Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4243/16.7T8VNF-A.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: SIMULAÇÃO
PRÉDIO HIPOTECADO
CONFISSÃO DE DÍVIDA
EXECUÇÃO
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (1):
- O interesse em agir, pressuposto processual inominado, consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua pretensão, respeita ao interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentado em juízo;
- Esse interesse processual avulta especialmente do lado do autor, mas não deixa de existir também por parte do demandado.
- Simplesmente sucede que, do lado deste, o interesse processual (no prosseguimento da acção) existe, em princípio, desde que a acção (proposta com ou sem o interesse) foi instaurada contra ele, o que basta para considerar presente na sua esfera jurídica esse pressuposto adjectivo.
- É o que sucede com o embargante de acção executiva contra ele deduzida que, para além de parte activa no incidente declarativo suscitado, é, simultaneamente, parte passiva na execução que com o mesmo pretende contestar.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – Relatório

Recorrente(s): M. C.;

- Recorrido/a(s): M. G. E M. P..
*
Os exequentes M. G. e M. P. deduziram execução para pagamento de quantia certa contra C. A., J. C. e M. C., tendo por base escritura pública de confissão de dívida com hipoteca, na qual o executado C. A. intervém como devedor e os executados J. C. e M. C. intervêm como proprietários de imóvel hipotecado em garantia do pagamento da dívida assumida por aquele primeiro executado.

A executada M. C. veio, por apenso, deduzir embargos de executado, requerendo a extinção/suspensão da execução.
Para o efeito, a embargante alega, de relevante e em síntese, a inexistência da dívida do co-executado C. A. para com os exequentes e a simulação da confissão de dívida dada à execução (na qual não participou ou teve conhecimento) e do prévio contrato de compra e venda do imóvel hipotecado (que também desconhecia), sustentando a embargante não ser proprietária do imóvel hipotecado em garantia daquele crédito inexistente.

Realizada a mesma, foi proferido novo despacho saneador que culminou com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos, vistos os princípios expostos e as indicadas normas jurídicas, em virtude da falta de interesse em agir da embargante, absolvo os exequentes da instância dos presentes embargos de executado.
Custas pela embargante.”
*
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os Embargantes o presente recurso de apelação, em cujas alegações formulam as seguintes
conclusões:

1. A douta sentença impugnada absolveu os Embargados da instância por considerar que a Recorrente não tem interesse em agir, atento o facto de invocar a simulação do negócio aquisitivo do prédio que garante, por hipoteca, a dívida exequenda e, portanto, de invocar que o mesmo prédio lhe não pertence,
2. simulação, acentue-se, em que ela, Recorrente, alega ter incorrido induzida em erro pelo seu falecido marido e sem consciência do vício,
3. e facto, outrossim, que os Embargados impugnam e controvertem.
4. Todavia, a simulação desse negócio não é a única causa de pedir nos embargos.
5. Antes dessa, a Embargante suscitou a questão essencial da simulação da própria confissão de dívida que constitui o título executivo.
6. Invocou, a tal respeito, que a dívida exequenda não existe e resulta de simulação entre os Exequentes e o Executado C. A., praticada em prejuízo dos credores destes.
7. A existência da dívida postula-se como a primeira questão a decidir no processo executivo, e tem natureza prejudicial, uma vez que, declarada a simulação da dívida exequenda, fica prejudicado o conhecimento da questão da propriedade do bem hipotecado.
8. Ou seja: o conhecimento desta, até pelas consequências que desta execução podem advir no plano da responsabilidade da Embargante perante os seus próprios credores, antecede o da questão da propriedade do prédio hipotecado e penhorado.
9. A Recorrente tem, por isso, interesse em agir, para demonstrar a simulação da dívida exequenda.
10. Ao absolver os Embargados da instância, a douta sentença ofendeu o disposto nos arts 286º, CC, e 2º, 1, 6º, 1, 8º, 576º, 2, e 577º, CPC, pelo que deve ser revogada.

Os Recorridos não apresentaram contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.).
As questões enunciadas pela recorrente podem ser sintetizadas da seguinte forma: da (in)existência do seu interesse em agir nos presentes embargos de executado.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)

São os que emergem do processo, nomeadamente do articulado inicial dos Exequentes e da Embargante, onde se deve encontrar o sustento factual para a discussão da questão pendente, incluindo os factos infra considerados pela primeira instância.
1. O exequente apresentou à execução a escritura pública intitulada “Confissão de dívida com hipoteca”, datada de 02.01.2013, a qual se mostra junta com o requerimento executivo e que aqui se dá por integralmente reproduzida, na qual o executado C. A. figura como primeiro outorgante, os exequentes figuram como segundo outorgantes e a embargante e outro figuram como terceiros outorgantes, constando da mesma, além do mais: “DECLAROU O PRIMEIRO OUTORGANTE:
Que se confessa devedor…
(…)
DECLARARAM OS TERCEIROS OUTORGANTES:
Que em caução e garantia do pagamento….constituem a favor dos credores hipoteca…”.

2. Direito

A decisão recorrida decidiu que a Embargante não tinha interesse em contradizer a presente execução, contra ela deduzida, dado que, em suma, esta, sic, “apenas formalmente tem legitimidade para o fazer, mas sem interesse material e objetivo concreto, face ao que a própria alega, o que não se confunde com o eventual interesse subjetivo da embargante em que os exequentes não sejam pagos do crédito que alegam deter sobre terceira pessoa.”
A Recorrente impugna essa decisão alegando que além da simulação do negócio aquisitivo do prédio hipotecado e apreendido nos autos, alegou ainda a simulação da confissão de dívida titulada pelo escrito que serve de base à presente execução e que, portanto, sempre tem interesse em agir.

Vejamos…
O interesse em agir, como é consensual, consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua pretensão (…) respeita ao interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentado em juízo. (2)
Nas palavras de Anselmo de Castro (3) e de Costa Andrade (4), consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial.
Precisando, diz este último autor que é o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado de bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe concede.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, Miguel Teixeira de Sousa (5) - O interesse processual não pode ser afirmado ou negado em abstracto: apenas comparando a situação em que a parte (activa ou passiva) se encontra antes da propositura da acção com aquela que existirá se a tutela for concedida, se pode saber se isso representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu. Se a situação relativa entre as partes não se alterar com a concessão dessa tutela judiciária, então falta o interesse processual.
Estamos perante indiscutível pressuposto que pode consubstanciar excepção processual inominada (cf. art. 577º, do C.P.C.) e que assenta na preocupação de evitar acções inúteis (6), o que, envolvendo o interesse público da racionalização dos recursos jurisdicionais, importa o seu conhecimento oficioso.

Este entendimento aparenta ser sufragado pelo Tribunal a quo, que não questiona a possibilidade de a embargante usar os argumentos aduzidos em demanda judicial autónoma mas apenas de, com os mesmos, nomeadamente alegando que não é dona do bem hipotecado nos autos que é garante da dívida executada, exercer o direito processual de contestar a execução contra ela deduzida.
Citando, para esse efeito o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.11.2013 (7), e a doutrina de Rui Pinto, in Manual da Execução e Despejo (8), a decisão recorrida defende, em suma, que esse conceito ou pressuposto também é aplicável ao embargante na medida que estes embargos configuram uma acção declarativa incidental.
Contudo, concordando com esta última afirmação, divergimos do direito que dela se extraiu e que tem em conta apenas uma das facetas desta instância.
Com efeito, se revisitarmos a doutrina que remonta a Castro Mendes e Manual de Andrade, acima citados, já lá encontramos a referência à possibilidade de esse pressuposto processual se reportar ao demandado. Porém, esses autores são unânimes em considerar que esse interesse existe desde logo, quer quanto à obtenção de uma declaração judicial de conteúdo oposto ao solicitado pelo demandante (em geral uma declaração negatória do direito que este se arroga), quer quanto aos pedidos reconvencionais legalmente autorizados (art. 274º) e que se podem considerar ainda, em certa medida, meios de defesa.(9)
Abordando essa possibilidade Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (10), escreveram que o interesse processual avulta especialmente do lado do autor, mas não deixa de existir também por parte do demandado. Simplesmente sucede que, do lado deste, o interesse processual (no prosseguimento da acção) existe, em princípio, desde que a acção (proposta com ou sem o interesse) foi instaurada contra ele. Neste sentido se compreende o disposto no art. 296º [actual art. 286º, nº 1, do C.P.C.], segundo qual a desistência da instância depende da aceitação do réu, desde que requerida após o oferecimento da contestação (nº 1), e a desistência do pedido não prejudica, em princípio, o prosseguimento da reconvenção (nº 2).
Numa perspectiva diversa, mais radical, mas que, na prática, confere essa leitura, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado pela decisão recorrida defende, contra essa doutrina, que esse pressuposto apenas tem sentido na parte activa da lide (considerando-se como tal também o réu reconvinte), uma vez que na parte passiva se confunde com a legitimidade enquanto interesse em contradizer – artigo 26.º, n.º 1.
Sem discutirmos aqui a bondade de uma e outra solução, que conduziriam ao mesmo efeito prático, temos de ter presente, neste caso, que embora os embargos em causa configurem uma acção declarativa enxertada na execução que lhe dá causa, certo é que a sua função primordial é a de consubstanciar a contestação ou oposição ao pedido executivo, ou seja, de conceder à parte passiva da lide executiva o meio judicial, análogo ao da contestação, para contradizer a demanda executiva com os fundamentos previstos nos arts. 729º e 730º, do Código de Processo Civil, sem outra limitação, como aquela que decorre da solução adoptada pela decisão recorrida.
Mais, atente-se que esse meio processual tem actualmente efeitos que vão para além da simples conformação intra-processual do direito em causa ou da apontada negação do direito arrogado pelo exequente/embargado (11), já que o art. 732º, nº 5, do Código de Processo Civil, admite que a respectiva decisão de mérito constitua, nos termos gerais, caso julgado material quando à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda.
Acresce que, de acordo com o disposto no art. 848º, nº 2, do Código de Processo Civil, e à semelhança do que sucede no processo declarativo comum, com o citado art. 286º, nº 1, a desistência da instância executiva depende sempre da aceitação do executado que tenha deduzido embargos, o que significa, ab initio, o interesse do embargante/contestante em agir na lide a partir do momento em que contra o mesmo é deduzida uma pretensão com a qual não se pretende conformar, como é o caso.
Com efeito, a embargante veste nos presentes autos incidentais também o papel de demandada o que lhe confere, desde logo, a possibilidade de exercer o direito processual/judicial de contradizer e, nessa medida, o respectivo interesse em agir, neste caso em sua defesa.
Em concreto, note-se que a situação do demandado ou do executado é distinta da do demandante na medida em que se vê confrontado involuntariamente com uma lide judicial em que a sua revelia ou passividade pode ter várias consequências quanto à definição do direito mas não só, dado que essa intervenção tem efeitos a nível fiscal, de eventual responsabilidade em custas de parte, de indirectos efeitos na sua situação financeira e no seu bom nome, já para não falar na eventual responsabilidade criminal que pode pairar sobre quem, como é o caso, está envolvida, conscientemente ou não, em comportamentos ilícitos como são os que envolvem a alegada falsificação de documentos autênticos.
Neste contexto, tendo presente que estamos perante pressuposto processual que é de conhecimento oficioso (cf. arts. 576º a 578º, do C.P.C.), o que importa liberdade de indagação e argumentação no julgamento, concluímos que assiste razão à embargante na sua apelação, com prejuízo para o conhecimento de outras questões suscitadas (cf. art. 608º, nº 2, do C.P.C.).

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, declarando que a Recorrente tem interesse em agir na presente instância de embargos e determinando que os autos prossigam o seu curso normal.

Custas da apelação pelos Recorridos, no respeitante a custas partes (cf. arts. 527º e 533º do Código de Processo Civil, e 26º, do R.C.P.). N.
*
Guimarães,

Relator – Des. José Flores
1º - Des. Sandra Melo
2º - Des. Conceição Sampaio


1. Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.
2. Cf. Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, 3ª Ed., p. 98
3. In Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, 1982, p. 251
4. In Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 79
5. Apud Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14.5.2013, in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/be0a342d7d40e44380257b7f0038a829?OpenDocument
6. Cf. Paulo Pimenta, ob. cit., p. 99
7. In http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/7aa9f0e2cea6519780257c51003319f6?OpenDocument
8. Que não conseguimos perceber se aborda este tema em concreto…
9. Cf. Castro Mendes, ob. cit., p. 251. Vide também Manuel de Andrade, ob. cit., p. 80
10. In Manual de Processo Civil, 2ª Ed., p. 180.
11. Conforme conclui o citado Ac. Tribunal da Relação de Lisboa: “extrai-se dos princípios constitucionais e do desenho da acção enquanto adjectivação do direito (artigo 2.º, n.º 2 do CPC) que o interesse em agir é pressuposto processual e que a sua verificação se basta com a necessidade razoável do recurso à acção judicial a que alude o Professor Antunes Varela.”