Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3796/23.8T8GMR.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA DO ARRENDATÁRIO
ARRENDAMENTO COMERCIAL
PRÉDIO NÃO CONSTITUIDO EM PROPRIEDADE HORIZONTAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Ao abrigo do disposto pelo art. 1091º do Cód. Civil, na redacção da Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, ao arrendatário comercial de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não assiste direito de preferência na venda do prédio, que apenas é reconhecido ao arrendatário de fracção autónoma ou da totalidade do prédio.
II. A construção normativa que melhor acolhe o direito do preferente é aquela que configura a notificação do obrigado à preferência, como uma verdadeira proposta contratual que, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, uma vez aceite se torna vinculativa.
III. A tutela da eventual confiança frustrada da autora não se obtém pelo reconhecimento indevido de um direito de preferência que não obtém acolhimento legal.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório (feito com base no relatório da decisão apelada).

Veio EMP01... LDA., com a presente acção declarativa comum proposta contra AA e mulher, BB, e CC e mulher, DD, pedir:
- se profira sentença que substitua a declaração negocial dos réus, dando-se cumprimento ao contrato de compra e venda e, por essa via, transmitindo-se para a autora, pela quantia de 287.500,00 € (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros), a propriedade do prédio urbano, sito na Praça ..., na freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...48 e descrito Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31, da freguesia ...;
- se fixe prazo para, nos termos e para os efeitos do art.º 830.º, n.º 5, do Cód. Civil, a autora consignar em depósito o preço da compra e venda no valor de 287.500,00 € (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros).
Alegou para o efeito que, tendo assumido por trespasse de estabelecimento comercial, a posição contratual de arrendatária do rés-do-chão do prédio sito na Praça ..., em ..., afecto à atividade de comércio de malas, carteiras, roupas e similares, recebeu nos pretéritos dias 19.05.2023 e 01.06.2023, comunicação remetida pelos réus com vista ao exercício do direito de preferência na venda do mencionado prédio, composto de r/c e 1º andar. Tendo manifestado, tempestiva e formalmente, a sua intenção de preferir no aludido negócio de compra e venda, veio a autora a ser surpreendida por nova comunicação remetida pelos réus com data de 21.06.2023, na qual informaram que as precedentes comunicações se deveram a lapso porque, não estando o prédio de que a autora é arrendatária de parte, sujeito ao regime de propriedade horizontal, não lhe assiste direito de preferência na venda da totalidade do prédio.
Considera a autora que, considerada aceitação expressa da comunicação que recebeu para o exercício da preferência, o negócio está concluído, não admitindo recuos fundamentados em lapsos.

Contestaram os Réus, mantendo que:
- a autora é arrendatária de parte do r/c do prédio em apreço, não constituído em propriedade horizontal, estando outra parte do r/c do mesmo prédio arrendada a outra pessoa para fins comerciais, pelo que não goza de direito de preferência, legal ou convencional, na respectiva venda;
- os réus enviaram as primeiras cartas à autora antes de consultarem apoio jurídico, na errada convicção de que esta beneficiava de direito de preferência. Depois de esta manifestar vontade de preferir no negócio, os réus tomaram conhecimento que não assiste à autora o direito de preferência;
- não existe qualquer contrato susceptível de execução específica, regime privativo do instituto do contrato-promessa, nem os réus tiveram consciência de emitir uma declaração negocial;
- o direito de preferência só se radica na esfera jurídica do seu titular (preferente) quando se concretiza a alienação da coisa que constitui o objecto, e não antes, nomeadamente na fase preambular em que se oferece a preferência e a mesma é, ou não, aceite;
- a tutela da eventual confiança frustrada da autora – a quem foi comunicado o projecto de venda do imóvel arrendado e as cláusulas de contrato projectado, para querendo manifestar a vontade de preferir na aquisição - não se obtém pelo reconhecimento indevido de um direito de preferência que não tem acolhimento legal;
- os réus AA e CC, são casados sob o regime de comunhão de adquiridos, respectivamente com EE e DD que não deram a autorização conjugal prevista no art.º 1682-A n.º 1 a) do Código Civil.
A autora exerceu o contraditório relativamente à matéria de excepção alegada na contestação, invocando que os cônjuges dos réus AA e CC tinham conhecimento da preferência oferecida à autora e, para além do mais, a invocação da sua falta de intervenção na notificação para a preferência, bem como da sua falta de consentimento, configura abuso de direito.
A conduta dos réus criou na autora séria e legítima convicção de que os réus aceitavam vender-lhe a loja de que é arrendatária, conjuntamente com o remanescente do prédio, pelo preço global de 287.500,00€.

Nessa sequência, entendendo que os autos dispunham dos elementos necessários, foi proferido saneador-sentença, com o seguinte dispositivo:
III - DECISÃO:
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Pelo exposto, julga-se:
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Improcedente a presente acção, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados pela Autora.

Custas pela Autora (art.º 527º, do CPC).
Registe e notifique.”.
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Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
CONCLUSÕES

I. Decidiu o Tribunal a quo julgar improcedente a ação intentada pela Recorrente, a fim de ser declarada a execução específica do contrato, e aí proferida sentença que substituiria a declaração negocial dos Recorridos, com vista a dar-lhe, assim, cumprimento, e por essa via, transmitindo-se para a Recorrente, pela quantia de 287.500,00€ (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros), o prédio sito na Praça ..., na freguesia e concelho ..., em propriedade total com andares, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...48 e descrito Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31, da freguesia ....
II. Considerou o Tribunal da primeira instância que não assiste à Recorrente qualquer direito de preferência sobre a totalidade desse prédio, em virtude da sua condição de arrendatária/inquilina somente de parte do imóvel.
III. Desconsidera, assim, esse mesmo Tribunal, o circunstancialismo factual subjacente, assente nos autos, dado como provado, iniciado com uma notificação formal a uma arrendatária, aqui Recorrente, de uma parte de um imóvel, não constituído em regime de propriedade horizontal, para preferir na aquisição total desse mesmo prédio, a que esta veio a responder positivamente, cumprindo a mesma formalidade, aceitando, assim, os termos propostos, nas mesmas condições do terceiro comprador adquirente, mas que após a conclusão desse negócio, os senhorios, proprietários do bem, aqui Recorridos, vêm comunicar-lhe que, afinal, essa aquisição não seria realizada, por não lhe assistir o direito de preferência na venda total do prédio.
IV. Se é certo que antes da resolução dos Recorridos, ao formalmente notificarem a Recorrente, na qualidade de arrendatária/inquilina de uma parte de um imóvel, os aludidos senhorios não tinham de lhe permitir a possibilidade de exercer preferência sobre a totalidade do prédio, também é certo que, sendo a Recorrente arrendatária de uma parte de um imóvel, os Recorridos efetivamente permitiram-lhe a possibilidade de preferir sobre a totalidade do prédio, vinculando-se ao cumprimento do negócio projetado, caso esta viesse a aceitar as condições do mesmo.
V. O Tribunal recorrido, apesar dessa prévia decisão dos proprietários em consentir à arrendatária preferir pela venda total do prédio, e cuja opção veio a ser exercida, sujeitando-se, destarte, a Recorrente, a esse ónus/sacrifício de preferir, não só relativamente ao concreto local por si arrendado, sobre todo o prédio, e que conduziu, quer se queira ou não, à conclusão desse negócio global, de uma venda de um prédio constituído por vários andares, vem sentenciar que a lei não lhe concede qualquer direito de preferir na venda de todo o prédio, em virtude da sua condição de arrendatária de uma quota parte do imóvel.
VI. Ou seja, este Tribunal, numa inaceitável ingerência num negócio concluído entre as partes, e numa inconcebível desvalorização do princípio da segurança jurídica, pretende, pura e simplesmente, dá-lo sem efeito, desfazendo-o, porque julga que tal pacto, que veio a ser, em termos efetivos, concretizado, não tinha de se ter realizado.
VII. A decisão final do Tribunal recorrido é, de tal forma, injusta, que leva a que um arrendatário de uma parte de um imóvel, não sujeito a propriedade horizontal, não tenha o direito de preferir sobre o todo, mas, como se isto não bastasse, também não tenha o direito de preferir sobre a sua quota parte, quando o proprietário pretende alienar a coisa em conjunto; ou seja, a ilação a retirar é que não tem direito a nada – estamos diante um perturbador esvaziamento das garantias legais que as várias sucessões legislativas pretenderam salvaguardar a um arrendatário/inquilino.
VIII. As questões nevrálgicas a decidir nesta sede recursiva, prendem-se, então, em saber, se à arrendatária de parte de prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, assiste o direito de preferência no negócio de compra e venda da totalidade do mesmo prédio, bem como se, perante a aceitação, da arrendatária, da notificação que lhe foi dirigida para o exercício do direito de preferência, os senhorios ficaram obrigados a dar-lhe preferência no negócio de venda daquele imóvel.
IX. Considera o Tribunal a quo que o regime jurídico do direito de preferência do arrendatário urbano introduzido no art. 1091.º do CC, pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro, faz coincidir e limitou tal direito ao “local arrendado”.
X. Neste sentido, o tribunal recorrido defende que esta interpretação tem o conforto do Acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 583/2016 que entendeu não julgar inconstitucional a norma extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do CC, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio.
XI. Se é certo que objeto da preferência é o “local arrendado”, também é certo que conceito fático de local não coincide, desde logo, com o conceito jurídico de prédio ou de fração autónoma.
XII. É que, o art. 1064.º do CC, que continua a vigorar, à presente data, prevê, exatamente, que o regime deste contrato se aplica ao arrendamento, total ou parcial, de prédios urbanos e, ainda, a outras situações.
XIII. Esta indefinição do que seja local arrendado deu, pois, origem, a uma acesa discussão a que a Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, visou, por conseguinte, pôr cobro, volvidos precisamente dois anos da prolação desse mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional.
XIV. De salientar, pois totalmente desconsiderado pelo Tribunal recorrido, que o sentido querido neste último diploma legal, foi o de reforçar a garantia do exercício do direito de preferência pelos arrendatários.
XV. O objetivo principal foi, então, proteger o arrendatário de unidade física individualizada, mas não constituída em propriedade horizontal, contra inconvenientes resultantes da alienação da totalidade do prédio, fazendo desse modo incidir o direito de preferência sobre o objeto que não coincide com os limites físicos do local arrendado.
XVI. Mas caso o arrendatário aceite esse sacrifício de preferir sobre o todo, em condições de igualdade com qualquer terceiro, apesar do direito de preferência que vem a exercer não corresponder aos limites físicos do local arrendado, rigorosamente nada na lei impede que não o possa fazer.
XVII. A Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, introduziu, assim, no art. 1091.º do CC, os n.ºs 8 e 9, que respeitam à extensão do objeto de preferência, a prédios não constituídos em propriedade horizontal.
XVIII. Era, de facto, discutido na doutrina e na jurisprudência - e já era debatido no domínio do RAU - se o titular do arrendamento de um fogo de um edifício, não constituído em propriedade horizontal, tinha direito de preferência na alienação da totalidade do edifício.
XIX. Não sendo o fogo uma fração autónoma, não pode ser objeto de alienação separadamente do restante imóvel, pelo que o direito de preferência, a existir, teria de abranger todo o prédio.
XX. A posição então dominante era a de que a ratio do direito de preferência na aquisição do locado é a da proteção da relação duradoura do inquilino com a coisa, bem como a preferência da lei pela desoneração da propriedade, e essa ratio leva a proteger de igual modo inquilino que goza uma fração autónoma e que goza um fogo não autonomizado juridicamente.
XXI. Não representando a obrigação de dar a preferência, para o senhorio, qualquer prejuízo, pois o preferente o faz tanto por tanto, continuamos a não ver motivo para não tutelar o inquilino por virtude de uma circunstância (a não constituição da propriedade horizontal) a que ele é alheio.
XXII. E a verdade é que esta tese dominante subsiste atualmente, em face das alterações introduzidas pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, por regressarmos ao anterior panorama jurídico, na medida em que o último Acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 229/2020 (cfr. in Diário da República n.º 183/2020, Série I de 2020-09-18), veio entretanto, a declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do n.º 8 do art. 1091.º do CC.
XXIII. Neste Acórdão do Tribunal Constitucional, contrariamente às precipitadas conclusões tomadas pelo Tribunal recorrido, o que se visou com a declaração de inconstitucionalidade do n.º 8 do mencionado preceito legal, é que a opção pela aquisição da quota parte do prédio, correspondente ao locado, não salvaguardava o equilíbrio de interesses entre proprietário e arrendatário, entre sujeito passivo e sujeito ativo da relação de preferência.
XXIV. O interesse do proprietário é alienar o prédio em igualdade de condições ajustadas com o terceiro; o interesse do arrendatário é adquirir a propriedade do local arrendado com prioridade sobre o terceiro. Só que, nos termos em que a preferência foi estabelecida naquele artigo, o interesse do preferente não podia ser prosseguido sem detrimento do interesse do proprietário, já que a prioridade do preferente não é exercida em rigorosa paridade com as condições negociadas com terceiro, e por isso mesmo o sacrifício que é imposto ao proprietário, vai muito além da limitação da liberdade de escolha do contraente.
XXV. Voltando ao caso em discussão nestes autos, os Recorridos ao notificaram a Recorrente, sua arrendatária/inquilina de uma quota parte de um imóvel, que pretendiam proceder à venda da totalidade do prédio, nas exatas condições negociadas com um terceiro comprador, nunca viram os seus interesses preteridos e/ou sacrificados, na medida em que a propriedade privada dos senhorios, em particular o direito à livre transmissibilidade do prédio, não sofreu qualquer tipo de limitação, pela Recorrente só arrendar parte do imóvel.
XXVI. Acresce que, continua a vigorar nesse art. 1091.º do CC, o n.º 9; também aqui mal andou o Tribunal da primeira instância, ao considerar que os arrendatários das partes do prédio não sujeito a propriedade horizontal só gozam, ao abrigo da lei atualmente vigente, do direito de preferência, se o exercerem em conjunto, sobre a totalidade do prédio, o que não sucede no caso vertente, já que a Recorrente surge sozinha, na qualidade de arrendatária de parte, a exercer preferência sobre o todo. Vejamos, pois: esse n.º 9 dispõe que “caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.”
XXVII. Deste modo, a partir do momento que o legislador salvaguarda, expressamente, a hipótese de haver arrendatários que assim não o pretendam fazer, que solução dar às situações em que só um deles o decide fazer.
XXVIII. Então, se podem ir todos os arrendatários, que assim o pretendam, adquirir a totalidade do imóvel, o que significa que, em bom rigor, sempre existe um direito legal de preferência, porque razão é que o único que pode, afinal, o pretender fazer, caso os outros não estejam interessados, não pode exercer os seus direitos, adquirindo a totalidade das demais quotas partes, do imóvel em compropriedade, não sujeito ao regime da propriedade horizontal.
XXIX. Em lado nenhum da lei se exige que os proprietários o façam em conjunto; o que o legislador estabeleceu é que se permita aos arrendatários a possibilidade de o fazer em conjunto, mas somente e sempre aqueles que o pretendam fazer.
XXX. A partir do momento em que os Recorridos impõem à Recorrente o exercício de um direito de preferência, relativamente à totalidade de um imóvel, quando, abstratamente, não teria esse mesmo direito, é profusamente irrelevante se esse direito a preferir, pelo todo, pré-existia ou não, pois é a conduta dos Recorridos que acaba por validar a existência desse direito a preferir.
XXXI. Os Recorridos impuseram à Recorrente que a venda da coisa fosse feita conjuntamente com outras, nos termos do disposto no artigo 417º do CC, obrigando que a preferência abrangesse a totalidade do prédio, o que esta expressamente aceitou, declarando exercer o direito de preferência nos termos e condições indicados pelos Recorridos.
XXXII. A preferência foi exercida, pelo que o negócio está perfeitamente concluído, não admitindo recuos, alegadamente fundamentados em convenientes lapsos; se assim não fosse, cairíamos num caos absurdo, de total incerteza jurídica, onde os negócios seriam desfeitos por supostos enganos, em particular, quando os Recorridos remeteram duas comunicações para esses mesmos fins de exercício de preferência pela Recorrente, relativamente a todo o prédio, pela quantia de 287.500,00€ (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros).
XXXIII. É incontornável que a declaração do preferente de que pretende exercer o seu direito resulta para o obrigado à preferência a obrigação de celebração do contrato.
XXXIV. É que, “a comunicação extrajudicial prevista no art. 416.º, n.º 1, do Código Civil, contendo os elementos necessários à decisão de preferente, consubstancia uma verdadeira proposta contratual, sendo que a comunicação de preferir pelo titular da preferência traduz numa aceitação da mesma proposta, implicando a celebração de um contrato definitivo (v.g. compra e venda), desde que estejam preenchidos os seus requisitos de forma.” – cfr. Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 22.04.2021, processo n.º 45/20.4T8VRL.G1, in www.dgsi.pt.
XXXV. Acresce que, a Recorrente confiou nos Recorridos, acreditando que estes pretendiam vender o prédio pelo preço e condições indicados, e acreditando que estes lhe reconheciam, e concediam, o direito de preferência na aquisição,
XXXVI. Motivo pelo qual a Recorrente solicitou aos Recorridos elementos adicionais para que pudesse exercer, efetivamente e de forma consciente, o direito de preferência que lhe foi reconhecido.
XXXVII. Os Recorridos responderam à solicitação da Recorrente, de forma séria e completa, reforçando assim a segurança e convicção da mesma, de que aqueles lhe reconheciam o direito de preferência e aceitavam vender-lhe o prédio nos termos e condições constantes das comunicações para preferência.
XXXVIII. É por demais evidente que a conduta dos Recorridos criou na Recorrente a séria e legítima convicção de que estes aceitavam vender-lhe a loja de que é arrendatária, conjuntamente com o remanescente do prédio, pelo preço global de 287.500,00€ (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros).
XXXIX. Verifica-se que a Recorrente confiou legitimamente nos Recorridos, porquanto, através de comunicações, por escrito, remetidas através de correios registados, foi-lhe comunicado que aqueles pretendiam vender o prédio, em propriedade total, com andares, e que esta podia exercer direito de preferência na referida compra; é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelos senhorios, na exata medida em que trai a confiança gerada na arrendatária, pelo seu comportamento anterior, confiança essa objetivamente reforçada pelo envio de duas comunicações distintas, e agravada pelo facto de só posteriormente a ter sido exercido esse direito de preferência, alegarem um conveniente lapso, pois, afinal, tratando-se da venda global do prédio, a Recorrente, enquanto arrendatária de um estabelecimento sito no rés-dechão, não podia preferir.
XL. O direito deve ser exercido sem frustrar as expectativas criadas pelo seu titular, salientando-se que, se por alguma razão o titular do direito tiver agido ativa ou passivamente, de modo a criar em outrem uma confiança legítima relativa ao exercício do direito, não poderá frustrar essa confiança que tenha criado ou contribuído para criar, cuja frustração de expectativas corresponde ao tipo doutrinário de má fé, tradicionalmente designado de “venire contra factum proprium”.
XLI. Atuaram, assim sendo, os Recorridos, em manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 334.º do CC, expressamente aqui se invoca, com as legais e inerentes consequências.
XLII. De igual modo, ao contrário do que foi julgado pelo Tribunal recorrido, que a Recorrente não pode preferir nessa venda, decorre precisamente do art. 417.º, n.º 1, do CC, que o obrigado à preferência tem direito a vender a coisa sobre que incide um direito de preferência conjuntamente com outras e por um preço global; neste caso o titular/preferente não interessado na opção pela aquisição do conjunto a vender pode exercer o seu direito pelo preço que proporcionalmente for atribuído; o obrigado à preferência só pode opor-se a esta pretensão de “divisão proporcional do preço”, exigindo que a preferência incida sobre as coisas restantes “se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável.”
XLIII. No caso em apreço está exatamente em causa o regime do art. 417.º do citado diploma legal, uma vez que os obrigados à preferência pretenderam impor a venda do prédio em propriedade total, com andares, e por um preço global de 287.500,00€ (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros).
Termos Em Que,
Deve o presente recurso ser julgado provado e totalmente procedente, revogando-se a sentença ínsita na notificação de ref.ª ...07, datada de 06.03.2024, e substituída por outra que, consequentemente, declare a execução específica do contrato, proferindo-se sentença que substitua a declaração negocial dos Recorridos, dando-se assim cumprimento ao contrato, e por essa via, transmitindo-se para a recorrente, pela quantia de 287.500,00€ (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros), o prédio sito na Praça ..., na freguesia e concelho ..., em propriedade total com andares, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...48 e descrito Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31, da freguesia ..., o qual está disponível para consulta através do código de acesso à certidão permanente predial com o n.º ...05.”.
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Os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto e requereram a ampliação do objecto do recurso, não apresentando conclusões.
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Respondeu a autora, pugnando pela rejeição liminar da ampliação do objeto de recurso, por omissão de conclusões e, sem prescindir, pela improcedência da mesma.
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O recurso foi admitido, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Já nesta Relação foi determinada a notificação dos apelados para, querendo, se pronunciarem sobre a requerida rejeição liminar da ampliação do objecto do recurso, nada tendo os mesmos dito.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam a este Tribunal, são as seguintes:

1. como questão prévia, a admissibilidade da requerida ampliação do objecto do recurso;
2. saber se à autora, na qualidade de arrendatária comercial de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, assiste direito de preferência no negócio de compra e venda da totalidade do mesmo prédio;
3. saber se perante a aceitação, pela autora, de notificação que lhe foi dirigida para o exercício do direito de preferência na referida qualidade de arrendatária, os réus ficaram obrigados a dar-lhe preferência no negócio de venda daquele imóvel;
4. em caso de resposta positiva às questões anteriores, conhecer da ampliação do objecto do recurso.
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III. Fundamentação de facto.

Na decisão apelada, foram dados como provados os seguintes factos:
“1. Pela Ap. ... de 2000.12.19 foi inscrita a favor de AA, casado com BB no regime de comunhão de adquiridos, CC, casado com DD no regime de comunhão de adquiridos, e FF, casada com GG no regime de comunhão de adquiridos a aquisição, por compra judicial, do prédio urbano composto de casa de habitação torre e térrea, sita na Praça ..., na freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...48 e descrito Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31, da freguesia ... (cfr. certidão permanente do registo predial com a chave n.º ...05, reproduzida no documento 2 da p.i.).
2. A 30.08.2015, os Réus procederam junto da Autoridade Tributária à declaração reproduzida no documento 4 da p.i., da existência de um contrato de arrendamento entre estes e a Autora, com início em 01.08.2000, procedendo à liquidação do respetivo imposto de selo (cfr. artigo 7º da p.i.).
3. AA, CC e FF enviaram à Autora a carta registada com aviso de recepção datada de 19 de Maio de 2023, reproduzida no documento 23 da p.i., que esta recebeu a 22.05.2023, contendo, entre outro, o seguinte teor:
Assunto “exercício de direito de preferência” (…)
“(...) serve a presente para dar conhecimento a V/Exa, que pretendemos vender, o Prédio, sito na Praça ..., na freguesia e concelho ..., em Propriedade Total com Andares, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31... escritura de compra e venda realizar-se-á em (data e local a marcar) e foi acordado para a venda do supra referido imóvel pela quantia de 287.500,00 € (DUZENTOS E OITENTA E SETE MIL E QUINHENTOS EUROS).
Assim pode V/Exa de acordo com o previsto e proposto no artigo 1091º do Código Civil, exercer Direito de Preferência na referida compra. O referido direito tem que ser exercido no prazo de 8 dias sob pena de caducidade do mesmo.
Como tal solicitamos a V/Ex.ª se digne responder o mais brevemente possível. (…)”
(artigo 9º da p.i.).
4. A Autora enviou a AA, CC e FF, para o endereço Rua ..., ... ..., a carta registada com aviso de recepção datada de 26 de Maio de 2023, reproduzida no documento 25 da p.i., que estes receberam a 30.05.2023, contendo, entre outro, o seguinte teor:
“Na sequência da v/ comunicação em epígrafe melhor referenciada, cumpre à ora signatária, aqui legalmente representada pelo seu sócio gerente, com poderes para o ato, informar V. Exas., em síntese e no essencial, do seguinte:
i) Nos termos das disposições conjugadas do art. 1091.º, n.º 1, al. a), e n.º 4, e do art. 416.º, n.º 1, ambos do Código Civil, “querendo vender a coisa que é objeto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato”;
ii) Porém, na v/ comunicação não são indicados os elementos essenciais do contrato projetado e tudo o mais que integra o respetivo conteúdo, ou seja, aqueles elementos suscetíveis de determinar a formação da vontade do titular do direito de preferência no sentido de decidir se irá ou não exercer tal direito, especificadamente: 1) o nome do terceiro comprador; 2) as condições de pagamento; 3) se haverá contrato de promessa prévio; 4) dentro de que prazo e qual o valor do sinal; 5) o local e a data da realização do contrato projetado;
iii) Nessa conformidade, solicita-se a V. Exas. que nos informem dos supra referidos elementos, por forma à signatária poder ponderar o eventual exercício do direito de preferência.
Com os n/ melhores cumprimentos,
Atentamente,
O Representante Legal
(HH)”
(artigo 10º da p.i.).
5. AA, CC e FF enviaram à Autora, para o endereço Rua ..., ... ..., a carta registada com aviso de recepção datada de 31 de Maio de 2023, reproduzida no documento 28 da p.i., que esta recebeu a 01.06.2023, contendo, entre outro, o seguinte teor:
“(...) Após boa receção da vossa comunicação, vimos por este meio identificar as condições de negócio:
- Comprador: EMP02... LDA – NIPC ...50; - Contrato promessa de compra e venda no valor de 10% no imediato, após a não aceitação do direito de preferência;
- Escritura em 60 dias úteis;
- Notário a designar pelo comprador, em ....
Assim, solicitamos a V. Ex.ª se digne a responder o mais brevemente possível do exercício ou não do direito de preferência. (…)”
(artigo 11º da p.i.).
6. A Autora enviou a AA, CC e FF, para o endereço Rua ..., ... ..., a carta registada com aviso de recepção datada de 5 de Junho de 2023, reproduzida no documento 30 da p.i., que estes receberam a 06.06.2023, contendo, entre outro, o seguinte teor:
“(...) Na sequência da v/ comunicação em epígrafe melhor referenciada sob ref.ª ...1, cumpre à ora signatária, aqui legalmente representada pelo seu sócio gerente, com poderes para o ato, manifestar aos Exmos. Srs. que pretende exercer o seu direito de preferência, considerando a informação prestada por V. Exas. de que sendo o prédio, objeto da venda, composto por R/C e 1.º Andar, o 1.º andar encontra-se totalmente desimpedido e/ou desocupado, livre de pessoas e bens, sem quaisquer ónus e/ou encargos, seja a que título e/ou natureza fôr, incidindo somente no R/C, para além da relação arrendatícia da aqui signatária, mais um contrato de arrendamento para fins não habitacionais/comerciais.
Nessa conformidade factual, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.º, n.º 2 e no art. 1091.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, ambos do Código Civil, exercemos o direito de preferência que legalmente nos assiste, relativamente à compra do prédio sito na Praça ..., na freguesia e concelho ..., em propriedade total com andares, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31, pela quantia de 287.500,00€ (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros).
Com os n/ melhores cumprimentos,
Atentamente, O Representante Legal, HH.”
(artigo 12º da p.i.).
7. AA, CC e FF enviaram à Autora a carta registada com aviso de recepção, datada de 21 de Junho de 2023, reproduzida no documento 33 da p.i., que esta recebeu a 23.06.2023, contendo, entre outro, o seguinte teor:
“(...) Acusamos a receção da vossa comunicação.
Pela presente informamos que, o negócio que projectavamos efetuar já não será celebrado, ou se vier a ser no futuro será sempre em moldes diferentes ao que lhes comunicamos.
Sem prejuízo, e tendo os signatários recorrido a apoio jurídico para o efeito, tendo presente que o assunto estava a ser tratado exclusivamente por nós e sem sensibilidade para o efeito, verificamos que a comunicação efetuada se deveu a lapso nosso.
Com efeito, não estando o prédio, no qual V. Exas são arrendatários de uma parte, desde logo a mais pequena, sujeita ao regime de propriedade horizontal, não vos assiste esse direito de preferência quanto à venda da totalidade do prédio, ou seja, não é, no presente caso, aplicável o disposto no artigo 1091.º, n.º 1 a) do Código Civil, o que é confirmado pelo n.º 9 do mesmo preceito.
Anotamos ainda que assim tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça em casos semelhantes: “III. O art. 1091, n.º 1, al. a) do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02 deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio uma fração autónoma dele quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal. Tendo ainda determinado que: II. A lei reguladora do direito de preferência do arrendatário é vigente na data em que se concretiza o ato de alienação, pois é a prática do negócio translativo da propriedade sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, que transforma a faculdade de preferir em direito potestativo. Cfr. Acórdão do STJ de 25/03/2021, Processo n.º 10307/16.0T8PRT.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Em suma, sendo aplicável o disposto no art. 1091.º do Código Civil, na sua atual redação ao presente caso, V.Exa não tem direito de preferência sobre o referido prédio. (…)”
(artigo 13º da p.i.).”.
*
IV. Do objecto do recurso.      

1. Vejamos então a questão prévia de rejeição liminar da ampliação do objecto do recurso, por falta de conclusões.
Cabe razão à apelante quando requer a rejeição liminar da requerida ampliação do objecto do recurso, por não terem sido apresentadas conclusões.
De facto, como se afirma nos Acs. do STJ de 17.11.2016 e da Relação de Coimbra de 07.11.2023, ambos disponíveis in www.dgsi.pt, o recorrido, ao requerer a ampliação do objecto de recurso, tem de concluir as suas alegações, com uma síntese conclusiva, das quais resultem as questões de direito ou de facto que coloca à reapreciação do tribunal, sob pena de rejeição liminar da ampliação requerida, por aplicação do disposto no art.º 641.º, n.º 2, al. b), do C.P.C..
Rejeita-se, pois, a requerida ampliação do objecto do recurso.
2. Cabe agora verifica se à autora, na qualidade de arrendatária de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, assiste direito de preferência no negócio de compra e venda da totalidade do mesmo prédio.
Cumpre pois verificar se, face à redação do art. 1091º do Cód. Civil, na compra e venda de um prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário comercial de uma parte desse prédio, sem autonomia jurídica, tem na sua esfera jurídica o direito legal de preferência.
Comecemos por dizer que, à data da comunicação remetida pelos réus à autora, encontrava-se em vigor o art. 1091º do Cód. Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, que é, por isso, a lei aplicável.
Nesta medida, será à luz deste normativo que será apreciado se assiste à autora, como defendido na apelação, o direito de preferir, na qualidade de arrendatária comercial, na venda do prédio.

É o seguinte o teor do referido art. 1091º do Cód. Civil:
“1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053º.
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535º.
4 - A comunicação prevista no nº 1 do artigo 416º é expedida por carta registada com aviso de recepção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da recepção.
5 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.
6 - No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto.
7 - Quando seja aplicável o disposto na parte final do nº 1 do artigo 417º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como fundamento para esse prejuízo.
8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fracção autónoma, a exercer nas seguintes condições:
a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;
b) A comunicação prevista no nº 1 do artigo 416º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;
c) A aquisição pelo preferente é efectuada com afectação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.
9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade».
A preferência na venda por parte do arrendatário foi consagrada pela primeira vez no direito português, pela Lei nº 1662, de 04 de Setembro de 1924, embora então limitada ao arrendamento para comércio de indústria.
Após, a Lei nº 2030, de 22.06.1948, estendeu a preferência ao titular de arrendamento para o exercício de profissão liberal e esse regime transitou para os artigos 1117º e 1119º do Cód. Civil, que manteve o direito de preferência do arrendatário urbano em termos semelhantes aos previstos naquela Lei.
Foi só com a Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, que se veio a consagrar o direito de preferência no arrendamento para habitação, na compra e venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado e instituiu o direito de preferência na alienação de fracções autónomas de prédios constituídos em propriedade horizontal.
Nesse quadro normativo, era predominante, tanto na doutrina como na jurisprudência, o entendimento de que, em prédios não submetidos ao regime de propriedade horizontal, o direito de preferência estabelecido a favor dos arrendatários, habitacionais ou para comércio ou indústria, podia ser exercido em relação à totalidade do prédio vendido onde se situava o local arrendado e se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia à fracção respectiva (cfr. Ac. do STJ, de 21.01.2016, relatado por Tavares de Paiva).
No Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 (5), de 15 de Outubro, a norma do nº 1 do artigo 47º suscitou várias dúvidas, designadamente quanto a saber se a expressão “local arrendado” fazia ou não supor a autonomização jurídica deste e se, não estando constituída a propriedade horizontal sobre o prédio, o direito de preferência do arrendatário podia ser exercido em caso de venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio.
Continuou contudo a ser prevalecente o entendimento de que, na alienação da totalidade do prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal, era admissível o exercício da preferência, em relação a todo o prédio, pelo arrendatário de apenas parte do mesmo, e que sendo vários os arrendatários competiria ao conjunto dos co-arrendatários de partes do mesmo imóvel, abrindo-se licitação entre eles (cfr. na doutrina Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, pág. 568; Pinto Furtado, in “Manual de Arrendamento Urbano”, págs. 639 e 640 e Pedro Romano Soares Martinez, in “Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, Compra e venda, locação, empreitada”, pág. 266, nota 2 e na jurisprudência Acs. do STJ de 12.11.2009 e de 21.01.2016 in www.dgsi.pt.).
Assim, nesta redação legal, se o prédio foi arrendado em frações embora não juridicamente autónomas, a preferência de cada arrendatário não podia incidir sobre a parcela que arrendou por a mesma não poder ser, em si mesma, objeto do negócio de venda ou dação em cumprimento. Mas poderia exercer, em concorrência com os outros arrendatários, também preferentes, aquele direito precedido da via dos artigos 1464º e 1465º do CPC (cfr. Ac. Relação de Lisboa de 20.02.2020, in www.dgsi.pt).
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) - aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, e cujo art. 60º revogou o diploma anterior -, veio novamente reafirmar o direito legal de preferência do arrendatário urbano, consagrando-o no art. 1091º do Cód. Civil (cfr. sobre esta evolução legislativa, Pinto Furtado, in “Comentário ao regime do arrendamento urbano”, págs. 510 e ss.; na Jurisprudência, v., por ex., o Ac. da Relação de Guimarães de 19 de Outubro de 2017, in dgsi.pt).
Passou então a ser prevalecente o entendimento de que o arrendatário de parte não autónoma de prédio urbano não sujeito ao regime de propriedade horizontal não dispõe de direito de preferência na alienação da totalidade do prédio (cfr. neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 21.01.2016, de 24.05.18, de 18.10.2018 e de 11.07.2019, Acs. da Relação de Lisboa de 18.6.2020 e de 15.11.2018, Acs. da Relação do Porto de 21.03.2019, de 10.12.2019 e de 08.09.2020, Acs. da Relação de Guimarães de 19.10.2017 e de 16.12.2021, todos in www.dgsi.pt).
Assim, à luz daquele regime jurídico decorrente do art.º 1091.º do Cód. Civil (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro), o direito de preferência atribuído ao arrendatário coincidia e estava limitado ao local arrendado, pelo que sendo arrendatário de parte do imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal não poderia, nesse caso, o arrendatário beneficiar desse direito relativamente ao locado, por não constituir um bem jurídico autonomizável, nem a todo o imóvel, em caso de venda ou dação em cumprimento (cfr. a exaustiva fundamentação neste sentido interpretativo do mencionado preceito legal, no Ac. do STJ de 18.10.2018, relator Abrantes Geraldes).
Também na doutrina defendem este entendimento, entre outros, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge (Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2009, p. 435): “Com efeito, a preferência consagrada no art.º 1091.º do C. C., por ser legal, reveste-se de natureza excecional e injuntiva, obrigando o intérprete a confiná-la imperativamente aos casos expressamente contemplados na lei. Acresce que não se pode perder de vista a (tendencial) coincidência entre o objeto do direito de preferência com o do direito que a justifica”. E justificam este princípio de coincidência no novo texto legal, acrescentando que perante estes elementos interpretativos “parece, pois, apontar no sentido de que o arrendatário de locado que apenas ocupa parte do imóvel não constituído em propriedade horizontal não tem preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio, já que tal direito não cabe na letra da alínea a) do n.º1 do art.º 1091.º do CC, a qual se refere unicamente ao “local arrendado”, nem satisfaz o apontado princípio da coincidência (…) a desconsideração de tal princípio levaria, no limite, à concessão do direito de preferência do locatário que arrendou o telhado para colocação de um cartaz publicitário ou uma antena retransmissora (!), dado que tal arrendamento encontra-se agora sujeito à disciplina do arrendamento urbano”. e Menezes Cordeiro (Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, pág. 262).
Como se afirma no já citado Ac. desta Relação de Guimarães, de 16.12.2021 relator Joaquim Boavida: “Entre vários outros argumentos, a corrente agora dominante sustenta, em apertada síntese:
- A preferência consagrada no artigo 1091º do CCiv., por ser legal, reveste-se de natureza excepcional e injuntiva, obrigando a confiná-la imperativamente aos casos expressamente contemplados na lei. Existe uma tendencial coincidência entre o objecto do direito de preferência com o do direito que a justifica. Por isso, o arrendatário de locado que apenas ocupa parte do imóvel não constituído em propriedade horizontal não tem preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio, já que tal direito não cabe na letra da alínea a) do nº 1 do artigo 1091º do CCiv., a qual se refere unicamente ao “local arrendado”, nem satisfaz o apontado princípio da coincidência.
- O artigo 1091° do CCiv., então em vigor, face ao anterior artigo 47° do RAU, deixou de fazer referência a «prédio urbano» e a «fracção autónoma» (focando-se agora apenas no «local arrendado») (10),sendo ainda eliminada qualquer referência a licitação entre os diversos arrendatários interessados em exercer concorrentes direitos de preferência. Nesta conformidade, conhecendo o legislador a controvérsia gerada pelo artigo 47° do RAU e devendo presumir-se que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. art. 9° do CCiv.), ao remover - voluntária e conscientemente - do artigo 1091, n° 1, al. a), do CCiv. as expressões que permitiam justificar, segundo alguns, a possibilidade do exercício da preferência sobre todo o imóvel, deixou bem clara a sua intenção de restringir a preferência do arrendatário na venda ou dação do local objecto do contrato de arrendamento («local arrendado») aos casos em que o mesmo seja autonomamente transacionável, o que implica necessariamente a prévia submissão do prédio ao regime da propriedade horizontal (11).
- O interesse protegido pelo direito de preferência do arrendatário é o acesso à habitação ou instalações próprias, permitindo-lhe a continuação da estabilidade jurídica ao dar como findo o arrendamento. Admitir a preferência para além do local efetivamente arrendado, traduzir-se-ia numa vantagem dada ao arrendatário que transcende o fim visado pela lei então em vigor.
Sublinhe-se que o acórdão do Tribunal Constitucional nº 583/2016, relatado por Teles Pereira, não julgou inconstitucional a norma extraída da alínea a) do nº 1 do artigo 1091º do CCiv., na redação introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio.”.
Ora, das alterações produzidas no artigo 1091º do Cód. Civil pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, não se retira qualquer argumento novo para que a questão suscitada deva merecer resposta diferente da que já era dada no âmbito da anterior redacção do aludido preceito legal.
Como se escreveu no já citado Ac. desta Relação de Guimarães, de 16.12.2021.: “a Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, que deu nova redacção ao artigo 1091º, introduziu as seguintes alterações:
i) Reduziu a dois anos o período mínimo de duração do arrendamento, enquanto pressuposto temporal para adquirir a titularidade do direito de preferência (alínea a) do nº 1);
ii) Passou a ser exigida a forma escrita para a comunicação da preferência ao arrendatário (nºs 4 e 7);
iii) Alargou para 30 dias o prazo para a declaração de preferência pelo arrendatário (nº 4);
iv) Densificou o conteúdo da comunicação para preferência na venda de coisas conjuntamente com outras (nºs. 6 e 7);
v) Estendeu o objeto de preferência a prédios não constituídos em propriedade horizontal, mas somente em caso de arrendamento para fins habitacionais (nºs. 8 e 9).
Porém, importa reter que a norma constante do nº 8 do artigo 1091º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 299/2020, de 16 de Junho, publicado no Diário da República nº 183/2020, Série I, de 18.09.2020, com a consequência prevista no artigo 282º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP). Deste modo, produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, mas não determina a repristinação de qualquer norma, pois a norma declarada inconstitucional era inovadora, não tendo paralelo na anterior redacção do artigo 1091º do CCiv., dada pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro. Foi o mencionado nº 8 que consagrou, pela primeira vez, o direito de preferência do arrendatário habitacional de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, quanto à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão.”.
A tal acresce que, resulta expressamente do nº 5 do art. 1091º do Cód. Civil, que os nºs 6 a 9 do mesmo preceito legal, apenas são aplicáveis ao arrendamento para fins habitacionais, que não é a situação dos autos, que respeita a um arrendamento comercial.
Donde se pode concluir que, em face do art. 1091º do Cód. Civil, o arrendatário comercial de uma parte não autónoma de prédio urbano não goza do direito legal de preferência na venda de todo o prédio.
É que, como continua o já citado Ac. desta Relação de Guimarães, de 16.12.2021: “Em primeiro lugar, na interpretação da norma nem sequer o elemento literal é favorável à tese de que o arrendatário de parte do prédio urbano não constituído em propriedade horizontal goza de direito de preferência na alienação do prédio inteiro.
O que a norma consagra, expressa e literalmente, é o “direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado”. O direito de preferência tem inequivocamente por referência o «local arrendado» e não qualquer outra realidade.
Portanto, o objecto da preferência é o «local arrendado» e não o prédio onde se insere o arrendado.
Mais, a expressão “local arrendado” não é sinónimo de “todo o imóvel onde o arrendado se situa”. A parte não se confunde com o todo. Nem a fracção autónoma, enquanto local arrendado, corresponde ao prédio onde a mesma se insere, nem a parte especificada de um prédio se confunde com todo o prédio.
Também não constitui uma expressão de alcance dúbio ou susceptível de polissemia: local arrendado é o espaço físico, elemento físico e espacial, que foi dado de arrendamento pelo senhorio ao locatário.
Em segundo lugar, para efeitos de fixação do sentido e alcance da lei, não é compatível com o critério de interpretação previsto no artigo 9º, nº 3, do CCiv. considerar que o legislador utilizou a mesma expressão, no âmbito do mesmo capítulo daquele diploma, com significados diferentes. O que se deve presumir é precisamente que o legislador quis utilizar a expressão “local arrendado” de forma uniforme e com o apontado sentido literal e gramatical. Esse sentido é bem nítido no artigo 1067º do CCiv., na parte em que, a propósito do “fim do contrato”, estabeleceu, no seu nº 2, que «quando nada se estipule o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões». Deixou aí bem claro que o “local arrendado” é o objeto físico do contrato de arrendamento.
Em terceiro lugar, sendo o apontado sentido inequívoco, há que relembrar que o artigo 1091º, nº 1, é uma norma de natureza excepcional, pelo que não comporta aplicação analógica (artigo 11º do CCiv.). Portanto, mesmo que se considerasse que havia uma lacuna e que procediam as razões justificativas da regulamentação do caso análogo (v. art. 10º, nºs 1 e 2, do CCiv.), não se poderia recorrer à analogia.
No nosso entender, a letra da norma – a al. c) do nº 1 do artigo 1091º, cuja interpretação o Recorrente questiona – não contempla a situação do arrendatário de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal e, como desenvolveremos mais à frente, tal hipótese não está compreendida no espírito da lei, como facilmente se depreende do confronto do nº 1 com os nºs 8 e 9 do artigo 1091º do CCiv.. O legislador não contemplou a situação no nº 1 do artigo 1091º por ter optado conscientemente por aí não a formular; o que pretendeu criar, inovando, consta dos nºs 6 a 9 (além da inovação plasmada no nº 4, que respeita exclusivamente a matéria procedimental).
A criação de um direito legal de preferência restringe o comércio jurídico e a liberdade de contratar, valores fundamentais do nosso ordenamento. Facultando a aquisição de uma propriedade, mesmo contra a vontade do próprio titular, o instituto assume natureza excepcional.
Como melhor se refere no acórdão do STJ, de 18.10.2018, proferido no processo 3131/16.1T8LSB.L1.S1, relatado por Abrantes Geraldes, «os preceitos que consagram direitos de preferência legal, atento o seu caráter excecional, não consentem o seu alargamento a situações que dela não resultem claramente, tanto mais que se trata de direito real de aquisição, com eficácia erga omnes e que nem sequer está sujeito a registo.
O facto de o arrendamento urbano, designadamente o arrendamento para o exercício de comércio ou de profissão liberal, ter vindo a perder paulatinamente os aspetos vinculísticos que o caracterizaram durante as precedentes décadas, com os efeitos que se mostraram bem visíveis no abandono do parque imobiliário e no financiamento de atividades privadas à custa das restrições dos direitos dos proprietários, é coerente com a restrição ao direito de preferência em casos, como o presente, em que o contrato de arrendamento apenas incide sobre uma parte não autónoma de prédio não constituído no regime de propriedade horizontal.
Ainda que o direito de preferência se exerça tanto por tanto relativamente às condições em que o proprietário se propõe vender a terceiro o prédio, a proliferação de direitos legais de preferência como aquele que é reivindicado pelo A. não deixa de perturbar o livre funcionamento do mercado.
Ora, não é compatível com aquela evolução legislativa que vem na senda da maior liberalização do mercado de arrendamento a manutenção de vínculos de natureza real como o direito legal de preferência em tais situações que, levadas ao extremo, levariam a que, por exemplo, o arrendatário de uma garagem ou até de um espaço de parqueamento de veículo (tipo box) num prédio urbano não constituído em propriedade horizontal pudesse, por esse simples facto, interferir na liberdade de comercialização do direito de propriedade de todo o prédio.
E se porventura não devem ser merecedores de proteção especial os objetivos de natureza especulativa que muitas vezes estão subjacentes a este tipo de negócios (tendo, ainda assim, como contributo positivo a recuperação de imóveis degradados que, na sequência da Lei nº 6/06, se mostra bem visível nos centros urbanos das principais cidades), também devem ser desconsiderados com o mesmo ênfase objetivos de natureza semelhante que estão frequentemente associados a situações em que arrendatários de prédios urbanos no sentido se apresentam a exercer a preferência como passo necessário para a posterior revenda a terceiros, como as circunstâncias do caso bem o demonstram».
Em quarto lugar, os elementos introduzidos no artigo 1091º do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, permitem a conclusão de que o arrendatário comercial de uma parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal não goza de preferência na alienação do prédio como um todo.
Desde logo, se na alienação do prédio urbano indiviso todo e qualquer arrendatário de parte deste pudesse exercer a preferência decorrente do disposto na alínea a) do nº 1 do dito artigo, seja relativamente a todo o prédio ou apenas quanto à parte que lhe está arrendada, o estabelecido nos nºs 8 e 9 seria tecnicamente desadequado e substancialmente incompreensível. Dificilmente se pode entender que a lei permite a aquisição de todo o prédio pelo arrendatário urbano não habitacional de apenas uma sua parte, quando apenas admite, como inovação (v. o processo legislativo, incluindo o veto presidencial), a aquisição de uma quota-parte ou proporção do todo pelos arrendatários habitacionais de uma parte não autónoma, deixando por regular a situação dos arrendamentos para outros fins de partes não autónomas. Para quê estabelecer um regime restritivo e burocrático para os arrendatários habitacionais, cujo objectivo declarado da lei foi protegê-los, e deixar para os arrendatários não habitacionais, devido à ausência de regulação, um direito mais amplo do que o daqueles? Será que faz sentido obrigar uns a entrar pela janela e permitir aos demais entrar pela porta?
Depois, o legislador, quanto ao âmbito e termos do exercício do direito de preferência, pretendeu equiparar o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal ao arrendatário de fracção autónoma. É verdade que esse propósito acabou por ser supervenientemente inutilizado pela declaração de inconstitucionalidade do nº 8 do artigo 1091º, mas não deixam de ser bem explicitas a intenção do legislador e as razões que lhe subjazem.
E a realidade é que nunca na jurisprudência (13) se defendeu, no âmbito do artigo 1091º do CCiv., desde que foi reposto pela Lei nº 6/2006, de 20 de Fevereiro, que o arrendatário de uma fracção autónoma pode exercer o seu direito de preferência relativamente a todo o prédio, adquirindo todas ou algumas das fracções autónomas que o integram, para além da que lhe está arrendada.
Ora, tendo o legislador sentido necessidade de proceder à aludida equiparação, isso só pode querer significar que, desde que o regime do arrendamento urbano foi reposto no Código Civil, reconhecia que o arrendatário de parte de prédio indiviso não tinha direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio ou de uma parte alíquota deste, pois que uma parte especificada deste, por exemplo a correspondente ao local arrendado, não era susceptível de ser alienada e, consequentemente, não possibilitava o exercício de qualquer preferência.
Acresce que o nº 9, que subsiste por não se mostrar afectado pela referida declaração de inconstitucionalidade do nº 8, reconhece aos arrendatários do imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal o direito de preferência sobre a totalidade do imóvel, o qual, sendo exercido na venda do prédio, implica a aquisição do mesmo em compropriedade, na respectiva proporção.
O problema é que tal regime apenas é aplicável, tal como resulta expressamente do nº 5 do artigo 1091º, «em caso de arrendamento para fins habitacionais». Não só isso resulta expressamente da letra do preceito, como foi intenção do legislador proteger o direito à habitação. O âmbito de aplicação dos nºs 6 a 9 restringe-se aos arrendamentos habitacionais.
Portanto, o artigo 1091º do CCiv. não atribui ao arrendatário comercial de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência na alienação de todo o prédio, independentemente de saber se, no caso dos arrendamentos habitacionais, opera a aquisição apenas da sua quota-parte, em compropriedade, ou a totalidade do direito de propriedade se for apenas um deles a querer exercer a preferência ou só existir um arrendatário (questão interessante que não desenvolveremos por exorbitar do âmbito do presente recurso).
O legislador distinguiu entre os arrendamentos para fins habitacionais e os arrendamentos para outros fins, por entender que só aqueles são merecedores de tutela (14).
Em quinto lugar, em reforço argumentativo do atrás exposto, verifica-se que o artigo 7º, nº 3, da Lei nº 42/17, de 14 de Junho, veio estabelecer que «os arrendatários de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local gozam de direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou partes de imóveis, nos quais se encontrem instalados, nos termos da legislação em vigor».
O regime estabelecido neste diploma permite extrair duas ilações.
Por um lado, que havia a necessidade de assegurar uma tutela própria para os arrendamentos que apresentam as especificidades previstas na citada norma, diferenciando-a da tutela geral que é alcançada pelo regime do direito legal de preferência regulado no artigo 1091º do CCiv. (15). Como bem se refere no citado acórdão do STJ, de 18.10.2018, «com tal medida o legislador procurou prosseguir o objetivo de tutelar especificamente as chamadas “lojas históricas” que naturalmente, na maior parte dos casos, estão instaladas em edifícios situados nos grandes centros urbanos sobre os quais ainda não incide ou não pode incidir (por falta dos requisitos legais mínimos) o regime da propriedade horizontal».
Ora, se o legislador sentiu a necessidade de acautelar a situação dessas específicas lojas (além dos estabelecimentos, ainda beneficiam do regime as entidades arrendatárias reconhecidas como de interesse histórico e cultural ou social, o que alarga substancialmente o âmbito da norma), regra geral arrendamentos para fins de comércio ou indústria inseridos em prédios não constituídos em propriedade horizontal, então a conclusão lógica é que não estavam a coberto pelo direito de preferência consagrado no artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv.. De outro modo, não faria sentido estar a legislar relativamente a uma situação que já estava legalmente contemplada e prevenida.
Isto evidencia que antes da redacção dada ao artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal não tinha direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada.
Por outro lado, se assim era na vigência da anterior redação do artigo 1091º, por maioria de razão o é, relativamente aos arrendamentos para fins diferentes da habitação, em face da actual redacção do aludido preceito.
Uma vez que a intervenção legislativa apenas inovou no que respeita aos arrendatários habitacionais de imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, reconhecendo-lhes o direito de preferência a exercer nos termos do nº 9 do artigo 1091º, e tendo já anteriormente acautelado o direito de preferência dos arrendatários «de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local», naturalmente que isso permite concluir que ficaram, propositadamente, fora do âmbito daquela norma do Código Civil todos os demais arrendamentos de partes de prédio não constituído em propriedade horizontal.
Em sexto lugar, parecendo-nos evidente que a anterior redacção do artigo 1091º do CCiv., já consagrava o princípio da coincidência entre os limites do objecto do arrendamento e os limites do objecto em relação ao qual se exerce a preferência, que havia sido defendida por Oliveira Ascensão ainda no âmbito do RAU (16), a Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, ao dar nova redacção àquele preceito, não pretendeu propriamente afastar tal consagração no seu nº 1. Limitou-se a plasmar, no que respeita aos arrendamentos habitacionais (nºs 6 a 9), uma peculiar expressão daquele princípio, ao falar em aquisição de «quota-parte» e «na proporção», querendo com isso significar que balizava a aquisição em função da dimensão relativa do local arrendado.”.
Não há como não concordar com tão expressiva e desenvolvida fundamentação, à qual se adere, sem reservas.
Tudo para concluir, como ali, que ao arrendatário comercial de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não assiste direito de preferência na venda do prédio, que apenas é reconhecido ao arrendatário de fracção autónoma ou da totalidade do prédio.
Assim, no caso dos autos, à data da comunicação remetida pelos réus à autora, não dispunha esta de qualquer direito de preferência sobre a venda projectada, pois o arrendamento em questão incidia sobre uma parte não autónoma de prédio urbano.
3. Sabendo contudo que os réus endereçaram à autora/apelante a correspondente comunicação, importa agora verificar se, perante a aceitação, pela autora, da notificação que lhe foi dirigida para o exercício do direito de preferência na referida qualidade de arrendatária, os réus ficaram obrigados a dar-lhe preferência no negócio de venda daquele imóvel.
Como se afirmou no Ac. do STJ de 27.11.2018, in www.dgsi.pt, desde que os requisitos enunciados no nº 1 do art. 416º do Cód. Civil estejam preenchidos, ou seja, desde que a comunicação para preferência contenha os elementos necessários à decisão do preferente, aquela «deve ser qualificada como uma proposta de contrato. Se este não estiver sujeito a forma (ou depender de formalidades a que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente obedeçam), deve entender-se que a declaração de querer preferir feita pelo preferente aperfeiçoa o contrato (…). Caso a celebração do contrato dependa de requisitos formais que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente não preencham, importa distinguir (…) Se a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente forem feitas em documento assinado (A., por exemplo, tendo-se comprometido a dar preferência a B. na venda de determinado imóvel, comunica-lhe por carta que projecta vendê-lo a C. e indica as cláusulas da projectada venda; B., também por carta, responde que quer preferir), deve entender-se que se concluiu um contrato-promessa (cfr. o artigo 410º, nº2) com as respectivas consequências (…)» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3ª ed., pág. 366.; anteriormente, Vaz Serra, RLJ, 101, pp. 233 e ss.; igualmente, desde que a comunicação preencha os apontados requisitos legais, correspondendo ela a verdadeira proposta de contrato, entre outros, além de Pires de Lima e Antunes Varela, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª ed., 1997, pág. 168, Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed., 2009, pág. 450 e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, tomo II, 2010, pp. 496 e 500).
Também no Ac. do STJ de 23.03.2021, disponível no mesmo sítio, se considerou que “a construção normativa que melhor acolhe o direito do preferente é aquela que configura a notificação do obrigado à preferência, como uma verdadeira proposta contratual que, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, uma vez aceite se torna vinculativa”.
Por outro lado, e relativamente à aplicação do disposto no artigo 830.º do Cód. Civil, Menezes Leitão refere que, “a nosso ver, com a comunicação e exercício da preferência, ambas as partes formulam uma proposta de contrato e respectiva aceitação, que em princípio deveria implicar sem mais a celebração do contrato definitivo, desde que estejam preenchidos os seus requisitos de forma. Quando tal não suceda essas declarações poderão ainda valer como promessas de contratar, caso tenha sido observada a respectiva forma, o que permitirá o recurso à execução específica prevista no artigo 830.º em caso de não cumprimento.” (Direito das Obrigações, volume I, Introdução da Constituição das Obrigações, 2000, pp.225/226, e no mesmo sentido Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Compulsória, in Separata do volume XXX do Suplemento do Boletim da FDUC, p.501).
No mesmo sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 19.05.2020, in www.dgsi.pt, onde consta no sumário, nomeadamente que:
“I - A notificação extrajudicial prevista no artigo 416º, n.º 1 do Código Civil que contenha os elementos necessários à decisão do titular do direito de preferência consubstancia uma proposta contratual e a declaração de vontade que este emita, na sequência dessa notificação, de exercer o direito (potestativo), uma vez recebida pelo vinculado à prelação, perfecciona o contrato, ainda que sujeito a forma, desde que esta seja observada pela comunicação do obrigado e pela resposta do preferente.
II - Se a celebração do contrato depender de requisitos formais que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente não preencham, desde que estas tenham lugar por meio de documento por eles assinado, deve entender-se que se concluiu um contrato-promessa, com os efeitos daí decorrentes, designadamente, o recurso à execução específica.”.
Detendo o exame na esfera jurídica do preferente e nos efeitos jurídicos na mesma produzidos, a partir do momento em que o obrigado à preferência decide realizar o negócio (Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, Reimpressão, 2003, pp. 225/8): «(…) ao preferente assistem sucessivamente, antes que aquele negócio se efetive, os seguintes direitos: o direito (creditório) a que lhe sejam notificados os termos essenciais do projeto de alienação; o direito (potestativo) de, na sequência desta notificação, declarar que pretende preferir - declaração esta que, conjugada com a do notificante, dará origem a uma relação creditória equiparável, pelo seu conteúdo e efeitos, a um contrato-promessa bilateral, ou tornará mesmo perfeito o contrato definitivo, se em ambas as declarações (a do obrigado à preferência, que equivale a uma proposta de contrato, e a do preferente, que se traduz na aceitação dessa proposta) houver sido observada a forma exigida para a celebração deste contrato; finalmente, o direito (creditório) de exigir, após ter declarado a vontade de exercer a preferência, que o obrigado a esta realize com ele o negócio projectado, sempre que aquela declaração não baste para o consumar».
Vistos estes ensinamentos, cabe agora verificar se, pelo envio pelos réus, de carta mencionando a existência de um direito de preferência na esfera da autora que, na realidade, aquela não dispunha, como se viu, se gerou algum direito na esfera da autora, ou seja, uma tutela específica da sua confiança.
Como se escreveu na decisão apelada, compulsadas as comunicações remetidas à autora pelos réus AA, CC e FF com vista ao exercício, pela primeira, do direito de preferência na venda do prédio (reproduzidas nos factos provados números 3 e 5), constata-se, sem margem para outra interpretação, que o fazem de …acordo com o previsto e proposto no artigo 1091º do Código Civil… em atenção à condição de arrendatária da autora e para os fins previstos pela alínea a) do n.º 1 do referido artigo 1091º do Cód. Civil.
Por outro lado, das mesmas comunicações estabelecidas entre as partes, verifica-se que a autora/apelante compreendeu perfeitamente qual o regime legal ao abrigo do qual lhe foram comunicadas as condições do negócio.
Com efeito, na sua primeira resposta faz expressa referência às …disposições conjugadas do art. 1091.º, n.º 1, al. a), e n.º 4, e do art. 416.º, n.º 1, ambos do Código Civil…, e na segunda declara …nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.º, n.º 2 e no art. 1091.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, ambos do Código Civil, exercemos o direito de preferência que legalmente nos assiste, relativamente à compra do prédio sito na Praça ..., na freguesia e concelho ..., em propriedade total com andares, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31, pela quantia de 287.500,00€ (duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros).
Ora, desde logo, como se viu, não tinha a autora/apelante o direito (creditório) a que lhe fossem notificados os termos essenciais do projeto de alienação, pelo que as comunicações dos réus constituíram antes, o cumprimento do que estes, consideraram constituir uma obrigação sua para permitir o exercício, pela autora, de um direito legal de preferência, afinal, inexistente.
Não houve assim a exteriorização, por parte dos réus, de uma vontade, livremente formada, de contratarem com a autora ou convencionarem, em benefício da mesma, um direito de preferência na venda do prédio.
Entendemos pois, que a conduta dos réus não teve o condão de substituir o legislador na atribuição de um direito legal de preferência à autora.
O já mencionado Ac. do STJ de 18.10.2018, que tratou de situação idêntica, concluiu no mesmo sentido, considerando que: “direitos desta natureza terão de assentar em pressupostos mais fortes, de natureza objetiva, e não tanto em meras atuações dos sujeitos no âmbito de relações preliminares à concretização de qualquer negócio. Pela sua própria natureza um direito real de aquisição, com eficácia erga omnes, deve ser sustentado numa situação jurídica que ao mesmo conduza e não tanto na avaliação de aspetos de natureza meramente subjetiva, tanto mais que se trata de direito real que nem sequer está sujeito a registo que permita acautelar terceiros”.
No mesmo sentido se pronunciou também o já citado Ac da Relação de Lisboa de 20.02.2020, onde se afirmou que “A tutela da eventual confiança frustrada da autora não se obtém pelo reconhecimento indevido de um direito de preferência que não obtém acolhimento legal.”.

Dispõe o art. 334º do Cód. Civil que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como refere o Professor Antunes Varela, in “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, 128º, 241, este instituto é uma das válvulas de segurança mais úteis do sistema, que, ao lado da ‘correcção do enriquecimento sem causa’, da redução equitativa da cláusula penal excessiva e de outras soluções afins, melhor garantem a sobrevivência de inúmeros ‘direitos subjectivos’, “não obstante o seu carácter essencialmente formal, perante o sentimento implacável da justiça que habita permanentemente no espírito do homem de recta consciência”.
Afirma o citado Professor que o artigo 334.º “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente, a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo”.
Como é sublinhado no Acórdão do STJ, de 21.09.93, CJ, Tomo 3, a figura do abuso de direito, “é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social…; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento”.
O princípio do abuso do direito constitui, pois, um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas dessas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais, e reconduz-se à prática de um acto ilegítimo desde que se ultrapassem os limites que ao direito subjectivo são impostos e descritos no artigo 334º do Cód. Civil.
Tal instituto relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça.
Como se afirma no acórdão do STJ de 09.09.2015, disponível in www.dgsi.pt, que passaremos a seguir, neste dispositivo consagra-se um princípio fundamental da ordem jurídica, qual seja o de que o exercício dos direitos tem limites, pelo que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerente ao seu exercício.
Por um lado, o exercício dos direitos está limitado pela boa fé e pelos bons costumes, e, por outro lado, pelas finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito.
Deste modo, «o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico, pelo que «os sujeitos de determinada relação jurídica devem agir como pessoas de bem, com correção e probidade, de modo a contribuírem, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica» (cf. Ac. do STJ, de 15.12.2011, Pº 2/08.9TTLMG.P1.S1).
Assim, «serão excedidos limites impostos pela boa fé, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objetivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito», e «outro tanto se poderá dizer dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta no meio social onde se mostram integradas».
Pretende-se ainda com ele assegurar expectativas e direccionar condutas (uma das funções primárias do Direito): assegurar, por um lado, a confiança fundada nas condutas comunicativas das «pessoas responsáveis», assente na própria credibilidade que estas condutas reivindicam; e, por outro, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar as possibilidades de certas condutas no futuro. Ambas as funções relacionam-se com aquela «paz jurídica» que, ao lado da «justiça» é referida como uma das expressões da própria «ideia de direito» (Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pág. 346).
Na tipologia do abuso de direito sobressai o venire contra factum proprium, que equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.
Ensina o Prof. Baptista Machado (in ob cit, pág. 415 e ss) o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.
Todavia, para que o venire se verifique não basta a existência de condutas contraditórias. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa confiança.
Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta regressa.
No caso dos autos, o que se verifica desde logo é que, ainda que se pudesse considerar a existência de uma situação de confiança, justificada pela conduta dos réus, a verdade é que não resulta a existência de qualquer investimento da autora/apelante, gerado por essa situação de confiança.
Assim, não se vê que haja motivos assentes na figura do abuso de direito, que poderiam levar a sobrepor a posição jurídica da autora, sustentada apenas naquelas comunicações dos réus, na subsequente resposta da autora e na recusa de contratação assumida pelos réus, resultante da inexistência do direito de preferência.
Ora, negando a lei o direito de preferência da autora no dito negócio e inexistindo o exercício abusivo do seu direito por parte dos réus, falece a pretensão da autora/apelante.
Improcede, pois, a apelação.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º n.º 7 do CPC):
I. Ao abrigo do disposto pelo art. 1091º do Cód. Civil, na redacção da Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, ao arrendatário comercial de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não assiste direito de preferência na venda do prédio, que apenas é reconhecido ao arrendatário de fracção autónoma ou da totalidade do prédio.
II. A construção normativa que melhor acolhe o direito do preferente é aquela que configura a notificação do obrigado à preferência, como uma verdadeira proposta contratual que, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, uma vez aceite se torna vinculativa.
III. A tutela da eventual confiança frustrada da autora não se obtém pelo reconhecimento indevido de um direito de preferência que não obtém acolhimento legal.
*
V. Decisão.

Perante o exposto, acordam as Juízes que constituem este Colectivo da 3ª secção cível deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente a apelação, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas do recurso pela autora/apelante.
*
Guimarães, 3 de Outubro de 2024

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Paula Ribas
Elisabete Moura Alves

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)