Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
72/23.0GBTMC.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
CRIME SEMI-PÚBLICO
NULIDADE INSANÁVEL
FALTA DE PROMOÇÃO DO M.º P.º
INSTRUÇÃO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- O assistente não pode deduzir acusação por crime público ou semipúblico não acusado pelo Ministério Público.
II- Porém, no caso de na acusação particular, em que é imputada a prática de um crime de injúria agravada (crime de natureza semipública), não constarem factos que permitam agravar o crime de injúria, e tendo sido requerida instrução pelo arguido com vista à sua não pronúncia por falta de indícios suficientes da prática do crime de injuria simples (crime de natureza particular), o JIC não deve declarar a nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo MP, mas antes apreciar o requerimento de abertura de instrução, e caso conclua pela verificação de indícios suficientes dos factos e da sua integração no tipo legal de crime de injúria simples, deve proceder à respetiva correção / alteração da qualificação jurídica.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo de Competência Genérica de ..., em que é arguido AA e assistente BB, ambos com os demais sinais nos autos, com data de 16.05.2024, foi proferida decisão instrutória, na qual foi decidido declarar a nulidade insanável da acusação particular deduzida pelo assistente e, em consequência, não pronunciar o arguido pelo prática de um crime de injúria, na sua forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal.

2. Não se conformando com tal despacho, o assistente dele interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição)[1]:

1 - No entendimento do assistente/ofendido não existe fundamento suficiente para a rejeição da acusação por ele deduzida.
2 - Efetivamente dispõe o artigo 311.°, n.° 3 do Código de Processo Penal que • .para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada a) quando não contenha a identificação do arguido b) quando não contenha a narração dos factos o) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam ou d) se os factos não constituirem crime”.
3 - O que, salvo melhor opinião, não é o caso.
4 - De facto da acusação particular deduzida pelo assistente resulta, como nela se pode ler, o preenchimento de todas as alíneas que o n.° 3 do artigo 311.° do Código de Processo Penal contempla, incluindo a indicação das disposições legais aplicáveis.
5 - O Ministério Público não acompanhou tal acusação - despacho de fis. 55 - quanto à factualidade nela descrita por, no seu entendimento, não preencher os elementos típicos do aludido crime de injúria previsto e punido no artigo 181.° do Código Penal.
6 - E o arguido ao requerer a abertura de instrução, veio alegar que os factos descritos na acusação particular não são susceptíveis de integrar a prática do crime de injúria previsto e punido no artigo 181.° do Código Penal, porquanto, também no seu entendimento, não estão preenchidos os elementos do tipo legal de crime.
7 - Nem o Ministério Público nem o arguido vêm dizer que o assistente alegou factos constitutivos da prática, pelo arguido, de um crime de injúria, na sua forma agravada.
8 - A questão colocada pelo Ministério Publico e pelo arguido é saber se a expressão proferida pelo arguido - “o camião fica ali estacionado, vai lã outra vez a cortar os cabos”- preenche os elementos típicos do crime de injúria previsto e punido no artigo 181.° do Código Penal.
9 - O despacho de não pronúncia de que se recorre, não apreciou a questão de saber se a expressão proferida pelo arguido preenche os elementos do tipo legal de crime de injúria, questão que foi suscitada pelo próprio no seu requerimento de abertura de instrução e pelo Ministério Público.
10 - O despacho de não pronúncia apenas se limitou a conhecer da ilegitimidade do assistente para vir deduzir uma acusação na qual descreve factos e imputa ao arguido a prática de um crime de injúria, na sua forma agravada, ilícito esse de natureza semipública.
11 - É manifesto o lapso cometido na acusação particular deduzida a fis. 52 e 53 ao imputar ao arguido o crime de injúria agravada, previsto e punido pelo artigo 184.° do Código Penal, porquanto esta incriminação não tem qualquer correspondência aos factos nela descritos, ressaltando à evidência que no caso, a vitima apesar de ser militar da G.N.R. não se encontrava no exercício das suas funções, não se enquadrando na previsão do artigo 132.°, n.° 2, alínea 1) do Código Penal.
12 - Tal lapso não torna inválido o acto em que foi praticado e pode ser reparado a todo o tempo.
13 - A Mma. Juiz de Instrução, a quem foi distribuído o processo como instrução, não estava limitada por força de tal lapso no exercício do poder-dever de conhecimento da questão que lhe foi suscitada pelo arguido no requerimento de abertura de instrução, ou seja, de saber se a expressão proferida pelo arguido preenche os elementos do tipo legal de crime de injúria (simples).
14 - O despacho de não pronúncia apenas se limitou a conhecer da ilegitimidade do assistente para vir deduzir uma acusação na qual descreve factos e imputa ao arguido a prática de um crime de injúria, na sua forma agravada, ilícito esse de natureza semipública.
15 - O mesmo despacho de não pronúncia não se pronunciou também – como se impunha - sobre a questão de saber se a expressão proferida pelo arguido preenche os elementos do tipo legal de crime de injúria, questão que foi suscitada pelo arguido no seu requerimento de abertura de instrução.
16 - Ora, o tipo legal em apreciação assegura o direito ao “bom-nome” e à “reputação”, constitucionalmente garantidos - cfr. art. 26°, n.°1 da CRP.
17 - O arguido, imputou ao assistente factos - “o camião fica ali estacionado, vai lá outra vez a cortar os cabos” - que bem sabia, não serem verdadeiros (depoimento de fis. 33 dos autos), atentando, desta forma, contra o seu bom nome, a sua reputação e a sua “honra”, sendo este o bem jurídico objeto de proteção no crime de injúria.
18 - Pelo que, não se verifica, no caso, a nulidade declarada no douto despacho recorrido da falta de promoção do processo pelo Ministério Público prevista no artigo 119.°, alínea b) do Código Processo Penal, porquanto este não omitiu o cumprimento de qualquer dever processual.
19 - O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 20.° da Constituição da República Portuguesa, 50.°, 180.°, 184.°, 188.°, do Código Penal e 119.°, alínea b), 122.°, 285.°, n.° 3, 286.° e 290.°, do Código de Processo Penal.
20 - Devendo, pelo exposto, ser revogado por outro que receba a acusação particular deduzida pelo assistente, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
21 - Designadamente uma alteração da qualificação jurídica dos factos.
22 - De todo o teor da acusação deduzida pelo assistente, apenas se conclui a existência de um erro sobre a qualificação do tipo legal de crime e, nunca, a falta de indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, a violação do artigo 311.°, n.° 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
23 - Da leitura atenta da acusação não ressaltam os elementos próprios da injúria agravada, que se encontram exarados no artigo 184.° do Código Penal.
24 - A Mma. Juiz poderia e deveria ter corrigido a qualificação e, nessa medida, ter recebido a acusação particular pelo crime de injúria (simples), atento também os princípios constitucionais da independência e da vinculação à lei, consagrados no art. 203.° da CRP, que se compatibilizam com este regime da liberdade de qualificação.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Excias., deverá ser revogado o despacho recorrido nos termos supra descritos nas alegações e conclusões, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação particular deduzida pelo assistente, seguindo-se a demais tramitação legal, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA!
3. O Ministério Público na primeira instância, respondeu ao recurso, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
1. O assistente BB deduziu acusação particular, alegando factos constitutivos da prática, pelo arguido, de um crime de injúria, na sua forma agravada, previsto e punido pelo artigo 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal.
2. Deduzida acusação apenas pelo assistente por crime público ou semi-público, comete-se a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, de falta de promoção do Ministério Público.
3. Não pode o julgador desconsiderar a qualificação, que transformou o crime particular em crime semi-público, de modo a receber a acusação por crime para o qual o assistente tenha legitimidade para acusar.
4. Bem andou o Tribunal a quo ao declarar a nulidade insanável da acusação particular deduzida pela assistente e, consequentemente, ao não pronunciar o arguido AA pela prática do crime de injúria, na sua forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, que lhe é imputado.
5. Não merece qualquer censura o despacho recorrido.
6. Pelo que o recurso deverá ser integralmente improcedente.
Mas, Vossas Excelências decidirão conforme for de Direito e Justiça!
*
4. O arguido não respondeu ao recurso.
5. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer no sentido da procedência do recurso do assistente, tendo concluído, nos seguintes termos (transcrição): “deverá o despacho recorrido ser revogado e ser ordenada a sua substituição por outro que, apreciando o RAI, caso conclua pela verificação de indícios suficientes nos autos do crime de injúria simples, p. e p. no art.º 181.º do Código Penal, proceda à respectiva correcção / alteração ao abrigo do citado art.º 303.º 5 do CPP.. “
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.Penal, sem que tenha sido apresentada qualquer resposta.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1 , todos do CPP.
Assim, no caso em apreço, a questão essencial a decidir consiste em saber se ocorre nulidade insanável do artigo 119º al. b) do CPP por falta de promoção do Ministério Público pelo facto de a acusação particular deduzida pelo assistente pela prática de um crime de injuria na sua forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, quando  é certo que o Ministério Público, para além de não ter deduzido acusação quanto a tal crime, declarou ainda não acompanhar a acusação do assistente.

2. A decisão recorrida

O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

=DECISÃO INSTRUTÓRIA=

Nos presentes autos foi deduzida acusação particular (fls. 52 e 53) pelo assistente BB contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 26.º, 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal.
O Ministério Público, por despacho proferido em 19/10/2023, declarou que “não acompanha a acusação particular apresentada pelo assistente, por entender, como já anteriormente expôs, que a factualidade apurada não preenche os elementos típicos do aludido crime”.
Inconformado, veio o arguido requerer a abertura de instrução, alegando, em suma, que os factos descritos na acusação particular não são suscetíveis de integrar a prática do crime em causa, porquanto não estão preenchidos os elementos do tipo legal do crime de injúria.
Conclui pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia.
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Declarada aberta a instrução, realizou-se o debate instrutório, o qual decorreu com estrita observância das formalidades legais.
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O Tribunal é competente.
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Da nulidade da acusação particular

O Ministério Público, por despacho de 02/10/2023, ao abrigo do disposto no artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, determinou a notificação do assistente e da sua Ilustre Mandatária para, querendo, em 10 dias, deduzir acusação particular contra o arguido relativamente ao crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal, uma vez que se trata de crime de natureza particular, carecendo o Ministério Público de legitimidade para o exercício, nesta parte, da ação penal.
Ademais, declarou, desde logo, nos termos do n.º 2 do citado normativo, que no seu entender “dos elementos recolhidos nos autos não resultam indícios suficientes da prática pelo arguido do referido crime, na medida em que a factualidade apurada não preenche os elementos típicos do aludido crime”.
Nessa sequência, veio o assistente BB deduzir acusação particular, alegando factos constitutivos da prática, pelo arguido, de um crime de injúria, na sua forma agravada, previsto e punido pelo artigo 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, que tem natureza de crime semipúblico, no sentido de que o Ministério Público promove oficiosamente e por sua própria iniciativa o processo penal e decide com plena autonomia – embora estritamente ligado por um princípio de legalidade – da submissão ou não de determinado ilícito penal a julgamento (neste sentido, Jorge Figueiredo Dias, in «Direito Processual Penal», 1.º vol., reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 120).
Após a dedução da acusação particular, a Digna Magistrada do Ministério Público, a fls. 55, proferiu o seguinte despacho:
“O Ministério Público declara que não acompanha a acusação particular apresentada pelo assistente, por entender, como já anteriormente expôs, que a factualidade apurada não preenche os elementos típicos do aludido crime”.
A titularidade da ação penal, condicionada ou não à prévia dedução de queixa, sob pena de ilegitimidade, pertence exclusivamente ao Ministério Público, conforme artigo 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 48.º do Código de Processo Penal. De facto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 48.º, 49.º e 50.º do Código de Processo Penal, é ao Ministério Público que cabe deduzir acusação, exceto nos casos em que o procedimento criminal depende de acusação particular.
Deste modo, na situação em que no inquérito foram recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime, de quem foi o seu agente e o mesmo disser respeito a um crime público ou semipúblico, é ao Ministério Público que cabe deduzir a respetiva acusação, podendo apenas o assistente, até 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, deduzir também acusação pelos factos por aqueles acusados, por parte deles ou por outros que não importem a alteração substancial dos primeiros (artigos 283.º, n.º 1 e 284.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Porém, caso se trate de crime de natureza particular, então a iniciativa de acusar cabe ao assistente, após a notificação a que alude o artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, podendo o Ministério Público, nos 5 dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (artigo 285.º, n.º 4 do Código de Processo Penal).
Dito isto, se o assistente, na sequência da notificação efetuada pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, entender que dos autos resultam indícios da prática de um crime público ou semipúblico, o caminho que deverá seguir é o de requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
O que não pode fazer é substituir-se ao Ministério Público e deduzir ele próprio a acusação, pois que tal atribuição está conferida em exclusivo por lei, como se viu, ao Ministério Público (veja-se neste sentido, o ac. do TRG de 14/01/2019 e do TRC de 08/02/2017, in www.dgsi.pt).
Ora, in casu, constata-se que, tendo o assistente sido notificado, nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, para, querendo, em 10 dias, deduzir acusação particular contra o arguido, pelos factos denunciados como configuradores, em abstrato, de um crime de injúria (de natureza particular, nos termos das disposições conjugadas no artigo 181.º e 188.º do Código Penal), em vez de apresentar uma acusação nesses moldes o assistente deduziu uma acusação na qual descreve factos e imputa ao arguido a prática de um crime de injúria, na sua forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, ilícito esse de natureza semipública – cfr. artigo 188.º do mesmo diploma legal.
Ante o exposto, estamos perante uma situação de ilegitimidade do assistente, por falta de promoção do Ministério Público, o que configura uma nulidade insanável, nos termos previstos no artigo 119.º, alínea b), 1.ª parte, do Código de Processo Penal, a qual deve ser conhecida oficiosamente e declarada em qualquer fase do processo (neste sentido, o acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 1/2000, de 16/12/1999, in DR, 1.ª série A, n.º 4, de 06/01/2000).
Sem prejuízo do supra exposto, importa saber se o Tribunal deve proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação particular, de modo a que passe a ser imputado ao arguido a prática de um crime de injúria (simples).

Entendemos que não. Vejamos.
Como se sabe, o nosso processo penal tem estrutura acusatória, consagrada no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, o que significa que é pela acusação que se define o objeto do processo.
Segundo o princípio da acusação, a atividade de cognição e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objeto da acusação.
A este propósito, acompanhando de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/01/2019 (in, www.dgsi.pt) pode ler-se que:
“Efetivamente, como bem sublinha Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, págs. 144/145), uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste naquilo a que apelida de vinculação temática do tribunal, segundo a qual os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objeto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.
E os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, constitui a pedra angular de um efetivo e consistente direito de defesa do arguido – sem o qual o fim do processo penal é inalcançável –, que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da atividade cognitória e decisória e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência.
Do exposto decorre, pois, ser indispensável e necessário que o arguido saiba com pormenor do que se encontra acusado, de molde a que possa apresentar os seus argumentos e os seus meios de defesa.
E, como se afigura evidente, a indicação da norma incriminadora, obrigatoriamente constante da acusação (cfr. Artº 283º, nº 3, al. c), do C.P.Penal), atribui o desvalor jurídico-penal aos eventos materiais e integra igualmente o objeto do processo.
(…)

Veja-se, aliás, que o Supremo Tribunal de Justiça, em consonância com tal filosofia, no Acórdão nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado do Diário da República, 1ª Série, nº 138, de 19 de Julho de 2013, fixou a seguinte jurisprudência: “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358º n.ºs 1 e 3 do C.P.P.”.
De resto, nesse douto aresto o Supremo Tribunal de Justiça expressou o entendimento de que os institutos da alteração não substancial dos factos (358º, nº 1) e da alteração da qualificação jurídica (358º, n.º 3, ambos do Código do Processo Penal) apenas se aplicam, como do texto da primeira daquelas disposições expressamente decorre, se, no decurso da audiência, se verificar uma dessas alterações, pelo que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação apenas pode ser discutida na audiência de julgamento”. (negrito e sublinhado nosso)
Dito isto, sem necessidade de mais considerações, não pode o Tribunal proceder à (re)qualificação jurídica dos factos constantes da acusação particular deduzida pelo assistente contra o arguido.

Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, alínea b) do Código Penal, declaro a nulidade insanável da acusação particular deduzida pelo assistente BB (fls. 52 e 53) e, em consequência, não pronúncio o arguido AA pelo prática do crime de injúria, na sua forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, que lhe é imputado.

Custas pelo assistente, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça (artigo 515.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal).
Ademais, declaro extinta a instância cível relativa ao pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante BB, a fls. 53/verso e 54, por impossibilidade superveniente da lide (artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil).

Custas a cargo do demandante (cfr. artigo 536.º, n.º 3 do Código de Processo Civil e artigo 4.º, n.º 1, al. n), a contrario, do Regulamento das Custas Processuais).
*
Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo a audiência sido declarada encerrada quando eram 10 horas e 03 minutos.
A presente ata foi integralmente revista e por mim, CC, elaborada.

3- A acusação particular deduzida pelo assistente tem o seguinte teor (na parte considerada relevante para o caso)

BB,  (…) deduz ACUSAÇÃO PARTICULAR e requer o Julgamento em Processo Comum e por Tribunal Singular
contra,
AA, (…)
1- Porquanto resulta suficientemente indiciado nos autos que no dia 06/ABRIL/ 2023, pelas 15h 10m, quando o ofendido/assistente se encontrava na varanda da sua habitação, sita na Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., o arguido ao passar na rua e dirigindo-se diretamente àquele proferiu a seguinte expressão "o camião fica ali estacionado, vai lá outra vez a cortar os cabos".
2- Ora, o arguido imputou este facto ao ofendido/assistente, que bem sabia não corresponder à verdade.
3- Isto porque o arguido já tinha estado na G.N.R. antes da mencionada data de 06/ ABRIL/2023, com intenção de apresentar queixa contra o ofendido/assistente, aí o tendo mencionado como principal suspeito, pelo facto de ter tido um desentendimento com este.
4- O arguido quando se dirigiu à G.N.R. antes do dia 06/ABRlL/2023, foi atendido pelo Guarda Principal DD que o encaminhou junto do Comandante do Destacamento Territorial ..., a Sra. Capitão EE.
4- Só após ter falado com a Sra. Capitão, é que este formalizou a queixa que foi efetuada pelo Guarda Principal FF, mas que não chegou a ser subscrita pelo ora arguido porque, entretanto, se deslocou à freguesia ..., e aí foi informado pelo mecânico que procedeu à reparação do camião que os cortes foram feitos por um animal - cfr. depoimento do arguido de fls. 33 dos autos.
5- Mesmo assim, e passados 2/3 dias, após se ter deslocado ao Posto da G,N.R. de ..., o arguido não se coibiu novamente de voltar a imputar ao ofendido/assistente, no dia 06/ABRlL/2023, a suspeita de que seria este que procedeu ao corte dos cabos do camião, tendo plena consciência da falsidade da imputação.
6- A expressão proferida pelo arguido e dirigida ao ofendido/assistente é, objetiva e subjetivamente, apta a atingir, como atingiu, a sua honra e consideração pessoal e profissional, bem sabendo que propalava factos falsos e fazia insinuações inverídicas contra um militar da G.N.R., do que estava bem ciente.
7- Sendo que, apesar de o arguido bem saber que com tal conduta violava direitos absolutos do ofendido/assistente, legalmente protegidos, não lhe sendo tais comportamentos permitidos, antes punidos, por lei, não se absteve de os adoptar, agindo livre, consciente e voluntariamente, tendo perfeito conhecimento de que aquele é militar da G.N.R..Contribuinte ..., ...
8- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal
Constituiu-se, assim o arguido, autor material, pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 26.º, 181º, 184.º e 132º n º2, alínea l) do Código Penal.”

4. Apreciação do recurso
No caso em apreço, a Exma. Senhora Juíza de Instrução, em sede de decisão instrutória, declarou, sem mais, a verificação da nulidade insanável por falta de promoção do processo pelo Ministério Público do artigo 119º al. b) do CPP.
Tal decisão decorreu, por um lado, da posição assumida no processo pelo Ministério Público, em que não deduziu qualquer acusação. E, por outro, da mera qualificação jurídica dos factos constantes da acusação deduzida pelo assistente, na qual se imputou ao arguido um crime de injuria agravada previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, que tem natureza semipública,
É inquestionável que o assistente não pode deduzir acusação por crime publico ou semipúblico não acusado pelo Ministério Público, cfr. artigo 284º, nº 1 do CPP.  Nesse sentido, vide Assento nº 1/2000, do STJ, de 16.12.1999, in DR, I-A, de 06.01.2000, segundo o qual “Integra a nulidade insanável da alína b) do artigo 119º do CPP a adesão posterior do MP à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública ou semipública e fora do caso previsto no artigo 284º, nº 1, do mesmo diploma legal”.

Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 746 “Havendo indícios suficientes da prática de crime público ou semipúblico e tendo o MP deduzido acusação o assistente pode tomar uma de três posições:

a) Aderir à totalidade dos factos acusados pelo MP;
b) Aderir a parte dos factos acusados pelo MP;
c) Acusar por factos novos desde que não importem alteração substancial dos factos da acusação pública…”    

No caso vertente, nunca esteve em causa a indiciação do arguido pela prática de crime público ou semipúblico, mas apena a imputação de um crime de injuria simples (crime de natureza particular), relativamente ao qual o Ministério Público considerou não existirem indícios suficientes, tendo notificado o assistente para deduzir acusação, a qual declarou não acompanhar (cfr. despachos proferidos pelo Ministério Público de 02.10.2023 e de 19.10.2023).
Relativamente a este ponto, importa notar que “A acusação particular tem de refletir os factos apurados durante o inquérito (Germano Marque da Silva, 1994, p. 114; MPDJP, 2009, p. 726; Maia Gonçalves, 2009, p. 687) e não aqueles que se pensa terem sido apurados”, cfr. João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, tomo III, pág. 1181.
 Outrossim, na acusação particular deduzida pelo assistente, relativamente à qual o arguido reagiu, requerendo abertura de instrução, apesar de nela se imputar a perpetração de um crime de injúria agravada, a verdade é que dela não constam factos que permitam agravar o crime de injúria. Ou seja, não obstante a qualificação jurídica imputada na acusação, os factos nela descritos não permitem tal qualificação jurídica, o que se pode dever a erro ou a mero lapso de escrita, sendo irrelevante para a questão que agora nos ocupa.
Na verdade, como foi bem salientado pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, na acusação particular deduzida pelo assistente  “ em lugar algum da mesma acusação se afirma que o assistente, aquando da imputação que, alegadamente, lhe foi feita pelo arguido, se encontrava no exercício das suas funções de militar da GNR ou que o mesmo assistente agiu do modo descrito por causa dessas suas funções”, sendo estes factos, como é sabido, elemento to tipo legal de crime de injuria agravada imputado na acusação.
Aliás, no requerimento de abertura de instrução, as razões de discordância apresentadas pelo arguido relativamente à acusação particular deduzida pelo assistente dizem respeito somente ao caráter ofensivo da honra da alegada imputação, ou seja, ao preenchimento dos elementos do crime de injúria simples p. e p. pelo artigo 181º do CP, cfr. nº 2 do artigo 287º do CPP.
Nesta conformidade, em sede de instrução, a questão essencial que importava dilucidar era saber se se mostrava indiciado por forma suficiente a perpetração pelo arguido de um crime de injúria simples p. e p. pelo artigo 181º do CP.  E, em caso afirmativo, proceder à respetiva correção /alteração da qualificação jurídica.
Porém, não foi isso que sucedeu, uma vez que a Exma. Senhora Juíza começou pelo fim, ou seja, pela qualificação jurídica dos factos, declarando verificar-se a nulidade insanável por falta de promoção do Ministério Público, bem assim a ilegitimidade do assistente para deduzir acusação pela prática de crime semipúblico, não se pronunciando sobre a questão essencial que importava decidir.
No que concerne à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, sendo certo que é esta que define o objeto do processo, por regra tem de ser objeto de comunicação como decorre do artigo 303º do CPP quanto à instrução, e nos artigos 358 e 359 do mesmo código, quando ocorra na fase de julgamento, ou até mesmo em fase de recurso, cfr. nº 424º, nº 3, também do CPP.
É esta uma decorrência do princípio do acusatório. Como é sabido, o sistema processual português não é acusatório puro, mas obedece a uma estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material. 
Com efeito, o nº 5 do artigo 32º da CRP diz que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
O princípio da acusação significa que o julgador não pode acumular as funções de acusação e investigação, mas pode apenas julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferente (entre nós, MP ou juiz de instrução).
A intencionalidade do princípio é a garantia de imparcialidade do julgador e a igualdade de armas. Por isso mesmo, o MP não pode ser dono do processo nas fases de instrução e julgamento.
O princípio da acusação impõe a vinculação temática e a limitação dos poderes de cognição do juiz de instrução (artigo 309º, nº 1 ) e do juiz de julgamento (artigo 284º, nº1, 359º, nº 1,e, nos crimes particulares, artigo 285º, nº 1, 359º, nº 1), cfr. Paulo Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina 2014, pág. 203-204.
O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento” cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206.
O processo penal de tipo acusatório opõe-se ao processo penal de tipo inquisitório, em que o juiz investiga livremente e sem limitação alguma, independentemente de qualquer acusação e, mesmo que tal acusação exista, ela apenas determina o se da investigação judicial, não o seu como nem o seu quanto, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, pág. 136 e segs.
No entanto, quando a alteração da qualificação jurídica se traduza num “minus” relativamente à acusação, como é o caso de alteração da imputação de tipos legais de crime na sua forma qualificada ou agravada para a sua forma simples, v.g. alteração de furto qualificado do artigo 204º do CP para furto simples do artigo 203º do CP; e tráfico de produtos estupefacientes do artigo 21º da Lei nº 15/93, de 22.01, para tráfico de menor gravidade do artigo 25º do mesmo diploma legal, a jurisprudência é consensual no sentido de não ser exigível a comunicação da alteração da qualificação jurídica, por não violar as garantias de defesa do arguido do 32.º, n.º 1, da CRP. Assim, vide, v.g. Ac. STJ de 27.04.2022, processo 712/00.9JFLSB.L1.S1; Ac. STJ de 18.05.2023, processo 23/20.3GABNV.L1.S1; Ac. RP de 15.06.2011, processo 101/10.7PRPRT.P1; e Ac. RE de 02.06.2025, 206/11.7GBCTX.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, relativos à fase de julgamento, mas também aplicáveis, uma vez que a razão de ser é a mesma, em sede de instrução.
Por conseguinte, e em síntese, no caso em apreço, em lugar de ter declarado a nulidade insanável por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, a Exma. Senhora Juíza tinha apenas que ter apreciado o requerimento de abertura de instrução, e caso concluísse pela verificação de indícios suficientes dos factos e da sua integração no tipo legal de crime de injúria simples, p. e p. no art.º 181.º do Código Penal, devia ter procedido à respetiva correção / alteração da qualificação jurídica, sendo caso disso, ao abrigo do citado art.º 303.º 5 do CPP.
E, sendo assim, o recurso não poderá deixar de proceder.

III- DECISÃO  

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo assistente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro em que, apreciando o requerimento de abertura de instrução e caso se conclua pela verificação de indícios suficientes dos factos e da sua integração no tipo legal de crime de injúria simples, p. e p. no art.º 181.º do Código Penal, proceda à respetiva correção / alteração da qualificação jurídica, sendo caso disso, ao abrigo do citado art.º 303.º 5 do CPP..
Sem custas.
Notifique.
Texto integralmente elaborado elo seu relator e revisto pelos seus signatários – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Guimarães, 22.10.2024

Armando Azevedo (Relator)
Anabela Rocha (1º Adjunto)
Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto)


[1] Nas transcrições de peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original, sem prejuízo da formatação do texto e da correção de erros ou lapsos manifestos da responsabilidade do relator.
[2] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr.  Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..