa pela obtenção da respetiva matrícula, sob pena de não o fazendo, por negligência sua, então, sim, poder o referido ciclomotor vir a ser declarado perdido a favor do Estado, tal como se prevê no apontado preceito legal.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido/recorrente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que declarou a perda a favor do Estado do ciclomotor apreendido nos autos, determinando-se que seja concedido ao arguido/recorrente o prazo de 90 dias para, junto da entidade competente, promover a regularização da situação do ciclomotor em causa, com vista à sua legal circulação e só após, caso a mesma não venha a ocorrer, designadamente devido a negligência do arguido/recorrente, então, sim, ser declarado perdido a favor do Estado, tal como se prevê no artigo 162.º, n.º 2, do DL n.º 114/94, de 03 de maio [Código da Estrada].

Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 09 de abril de 2024
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Os Juízes Desembargadores
Isilda Maria Correia de Pinho [Relatora]
Júlio Pinto [1º Adjunto]
Fátima Furtado [2.ª Adjunta]


[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] In Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, 2005, pág. 627 e 621.
[4] In Direito Penal Português – Parte Geral, III, 2.ª edição, 2008, pág. 198 e seguintes.
[5] A fls. 622 da obra citada.
[6] Veja-se, neste sentido, entre outros, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães datados de 17-12-2018, Processo n.º 183/18.0GACBT.G1, relatado pela Ex.m.ª Desembargadora Cândida Martinho e de 21-03-2022, Processo n.º 10/21.4GBPTL-A.G1, relatado pelo Ex.mº Desembargador António Teixeira.
[7] Quanto à necessidade de atender ao princípio da proporcionalidade, veja-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22-10-2014, Processo n.º 31/12.8GAACN.C1, relatado pela Ex.mª Desembargadora Alice Santos, em cujo sumário, no que aqui releva, pode ler-se o seguinte: “(…) II - A perda só dever ser decretada para evitar a perigosidade resultante da utilização do objeto e a mesma também deverá ser proporcional à gravidade do facto ilícito cometido. …”.