Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS CUNHA COUTINHO | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO FALTA DE ELEMENTOS TÍPICOS SANAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I - A ausência de descrição completa dos elementos constitutivos da contraordenação e que atravessa todo o processo contraordenacional, não pode vir a ser colmatada em momento processual subsequente, justificando-se nesse caso o arquivamento dos autos por falta de objeto; II – Com efeito, não está em causa, apenas, uma mera deficiência da decisão administrativa quanto à definição fáctica que imputa à arguida, mas uma manifesta e absoluta ausência que não pode ser ultrapassada e que atravessa todo o processo. III - Permitir-se o acrescento de elementos constitutivos da infração que inicialmente não constavam da decisão administrativa, nem sequer do processo contraordenacional, resultaria numa alteração fundamental da decisão, transformando uma conduta atípica numa conduta típica. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: A) Relatório: 1) A recorrente EMP01..., Lda, com os demais sinais dos autos, impugnou judicialmente, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Local Criminal de ..., a decisão proferida pelo Inspector Geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica que lhe aplicou uma coima de 1.500,00 € (mil e quinhentos euros), pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelos artigos 63.º e 59.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro. * 2) Por Sentença proferida em 23/04/2024, o Tribunal recorrido decidiu julgar procedente o recurso, declarando nula a decisão proferida pelo Inspector Geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, e ordenando o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 64.º, n.º 3 do Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro).* 3) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:1. A Mma. Juiz a quo declarou nulidade da decisão administrativa, por falta de discriminação dos factos concretos imputados à recorrente e falta de fundamentação, arquivando os autos. 2. A sentença recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação, que desde já se alega, para todos os efeitos legais, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, não se descortinando se a nulidade da decisão declarada advém da falta de factos, da falta de fundamentação ou de ambos; 3. Não há nulidade por falta de fundamentação, dado que a decisão administrativa explicita a razão da não verificação da nulidade invocada no exercício do direito de defesa e por que razão se considerou cometida a contra- ordenação e a consequente aplicação da coima, logrando a recorrente exercer, numa fase prévia, o direito de defesa, e posteriormente apresentar a impugnação judicial; 4. A decisão administrativa não cumpre integralmente as exigências do art. 58.º, n.º 1, al. b), do RGCO, por os factos imputados não se mostrarem devidamente concretizados, conseguindo-se compreender genericamente a imputação; 5. Declarada a nulidade, mostra-se errada a decisão de arquivamento dos autos, entendendo-se deverem ser devolvidos à entidade administrativa para produção de nova decisão; 6. A decisão administrativa não é um despacho de acusação e o conhecimento da sua nulidade tem um efeito próprio, diverso do exposto no art. 64.º, n.º 3, do RGCO, incorrendo a Mma. Juiz a quo em erro na aplicação do direito, ao aplicar tal norma; 7. Os factos que integram a decisão administrativa balizam o objecto do processo, mas não deixa de ter natureza decisória, não havendo motivo para aplicar em bloco as regras do CPP relativas à nulidade da acusação ou da sentença; 8. A insuficiente descrição factual constitui uma nulidade atípica, que não tem reflexo em nenhum dos diplomas em apreço, mas que decorre da natureza “mista” da decisão administrativa, podendo ser corrigida, assim como os vícios da sentença o são (designadamente por efeito do disposto no art. 426.º do CPP). 9. O arquivamento dos autos impede a prolação de uma decisão de mérito e é contrária à lógica do sistema, fundada na imposição de um menor exigência e rigor às entidades administrativas, por razões de simplicidade e celeridade, impondo perversamente o efeito preclusivo dos vícios eventualmente existentes. 10. A Mma. Juiz a quo, na sua decisão, violou o disposto nos arts. 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do CPP, por um lado, e arts. 58.º, n.º 1, al. b), e 64.º, n.º 3, do RGCO, e arts. 283.º, n.º 3, e 379.º do CPP, por outro, devendo a sentença recorrida ser revogada e proferida outra que, em sua substituição, por um lado, não declare a nulidade da decisão administrativa por falta de fundamentação, e por outro, que determine a devolução dos autos à entidade administrativa para prolação de nova decisão. * 4) Notificada do requerimento de interposição de recurso a arguida EMP01..., Lda respondeu ao recurso interposto pelo Ministério público, pugnando pela sua improcedência e confirmação da decisão recorrida, concluindo que “bem andou o tribunal quando determinou o arquivamento dos autos”. * 5) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Senhora Procuradora – Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado procedente, considerando que a decisão administrativa padece de nulidade por inobservância dos requisitos do artigo 58.º, n.º 1, do RGCO, entendendo porém que “tal reconhecimento não deverá determinar a absolvição da arguida, mas sim a invalidade dos atos afetados e de todos os que deles forem dependentes, impondo-se, por isso, o reenvio reenvio dos autos à entidade administrativa competente por forma a sanar os vícios existentes”.* 6) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a arguida não apresentou resposta.* 7) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.* Cumpre apreciar e decidir.* B) Fundamentação:1. Âmbito do recurso e questões a decidir: O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal)[1]. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo Ministério Público, as questões a decidir são as seguintes. No caso dos autos face às conclusões da motivação apresentadas pela arguida, as questões a decidir são as seguintes: 1.ª: Existência na decisão recorrida do vício da contradição insanável da fundamentação - artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal; 2.ª: Consequências da declaração de nulidade da decisão administrativa por incumprimento das exigências previstas no artigo 58.º, n.º 1, al. b), do RGCO – falta de concretização dos factos imputados à arguida: arquivamento dos autos ou devolução dos mesmos à entidade administrativa. * 2. A Sentença recorrida: Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor da sentença impugnada: FUNDAMENTAÇÃO Apesar de ter remetido os autos a juízo, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, por entender que a decisão recorrida carece de suporte fáctico. Nos termos do artigo 243.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o auto de notícia deve mencionar: “a) Os factos que constituem o crime; b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; e c) Tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos.” O que se diz relativamente ao crime, diz-se com referência à infracção contra-ordenacional (cfr. artigo 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro). No regime contra-ordenacional, proferida decisão pela autoridade administrativa e deduzido recurso de impugnação, a apresentação a juízo, por parte do Ministério Público, dos autos enviados por aquela autoridade, vale como acusação (cfr. artigo 62.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações). Esta, como se dispõe no artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal contém, sob pena de nulidade: “a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; […] d) A indicação das disposições legais aplicáveis; […]” Ainda nos termos do artigo 58.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, bem como a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, para além, naturalmente, da identificação do arguido, a coima e sanções acessórias aplicadas. Assim, decorre deste dispositivo que, ainda que de forma simplificada, toda a decisão deve conter um relatório com a identificação do arguido, a descrição dos factos imputados e das provas que serviram para concluir pela verificação daqueles factos, bem como a subsunção dos factos às normas aplicáveis, finalizando com o dispositivo. A razão de ser desta imposição legal prende-se com o exercício efectivo do direito à defesa, constitucionalmente consagrado, só possível se forem cumpridos os referidos requisitos, os quais possibilitam ao visado o cabal conhecimento dos factos que lhe são imputados, as provas obtidas e as normas que se diz ter violado, por forma a permitir a sua defesa, quer a nível dos factos, quer a nível do direito. No caso em apreço, verifica-se que a notificação à EMP01..., Lda., recebida a 07/07/2020, de que contra a mesma havia sido instaurado processo de contra-ordenação, pela prática de factos que consubstanciam infracção ao disposto no artigo 63.º do Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro (não adaptação de exploração já licenciada às exigências do Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro/falta de adequação da licença de exploração à situação real da exploração), faz menção a um auto de notícia “cuja cópia se junta em anexo à presente notificação”. Não consta dos autos, contudo, qualquer auto de notícia, mas tão só uma solicitação, datada de 17/04/2020, da Direcção-Geral da Energia e Geologia, à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica para instauração de processo de contra-ordenação na sequência de “notificação de audiência de interessado […] não tendo a empresa dado cumprimento ao constante nessa notificação, nem tendo apresentado razões que justifiquem a falta de adequação da licença de exploração à situação real de exploração […] por incumprimento do artigo 63.º do [Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro]” (fls. 2), e, bem assim, cópia da referida notificação, datada de 11/12/2019, que se destinava, em suma, a dar conta à arguida do “sentido provável de decisão de deserção do procedimento” por falta de apresentação dos elementos adicionais solicitados, de que a falta de adequação da licença de exploração à situação real de exploração está sujeita a provável comunicação à ASAE e para, querendo, alegar o que tivesse por conveniente em 20 dias (fls. 3). Por seu turno, a decisão da entidade administrativa limita-se a indicar, como factos, o mesmo que constava da referida notificação, acrescentando-lhe tão só a data da solicitação da Direcção-Geral da Energia e Geologia para instauração de processo de contra-ordenação, a designação e localização da pedreira, ou seja, que: “Aos 17 dias do mês de Abril de 2020, na sequência de notificação de audiência de interessados remetida pela Direcção-Geral da Energia e Geologia, ..., referente à pedreira denominada “...”, sita em ... – ..., ... e explorada pelo(a) arguido(a) acima identificada, foi verificada a seguinte irregularidade: “Não adaptação de exploração já licenciada às exigências do Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 340/2008 de 12 de Outubro (falta de adequação da licença de exploração à situação real da exploração).” Com efeito, na sequência de notificação de audiência de interessados remetida pelos serviços da Direcção-Geral da Energia e Geologia, ..., através do Ofício ...51 de 11 de Dezembro de 2019, não foi dado cumprimento pela empresa, ao constante na notificação, por falta de apresentação dos elementos adicionais solicitados.” Ora, não nos resultam quaisquer dúvidas de que o facto imputado é claramente conclusivo. À autoridade administrativa incumbia discriminar quais os factos concretos que levam à conclusão de que há falta de adequação da licença de exploração à situação real da exploração, por não adaptação de exploração já licenciada às exigências do Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro, designadamente discriminando a situação real da exploração e quais as exigências legais que não estavam a ser cumpridas e, bem assim, os termos da licença existente e os termos da licença necessária, de modo a permitir concluir, como faz a autoridade administrativa, pela infracção ao disposto no n.º 2 do artigo 63.º, segundo o qual “Os exploradores de pedreiras já licenciadas que não cumpram as exigências previstas no presente decreto-lei estão obrigados a adaptar as respectivas explorações às exigências nele estabelecidas.” Conclui-se, por conseguinte, que a entidade administrativa não fundamentou devidamente a sua decisão, isto é, não explicou em termos mínimos qual a razão que levou à aplicação de uma coima à arguida, enfermando a decisão administrativa de falta de fundamentação. Qual deverá ser, assim, a consequência da referida falta de fundamentação? O Regime Geral das Contra-Ordenações não estipula directamente qualquer consequência para esta omissão. Determina, porém, o artigo 41.º, n.º 1 do referido diploma que “sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”. Refere ainda o n.º 2 do citado preceito que “no processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma”. Tendo em consideração todos os preceitos acabados de citar e sendo o diploma em questão omisso quanto às consequências da falta de fundamentação da decisão, parece-nos que se deverá adoptar o regime previsto no Código de Processo Penal. Estipula o artigo 379.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal que a sentença é nula “se não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374º […]”. O artigo 374.º, n.º 2 do mesmo diploma exige que, a seguir ao relatório, se siga a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão […]”. Ora, conforme se já disse, a decisão dos autos é omissa no que respeita aos motivos de facto que levaram à aplicação da coima em questão. Sobre a importância da fundamentação das decisões judiciais veja-se o, ainda actual (não obstante o decurso do tempo), Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Dezembro de 1987, in BMJ, n.º 372, p. 369, onde se diz que “a motivação da sentença impõe-se por duas razões: uma substancial, pois cumpre ao juiz demonstrar que da norma abstracta formulada pelo legislador soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto; e outra de ordem prática, uma vez que as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão”. Acresce a existência de normas concretas, respeitantes às entidades administrativas, relativamente ao dever de fundamentar as suas decisões: é o caso do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe que “os actos administrativos […] carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos” (como é o caso dos bens patrimoniais dos cidadãos). Por outro lado, o próprio Código do Procedimento Administrativo impõe às entidades administrativas o dever de fundamentarem as suas decisões. E compreende-se que assim seja. Com efeito, as decisões da administração afectam direitos fundamentais dos cidadãos, sendo que as razões aduzidas para as necessidades de fundamentação das decisões judiciais têm toda a razão de ser nestes casos. Podemos entender a necessidade de uma maior exigência nas fundamentações das decisões dos tribunais do que nas decisões tomadas por entidades administrativas, o que não podemos deixar de exigir é que exista uma fundamentação mínima nos despachos destas últimas que apliquem coimas (ou seja, não se pode confundir a atenuação das exigências de fundamentação com a falta de fundamentação), o que não aconteceu no caso dos autos, conforme já foi referido. Conforme se escreveu, ainda, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Maio de 2023 (disponível in www.dgsi.pt),“independentemente da qualificação jurídico-processual que se atribua à decisão da autoridade administrativa, quer por referência à acusação (artº 283º nº 3 do C.P.P.), quer por referência à sentença penal (artº 379º nº 1 al. a) do CPP), o certo é que a consequência atribuída à omissão de factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes à imputação objectiva da conduta) não poderá deixar de se traduzir na nulidade dessa decisão.” Importa agora determinar as consequências da declaração de nulidade. Dispõe o artigo 64.º, n.º 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações que “o despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação”. Da análise do n.º 5 do citado preceito resulta que a absolvição está pensada para os casos em que não se prova a prática de factos suficientes para concluir pela verificação de uma contra-ordenação. No presente caso, nem está sequer em causa a apreciação do mérito da questão, porquanto se não ultrapassa a questão prévia da nulidade da decisão administrativa, à qual se seguiria, em situação normal, a apreciação da prova a produzir em julgamento, determinação dos factos provados e consequente subsunção dos mesmos às normas legais aplicáveis, pelo que entendemos que a solução é o arquivamento dos autos, afastando-se assim do regime do Código de Processo Penal, porquanto o Regime Geral das Contra-Ordenações possui uma norma que expressamente difere daquele regime. Defendendo o arquivamento, também o supra citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Maio de 2023, onde se escreveu que “[…] a questão não pode ser encarada como se de um vício da decisão se tratasse, designadamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a determinar o "reenvio" para a entidade que a proferiu. Trata-se de problemática que se coloca a montante desse tipo de vício, produzindo um efeito/consequência muito mais definitivo. […] permitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos da infracção que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica. E o certo é que os factos constantes da decisão administrativa (aqueles concretos factos) não constituem infracção contra-ordenacional, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação de uma coima - por manifesta ausência de caracterização das circunstâncias que permitem estabelecer um nexo de imputação dos factos objectivos a um qualquer agente. Entendemos, por isso, que "a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime (no presente caso, contra-ordenação), não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada", impondo-se por isso o arquivamento dos autos por falta de objecto (artº 64º nº 3 do RGCC).” Pelo que fica dito merece o recurso provimento. * 3. Apreciação do recurso:Primeira questão: da alegada existência na decisão recorrida, do vício da contradição insanável da fundamentação - artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal. Vejamos. Nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, b) do Código de processo penal, constitui fundamento para o recurso, a contradição insanável da fundamentação, “desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiencia comum”: como entendeu o Tribunal da Relação de Guimarães no Acórdão de 11/05/2015 (proferido no processo n.º 3805/12.6IDPRT.G1 consultado em www.dgsi.pt), verifica-se este vício, além do mais, quando “analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão” – cf. o mesmo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães[2]. Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas; proposições contraditórias são as tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e em qualidade. Para haver contradição insanável é necessário que haja oposição entre factos que mutuamente se excluem por impossibilidade lógica ou de outra ordem por versarem a mesma realidade - cf. com Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, p. 79). No caso dos autos, o recorrente alega que a “sentença recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação, que desde já se alega, para todos os efeitos legais, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, não se descortinando se a nulidade da decisão declarada advém da falta de factos, da falta de fundamentação ou de ambos”. Ora, lendo e relendo a decisão recorrida, não encontrámos nela qualquer contradição porque o Tribunal recorrido fundamentou a declaração de nulidade na ausência de discriminação de factos concretos que levassem à conclusão de que “há falta de adequação da licença de exploração à situação real da exploração, por não adaptação de exploração já licenciada às exigências do Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro, designadamente discriminando a situação real da exploração e quais as exigências legais que não estavam a ser cumpridas e, bem assim, os termos da licença existente e os termos da licença necessária, de modo a permitir concluir, como faz a autoridade administrativa, pela infracção ao disposto no n.º 2 do artigo 63.º, segundo o qual “os exploradores de pedreiras já licenciadas que não cumpram as exigências previstas no presente decreto-lei estão obrigados a adaptar as respectivas explorações às exigências nele estabelecidas”. Dizendo o mesmo, mas por outras palavras, o Tribunal recorrido acrescentou também que “a decisão dos autos é omissa no que respeita aos motivos de facto que levaram à aplicação da coima em questão”. Ora dizer que faltam factos concretos na decisão administrativa é o mesmo que dizer que nela se detecta uma “falta de fundamentação”, porque a entidade administrativa “não explicou em termos mínimos qual a razão que levou à aplicação de uma coima à arguida”: não há nisto qualquer contradição. Salvo o devido respeito, onde se verifica uma contradição é na segunda conclusão do recurso porque como é sabido, a fundamentação de uma sentença incluiu a enumeração dos factos provados e não provados e a «exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal» - artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Assim, dizer “falta de factos” ou “falta de fundamentação” é dizer o mesmo juridicamente, não se percebendo, por isso, a utilização da conjunção “ou” que aponta para coisas diferentes e alternativas. Improcede por isso o recurso neste segmento. Segunda questão: das consequências da declaração de nulidade da decisão administrativa. Os requisitos das decisões condenatórias proferidas no âmbito do processo contraordenacional, encontram-se expressamente previstos no artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-lei 433/82, de 27/10, onde se estabelece que: «1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) A identificação dos arguidos; b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) A coima e as sanções acessórias. 2 - Da decisão deve ainda constar a informação de que: a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º; b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho. 3 - A decisão conterá ainda: a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão; b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima». Face à clareza desta norma, expressamente prevista para o processo contraordenacional, não tem aqui aplicação o disposto no artigo 374.º do Código de Processo Penal, sob pena de completo esvaziamento do regime previsto expressamente naquele artigo 58.º do RGCO[3]. Neste sentido se pronunciou este Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão relatado pelo saudoso Senhor Desembargador Cruz Bucho, “não se podem importar para o regime jurídico contra-ordenacional as exigências do direito penal, nomeadamente as exigências de fundamentação das decisões, porque para isso temos a norma expressa do art.º 58º do RGCO». Acresce que como se pode ler no preâmbulo do RGCO, foi opção do legislador conferir ao direito de ordenação social, um estatuto e um enquadramento distintos e autónomos do direito penal, o qual é chamado apenas na integração de lacunas, sempre que o contrário não resulte do próprio diploma, como consta expressamente no seu artigo 41.º, nº 1. No caso não existe qualquer lacuna face ao que dispõe o artigo 58.º do RGCO. Da mesma forma, também não se nos afigura correcto aplicar às decisões condenatórias proferidas em processo contraordenacional, os requisitos previstos para o despacho de acusação no artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, como faz o Tribunal recorrido. A tal entendimento não obsta que a apresentação dos autos pelo Ministério Público ao Juiz (e não apenas a decisão administrativa), valha como acusação atento o disposto no artigo 62.º, n.º 1 do RGCO. O decisor administrativo quando condena um arguido numa coima, não está a proferir uma acusação em sentido próprio, não devendo obedecer a outros requisitos formais que não os previstos no acima citado artigo 58.º. No caso dos autos, é manifesta a inexistência de factos em relação aos quais se justificasse a aplicação de uma coima à arguida e que por sua vez permitisse a esta a exercer de forma efectiva, o seu direito de defesa, “quer ao nível dos factos, quer ao nível do direito”, como bem se salienta na decisão recorrida, direito esse que é por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma exigência fundamental do Estado de Direito material (cf. a anotação de Germano Marques da Silva in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363)[4]. Um efetivo exercício do direito de defesa pressupõe o conhecimento pelo arguido das razões pelas quais lhe é imputada a prática de determinada contraordenação e, consequentemente, determinada sanção, de modo que o mesmo, lendo a notificação, se possa aperceber, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, das razões dessa imputação e, assim, se possa defender e requerer a produção de prova. Na verdade, na decisão administrativa, no item II (Matéria de Facto) consta apenas o seguinte: “Aos 17 dias do mês de Abril de 2020, na sequência de notificação de audiência de interessados remetida pela Direcção-Geral da Energia e Geologia, ..., referente à pedreira denominada “...”, sita em ... – ..., ... e explorada pelo(a) arguido(a) acima identificada, foi verificada a seguinte irregularidade: “Não adaptação de exploração já licenciada às exigências do Decreto-Lei n.º 270/2001 de 6 de Outubro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 340/2008 de 12 de Outubro (falta de adequação da licença de exploração à situação real da exploração).” Com efeito, na sequência de notificação de audiência de interessados remetida pelos serviços da Direcção-Geral da Energia e Geologia, ..., através do Ofício ...51 de 11 de Dezembro de 2019, não foi dado cumprimento pela empresa, ao constante na notificação, por falta de apresentação dos elementos adicionais solicitados.” Desta redacção apenas resulta que a arguida explora a pedreira denominada “...”, sita em ... – ..., não estando descrita uma qualquer conduta que permitisse concluir pela prática em concreto de uma qualquer contraordenação, nomeadamente a que foi imputada à arguida. Esta constatação é tão evidente que mal se percebe porque razão na primeira instância, entendendo que efectivamente se verificava uma total ausência de factos na decisão administrativa, o Ministério Público, enquanto “Senhor do processo”, nas palavras de Paulo de Albuquerque (in Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, 2.ª edição) e assumindo “as funções persecutórias da competente autoridade administrativa”, ao invés de os apresentar ao Juiz, não tivesse arquivado os autos ou, no mínimo, não os tivesse devolvido à entidade administrativa, para completar ou corrigir a decisão, evitando, deste modo, a prática de actos inúteis e uma actividade processual desnecessária, quer na primeira, quer na segunda instância. Nesse sentido se pronunciou a Procuraria-Geral da República no Parecer n.º 5/2020 (Diário da República n.º 204, 2.ª série, de 20/10/2021), entendendo que o magistrado do Ministério Público não é um “mero núncio que se limita a proceder à entrega do processo no Tribunal”, sendo que quando se verificarem “vícios sanáveis na decisão impugnada ou no processo contraordenacional, que nem justificam o arquivamento do processo, nem a sua apresentação no tribunal, deve o Ministério Público antecipar-se à decisão judicial de devolução do processo à autoridade administrativa e proceder ele a essa remessa, de modo a que tais vícios sejam sanados, proferindo a autoridade administrativa nova decisão, sem que seja necessária uma intervenção judicial” (cf. com a 11.ª conclusão). De todo o modo, nesta fase processual, existindo nos autos uma total unanimidade quanto ao apontado vício da decisão administrativa, resta ponderar quais as consequências da declaração de nulidade, sendo certo que quando a decisão administrativa não contém os requisitos do artigo 58.º do RGCO, a mesma está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal porque, nesta parte, não se encontra prevista expressamente qualquer consequência jurídica para a preterição de algum deles, havendo por isso que recorrer à aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal (ex vi artigo 41.º do referido regime). Neste sentido se pronunciaram Simas Santos e Jorge de Sousa (in Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2007, 4.ª edição), considerando “não se vislumbrar que a necessária aplicação subsidiária das normas do processo criminal (cfr. artigo 41.º do RGCO) possa levar a outra solução senão a de considerar que a decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58.º do RGCO está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal”. A questão está, pois, em saber se a nulidade da decisão administrativa, deve ser sanada pela autoridade administrativa ou, se pelo contrário, deve ser determinado o arquivamento dos autos como decidiu o Tribunal recorrido, sendo certo que a jurisprudência não tem sido uniforme a este propósito. Na verdade, ao nível da jurisprudência do Tribunais superiores, há quem entenda que a nulidade assente da falta da descrição dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa como entende o recorrente. Nesse sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 06/11/2008 (processo n.º 08P2804, consultado em www.dsgi.pt) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/02/2013 (processo n.º 854/11.5TAPDL.L1-5, consultado em www.dgsi.pt): Ao nível da doutrina defende este entendimento, Pinto de Albuquerque (in Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, 2.ª edição), considerando que “o Tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício”. Por outro lado, há uma corrente jurisprudencial que entende que a referida nulidade determina a absolvição do arguido, como é o caso dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29/01/2007 (processo n.º 06P3202, consultado em www.dgsi.pt), do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31/10/2019 (processo n.º 344/19.8T9MFR.L1) e desta Relação de Guimarães de 19/05/2019 e de 29/05/2023 (processo n.º 485/22.4T9BRC.G2, consultado em www.dgsi.pt). O Tribunal recorrido ao ponderar as consequências da declaração de nulidade, concluiu que a solução era o arquivamento dos autos, afastando-se assim do regime do Código de Processo Penal, apoiando-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Maio de 2023 que “permitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos da infracção que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica (…), não podendo vir em momento processual subsequente “ser colmatada a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos da contra-ordenação”. O recorrente defende, pelo contrário, a devolução dos autos à entidade administrativa para prolação de nova decisão, alegando que “o arquivamento dos autos impede a prolação de uma decisão de mérito e é contrária à lógica do sistema, fundada na imposição de um menor exigência e rigor às entidades administrativas, por razões de simplicidade e celeridade, impondo perversamente o efeito preclusivo dos vícios eventualmente existentes”. Ora, pela nossa parte, no caso dos autos em que há uma completa falta dos factos imputados à arguida, circunstância que se estende, no fundo, a todo o processo, cremos que a decisão recorrida optou, acertadamente, pelo arquivamento uma vez que compulsados os autos se verifica que não existe em lado nenhum, qualquer descrição fáctica dos factos, nem sequer na notificação da arguida antes da decisão para efeitos do contraditório porque a mesma é também completamente omissa a esse propósito. Assim, não está em causa, apenas, uma mera deficiência da decisão administrativa quanto à definição fáctica que imputa à arguida, mas uma manifesta e absoluta ausência que não pode ser ultrapassada e que atravessa todo o processo. Como entendeu o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 10/05/2023 (processo n.º 3757/22.4T8VFR.P1, consultado em www.dgsi.pt), a propósito da mesma nulidade, “permitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos da infração que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica. E o certo é que os factos constantes da decisão administrativa (aqueles concretos factos) não constituem infração contraordenacional, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação de uma coima - por manifesta ausência de caracterização das circunstâncias que permitem estabelecer um nexo de imputação dos factos objetivos a um qualquer agente”. Neste sentido também se pronunciou o Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 23/04/2024 (processo n.º 1190/23.0T8OLH.E1, consultado em www.dgsi.pt). Não ignoramos o princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, em homenagem ao princípio da economia processual, do qual resulta que se se deve restringir, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade dos actos. No entanto, sendo o processo uma sequência de actos, a insuficiência factual encontra-se a montante da decisão administrativa porque, como dissemos, mesmo na notificação anterior para o exercício do contraditório não foram indicados quaisquer factos concretos que tivessem permitido à arguida exercer o seu direito legítimo de defesa. Não se diga que face ao que resulta dos autos, a lógica do sistema pudesse impor qualquer outro caminho, sendo certo que não se percebe de que modo poderia a entidade administrativa sanar a nulidade da decisão por si proferida, acrescentando factos que não se encontram sequer nos autos. Situação diferente ocorreria se a decisão administrativa não incluísse factos que, no entanto, constassem dos autos, o que não é, manifestamente, o caso. Em suma, entendemos que a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos da contraordenação, “não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada”, bem tendo decidido o Tribunal recorrido ao ordenar o arquivamento dos autos por falta de objeto. * C) Decisão:Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos. * Sem custas.* Notifique.* Carlos da Cunha Coutinho (relator);Guimarães, 19 de Novembro de 2024 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). * Florbela Sebastião e Silva (1.ª Adjunta); Anabela Varizo Martins (2.ª Adjunta). [1] O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, n.º 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193 [2] No mesmo sentido entendeu o Tribunal da Relação de Évora (no acórdão de 20/06/2006, consultado em www.dgsi.pt), considerando que existe contradição insanável da fundamentação, quando “na fundamentação os factos provados e não provados se contradigam entre si ou se excluam mutuamente” [3] Cf. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/12/2003 (processo n.º 3215/03, consultado em www.dgsi.pt): “não é aplicável à decisão administrativa o disposto nos arts.374º, n.ºs 2 e 3 e 379º, do Código de Processo Penal”. [4] No âmbito dos processos de natureza sancionatória o legislador constitucional resolveu consagrar como garantia dos cidadãos o direito de audiência e defesa. Com efeito, nos termos do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República “nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”. Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira “trata-se da simples irradiação para este domínio sancionatório de requisitos constitutivos do estado de direito” (in Constituição da República, Vol. I, Coimbra, 2007, pág. 526). |