Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
941/21.1T9BGC.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: NULIDADE DA ACUSAÇÃO
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
CRIME DE FURTO
DECISÃO SUMÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/30/2023
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - O crime de furto é um "crime em si, de Direito Penal Clássico" e com relevo axiológico conhecido e difundido, na comunidade.
2 - Estando presentes na acusação os factos referentes aos elementos cognitivo e volitivo do dolo, nestes casos difícil ou mesmo impossível era que o arguido não tivesse a "consciência da ilicitude dos seus atos".
3 - A este caso não é aplicável a fundamentação e decisão do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2 015, 27/1.
4 - Assim, não tem de constar obrigatoriamente da acusação, nestes casos, a narração dos factos referentes à "consciência da ilicitude".
5 - Pelo que e mesmo com essa omissão deve a acusação ser recebida, designando-se dia para julgamento.
Decisão Texto Integral:
1 – Recurso próprio e admitido nos termos devidos.
Nada obsta, ao mérito da respetiva apreciação.
Segue Decisão Sumária, por clara procedência do recurso – art.º 417º/6, d), C.P.P.

2 - Decisão Sumária

- Tribunal Recorrido - Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ...
- Proc.º 941/21.1T9BGC.G1
- Recorrente – M.P.
- Recorrida  - AA (Arguida)
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Por despacho proferido nestes autos em 19 de Outubro de 2 022, foi proferida a seguinte decisão:
- foi declarada a nulidade da acusação pública, por falta de narração dos factos referentes à consciência da ilicitude, por parte da arguida;
- por isso, foi a acusação pública rejeitada, nos termos do disposto nos arts.º 311º/2, a) e n.º 3), d) e 283º/3, b), todos do C.P.P.

Discordando desta decisão, da mesma recorreu o assistente o M.P.
Considera-se que o recurso deve ser decidido por decisão sumária do relator, por ser claramente procedente – art.º 417º/6, d), C.P.P.
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Da Acusação e dos Factos Referentes à Consciência da Ilicitude, por Parte do Arguido
Nos presentes autos, foi rejeitada a acusação pública proferida pelo M.P. contra a arguida AA por se ter entendido, no despacho recorrido, que a mesma era nula, por não conter a narração dos factos referentes à consciência da ilicitude, por parte da arguida.
Em poucas palavras, por da mesma não constar expressão tipo “sabia da punibilidade” ou “da ilicitude dos seus atos”.
A arguida estava acusada da prática de um crime de furto qualificado na forma consumada, p. e p. pelos arts.º 203º/1 e 204º/2, a), por referência ao art.º 202º/b, C.P. e de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts.º 22º, 23º, 203º/1 e 204º/2, a), também por referência ao art.º 202º/b, C.P.
Considerou-se, no despacho recorrido, que não não havia uma narração dos factos constantes da acusação, quanto ao conhecimento pela arguida da ilicitude dos seus atos, o que determinava a nulidade daquele despacho acusatório e assim, a sua rejeição.
Recorreu o M.P. referindo que a acusação não é nula, pois aquele elemento decorre do mais exposto na acusação, pelo que deveria ter sido recebida e não rejeitada. Entende a conceção que esteve na base do despacho recorrido como “errada, simplista e excessivamente formalista”. Considera que do texto acusatório constam “expressões diversas, mas em tudo sinónimas e equivalentes”.
Neste Tribunal da Relação, também o Dignm.º Procurador Geral Adjunto subscreveu as anteriores contra-alegações do M.P., sustentando a procedência do recurso.

Estão em causa:
- a movimentação bancária de 48 250€ (quarenta e oito mil, duzentos e cinquenta euros), de uma conta sediada no “Banco 1...”, titulada exclusivamente por BB e provisionada com dinheiro daquele e do acervo hereditário decorrente da morte de sua Mulher, CC, que a arguida fez sua, utilizando procuração outorgada pelo primeiro já em fase de incapacidade cognitiva – facto ocorrido em 24/5/2 017;
- a tentativa da arguida de, também junto do “Banco 1....” e juntamente com DD e EE se apoderarem da quantia de 1 000 000€ (um milhão de euros), referente a seguro de vida  de DD, feito em companhia de seguros parceira do referido “Banco 1....”. Tal não ocorreu, porquanto o gestor da conta, FF, soube da existência de um despacho determinando o arrolamento dos bens do primeiro – facto ocorrido em data posterior a 13/1/2 017.
O dito arrolamento foi decretado em 10/1/2 017, tendo a arguida assinado o auto de arrolamento em 13/1/2 017.
Ou seja: a arguida fez sua a primeira quantia e tentou fazer sua e de outros a segunda, contra a vontade do seu dono.
Quanto à primeira quantia diz-se ainda, no art.º 22º da acusação, que “bem sabia a arguida que a quantia de 48 250€ (quarenta e oito mil, duzentos e cinquenta euros) que fez sua, integrando-a no seu património não lhe pertencia (…) o que quis e conseguiu”; e, quanto à tentativa que “agiu de forma livre, deliberada e conscientemente sabendo que tal quantia não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário, não tendo, contudo, logrado os seus intentos por circunstâncias alheias à sua vontade.”
Ou seja: está-se perante condutas típicas e óbvias, subsumíveis ao crime de furto.
Das expressões referidas decorre também estarem narradas as circunstâncias cognitivas e volitivas, típicas do crime de furto.
Este é um tipo de crime cuja ilicitude é deveras conhecida, tratando-se de um “crime em si, do Direito penal Clássico” e com relevo axiológico conhecido e difundido, na comunidade.
Difícil ou mesmo impossível era, num caso destes, que constitui ilícito criminal em qualquer comunidade, o agente não tivesse a “consciência da ilicitude dos seus atos”.
Daí que se entenda, como no Acórdão da Relação de Lisboa, de 21/6/2 023, Maria do Rosário Martins, acessível em www.dgsi.pt, que a expressão narrativa do facto referente a este elemento só se justifique nos casos em que a “proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente” – como nos caos do Direito Penal Secundário, Contraordenacional ou das Neoincriminações.
Com efeito, constam já da acusação os elementos fácticos referentes ao dolo (art.º 14º C.P.), sendo o “conhecimento da ilicitude” referente ao juízo de culpa, previsto autonomamente, no art.º 17º C.P.
Não é assim aplicável ao caso dos autos o A.F.J. n.º 1/2 015, de 27/1, que apenas se refere ao dolo e nos termos do qual se decidiu que este tem de constar da acusação, não podendo ulteriormente ser acionado o mecanismo processual da alteração não substancial de factos, previsto no art.º 358º C.P.P.
Aliás, no sentido de que nas condutas penais clássicas e de todos conhecidas, não ser indispensável referência fáctica feita na acusação, por a mesma decorrer normalmente da própria essência dos factos cujo caráter ilícito é bem conhecido, citem-se, além do Acórdão citado, os da Relação do Porto, de 13/6/2 018, Maria Dolores Silva e Sousa, da Relação de Évora de 19/12/2 019, Renato Barroso e de 6/2/2 018, GG, bem como o desta própria Relação de Guimarães, de 21/10/2 013, Ana Teixeira – sendo que o segundo e o último referem até expressamente os casos de crimes de furto.
Trata-se já de Jurisprudência recorrente no tempo e atual, que pode assim considerar-se como sedimentada.

Termos em que, no caso dos autos não é indispensável referência ao facto referente ao conhecimento da ilicitude por parte da arguida, pelo que a acusação não é nula, contendo os elementos de facto e direito suficientes, para que seja submetida a julgamento.
Procede pois e de forma clara, o recurso interposto pelo M.P., o que deve ser declarado por decisão singular do Juiz relator art.º 417º/6, d), C.P.P.
Pelo que, o despacho recorrido será revogado, devendo ser substituído por outro que, em 1ª instância, receba a acusação deduzida e designe dia para julgamento – nos termos do disposto no art.º 311º C.P.P.
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Termos em que,

3 – Decisão

a) se declara procedente o recurso do M.P., revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação e designe dia para julgamento, nos termos do disposto no art.º 311º C.P.P.
b) Sem custas.
c) Notifique.
          
Guimarães, 30 de Outubro de 2 023

(Pedro Miguel da Cunha Lopes)