Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | PEDRO CUNHA LOPES | ||
Descritores: | NULIDADE DA ACUSAÇÃO FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE CRIME DE FURTO DECISÃO SUMÁRIA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/30/2023 | ||
Votação: | DECISÃO SINGULAR | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | 1 - O crime de furto é um "crime em si, de Direito Penal Clássico" e com relevo axiológico conhecido e difundido, na comunidade. 2 - Estando presentes na acusação os factos referentes aos elementos cognitivo e volitivo do dolo, nestes casos difícil ou mesmo impossível era que o arguido não tivesse a "consciência da ilicitude dos seus atos". 3 - A este caso não é aplicável a fundamentação e decisão do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2 015, 27/1. 4 - Assim, não tem de constar obrigatoriamente da acusação, nestes casos, a narração dos factos referentes à "consciência da ilicitude". 5 - Pelo que e mesmo com essa omissão deve a acusação ser recebida, designando-se dia para julgamento. | ||
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Decisão Texto Integral: | 1 – Recurso próprio e admitido nos termos devidos. Nada obsta, ao mérito da respetiva apreciação. Segue Decisão Sumária, por clara procedência do recurso – art.º 417º/6, d), C.P.P. 2 - Decisão Sumária - Tribunal Recorrido - Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ... - Proc.º 941/21.1T9BGC.G1 - Recorrente – M.P. - Recorrida - AA (Arguida) ** Por despacho proferido nestes autos em 19 de Outubro de 2 022, foi proferida a seguinte decisão:- foi declarada a nulidade da acusação pública, por falta de narração dos factos referentes à consciência da ilicitude, por parte da arguida; - por isso, foi a acusação pública rejeitada, nos termos do disposto nos arts.º 311º/2, a) e n.º 3), d) e 283º/3, b), todos do C.P.P. Discordando desta decisão, da mesma recorreu o assistente o M.P. Considera-se que o recurso deve ser decidido por decisão sumária do relator, por ser claramente procedente – art.º 417º/6, d), C.P.P. ** Da Acusação e dos Factos Referentes à Consciência da Ilicitude, por Parte do Arguido Nos presentes autos, foi rejeitada a acusação pública proferida pelo M.P. contra a arguida AA por se ter entendido, no despacho recorrido, que a mesma era nula, por não conter a narração dos factos referentes à consciência da ilicitude, por parte da arguida. Em poucas palavras, por da mesma não constar expressão tipo “sabia da punibilidade” ou “da ilicitude dos seus atos”. A arguida estava acusada da prática de um crime de furto qualificado na forma consumada, p. e p. pelos arts.º 203º/1 e 204º/2, a), por referência ao art.º 202º/b, C.P. e de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts.º 22º, 23º, 203º/1 e 204º/2, a), também por referência ao art.º 202º/b, C.P. Considerou-se, no despacho recorrido, que não não havia uma narração dos factos constantes da acusação, quanto ao conhecimento pela arguida da ilicitude dos seus atos, o que determinava a nulidade daquele despacho acusatório e assim, a sua rejeição. Recorreu o M.P. referindo que a acusação não é nula, pois aquele elemento decorre do mais exposto na acusação, pelo que deveria ter sido recebida e não rejeitada. Entende a conceção que esteve na base do despacho recorrido como “errada, simplista e excessivamente formalista”. Considera que do texto acusatório constam “expressões diversas, mas em tudo sinónimas e equivalentes”. Neste Tribunal da Relação, também o Dignm.º Procurador Geral Adjunto subscreveu as anteriores contra-alegações do M.P., sustentando a procedência do recurso. Estão em causa: - a movimentação bancária de 48 250€ (quarenta e oito mil, duzentos e cinquenta euros), de uma conta sediada no “Banco 1...”, titulada exclusivamente por BB e provisionada com dinheiro daquele e do acervo hereditário decorrente da morte de sua Mulher, CC, que a arguida fez sua, utilizando procuração outorgada pelo primeiro já em fase de incapacidade cognitiva – facto ocorrido em 24/5/2 017; - a tentativa da arguida de, também junto do “Banco 1....” e juntamente com DD e EE se apoderarem da quantia de 1 000 000€ (um milhão de euros), referente a seguro de vida de DD, feito em companhia de seguros parceira do referido “Banco 1....”. Tal não ocorreu, porquanto o gestor da conta, FF, soube da existência de um despacho determinando o arrolamento dos bens do primeiro – facto ocorrido em data posterior a 13/1/2 017. O dito arrolamento foi decretado em 10/1/2 017, tendo a arguida assinado o auto de arrolamento em 13/1/2 017. Ou seja: a arguida fez sua a primeira quantia e tentou fazer sua e de outros a segunda, contra a vontade do seu dono. Quanto à primeira quantia diz-se ainda, no art.º 22º da acusação, que “bem sabia a arguida que a quantia de 48 250€ (quarenta e oito mil, duzentos e cinquenta euros) que fez sua, integrando-a no seu património não lhe pertencia (…) o que quis e conseguiu”; e, quanto à tentativa que “agiu de forma livre, deliberada e conscientemente sabendo que tal quantia não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário, não tendo, contudo, logrado os seus intentos por circunstâncias alheias à sua vontade.” Ou seja: está-se perante condutas típicas e óbvias, subsumíveis ao crime de furto. Das expressões referidas decorre também estarem narradas as circunstâncias cognitivas e volitivas, típicas do crime de furto. Este é um tipo de crime cuja ilicitude é deveras conhecida, tratando-se de um “crime em si, do Direito penal Clássico” e com relevo axiológico conhecido e difundido, na comunidade. Difícil ou mesmo impossível era, num caso destes, que constitui ilícito criminal em qualquer comunidade, o agente não tivesse a “consciência da ilicitude dos seus atos”. Daí que se entenda, como no Acórdão da Relação de Lisboa, de 21/6/2 023, Maria do Rosário Martins, acessível em www.dgsi.pt, que a expressão narrativa do facto referente a este elemento só se justifique nos casos em que a “proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente” – como nos caos do Direito Penal Secundário, Contraordenacional ou das Neoincriminações. Com efeito, constam já da acusação os elementos fácticos referentes ao dolo (art.º 14º C.P.), sendo o “conhecimento da ilicitude” referente ao juízo de culpa, previsto autonomamente, no art.º 17º C.P. Não é assim aplicável ao caso dos autos o A.F.J. n.º 1/2 015, de 27/1, que apenas se refere ao dolo e nos termos do qual se decidiu que este tem de constar da acusação, não podendo ulteriormente ser acionado o mecanismo processual da alteração não substancial de factos, previsto no art.º 358º C.P.P. Aliás, no sentido de que nas condutas penais clássicas e de todos conhecidas, não ser indispensável referência fáctica feita na acusação, por a mesma decorrer normalmente da própria essência dos factos cujo caráter ilícito é bem conhecido, citem-se, além do Acórdão citado, os da Relação do Porto, de 13/6/2 018, Maria Dolores Silva e Sousa, da Relação de Évora de 19/12/2 019, Renato Barroso e de 6/2/2 018, GG, bem como o desta própria Relação de Guimarães, de 21/10/2 013, Ana Teixeira – sendo que o segundo e o último referem até expressamente os casos de crimes de furto. Trata-se já de Jurisprudência recorrente no tempo e atual, que pode assim considerar-se como sedimentada. Termos em que, no caso dos autos não é indispensável referência ao facto referente ao conhecimento da ilicitude por parte da arguida, pelo que a acusação não é nula, contendo os elementos de facto e direito suficientes, para que seja submetida a julgamento. Procede pois e de forma clara, o recurso interposto pelo M.P., o que deve ser declarado por decisão singular do Juiz relator – art.º 417º/6, d), C.P.P. Pelo que, o despacho recorrido será revogado, devendo ser substituído por outro que, em 1ª instância, receba a acusação deduzida e designe dia para julgamento – nos termos do disposto no art.º 311º C.P.P. ** Termos em que,3 – Decisão a) se declara procedente o recurso do M.P., revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação e designe dia para julgamento, nos termos do disposto no art.º 311º C.P.P. b) Sem custas. c) Notifique. Guimarães, 30 de Outubro de 2 023 (Pedro Miguel da Cunha Lopes) |