Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
566/21.1T8EPS.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Num acidente de viação ocorrido durante o dia, em que um ligeiro circula atrás de um tractor, numa recta com mais de 100 metros, e inicia uma ultrapassagem após passar pelo sinal de fim de proibição de ultrapassar, ocupando a faixa contrária, vindo a ser embatido por um tractor, cujo condutor nesse exacto momento iniciou uma manobra de mudança de direcção para a esquerda, num entroncamento ali existente mas não sinalizado por qualquer placa vertical, sem verificar que o podia fazer em segurança, existem culpas de ambos os condutores na produção do acidente, devendo ser graduadas na percentagem de 80% para o condutor do tractor e 20% para o condutor do ligeiro.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

AA, empregado de mesa, com morada habitual na Travessa ..., ..., ..., intentou a presente acção declarativa contra L..., Compañía de Seguros Y Reaseguros, S.A., com sede na Av. ..., ..., ..., e Companhia de Seguros L... (G... S.A.), com sede na Av. ..., ..., pedindo o seguinte:

Quanto à primeira ré:
- Seja condenada em 6.747,32 €, por danos materiais;
- Subsidiariamente, seja condenada a reparar a viatura ao estado físico e jurídico de origem;
- Seja condenada em 50,00€ por dia, por danos não materiais;
- Seja condenada em juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado até efectivo e integral pagamento dos valores requeridos, nos termos do art.º n.º 829º-A, n.º 4 do Código Civil;
- Seja obrigada a proceder a entrega da prova documental que refere;
- Seja obrigada a indicar os peritos, funcionários e gestores que oportunamente intervieram no processo de averiguação do sinistro, e que porventura não estejam arrolados como testemunhas.
Quanto à segunda ré:
- Seja obrigada a proceder a entrega da prova documental que refere.
Alegou em síntese que foi interveniente num acidente de viação imputável, em exclusivo, ao condutor do veículo segurado pela 1ª ré, sendo que do mesmo resultaram danos no veículo que conduzia. Mais invocou danos provenientes da privação do uso do veículo.
Quanto à segunda ré, na qual tinha à data dos factos seguro o veículo que conduzia, alegou que sobre a mesma recai a obrigação de fornecer toda a documentação que dispõe, e também a que produziu sobre o sinistro, em especial o auto policial, o relatório pericial, e o relatório de averiguação.
As rés foram citadas, e no prazo da contestação o autor desistiu do pedido contra a 2ª ré, o que foi homologado por sentença.
A 1ª ré contestou, imputando a responsabilidade do acidente ao próprio autor e pugnando pela improcedência do pedido.
Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se dispensou a fixação do objecto do litígio e a elaboração de temas de prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“VI. Decisão:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação parcialmente procedente, em consequência do que decido condenar a ré L..., Compañía De Seguros Y Reaseguros, S.A. a pagar ao autor AA as quantias de:
a) €5.397,86 (cinco mil, trezentos e noventa e sete euros e oitenta e seis cêntimos) a título de danos patrimoniais referente a 80% do valor de reparação do veículo, ao qual acrescerão juros, à taxa civil legal, vincendos a partir do trânsito em julgado e até integral e efetivo pagamento.
b) €8 (oito euros) diários, a título de privação do uso, desde a data do sinistro e até à data em que o autor venha a ser ressarcido do valor referido em a), e que nesta data se liquida em €3.208 (três mil e duzentos e oito euros), ao qual acrescerão juros, à taxa civil legal, vincendos a partir do trânsito em julgado e até integral e efetivo pagamento.
*
Custas pelas partes na proporção dos respetivos decaimentos (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
Registe e notifique.”.
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Inconformada com esta decisão, a ré L... dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“Conclusões:
A) O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida a fls._., no âmbito do processo supra identificado, nos termos da qual foi a ação julgada parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, foi a ora Recorrente condenada a pagar ao Autor as quantias de € 5.397,86 a título de danos patrimoniais referente a 80% do valor de reparação do veículo e de € 8,00 diários a título de privação do uso, desde a data do acidente e até à data em que o A. for ressarcido do valor referente à reparação do veículo.
B) Pelas presentes alegações, pretende a Recorrente ver modificada a matéria de facto assente no âmbito dos presentes autos, mais concretamente, e em face da prova produzida nos autos, pretende a Recorrente que se conclua, a final, pela sua absolvição, revertendo-se, assim, a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo.
C) Assim, a ora Recorrente pugna pela alteração do facto provado 9) e dos factos não provados e), f), g) e h).
D) Para o efeito, dever-se-á atender aos seguintes meios de prova: ao depoimento da testemunha BB, prestado em sede de audiência de julgamento dia 05.04.2022, gravação n.º 20220405102431_5948956_2870579, minutos 04:20 e seguintes, minutos 07:23 e seguintes e minutos 09:30 e seguintes; ao auto de ocorrência junto aos autos e às fotografias do dia e local do acidente junta aos autos.
E) Para a alteração do facto provado 9), dever-se-á atender ao auto de ocorrência junto aos autos e às concretas características do local do acidente e dos veículos nele intervenientes, cujos meios de prova, pese embora sejam aptos a demonstrar a efectiva realização de uma manobra de ultrapassagem, demonstram, também eles, que tal manobra não precedeu a manobra de mudança de direção à esquerda.
F) Devendo passar a constar da matéria de facto provada o facto de se tratar de uma “…via onde a viatura ..-..-IC realizou uma manobra de ultrapassagem.”.
G) No que concerne aos factos não provados e) e g), dever-se-á atender ao depoimento da testemunha BB, prestado em sede de audiência de julgamento dia 05.04.2022, gravação n.º 20220405102431_5948956_2870579, minutos 04:20 e seguintes, minutos 07:23 e seguintes e minutos 09:30 e seguintes, bem como às características do local do acidente e dos veículos nele intervenientes, de onde resulta inequivocamente demonstrado que o condutor do veículo trator tomou todas e as devidas precauções antes de dar início à realização da manobra de mudança de direção à esquerda.
H) Pelo que deverão os factos não provados e) e g) ser excluídos da matéria de facto não provada e, consequentemente, deverão os mesmos passar a constar da matéria de facto provada.
I) Relativamente ao facto não provado f), deverá igualmente atender-se ao depoimento da testemunha BB, prestado em sede de audiência de julgamento dia 05.04.2022, gravação n.º 20220405102431_5948956_2870579, a minutos 04:20 e seguintes e a minutos 09:30 e seguintes, ao auto de ocorrência junto aos autos, às características do local do acidente e dos veículos nele intervenientes, cuja conjugação demonstra que o aqui Autor realizou a manobra de ultrapassagem de forma inopinada, sem acautelar a presença do veículo trator, que já realizava a manobra de mudança de direção à esquerda.
J) Pelo que, deverá o facto não provado f) ser excluído da matéria de facto não provada e, consequentemente, deverá o mesmo passar a constar da matéria de facto provada.
K) Já no que concerne ao facto não provado h), a sua alteração decorre, consequentemente, da alteração da matéria de facto supra mencionada, da qual resulta provado que o veículo IC foi embater no veículo EJ, porquanto cortou, sem mais, o sentido de circulação por onde seguia o veículo trator.
L) Termos em que, o facto não provado h) deverá ser excluído da matéria de facto não provada e, consequentemente, deverá o mesmo passar a constar da matéria de facto provada.
M) Por fim, pelas presentes alegações de recurso, a aqui Recorrente pugna pelo erro na determinação da norma aplicável, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639º, n.º 2, alínea c) do C.P.C..
N) De facto, atenta a matéria de facto, provada e não provada, sempre o douto Tribunal a quo deveria ter considerado, no mínimo, igual a medida da culpa de ambos os condutores intervenientes no acidente, pelo que sempre deveria ter procedido à aplicação do artigo 506º, n.º 2, do Código Civil, ao invés de considerar aplicável o artigo 570º do Código Civil.
O) Termos em que, sem prejuízo de pugnar, em primeira instância, pela exclusão da culpa do condutor do veículo por si seguro, e caso assim não se entenda, pugna a ora Recorrente pela aplicação do artigo 506º, n.º 2, do Código Civil, devendo considerar-se igual a medida da culpa de cada um dos condutores.
P) Ademais, e caso assim não se entenda, e, nessa medida, se conclua pela aplicação do artigo 570º do Código Civil, sempre a distribuição de responsabilidades deverá ser fixada equitativamente entre ambos os condutores, na proporção de 50% cada, o que aqui se alega e requer para os devidos e legais efeitos.
Q) Termos em que, deverá proceder-se à alteração da matéria de facto (provada e não provada) elencada no ponto 11. das presentes alegações de recurso (tal como requerido nos pontos 29., 42., 53., 62.) e, consequentemente, considerar-se a ora Recorrente absolvida do pedido contra si formulado.
R) Caso assim não se entenda, deverá concluir-se pela aplicação do artigo 506º, n.º 2, do Código Civil, devendo considerar-se igual a medida da culpa de cada um dos condutores e, consequentemente, condenar-se a aqui Recorrente apenas e só, na proporção de 50% dos danos sofridos (e provados) pelo aqui Autor, o que aqui se requer para os devidos e legais efeitos.
S) Na circunstância de não se admitir a aplicação do artigo 506º, n.º 2, do Código Civil, e se conclua pela aplicação do artigo 570º do Código Civil, então sempre se deverá considerar a divisão equitativa de responsabilidade entre ambos os condutores e, de igual modo, condenar-se a aqui Recorrente na proporção de 50% dos danos sofridos pelo aqui Autor, o que aqui se requer para os devidos e legais efeitos.
Nesta medida, e atentos os fundamentos explanados no presente articulado, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida, devendo a Recorrente ser absolvida do pedido, ou, caso v/ Exas. Assim não entendam, deverá ser condenada apenas na proporção de 50% dos danos provados, atenta a divisão equitativa da responsabilidade, só assim se fazendo JUSTIÇA!”.
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O autor não contra-alegou.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
1. da impugnação da matéria de facto;
2. da divisão de culpas.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

“(Da Petição Inicial)
1) No dia 15/04/2021, pelas 13h00min, o Autor, condutor e proprietário da viatura matrícula ..-..-IC, seguia no sentido ..., pela Estrada Nacional N..5 (Avenida ...), Freguesia ..., Concelho ....
2) A viatura IC é um veículo ligeiro de passageiros, de marca ... e modelo ..., com inspeção técnica periódica em dia, válida até 11/03/2022, devidamente segurada pela Segunda Ré, Companhia de Seguros L..., sob apólice n.º ...41, válida até 12/12/2021.
3) A Avenida ... em ... é composta de uma faixa de rodagem, distribuída em duas vias de trânsito, alcatroada e sinalizada.
4) Na proximidade do n.º 158 daquela via, o Autor deparou-se com a viatura EJ-..- .., veículo de classe especial, com fins diversos do transporte de pessoas ou mercadorias, designado por veículo agrícola, na espécie trator agrícola ou florestal.
5) O veículo agrícola, que seguia no mesmo sentido, circulava entre 5 a 10Km/hora.
6) A faixa de rodagem encontrava-se livre na extensão e largura necessária à realização da manobra de ultrapassagem com segurança.
7) Diante de tal facto, após o sinal C20c – Fim da Proibição de Ultrapassar, iniciou o Autor a ultrapassagem.
8) No momento em que o condutor do veículo EJ deliberadamente inicia movimento perpendicular, em direção à via de trânsito do sentido oposto…
9) … via onde a viatura ..-..- IC já realizava manobra de ultrapassagem.
10) O condutor da viatura ..., trava a fundo desviando a direção para o seu lado esquerdo,
11) … não tendo sido possível, no entanto, evitar o embate.
12) Tendo ambos embatido.
13) … provocando danos em ambos os veículos, sendo que no IC no lado direito do mesmo.
14) A reparação da viatura ..-..-IC, orça na quantia de 6.747,32 €.
15) O Autor, desde o dia do acidente, está privado do uso da sua viatura…
16) … essencial para as suas deslocações no dia-a-dia.
17) O autor não dispõe de outro meio de transporte…
18) A zona onde reside é servida por transporte público pouco eficiente e condicionado aos horários escolares.
19) O Autor, como referido é empregado de mesa e, como tal, presta serviços consoante a demanda dos restaurantes.
20) O autor encontra-se desempregado, mas inscrito no Centro de Emprego.
Da contestação
21) Junto ao local do embate existe um entroncamento.
22) À data dos factos, o piso encontrava-se seco e limpo.
23) O local tem boa visibilidade.
24) O condutor do EJ pretendia mudar de direção à esquerda, no referido entroncamento…
25) Para o que se aproximou do eixo da via.
26) Seguidamente, o condutor do EJ iniciou a manobra de mudança à esquerda, no referido entroncamento.
27) Quando os veículos IC e EJ embateram…
28) Sendo que o IC embateu na sua frente lateral direita, e o EJ na frente lateral esquerda.
29) O condutor do veículo IC iniciou a manobra de mudança de direção sem respeitar a regra estradal de proibição de ultrapassar junto do entroncamento existente no local e para onde o EJ iniciava a sua marcha.
30) O embate ocorreu já junto à entrada do entroncamento existente no local.
31) A responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula EJ-..-.. mostra-se transferida para a ré por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...00, junta aos autos a fls. 37v. e 38, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
32) Foi atribuído pela ré ao veículo IC o valor de €3.800 (três mil e oitocentos euros) e ao salvado o valor de €1.000 (mil euros).”.
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Foram dados como não provados os seguintes factos:
“(Da Petição Inicial)
a) O veículo EJ causasse embaraço injustificado aos restantes utentes da via – 5º factos provados;
b) O autor haja observadas as cautelas necessárias antes de efetuar a manobra de ultrapassagem- 7º FP;
c) O autor haja sinalizado a manobra.
d) Tenho sido o veículo EJ a embater no IC.
(da contestação)
e) O condutor do trator EJ iniciou a mudança de direção à esquerda, tendo-se garantido que se encontravam reunidas as devidas condições de segurança.
f) Nas circunstâncias referidas em 26), o veículo IC iniciou, de forma inopinada, e sem que nada o fizesse prever, a manobra de ultrapassagem.
g) O condutor do EJ sinalizou a manobra de mudança de direção.
h) Tenha sido o veículo IC a embater no EJ.”.
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IV. Do objecto do recurso.

1. Da impugnação da matéria de facto.

Em sede de recurso, a apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Verifica-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, bem como a redação que deve ser dada, como ainda os meios probatórios que na sua ótica o impõe(m), pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o ónus estabelecido no art. 640º do CPC.
Assim, este presente Tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.
Pretende a apelante que se altere a redacção dada ao facto provado sob o ponto 9, e que se considerem como provados os factos dados como não provados nas als. e), f), g) e h).

O ponto 9 dos factos provados tem a seguinte redacção:
“9) … via onde a viatura ..-..- IC já realizava manobra de ultrapassagem.”

Pretende a apelante que passe a ter a seguinte:
“…via onde a viatura ..-..-IC realizou uma manobra de ultrapassagem.”.
Para tal invoca que para a alteração do facto provado 9), dever-se-á atender ao auto de ocorrência junto aos autos e às concretas características do local do acidente e dos veículos nele intervenientes, cujos meios de prova, pese embora sejam aptos a demonstrar a efectiva realização de uma manobra de ultrapassagem, demonstram, também eles, que tal manobra não precedeu a manobra de mudança de direcção à esquerda.
Ora, revistos todos os meios de prova produzidos, formula este Tribunal da Relação uma convicção em tudo coincidente à do Tribunal a quo. Ouvidos os depoimentos prestados (do autor e da testemunha CC), ponderando as razões de facto expostas pela apelante em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, formamos convicção em tudo coincidente com a convicção formada pelo tribunal recorrido.
Com efeito, a fundamentação constante da sentença recorrida é clara e consistente, tendo o tribunal a quo esclarecido como formou a sua convicção, como valorou a prova, como a articulou, e qual a análise crítica a que a submeteu.
Importa salientar, que também na reapreciação da prova que é feita em sede de recurso, é formulado um juízo global que abarca todos os elementos em presença, sendo a prova produzida analisada, de forma directa e indirecta, no seu conjunto.
A apelante limitou-se a tecer considerações sobre o que pode resultar da prova documental dos autos, sem contudo, de modo algum, pôr em causa toda a apreciação crítica que o tribunal a quo fez de toda a prova produzida.
Ora, salvo o devido respeito, tais considerações não permitem a demonstração do facto pretendida pela recorrente.
Quanto a tal matéria, escreveu-se na sentença apelada:
“Entrando agora na matéria controvertida, a dinâmica do acidente, valorou o Tribunal quer as declarações de parte de AA, condutor do IC, quer o depoimento de BB, condutor do veículo EJ, que foram os únicos intervenientes no sinistro em causa e os únicos que presenciaram o mesmo.
Assim, AA, condutor do IC, sustentou que iniciou a manobra de ultrapassagem após o sinal de fim de proibição de ultrapassar, acrescentando que previamente sinalizou a manobra.
Quanto já se encontra a efetuar a manobra de ultrapassagem, o veículo trator muda de direção inopinadamente e, tendo travado ainda e guinado à esquerda, mas não conseguiu, no entanto, evitar a colisão, sendo que o veículo trator lhe embateu na roda da frente esquerda.
BB, por sua vez, aceitando que seguia em marcha muito lenta, de cerca de 5 ou 10 km/hora, explicou que pretendia virar à esquerda no cruzamento aí existente, tendo assinalado a manobra de mudança de direção.
Mais explicou que antes de iniciar a manobra atestou que não vinha ninguém, defendendo que o autor viria com muita velocidade, já que não se apercebeu da sua presença, asseverando que mais de 20 metros antes de virar no cruzamento, já seguia na faixa contrária, a mudar de direção.
Quanto está em cima do cruzamento, surge o veículo do autor, que lhe embate.
Quanto à dinâmica do sinistro, mais teve em consideração o Tribunal o teor das fotografias fls.6 e 7, 69v a 72 e o teor do auto de participação de fls. 66 e 67.
Conjugados os elementos de prova em causa, entende o Tribunal que houve concorrência de causas para a verificação do sinistro.
Em primeiro lugar, dúvida não há de que efetivamente existe o sinal C20c – Fim da Proibição de Ultrapassar cfm. resulta das imagens de fls. 66 e 67, pelo que efetivamente se conclui que o autor inicia a manobra de ultrapassagem num trecho em que as ultrapassagens são já permitidas.
No entanto, no que concerne à tese do autor, não consideramos plausível a sua versão, ao sustentar que observou as cautelas necessárias antes de efetuar a manobra de ultrapassagem, mormente que não sabia da existência de um entroncamento naquele local.
É certo que o entroncamento não está sinalizado, o que se tem em consideração.
No entanto, salvo o devido respeito, do teor das fotografias juntas a fls. 66 e 67 resulta que o entroncamento é perfeitamente visível e, mesmo que o autor não conhecesse a estrada, (e não há prova em contrário, de que conhecesse) estava habilitado no momento em que inicia a manobra de ultrapassagem, a ver o entroncamento e adequar a condução à existência do mesmo.
Por outro lado, entendemos que quer o teor da fotografia de fls. 7, quer ainda o teor do auto de participação corroboram a versão do autor ao sustentar que quando o veículo trator inicia a manobra de mudança de direção o veículo IC já estava na faixa de rodagem, tendo, portanto, o IC iniciado a manobra de ultrapassagem quando a faixa de rodagem estava desimpedida.
É que destes elementos de prova resulta que as marcas de travagem existentes se situam na faixa de rodagem contrária ao sentido de trânsito de veículos sinistrados e antes de chegar ao entroncamento.
Com efeito, quer do teor da fotografia junta na PI a fls.7 quer do teor do auto, a fls. 68v. ponto p), resulta que existe uma marca de travagem, que se prolonga por 5,9 metros e se situa a 2,5 metros (ponto r) do eixo da via, pontanto, integralmente dentro da faixa de rodagem destinada aos veículos que circulavam em sentido oposto, já junto à berma.
Assim sendo, salvo o devido respeito, não é plausível neste ponto a versão do condutor do trator, a testemunha BB, quando sustenta que já seguia na faixa contrária cerca de 20 metros antes do cruzamento, já que, se seguisse efetivamente, o veículo do autor não teria espaço para entrar naquela faixa de rodagem, salientando-se ainda, que o embate se dá na parte lateral direita do IC.
Consideramos, por isso, neste ponto mais sustentada e plausível a versão do condutor do IC, quando sustenta que quando iniciou a manobra de mudança de direção a faixa de rodagem estava livre e desimpedida.
Por outro lado, salvo o devido respeito, também não consideramos plausível a versão que o condutor do EJ ao sustentar que imediatamente antes de iniciar a mudança de direção se haja certificado que ninguém seguia atrás.
É que, tratando-se de uma reta, como se trata, com boa visibilidade, mais de 100 metros, se o condutor do trator tivesse efetivamente olhado teria visto necessariamente o IC.
Conjugados estes elementos, entende o Tribunal, como já se referiu, que quando o EJ faz a manobra de mudança de direção à esquerda, já o IC estava a realizar a manobra de ultrapassagem, tando que as marcas de travagem se situam totalmente na faixa de rodagem contrária e embatem de lado, quase paralelamente.”.
Adere-se totalmente ao que se acaba de transcrever, por ser tal o que decorre da prova produzida.
Com efeito, contrariamente ao pretendido pela apelante, não pode atender-se apenas à prova documental por si referida, para se proceder à alteração do ponto 9) dos factos dados como provados (e que por si só já seria insuficiente para o efeito), esquecendo-se simplesmente a restante prova que se produziu. E da mesma, como se afirma na sentença apelada, resulta manifestamente a factualidade que se deu como provada, e não o que agora se pretende.
Improcede, pois, a impugnação deste facto.
Mais pretende a apelante que se considerem como provados os factos constantes das als. e), f), g) e h) dos factos dados como não provados.

Tais als. têm a seguinte redacção:
“e) O condutor do trator EJ iniciou a mudança de direção à esquerda, tendo-se garantido que se encontravam reunidas as devidas condições de segurança.
f) Nas circunstâncias referidas em 26), o veículo IC iniciou, de forma inopinada, e sem que nada o fizesse prever, a manobra de ultrapassagem.
g) O condutor do EJ sinalizou a manobra de mudança de direção.
h) Tenha sido o veículo IC a embater no EJ.”.
Para tanto invoca a apelante que no que concerne aos factos não provados e) e g), dever-se-á atender ao depoimento da testemunha BB, bem como às características do local do acidente e dos veículos nele intervenientes, de onde resulta inequivocamente demonstrado que o condutor do veículo tractor tomou todas e as devidas precauções antes de dar início à realização da manobra de mudança de direcção à esquerda.
Relativamente ao facto não provado f), deverá igualmente atender-se ao depoimento da testemunha BB, ao auto de ocorrência junto aos autos, às características do local do acidente e dos veículos nele intervenientes, cuja conjugação demonstra que o aqui autor realizou a manobra de ultrapassagem de forma inopinada, sem acautelar a presença do veículo tractor, que já realizava a manobra de mudança de direcção à esquerda.
Finalmente, no que concerne ao facto não provado h), a sua alteração decorre, consequentemente, da alteração da matéria de facto supra mencionada, da qual resulta provado que o veículo IC foi embater no veículo EJ, porquanto cortou, sem mais, o sentido de circulação por onde seguia o veículo tractor.
Mais uma vez entendemos não caber razão à apelante na sua impugnação.
Da prova produzida não autos, não resulta a prova positiva dos factos em causa, sendo que não basta a mera transcrição parcial de um depoimento testemunhal, para se alcançar tal desiderato.
Efectivamente, pese embora tenham sido proferidas as afirmações transcritas nas alegações de recurso pela testemunha CC, condutor do tractor segurado na ré, o facto é que não se pode valorar tal depoimento na medida em que a apelante o pretende.
Esta testemunha afirmou que quando iniciou a mudança de direcção à esquerda, garantiu-se que se encontravam reunidas as devidas condições de segurança, atestando que não vinha ninguém e que já seguia na faixa contrária cerca de 20 metros antes do cruzamento a mudar de direcção (entendendo que o autor vinha em excesso de velocidade, já que não se apercebeu da sua presença); que foi o veículo do autor que iniciou, de forma inopinada, e sem que nada o fizesse prever, a manobra de ultrapassagem e ainda que sinalizou a sua manobra de mudança de direcção.
Contudo, tal depoimento, nessas partes, não se compatibiliza com a restante prova produzida, nem com as regras de experiência comum.
É que, desde Companhia de Seguros L..., não nos parece plausível que já seguisse há 20 metros na faixa de rodagem contrária, pois se assim fosse, o autor não teria espaço para realizar a manobra de ultrapassagem, nem o embate se daria na parte lateral direita do veículo do autor, nem poderiam aparecer rastos de travagem desse veículo nessa mesma faixa de rodagem contrária ao sentido de trânsito de veículos sinistrados e antes de chegar ao entroncamento.
De igual modo, tal depoimento não pode ser considerado plausível quando sustenta que imediatamente antes de iniciar a mudança de direcção se haja certificado que ninguém seguia atrás, uma vez que, tratando-se de uma recta, com visibilidade superior a 100 metros, se o condutor do tractor tivesse de facto olhado para trás, teria visto necessariamente o veículo do autor.
Nessa medida, como se diz na decisão apelada, neste ponto é mais sustentada e plausível a versão do autor, quando sustenta que quando iniciou a manobra de mudança de direcção a faixa de rodagem estava livre e desimpedida.
Donde resulta que, quando o tractor faz a manobra de mudança de direcção à esquerda, já o veículo do autor estava a realizar a manobra de ultrapassagem, tanto que as marcas de travagem se situam totalmente na faixa de rodagem contrária e os veículos embatem de lado, quase paralelamente.
No que respeita à sinalização da manobra por parte do condutor do veículo segurado na ré, nada mais havendo do que o depoimento do próprio condutor do tractor que a confirma, mas existindo o depoimento do autor que a infirma, sem qualquer meio de prova que suporte uma ou outra tese, não existe razão para que se dê como provado tal facto.
Improcede, pois, também nesta parte, a impugnação.
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Considerando que não foram introduzidas alterações na decisão relativa à matéria de facto, a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a que consta do ponto III.
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V. Reapreciação de direito.

Cabe agora verificar se deve a sentença apelada ser revogada/alterada.
Pretende nestes autos saber-se se o sinistro discutido é imputável ao condutor do veículo segurado na ré, ou antes ao próprio autor, ou ainda a ambos, e, se dele decorreram danos para o autor que devam ser indemnizados pela ré a título de responsabilidade civil por acidente automóvel.
O autor demandou a ré, pedindo quantias a título de indemnização por responsabilidade civil por facto ilícito.
Importa, pois, analisar os factos provados à luz do regime da responsabilidade civil, de forma a aquilatarmos da justiça da sua pretensão.
Existe responsabilidade civil quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por outra.
A lei faz surgir uma obrigação em que o responsável é o devedor e a vítima o credor.
O preceito base nesta matéria é o art.483º do Cód. Civ. que no seu nº1 dispõe o seguinte: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrém ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Acrescenta-se no nº2 desse art. que “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
Por força deste artigo, entende-se que o dever de reparação resultante de responsabilidade civil por factos ilícitos depende da verificação em concreto das seguintes condições: prática de um facto ou acto humano qualificado como ilícito, imputável à conduta censurável do agente (culpa), o qual deu origem a um prejuízo ou dano, havendo entre aquele facto e este dano o correspondente nexo de causalidade.
O facto voluntário, entendido como algo controlável pela vontade, pode consistir numa acção que importe a violação do dever jurídico de não ingerência na esfera de acção do titular do direito, ou numa omissão quando exista o dever jurídico de praticar um acto que seguramente impediria a consumação do dano (art. 486º do Cód. Civil).
Exige, ainda, o referido art. 483º que o facto ilícito seja caracterizado pela culpa do lesante, sendo que só pode dizer-se que alguém agiu com culpa quando é imputável e, em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de outro modo. Este juízo de censura pode revestir as modalidades de dolo ou negligência, sendo que na sua modalidade de negligência existe culpa quando o agente actua sem o cuidado devido a que, segundo as circunstâncias do caso concreto, está obrigado a observar e é capaz de observar.
A culpa, face ao artigo 487º, nº2 do Cód. Civil, é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso concreto, sendo que, e em virtude de a mesma constituir um elemento constitutivo do direito à indemnização (art. 342º, nº 1 do mesmo diploma legal), cabe, ao lesado fazer prova da culpa do lesante, sem prejuízo das presunções que a lei estabeleça.
Quanto à existência de dano, tal pode revelar-se como reflexo sobre a situação patrimonial do lesado, compreendendo os danos emergentes e os lucros cessantes, bem como abranger também aqueles outros que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao lesado.
Entre o facto e o dano deve ainda existir um nexo de causalidade que na sua formulação traduz a obrigatoriedade de ressarcir todos aqueles danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563º do Cód. Civil).
Estes pressupostos revestem particularidades quando se referem à indagação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, quer porque a lei estabelece algumas presunções de culpa, quer porque consagra uma responsabilidade pelo risco, isto é, desprovida de culpa e meramente objectiva.
A fim de regulamentar a circulação rodoviária, existe no seu domínio um conjunto de disposições legais com essa finalidade, com vista a que a mesma se faça com a máxima segurança, uma vez que sendo a condução de veículos uma actividade perigosa, é necessária uma especial exigência de comportamentos para quem exerce essa actividade.
É pela apreciação dos deveres de diligência a que o agente está obrigado, nas circunstâncias concretas do caso, face àquelas normas, e a verificação da omissão desses deveres e comportamentos, ou a prática de outros, por desadequados, que tenham provocado o acidente, que se realiza o juízo de censura revelador da culpa do infractor.
Partindo de um conceito de culpa, que significa uma actuação em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito, esta conduta será reprovável quando pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas do caso se conclua que ele podia e devia ter agido de outro modo (vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 1994, Vol. I, pág. 571).
De qualquer modo, mais do que a violação frontal de uma regra estradal, importa essencialmente determinar o processo causal da verificação do acidente, ou seja, a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção.
A sentença apelada julgou a acção parcialmente procedente, concluindo que ambos os condutores nele intervenientes agiram com culpa, graduando a responsabilidade do autor em 20% e do veículo seguro na ré, em 80%.
Pugna a apelante pela exclusão da culpa do condutor do veículo por si seguro, e caso assim não se entenda, pugna pela aplicação do artigo 506º, n.º 2, do Cód. Civil, devendo considerar-se igual a medida da culpa de cada um dos condutores.
Caso assim não se entenda, e, nessa medida, se conclua pela aplicação do artigo 570º do Cód. Civil, entende a apelante que a distribuição de responsabilidades deverá ser fixada equitativamente entre ambos os condutores, na proporção de 50% cada.
Quanto à exclusão da culpa do condutor seguro, terá de improceder a pretensão da ré/apelante, desde Companhia de Seguros L... porque resulta da factualidade apurada que:
-Ambos os intervenientes seguiam no sentido ..., pela Estrada Nacional N..5 (Avenida ...), Freguesia ..., Concelho ...;
- Na proximidade do n.º 158 daquela via, o Autor deparou-se com a viatura EJ-..- .., veículo de classe especial, com fins diversos do transporte de pessoas ou mercadorias, designado por veículo agrícola, na espécie tractor agrícola ou florestal;
- O veículo agrícola, que seguia no mesmo sentido, circulava entre 5 a 10Km/hora;
- A faixa de rodagem encontrava-se livre na extensão e largura necessária à realização da manobra de ultrapassagem com segurança;
- Diante de tal facto, após o sinal C20c – Fim da Proibição de Ultrapassar, iniciou o Autor a ultrapassagem;
- No momento em que o condutor do veículo EJ deliberadamente inicia movimento perpendicular, em direcção à via de trânsito do sentido oposto…
- … via onde a viatura ..-..- IC já realizava manobra de ultrapassagem;
- O condutor do EJ pretendia mudar de direcção à esquerda, no referido entroncamento…
- Para o que se aproximou do eixo da via;
- Seguidamente, o condutor do EJ iniciou a manobra de mudança à esquerda, no referido entroncamento;
- O condutor do veículo IC iniciou a manobra de mudança de direcção sem respeitar regra estradal de proibição de ultrapassar junto do entroncamento existente no local e para onde o EJ iniciava a sua marcha;
- Quando os veículos IC e EJ embateram.
Donde se conclui que o condutor seguro violou o disposto pelos arts. 3.º, n.º 2, 21.º, n.º 1, 35.º, n.º 1, artigo 39.º, n.º 1, todos do Código da Estrada.
De igual modo será de improceder a pretensão da ré/apelante, quando pretende a aplicação do artigo 506º, n.º 2, do Cód. Civil.
De facto, como se escreve no Ac. desta Relação de Guimarães, de 07.04.2022 in www.dgsi.pt:
“A lei distingue no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, entre a responsabilidade civil por factos ilícitos e a responsabilidade pelo risco, sendo aquela, baseada na culpa, a regra, e assumindo a responsabilidade pelo risco, inequivocamente, natureza excecional (v. entre muitos outros o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2019, Processo n.º 5385/15.6T8LRS.L1.S1, Relator Conselheiro Oliveira Abreu, disponível em www.dgsi.pt, à semelhança dos demais citados sem outra menção de origem).
Assim, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidentes de viação causados por veículos automóveis, a ocorrência de uma colisão entre dois veículos automóveis pode enquadrar-se num de três tipos de situações geradoras de responsabilidade civil:
- responsabilidade a título de culpa efetiva de algum ou de ambos os condutores dos veículos intervenientes na colisão (cfr. artigo 483º n.º 1 do CC);
- responsabilidade a título de culpa presumida do condutor de veículo por conta de outrem (cfr. n.º 3 do artigo 503º do CC);
- responsabilidade pelo risco inerente à própria condução dos veículos, nas situações em que se não consegue provar a culpa efetiva de algum dos condutores dos veículos intervenientes e, não se verificando a presunção de culpa consagrada no n.º 3 do artigo 503º, também não se pode afirmar que o acidente foi provocado por culpa do lesado, ou por facto de terceiro, ou por causa de força maior estranha ao funcionamento dos veículos (cfr. artigos 503º n.º 1, 505º e 506º n.º 1, todos do CC).
Como se afirma no citado acórdão de 17/10/2019 a “[N]ota dominante da responsabilidade pelo risco, temo-la no facto de a lei prescindir daquele elemento subjetivo, da culpa. O fundamento da responsabilidade não reside agora no propósito de um ato culposo, mas sim no controle de um risco, ou talvez, com maior rigor, no controle de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o lucro ou em todo o caso, o benefício de uma certa coisa, deve suportar os correspondentes encargos - ubi commodum ibi incommodum.”
Ora, no caso dos autos, como se disse já, o condutor seguro violou o disposto pelos arts. 3.º, n.º 2, 21.º, n.º 1, 35.º, n.º 1, artigo 39.º, n.º 1, todos do Código da Estrada.
Por sua vez, o autor violou o disposto nos arts. artigos 3.º, n.º 2, e 35.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1, alínea c), todos do Código da Estrada.
Tendo ambos os condutores violado tais deveres de diligência a que estavam obrigados face àquelas normas, e que levaram à eclosão do acidente, conclui-se pelo juízo de censura revelador da culpa de ambos. E havendo culpa de ambos os condutores, desde Companhia de Seguros L... é afastada a aplicação do citado art. 506º do Cód. Civil.

Assim, é de aplicar, como o fez o tribunal a quo, o disposto pelo art. 570º do Cód. Civil.
Quanto à distribuição de culpas, disse-se na sentença apelada:
“No que concerne à distribuição de culpas, salvo o devido respeito, consideramos que a conduta do EJ é não só a principal causa do sinistro em análise, já que iniciou uma manobra de mudança de direção, sem e assegurar que o poderia fazer em segurança.
O condutor do IC, ainda tentou evitar o embate, travando e guinando o veículo à esquerda, mas não logrou evitar o embate.
A manobra de ultrapassagem feita pelo veículo conduzido pelo autor, apesar de ter sido feita em local não permitido, não foi a causa principal do acidente, já que o que provoca o embate é a manobra do EJ ao invadir a faixa contrária para mudar de direção.
Sem prejuízo, o IC também é responsável, pois que ultrapassava numa zona não permitida.
O argumento de que tinha visto o sinal de fim de proibição de ultrapassar, salvo o devido respeito, não retira ilicitude à sua conduta, pois que tal sinal significa apenas e só que estamos em zona em que é permitida a ultrapassagem mas com respeito pelas demais normas estradais.
Assim sendo, considerando a contribuição de ambos para o embate, entende o Tribunal adequado uma distribuição de responsabilidades de 80% para o veículo trator e 20% para o autor.
Numa situação em tudo idêntica à dos presentes autos, mas com um desfecho mais infeliz, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28-01-2021, proferido no processo nº 969/17.6T8BGC.G1, consultado em www.dgsi.pt.”.

Contra tal se insurge a apelante, por considerar que tal distribuição deveria ter sido feita na proporção de 50%.
Como afirma Brandão Proença (in “Anotação ao artigo 570.º do Código Civil”, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 579), «Para o exame ponderativo previsto no n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil, a norma exige não só uma presença de duas condutas culposas mas que tenham sido causalmente concorrentes para o evento lesivo ou para o agravamento dos danos (neste caso, e em rigor, não sendo em cada caso, o agravamento um efeito mediato da ação lesiva, o lesante apenas concorre para o dano inicial). O teste da concausalidade não se basta com uma averiguação condicionalista (X e Y causaram Z, não ocorrendo Z sem X e Y), mas exige a presença de critérios jurídicos, seja o da causalidade adequada, seja o da causalidade normativa. (…) o tribunal, na imputação das consequências indemnizatórias e para poder concluir pela concessão, redução ou exclusão da indemnização, deverá ponderar a gravidade das culpas (v.g., em função das regras legais violadas) e ter em conta os efeitos que delas decorreram, pois nem sempre a culpa mais intensa provoca os danos mais extensos.»
Ora, da ponderação da factualidade que resultou provada, facilmente se conclui, como se afirma no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 28.01.2021, disponível in www.dgsi.pt, numa situação em tudo semelhante à dos autos e que passamos a seguir de perto com meras adaptações de redacção para o caso em análise, facilmente se conclui, como dizíamos, que o acidente não teria ocorrido, se o condutor do veículo seguro, antes de mudar de direcção e, assim, cortar a via de marcha em que seguia o veículo do autor, tivesse verificado que estava a ser ultrapassado, pois que então facultaria a ultrapassagem que estava a ser efectuada. Dessa forma violou as disposições dos arts. 3º nº 2, 21º nº 1, 35º nº 1, e 39º nº 1 do Código da Estrada.
Se imaginarmos o desenrolar do acidente, considerando a factualidade que se apurou, veremos uma recta, na qual circula um tractor, a velocidade não superior a 5/10 Km/h e atrás dele um veículo ligeiro. Considerando a diferente natureza dos veículos, é mais que compreensível a diferença de velocidade entre os dois, assim como é mais que compreensível a necessidade do veículo ligeiro de ultrapassar o tractor.
Após passar pelo sinal que marcava o fim da proibição de ultrapassar, o condutor do ligeiro iniciou a manobra de ultrapassagem, colocando-se na faixa da esquerda.
Repare-se que, até aqui, não houve a criação de qualquer perigo. O condutor do veículo ligeiro mudou para a faixa destinada ao trânsito em sentido contrário em total segurança, pois não havia trânsito em sentido contrário. Não fora o comportamento do condutor do tractor, e o veículo ligeiro tê-lo-ia ultrapassado e retomado a sua faixa sem qualquer sobressalto ou problema.
O que sucedeu, porém, foi que quando estava a distância não concretamente apurada do tractor, este inicia a manobra de mudança de direcção à esquerda, com vista ao acesso ao entroncamento existente à esquerda, sem verificar se o poderia fazer em segurança. Aqui sim, estamos perante o comportamento mais grave de todos os que ficaram provados, e que foi causal do acidente: o início da manobra de mudança de direcção sem verificar se o poderia fazer em segurança. Assim, o condutor do tractor introduz-se na faixa contrária e corta a via de marcha em que seguia o veículo ligeiro do autor. O condutor deste, perante aquela manobra inesperada, ainda efectua uma manobra evasiva, guinando para a esquerda e travando, deixando no asfalto marcas de travagem, mas não consegue evitar o embate.
Assim fica clara a diferença entre violações ao Código da Estrada que não são causais do acidente, e aquelas que o são.
A manobra de ultrapassagem tentada encetar pelo veículo ligeiro, apesar de ter sido feita em local não permitido, não foi a causa principal do acidente, pois não fora o comportamento do condutor do tractor, e essa ultrapassagem não teria dado lugar a acidente algum. Já a manobra do condutor do tractor, de invadir a faixa contrária para mudar de direcção para a sua esquerda sem verificar se o poderia fazer em segurança, foi a principal causa do acidente.
Nestes termos, também neste segmento, improcede o recurso.
*
VI. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.
Custas do recurso pela ré/apelante.
*
Guimarães, 30 de Novembro de 2022

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Anizabel Sousa Pereira
Jorge dos Santos
(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das citações/transcrições efectuadas que o sigam)